sábado, 29 de junho de 2024

WERNER JAEGER - PAIDÉIA A Formação do Homem Grego

 



 

Síntese:Paolo Cugini

 

A PRIMEIRA GRÉCIA

 

Nobreza e arete

 

A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana, que, pela sua própria evidência, leva muito tempo a atingir a plena consciência daqueles que a recebem e praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu  primeiro vestígio na tradição literária. O seu conteúdo, aproximadamente o mesmo em todos os povos, é ao mesmo tempo moral e prático. Também entre os Gregos foi assim. Reveste, em parte, a forma de mandamentos, como: honrar os deuses, honrar os deuses, honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar os estrangeiros; consiste por outro lado numa série de preceitos sobre a moralidade externa e em regras de prudência para a vida, transmitidas oralmente pelos séculos afora; e apresenta-se ainda como comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais a cujo conjunto, na medida em que é transmissível, os Gregos deram o nome de techne.

Da educação, neste sentido,  distingue-se  a formação do Homem por meio da criação de um tipo ideal intimamente coerente e claramente definido. Esta formação não é possível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser. A utilidade lhe é indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela é o Kalon, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do ideal. O contraste entre estes dois aspectos da educação pode ser acompanhado através da História: é componente fundamental da natureza humana. As palavras com que os designamos não têm importância em si, mas é fácil ver que, ao empregarmos as expressões educação e formação para designar estes sentidos historicamente distintos, educação e formação têm raízes diversas. A formação manifesta-se na forma integral do Homem, na sua conduta e comportamento exterior e na sua atitude interior. Nem uma nem outra  nasceram do acaso, mas são antes produtos de uma disciplina consciente. Já Platão a comparou ao adestramento de cães de raça. A princípio, esse adestramento limitava-se a uma reduzida classe social, a nobreza.

É fato fundamental da história da formação que toda a cultura superior surge da diferenciação das classes sociais, que por sua vez se origina da diferença natural de valor espiritual e corporal dos indivíduos.

A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma nação. A história da formação grega – o aparecimento da personalidade nacional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo aristocrático da Grécia primitiva com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça.  Uma vez que a mais antiga tradição escrita nos mostra uma cultura aristocrática que se eleva acima do povo, importa  que a investigação histórica a tenha como ponto de partida. Toda a formação posterior, por mais elevada que seja, e ainda que mude de conteúdo, conserva bem clara a marca de sua origem. A formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação.

O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que remonta aos tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra “virtude”  na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega. Basta isto para concluirmos onde devemos procurar a origem dela. É às concepções fundamentais da nobreza cavaleiresca que remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, é no conceito de arete que se concentra o ideal de educação dessa época. 

O testemunho mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero, se com este nome designamos as duas epopéias: a Ilíada e a Odisséia. Para nós, ele é ao mesmo tempo a fonte histórica da vida daqueles dias e a expressão poética imutável dos seus ideais. É preciso encará-los sob dois pontos de vista.

Por um lado, temos de extrair dele a imagem que formamos do mundo aristocrático; por outro, inquirir como o ideal de Homem ganha forma nos poemas  homéricos e como a sua estreita esfera de validade originária se alarga e se converte em força de formação de muito maior amplitude.

Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de arete é freqüentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é não só designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e  rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o homem comum não tem arete e, se o escravo descende por acaso de uma família de alta estripe, Zeus tira-lhe a metade da arete e ele deixa de ser quem era antes. A arete é o atributo próprio de nobreza. Os gregos sempre consideram a destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio de arete estavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavra é a mesma: àpiotos, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente empregado para designar a nobreza.

Só uma vez, nos livros finais, Homero entende por arete as qualidades morais ou espirituais. Em geral de acordo com a modalidade de pensamento  dos tempos primitivos, designa-se por arete a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela.

Sob o conceito de arete é necessário compreender outras excelências além da força intrépida, como nos é apresentada, sem, contar as exceções citadas, pela poesia dos tempos mais antigos. A significação da palavra na linguagem comum penetra, evidentemente, no estilo poético, mas a arete, como expressão da força e da coragem heróicas, estava tão fortemente enraizada na linguagem tradicional da poesia heróica, que esse significado havia de permanecer ali por muito tempo. Era natural que, na idade guerreira das grandes migrações, o valor do homem fosse apreciado sobretudo por aquelas qualidades, caso análogo aos que os outros povos nos oferecem. Também o adjetivo agajós, que embora procede de outra raiz corresponde ao substantivo arete, continha em si a conjugação de nobreza e bravura militar. Às vezes significa nobre, outras, valente ou hábil; quase nunca tem o sentido posterior de “bom”, como arete não tem o de virtude moral. Todas as palavras deste grupo têm em Homero, apesar do predomínio do seu significado guerreiro, um sentido “ético” mais geral. Derivam ambos da mesma raiz: designam o homem nobre que, na vida privada como na guerra, rege-se por normas certas de conduta, alheias ao comum dos homens. O código da nobreza cavaleiresca tem assim uma dupla influência na educação grega. Dela herdou a ética posterior da cidade, como uma das mais altas virtudes, a exigência da coragem, cuja designação posterior – virilidade – recorda claramente a identificação homérica da coragem com a arete varonil.

O sentido do dever é, nos poemas homéricos, uma cacterística essencial da nobreza, que se orgulha por lhe ser imposta uma medida exigente. A força educadora da nobreza reside no fato de despertar o sentimento do dever em face do ideal, que deste modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos. Pode-se sempre apelar  para este sentimento –aidos –e a sua violação desperta nos outros o sentimento  que lhe está estreitamente vinculado, a nemesis. Ambos são em Homero conceitos constitutivos do ideal ético da aristocracia. O orgulho da nobreza, baseado numa longa série de progenitores ilustres, é acompanhado pelo conhecimento pelo conhecimento de que esta proeminência só se pode conservar através das virtudes pelas quais foi conquistada.

A luta e a vitória são, no conceito cavaleiresco, a autêntica prova de fogo da virtude humana. Elas não significam simplesmente a superação física do adversário, mas a comprovação da arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais. A palavra aristeia, empregada mais tarde para os combates singulares dos grandes heróis épicos, corresponde plenamente àquela concepção.

Ainda em outro aspecto é a Ilíada testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva. Mostra como o velho conceito guerreiro da arete já não bastava aos poetas de uma época mais juvenil, mas trazia uma nova imagem do Homem perfeito, para o qual ao lado da ação estava a nobreza do espírito, e só a união de ambas se encontrava o verdadeiro objetivo. E é altamente significativo que seja o velho Fênix, educador de Aquiles, o herói protótipo dos Gregos, quem exprime este ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim para que foi educado:

“ Para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações.”

Não foi sem razão que os Gregos posteriores viram nestes versos a mais antiga formulação do ideal de formação grego, no seu esforço para abranger a totalidade do humano.         

Intimamente ligada à arete está a honra. Nos primeiros tempos era inseparável da habilidade e do mérito. Segundo a bela explicação de Aristóteles a honra é a expressão natural da medida ainda não consciente do ideal de arete, a que aspira.

Para Homero e para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em contrapartida,  a maior tragédia humana. Os heróis tratavam-se mutuamente com respeito e honra  constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de honra era neles simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e os príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta. Ninguém receia, na Antiguidade, reclamar a honra devida a um serviço prestado. A exigência de pagamento é para eles aspecto secundário e de modo nenhum decisivo. O elogio e a reprovação são a  fonte da honra e da desonra.

A ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e á aprovação aparecem ao sentimento cristão como vaidade pessoal pecaminosa; os Gregos, porém, viram nisso a aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o valor. De certo modo pode-se dizer que a arete heróica só se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na imagem da sua arete, tal como o acompanhou e dirigiu na vida.

 

Cultura e educação da nobreza homérica  

 

   Do ponto de vista histórico, a Ilíada é um poema muito mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da história da cultura.

Quando a Odisséia pinta a existência do herói depois da guerra, as suas viagens aventurosas e a sua vida caseira com a família e os amigos, inspira-se na vida real dos nobres do seu tempo e projeta-a com ingênua vivacidade numa época mais primitiva. Ela é, deste modo, a nossa fonte principal para conhecermos a situação da antiga cultura aristocrática. Pertence aos Jôcios, em cuja terra nasceu, mas podemos considerá-la típica quanto ao que nos interessa. Vê-se claramente que as suas decisões não pertencem à tradição dos velhos cantos heróicos, mas assentam na observação direta e realista das coisas contemporâneas.  

  A nobreza da Ilíada é na sua maior parte uma imagem ideal da fantasia, criada com a ajudados traços transmitidos pela tradição dos antigos cantos heróicos. Domina-a, na sua totalidade, o ponto de vista que determinou a forma daquela tradição, isto é, o espanto perante a arete sobre-humana dos heróis da Antiguidade. Só um ou outro traço realista e político, como a cena de Tersites, revela o tempo relativamente tardio do nascimento da Ilíada na sua forma atual.

A nobreza da Odisséia é uma classe fechada, com intensa consciência dos seus privilégios, do seu domínio e dos seus costumes e modos de vida refinados. Em vez das grandiosas paixões das figuras sobre-humanas e dos trágicos destinos da Ilíada , deparamos no novo poema com grande número de figuras de estatura mais humana. Todos têm algo de humano e amável; nos seus discursos e experiências domina o que a retórica posterior apelidou de ethos.

A vida sedentária, a posse de bens e a tradição são os pressupostos da cultura da nobreza. Estas três características possibilitam a transmissão das formas de vida de pais para filhos.  Segundo os imperativos dos costumes da nobreza, a finalidade do jovem consciente do seu padrão deve ser aderir a esse “adestramento” distinto. E, apesar de na Odisséia existir um sentimento de humanidade para com as pessoas comuns e até para com os mendigos, apesar de faltar a orgulhosa e aguda separação entre os nobres e os homens do povo, e existir a patriarcal proximidade de senhores e servos, não se pode imaginar uma educação e formação consciente fora da classe privilegiada. O adestramento como formação da personalidade humana, mediante o conselho constante e a direção espiritual, é uma característica típica da nobreza de todos os tempos e povos. Só esta classe pode aspirar à formação da personalidade humana na sua totalidade, o que não se pode conseguir sem o cultivo consciente de determinadas qualidades fundamentais. Não basta crescer, como as plantas, de acordo com os usos e costumes dos antepassados. A posição e o domínio preeminente dos nobres acarretam a obrigação de estruturar os seus membros desde a mais tenra idade segundo os ideais válidos dentro do seu círculo. A educação converte-se aqui, pela primeira vez, em formação, isto é, na modelação do homem integral de acordo com um tipo fixo. A importância de um tipo desta natureza para a formação do Homem esteve sempre presente na mente dos Gregos. Esta idéia desempenha um papel decisivo em toda a cultura nobre, quer se trate da fisionomia social do séc. XVIII, tal como nos é apresentada por todos os retratos convencionais da época.

A mais alta medida de todo o valor da personalidade humana é ainda, na Odisséia, o ideal herdado da destreza guerreira; mas a ele se junta a elevada estima das virtudes espirituais e sociais destacadas com predileção naquele poema. O seu herói é o homem a quem nunca falta o conselho inteligente e que para cada ocasião acha a palavra adequada. A sua honra é a sua destreza e o engenho da sua inteligência que, na luta pela vida e na volta ao lar, sai sempre triunfante em face dos inimigos mais poderosos e dos perigos que o espreitam.

É preciso dizer aqui uma palavra sobre a importância dos elementos femininos na velha cultura aristocrática. A arete própria da mulher é a formosura. Isto é tão evidente como a valorização do homem pelos seus méritos corporais e espirituais. O culto  da beleza feminina corresponde ao tipo de formação cortesã de todas as idades cavaleirescas. A mulher, todavia, não surge apenas como objeto da solicitação erótica do homem, como Helena ou Penélope, mas também na sua firme posição social e jurídica de dona de casa. As suas virtudes são, a este respeito, o sentido da modéstia e o desembaraço no governo do lar.

 

Homero como educador  

 

Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia.

A não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo. O procedimento de separá-las surge relativamente tarde. Foi p Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante.

A obra de Homero é inspirada, na sua totalidade, por um pensamento “filosófico” relativo à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. Não lhe escapa nada do essencial da vida humana. O poeta contempla todo o conhecimento particular à luz do seu conhecimento geral da essência das coisas. A preferência dos gregos pela poesia gnômica, a tendência a avaliar tudo o que acontece pelas normas mais altas e a partir  premissas, o uso freqüente de exemplos míticos, julgados tipos e ideais imperativos, todos estes traços têm a sua origem última em Homero. Não há símbolo da concepção épica do homem tão maravilhoso como a representação estampada no escudo de Aquiles e descrita em detalhe pela Ilíada. Hefestos   pinta nele a terra, o céu e o mar, o sol infatigável, a lua cheia e as constelações que povoam o céu. Cria ainda a imagem das duas mais belas cidades dos homens. Numa delas, realizam-se bodas, festas, cortejos nupciais e epitalâmios. Os jovens dançam em roda, ao som das flautas e das liras. As mulheres, à parte, contemplam-nos, admiradas. O povo está reunido no mercado, onde se desenrola um processo. Dois homens brigam a propósito do preço de um morto. Os juízes sentam-se em pedras polidas, num círculo sagrado, e de cetros na mão pronunciam a sentença. A outra cidade está cercada por dois exércitos numerosos, de armaduras brilhantes, desejosos de a destruírem e saquearem. Os seus habitantes, porém, não querem render-se, antes se mantêm firmes nas ameias das muralhas para defenderem os velhos, as mulheres e as crianças. Contudo, os homens saem secretamente e, junto à margem de um rio, onde há um bebedouro para o gado, armam uma emboscada e assaltam um rebanho. Acode o inimigo e trava-se o combate. Voam as lanças, no meio do tumulto, avançam Éris e Kydoimos, demônios da guerra, e Ker, o demônio da morte, de vestes ensangüentadas, e arrastam pelos pés os mortos e feridos. Há também um campo onde os lavradores abrem sulcos com as suas juntas e, na ribanceira, um homem despeja vinho numa taça, para refrescá-los. A seguir, vem uma herdade na época da colheita. Os ceifeiros levam na mão a foice, jogam no chão as espigas, que são atadas em molhos, e o proprietário permanece calado, de coração alegre, enquanto os servos preparam a comida. Uma vinha com os seus alegres vinhateiros; um soberbo rebanho de bois com grandes chifres, junto com os respectivos pastores e cães; uma pastagem no fundo de um vale formoso, com ovelhas, apriscos e estábulos; um local para dança, onde moços e moças bailam de mãos dadas e um divino cantor canta com voz sonora, contemplam esta pintura exaustiva da vida humana, com o seu singelo, magnífico e eterno significado. em volta do círculo do escudo, envolvendo todas as cenas, flui o Oceano.

A perfeita harmonia da natureza e da vida humana, revelada na descrição do escudo domina a concepção homérica da realidade. Por toda a parte o grande ritmo uniforme mantém a plenitude do seu movimento.

Para Homero, como para os Gregos em geral, as últimas fronteiras da ética não são convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por este amplo sentido da realidade, em relação ao qual todo “ realismo” aparece como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopéia homérica.

A arte da motivação em Homero está ligada à sua maneira profunda de penetrar o que é universal e necessário nos temas. Para ele, não há a simples aceitação passiva das tradições nem a mera relação dos fatos, mas um desenvolvimento íntimo e necessário das  ações, que se sucedem passo a passo, numa inviolável conexão de causas e efeitos. A ação dramática desenrola-se dois poemas com interrupta continuidade desde os primeiros versos.

Homero, no entanto, não é autor moderno que considera tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno, como experiência ou fenômeno de uma consciência humana. No mundo em que vive, nada de grande acontece sem a cooperação de uma força divina, e a mesma coisa acontece na epopéia.

A inevitável onisciência do poeta não se revela em Homero na forma como nos fala das emoções secretas e íntimas das suas personagens, como se ele próprio as tivesse sentido (o que os nossos escritores precisam fazer), mas sim porque ele vê laços entre o humano e o divino. Não são fáceis de assinalar os limites a partir dos quais esta representação da realidade é, em Homero, artifício poético; mas, evidentemente, é falso explicar sempre a intervenção dos deuses como simples recurso da poesia épica. O poeta não vive num mundo de ilusão artística consciente, por trás do qual se encontre o frio e frívolo iluminismo, e a banalidade do dia-a-dia burguês. Se percorrermos com discernimento casos de intervenção divina na épica homérica, veremos um desenvolvimento espiritual que vai desde as intervenções mais exteriores e esporádicas, que poderão pertencer aos usos mais antigos do estilo épico, até a condução contínua de certos homens por uma divindade. Assim Ulisses é guiado por inspirações de Atena, sempre renovadas.

A epopéia conserva, assim, um duplicidade característica. Qualquer ação deve ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino. A cena deste drama desenrola-se em dois planos. Seguimos constantemente a sua marcha sub specie das ações e projetos humanos, e dos mais altos poderes que governam o mundo. Desse modo surge à plena luz a limitação, a miopia e a dependência das ações humanas em relação aos decretos sobre-humanos e insondáveis. Os atores não podem ver esta conexão, tal como ela aparece aos olhos do poeta. A intervenção dos deuses nos fatos e sofrimentos humanos obriga o poeta grego a considerar sempre as ações e o destino do Homem na sua significação absoluta, a subordiná-los à conexão universal do mundo e a avaliá-los pelas mais altas normas religiosas e morais. Do ponto de vista da concepção do mundo, a epopéia grega é mais objetiva e mais profunda que a épica medieval.

A epopéia grega já contém o germe da filosofia grega. Por outro lado, revela-se com a maior clareza o contraste entre a concepção do mundo puramente teomórfica dos povos orientais, para a qual só Deus age e o Homem é apenas o objeto da sua ação, e o caráter antropocêntrico do pensamento grego. Homero situa resolutamente em primeiro plano o Homem e o seu destino, embora o enquadre na perspectiva das idéias mais sublimes e dos problemas  máximos da vida.

Quando dois povos lutam entre si e imploram com preces e sacrifícios o auxílio dos eus deuses, põem os deuses em situação delicada, sobretudo dentro de um pensamento que acredita na onipotência e na justiça imparcial do poder divino. Assim, vemos na Ilíada um pensamento religioso e moral já bastante avançado debater-se com o problema de pôr em concordância o caráter original, particular e local da maioria dos deuses com a exigência de um comando unitário do mundo. A humanidade e proximidade dos deuses gregos induzia uma estirpe, que com plena consciência do seu orgulho aristocrático se sentia intimamente aparentada aos imortais, a supor que a vida e as atividades das forças celestes não diferiam  muito das que tinham lugar na sua existência terrena. Em contraste com esta representação que tantas vezes se choca contra a elevação abstrata dos filósofos posteriores, vê-se na Ilíada um sentimento religioso cuja representação da divindade, e principalmente do soberano supremo do mundo, serve de alimento às idéias mais sublimes da arte e da filosofia posteriores. Só na Odisséia, porém, descobrimos uma concepção mais coerente e sistemática do governo dos deuses.

A mais alta divindade é para o poeta uma força sublime e onisciente que se encontra acima dos esforços e pensamentos. Não se compara às paixões cegas que arrastam consigo as faltas dos homens e os fazem cair nas rede de Ate. É através deste prisma ético e religioso que o poeta encara os sofrimentos de Ulisses, expiada com a morte. Toda a ação decorre até o fim invariavelmente em torno deste problema.

É da essência desta história que a vontade suprema, a qual orienta de um modo conseqüente e poderoso o conjunto da ação e a conduz finalmente até um resultado justo e feliz, aparece sem disfarce no momento culminante. O poeta ordena tudo quanto ocorre no sistema do seu pensamento religioso. Cada personagem conserva firmemente a sua atitude e o seu caráter.

 

Hesíodo e a vida do campo    

          

Os Gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo. Nele se revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e cultura dos nobres. Principalmente o último e mais arraigado à terra dos poemas de Hesíodo que se conservaram, os Erga, apresenta a mais viva descrição da vida campestre da metrópole grega no final do séc. VIII e completa essencialmente a representação da vida mais primitiva do povo grego que aprendemos do jônico Homero. Homero acentua, com a maior nitidez, que toda a educação temo seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das qualidades próprias dos senhores e dos heróis. Em Hesíodo revela-se a Segunda fonte da cultura: o valor do trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias, dado pela posterioridade ao poema rústico didático de Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e os seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores  com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial, em Homero, não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige dos seus habitantes uma vida de trabalho.   

A mais elevada vida espiritual do campo dimana naturalmente das camadas superiores. Como já mostram a Ilíada e a Odisséia, a epopéia homérica foi cantada, primitivamente, por trovadores ambulantes nas residências dos nobres. Mas até Hesíodo, que cresceu num ambiente camponês e trabalhou no campo, teve conhecimento de Homero, antes de despertar para a vocação de rapsodo. O seu poema dirige-se primordialmente aos homens da sua condição e parte do princípio de que os seus ouvintes entendem a linguagem artística de Homero, que é a  que ele próprio emprega. Nada revela tão claramente como a estrutura do poema de Hesíodo a essência do processo espiritual que se realiza através do contato daquela  classe com a poesia homérica.

Reflete-se nele o processo da formação interior do poeta. Toda a elaboração poética de Hesíodo se sujeita, sem vacilar, às formas estilizadas por Homero. Aceita dele versos inteiros, fragmentos, palavras e frases. O uso deepítetos épicos pertence também à linguagem de Homero. Daqui resulta um notável contraste entre o fundo e a forma do novo poema. No entanto, para estes elementos não populares penetrarem na existência dos camponeses e pastores simples e ligados à terra, e elevarem os seus velados pressentimentos e desejos a uma claridade consciente e a uma inspiração moral, era preciso dotá-los de uma expressão convincente. O conhecimento da poesia homérica não significa para os homens do mundo hesíodico só um enriquecimento enorme dos meios de expressão. Apesar do seu espírito heróico e patético, tão oposto  ao estilo de vida deles, abria-lhes, pela precisão e clareza com que exprimia os mais elevados problemas da vida humana, o caminho espiritual que os conduzia para fora da estreiteza opressiva da sua existência, até a mais alta e mais pura atmosfera do pensamento.

O poema de Hesíodo permite-nos conhecer com clareza o tesouro espiritual que os camponeses beócios possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa das sagas da Teogonia encontramos muitos temas antiqüíssimos, já conhecidos de Homero, mas também muitos outros que nele não aparecem. E nem sempre é fácil distinguir o que já estava elaborado em forma poética daquilo que corresponde a simples tradição oral. Hesíodo manifesta-se na Teogonia mais como pensador construtivo, enquanto nos Erga está mais próximo da realidade e da vida do campo. Mas também aqui quebra sem hesitar o fio do seu pensamento para contar longos mitos, na certeza de agradar aos ouvintes. Também para o povo os mitos eram um assunto de interesse ilimitado, incitavam a uma infinidade de narrações e reflexões e constituíam toda a filosofia daqueles homens. Assim, na escolha inconsciente do assunto das sagas manifesta-se a orientação espiritual própria dos camponeses. Os preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida realista e pessimista daquela classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem: o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da vida humana; a narração das cinco idades do mundo, que explica a enorme distância entre a própria existência e o mundo resplandecente de Homero, e reflete a eterna nostalgia do Homem por melhores tempos; o mito de Pandora, que é alheio ao pensamento cavaleiresco e exprime a concepção triste e prosaica da mulher como fonte de todos os males. Não creio que estejamos errados ao afirmar que não foi Hesíodo o primeiro a popularizar estas histórias entre os camponeses. Mas foi ele, sem dúvida, o primeiro a situá-las decisivamente no vasto contexto social e filosófico com que aparecem nos seus poemas. O modo como, por exemplo, conta as histórias de Prometeu e Pandora pressupõe nitidamente que já eram conhecidas dos seus ouvintes. Em face destas tradições religiosas, éticas e sociais, o interesse dominante pela epopéia homérica passa no ambiente de Hesíodo para segundo plano. A atitude original do Homem perante a existência ganha forma nos mitos. Por isso é que todas as classes sociais possuem o seu próprio tesouro de mitos.

Ao lado dos mitos, o povo guarda a sua antiga sabedoria prática, adquirida  pela experiência imemorial de incontáveis gerações e que se compõe de conhecimentos e conselhos profissionais, e de normas morais e sociais, concentradas em fórmulas breves, de modo a permitir conservá-los na memória.

Em Hesíodo introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalização a todos estes elementos e adquire uma elaboração poética em forma de epopéia: a idéia do direito. A propósito da luta pelos próprios direitos, contra  as usurpações do seu irmão e a venalidade dos nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, os Erga, uma fé apaixonada no direito. A grande novidade desta obra está em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona a tradicional objetividade da epopéia e torna-se porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direito.

Assim como Homero descreve o destino dos heróis que lutam e sofre somo sendo um drama dos deuses e dos homens, Hesíodo apresenta o simples acontecimento civil da ação judicial como uma luta entre os poderes do Céu e da Terra pelo triunfo da justiça. Deste modo, eleva à nobre categoria e à dignidade de uma verdadeira epopéia um caso real da sua vida, por si mesmo sem importância. Naturalmente, não pode transportar os seus ouvintes para o céu, como faz Homero, porque nenhum mortal pode conhecer as decisões de Zeus, que humilha os poderosos e exalta os humildes, deve fazer com que seja justa a sentença dos juízes.

Os três elementos essenciais para uma doutrina racional do devir no mundo aparecem também, com evidência, na representação mítica da Teogonia: o Caos, o espaço vazio; a Terra e o Céu, fundamento e dossel do mundo, separados pelo Caos; e Eros, a força originária criadora e animadora do Cosmos. A Terra e o Céu  são elementos essenciais de toda concepção mítica do mundo. E o Caos, que também encontramos nos mitos nórdicos, é evidentemente uma idéia originária da raças indo-germânicas. O Eros de Hesíodo é uma idéia especulativa original e de enorme fecundidade filosófica. 

O pensamento da teogonia não se contenta em pôr em interação os deuses reconhecidos e venerados nos cultos nem se atém aos conceitos tradicionais da religião em vigor. Pelo contrário, põe os dados da religião, no sentido mais amplo do culto, da tradição mítica e da vida interior, a serviço de uma concepção sistemática da origem do mundo e da vida interior, a serviço de uma concepção sistemática da origem do mundo e da vida humana, elaborada pela imaginação e pela inteligência. Julga assim toda força ativa como uma força divina, o que é próprio de tal grau desenvolvimento espiritual. Estamos, pois, em presença de um pensamento vivo e mítico, exposto sob a forma de um poema original. Mas este sistema mítico é constituído e governado por um elemento racional, como prova o fato de ele se entender muito além do círculo dos deuses de Homero e do culto, e de não se confinar ao simples registro e combinação de deuses admitidos pela tradição, mas elaborar uma interpretação criadora destes e inventar novas personificações quando o exigem as novas necessidades do pensamento abstrato.

Estas breves referências bastam para delinear o fundo dos mitos que Hesíodo introduz nos Erga com o fim de explicar a presença do cansaço e do trabalho na vida humana, e a existência do mal no mundo. Assim, logo no relato introdutório sobre a Éris e a má vê-se que a Teogonia e os Erga, apesar da diferença dos assuntos, não estavam separadas na mente do poeta e o pensamento do teólogo penetra o do moralista, assim como o deste se manifesta claramente na Teogonia. Ambas as obras provêm da íntima unidade da imagem do mundo de uma personalidade.

Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu, nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos devem ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte , desde a origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes como causa a sinistra ação de Prometeu, o roubo do fogo divino, que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males mil que hoje povoam a Terra e o mar.        

O mito é como um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem cessar. É o poeta que realiza essa transformação.  Mas não a realiza em obediência a um simples desejo arbitrário. O poeta estrutura uma nova forma de vida para o seu tempo e interpreta o mito de acordo com as suas novas evidências interiores. O mito só se mantém vivo por meio da contínua metamorfose da sua vida. Mas, a idéia nova é transportada pelo veículo seguro do mito. Isto já é válido para a relação do poeta com a tradição, na epopéia homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto que nele a individualidade poética aparece de modo evidente,  age com plena consciência e serve-se de tradição mítica como de um instrumento para os eu próprio designo.

Este uso normativo do mito revela-se com maior nitidez porque Hesíodo, nos Erga coloca a narração das cinco idades do mundo logo em seguida à história de Prometeu, mediante uma fórmula de transição que talvez não tenha estilo, mas é sumamente característica para o que nos interessa.

É no intuito educativo de Hesíodo que está a verdadeira raiz da sua poesia. Não depende do predomínio da forma épica nem da matéria como tal. Se considerarmos os poemas didáticos de Hesíodo como uma simples aplicação mais ou menos original da linguagem e formas poéticas dos rapsodos há um conteúdo que as gerações posteriores consideravam “prosaico” surgirão dúvidas sobre o caráter poético da obra os filólogos antigos formularam dúvidas idênticas a respeito dos poemas didáticos posteriores. O próprio Hesíodo encontrou justificação para a sua missão poética na vontade profética em se converter em mestre do seu povo. Os seus contemporâneos contemplavam Homero com estes olhos, pois não podiam imaginar forma mais elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e rapsodos homéricos. A missão educativa do poeta estava inseparavelmente ligada à forma de linguagem épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero. Quando Hesíodo recolheu a seu modo a herança de Homero, definiu para a posteridade, transpondo os limites da mera poesia didática, a essência da criação poética no sentido social, educador e construtivo. Esta força edificadora brota, para além de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a essência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova. Ameaça iminente de um estado social dominado pela dimensão e pela injustiça deu a Hesíodo a visão dos fundamentos em que se apoiava a vida daquela sociedade e a de cada um dos seus membros. Esta visão essencial que penetra o sentido simples e original da existência determina a função do verdadeiro poeta.  Para este não há assuntos prosaicos ou poéticos em si.

Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome. Deste modo ergue-se acima da esfera épica, que a apregoa a fama e interpreta as sagas até a realidade e as lutas atuais.

 

 Educação estatal de Esparta

 

A Polis como forma de cultura e os seus tipos

 

           É na escritura social da vida da polis que a cultura grega atinge pela primeira vez a forma clássica. A sociedade aristocrática e a vida do campo não estão, é certo, totalmente desligadas da polis. As formas de vida feudal e campesina aparecem na história mais primitiva da polis e persistem ainda nos seus estágios finais. Mas a direção espiritual pertence á vida das cidades. Ainda quando se baseia total ou parcialmente nos princípios aristocráticos ou camponeses, a polis representa um princípio novo, uma forma mais firme e mais acabada da vida social de significado muito maior que nenhuma outra para os Gregos.

         A polis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega.

          Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura. No período primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida da comunidade.

          A polis é o marco social da história da formação grega. É em relação a ela que temos de situar todas as obras da “literatura”, até o fim do período ático.

          Platão parte dos poetas, ao tentar traçar nas Leis o esquema do pensamento político e pedagógico da Antiguidade helênica, e chega à determinação de duas formas fundamentais que parecem representar a totalidade da cultura política do seu povo: o estado militar espartano e o estado  jurídico da Jônia. Temos, portanto, de considerar estes dois tipos com especial cuidado.

A primeira Grécia

 

          A mescla de dialetos diferentes, visível na epopéia, prova que a criação artística da poesia homérica é fruto da colaboração de várias raças e povos na elaboração do vocabulário, estilo e métrica dos poemas.

          As particularidade do espírito dórico e jônico, ao contrário, revelam-se de maneira precisa nas formas da vida  das cidades e na fisionomia espiritual da polis. Ambos os tipos se juntam na Atenas dos séculos V e IV. Enquanto a vida real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo do ideal jônico, na esfera espiritual, por influência aristocrática da filosofia ática, vive a idéia espartana de uma regeneração que, no ideal platônico da formação, funde-se numa unidade superior com a idéia fundamental jônico-ática, despojada da sua forma democrática de um Estado rígido pelo direito.

            

O ideal Espartano do séc. IV e a tradição

A primeira Grécia

 

            Esparta não tem lugar autônomo nem a história da filosofia da arte. A raça jônica, por exemplo, desempenha um papel diretivo no desenvolvimento da consciência filosófica; mas em vão se buscaria um nome espartano entre os moralistas e filósofos gregos. Em contrapartida, Esparta tem, de pleno direito, um lugar na história da educação. A criação mais  característica de Esparta é o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira vez, uma força educadora no mais vasto sentido da palavra.

            A crença de que a educação espartana era uma preparação militar unilateral deriva da política de Aristóteles.

 

Educação estatal de Esparta

 

               A primeira coisa a levar em conta é que os Espartanos constituíam, entre a população lacônica, apenas uma reduzida classe dominante, de formação tardia. Sob o seu domínio estava uma classe popular, livre, operária e camponesa, os periecos, bem como os servos hilotas, a massa dos submetidos, quase sem quaisquer direitos.

            A assembléia do povo espartano não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela qualquer discussão. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. Este tem direito a dissolver a assembléia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável.

           A educação estendia-se aos adultos. Ninguém era livre nem podia viver a seu bel-prazer: Tal como num  acampamento, na cidade de todos tinham as suas ocupações e modo d vida regulamentados em função das necessidades do Estado e tinham consciência de não pertencerem a si próprios, mas á Pátria.

           Esparta era um fenômeno difícil de ser compreendido pela mentalidade cada vez mais individualista da Atenas posterior a Péricles.

           

A primeira Grécia

 

        A estreita ligação entre o indivíduo e a cidade estava, em tempo de paz, simplesmente latente para o cidadão médio, mesmo num Estado como o espartano. No caso de perigo, todavia, a idéia da totalidade manifestava-se subitamente com a maior força.

        O ideal homérico da arete heróica transforma-se no heroísmo do amor à pátria. O poeta aspira a impregnar deste espírito a vida de todos os concidadãos. Quer criar um povo, um Estado de heróis. A morte é  bela quando é a de um herói. E se é herói quando se morre pela pátria. Essa idéia dá á morte o sentido de um holocausto da própria pessoa em prol de um bem mais alto.

 

Educação  Espartal de Esparta

 

       Os gregos primitivos não conheceram a imortalidade da “alma”. O homem morria com a morte do corpo. A psyche homérica significa antes o contrário: a imagem corpórea do próprio Homem, que vagueia no Hades como uma sombra: um puro nada. Mas, se alguém, pela oferta de sua vida, se eleva a um ser mais alto acima da existência humana comum, a polis concede-lhe a imortalidade do seu eu ideal, isto é, do seu “nome”. Foi apartir daí Qua a idéia da glória heróica guardou, aos olhos dos Gregos, este matriz político. O homem político alcança a perfeição através da perenidade da sua memória na comunidade pela qual viveu ou morreu. Só o crescente menosprezo pelo Estado, próprio das épocas seguintes, e a progressiva valorização da alma individual, que alcança o apogeu com o Cristianismo, possibilitaram aos filósofos tomarem o desprezo da glória por uma exigência moral. Nada de semelhante se encontra ainda na concepção do Estado de Demóstenes e de Cícero. É coma alegria  de Tirteu que se inicia o desenvolvimento da ética do Estado. Assim como guarda a memória do herói caído, também ele sublima a figura do guerreiro vencedor.

   Honram-no jovens e anciãos, a vida oferece-lhe distinção e singularidade, ninguém se atreve a prejudicá-lo ou ofendê-lo. Quando chega á velhice, infunde um respeito profundo, e onde quer que chegue todos lhe dão lugar. Na restrita comunidade da primitiva polis grega isto não são apenas belas palavras. Esse Estado é realmente pequeno, mas tem na sua essência algo ao mesmo tempo heróico e profundamente humano. Para os gregos, e mesmo para toda a Antiguidade, o herói é, pura e simplesmente, a mais alta forma de humanidade.

 

O Estado Jurídico e o seu ideal de cidadão

 

    É nos poemas homéricos que se vêem os primeiros reflexos da vida da polis jônica. A guerra dos Gregos contra Tróia não proporcionava nenhuma oportunidade para a descrição da cidade helênica, uma vez que os Troianos eram considerados bárbaros por Homero. Mas, quando o poeta nos descreve a defesa de Tróia, aparecem involuntariamente traços de uma polis jônica, e Heitor, o libertador da pátria, converte-se no modelo de Calino e Tirteu.

    Os Gregos das colônias, uma vez separados da metrópole, breve se tornaram um povo menos sedentário e menos ligado a terra. A Odisséia já reflete a enorme vastidão dos horizontes marítimos que eles rasgaram e o novo tipo humano criado pelos navegadores da Jônia. Ulisses não é tanto o tipo do cavaleiro batalhador como a encarnação do aventureiro e explorador, e do desembaraço astuto dos Jônios, habituados a se moverem em todos os países e a se saírem bem em todas as situações. A ação da Odisséia chega, para leste, até a Fenícia e  Cólquida; para sul, até o Egito; para o Ocidente, até a Sicília e a Etiópia Ocidental; e para o norte, no Mar Negro, até o país dos Cimérios. É perfeitamente comum a narração do encontro do navegante com uma frota de navios e mercadores fenícios, cujo comércio se estendia a todo o Mediterrâneo e fazia a mais perigosa concorrência aos Gregos. A viagem dos argonautas, com as suas maravilhosas descrições de povos e países longínquos, é também uma autêntica epopéia marítima. O comércio Jônico cresceu com o rápido desenvolvimento industrial das cidades da Ásia Menor, com o incremento a partir do qual foi desaparecendo o tipo de vida agrária.

      A falta de outra tradições históricas, basta o número extraordinário de colônias fundadas só pela cidade de Mileto para testemunhar a força de expansão, o espírito de iniciativa e a vida palpitante que nessa época reinava nas cidades gregas da Ásia Menor.

     Vivacidade, liberdade e largueza de visão e iniciativa pessoal são as características dominantes do novo tipo humano que ali nasceu. Com a mudança das formas de vida deve Ter nascido também um novo espírito. A ampliação dos  horizontes e o sentimento da própria energia abriram caminho para uma multidão de idéias ousadas. O espírito de crítica independente com o que deparamos na poesia individual de Arquíloco e na filosofia milesiana penetrou também, por certo, na vida pública. Não temos nenhuma informação das lutas intestinas que se devem Ter travado ali, como em qualquer outro lugar do mundo grego. Mas a série de testemunhos que exaltam a justiça como fundamento da sociedade humana estende-se, na literatura jônica, desde os tempos primitivos da epopéia até Heráclito, através de Arquíloco e Anaximandro. Esta elevada estima pelo direito por parte dos poetas e dos filósofos não precedem a realidade, como se poderia pensar. Pelo contrário, é apenas o reflexo da importância fundamental que aqueles progressos deviam Ter na vida pública daqueles tempos, isto é, desde o século VIII até o início do século VI. O coro dos poetas continentais é uníssono a partir de Hesíodo. E entre todos distingue-se a voz de Sólon de Atenas.

       Desde então, toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres  que administravam a justiça segundo a tradição, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve Ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios á nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas.

        Homero apresenta-nos o antigo estado de coisas. É com outro termo que designa, em geral, o direito: themis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e themis”. Themis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei”.

          O homem justo, no sentido concreto que desde então esta palavra adquiriu no pensamento grego, aquele que obedece á lei e se regula pelas disposições dela, também cumpre na guerra o seu dever. O ideal antigo e livre da arete heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos  os cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a respeitar as fronteiras entre o próprio e o alheio. É entre as famosas máximas poéticas do séc. VI que se encontra o verso- tão citado pelos filósofos posteriores- que resume todas as virtudes na justiça. Fica assim definida de modo rigoroso e completo a essência do novo Estado constitucional.

         O conceito de justiça, tida como a forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão, super naturalmente todas as formas anteriores. Todavia, os graus anteriores da arete não são por isso suprimidos;  ao contrário, são elevados a uma nova forma. É esse o sentido da exigência de Platão, nas leis, de que o poema de Tirteu (onde a valentia é tida pela mais alta arete) fosse no Estado ideal “reelaborado” de tal forma que se pudesse a justiça no lugar da valentia. Platão não pretende excluir a virtude espartana, mas pô-la simplesmente no seu lugar e subordiná-la á justiça. É preciso avaliar deferentemente a coragem na guerra civil  a coragem perante o inimigo da pátria.

      A aceitação consciente da antiga ética da polis pela moral filosófica posterior e a influência que por meio desta ele exerceu sobre o futuro são para nós um processo perfeitamente natural da história do espírito. Nenhuma filosofia vive da pura razão. É apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se desenrola na história. Em qualquer dos casos, isto é verdadeiro para a filosofia de Plantão e a de Aristóteles. Não podem ser compreendidas sem a cultura negra, nem a cultura sem elas.

       O fenômeno histórico aqui mencionado, pelo qual a filosofia do séc. IV a.C. aceita a ética e o ideal humano da polis antiga, tem uma analogia perfeita perfeita na época do nascimento da cultura da polis. Esta aceitou igualmente os estágios anteriores da moral. Não se apropriou só da arete heróica de Homero, mas também das virtudes guerreiras e de toda a herança das idades aristocráticas, tal como no seu tempo fez, segundo sabemos, a educação estatal espartana. A polis  incitava os seus cidadãos a competir nos jogos olímpicos e em outras disputas, e premiava com as honras mais altas os que regressavam vencedores. A princípio, a vitória apenas dava honras á família do vencedor; depois, com o incremento do sentimento de solidariedade de toda a população, serviu  ad maiorem patriae gloriam. Tal como nas lutas ginásticas, a polis tomava parte, por meio dos seus filhos, nas tradições musicais antigas e no cultivo da arte. Não foi só na esfera do direito que ela criou a isonomia;  instaurou-a também nos mais altos bens da vida criada pela cultura nobre e que se convertiam agora em patrimônio comum a todos cidadãos.

        A gigantesca influência da polis na vida  dos indivíduos baseava-se  na  idealidade do pensamento dela. O Estado converteu-se num ser especificamente  espiritual  que reunia  em  si  os mais  altos  aspectos da existência  humana e os repartia como dons  próprios este propósitos, pensamos hoje sobretudo na pretensão do Estado em ministra a educação jovens. A  educação  pública dos jovens é porém, uma exigência que a filosofia do séc. IV foi a primeira a formular.  Esparta é o único dos Estados mais antigos a exercer influência  imediata na formação da juventude.

        Para a identificação total de um grego exigia-se não só o seu nome e o de seu pai , mas também o da sua cidade natal. Pertencer a uma cidade tinha  para os Gregos um valor ideal análogo ao do sentimento nacional para os modernos.

        Como suma da comunidade citadina, a polis oferece muito. Em contrapartida, pode exigir o máximo. Impõe-se aos indivíduos de modo vigoroso e implacável e neles imprime o seu caráter. É fonte de todas as normas de vida válidas para os indivíduos. O valor do homem e da sua conduta mede-se exclusivamente pelo  bem ou pelo mal que acarretam à cidade. Esse é paradoxal resultado da luta incrivelmente apaixonada pela obtenção do direito e da igualdade dos indivíduo. O homem forja-se com a lei uma corrente nova e apertada que mantém unidas as forças e os impulsos divergentes e os centralizam, como a antiga ordem social jamais teria podido fazer. O estado expressa-se objetivamente na lei, alei converte-se em rei, como os Gregos disseram posteriormente, e esse senhor invisível não só se subjuga os transgressores do direito e impede usurpações dos mais fortes, como introduz as suas normas em todos os capítulos da vida anteriormente reservada ao arbítrio de cada um. Até nos assuntos mais íntimos da privada e da conduta moral dos cidadãos traça limites e caminhos. Deste modo, o desemvolvimento do Estado leva, através da luta pela lei, à criação de normas de vida novas e mais diferenciadas.

        É esta a significação do novo Estado implica a formação do Homem. Plantão afirma, com razão, que forma de Estado implica a formação de um tipo de homem definido, e tanto ele como Aristóteles exigem que a educação do Estado perfeito imprima em toda a marca do seu espírito.

        A lei representa o marco mais importante no que, desde a formação grega segundo o puro ideal aristocrático, leva a idéia do Homem formulada e defendida sistematicamente pelos os filósofos. E a ética e a educação filosófica enlaçam-se, pelo o conteúdo e pela forma, com as mais antigas legislações.

         As posteriores críticas da lei, como as que no tempo da democracia corrompidas foram movidas contra um legalismo do Estado, opressor e despótico, não afetam o que acabamos de afirmar.        Em oposição a este cepticismo, todos os pensadores antigos são concordes no elogio da lei. Ela é, para eles, a alma da polis. O povo deve lutar pela a sua lei como pela suas muralhas, diz Heráclito. Surge aqui, por trás da imagem da cidade visível, defendida pela sua cinta de muralha, a cidade invisível que tem na lei um firme baluarte.

         Na medida em que o engloba  no seu cosmos político, o Estado dá ao homem, ao lado da vida privada, uma espécie de Segunda existência. Todos pertencem a duas ordens de existência na vida do cidadão há uma distinção rigorosa entre o que lhe é próprio e o que é comum. O homem não é só “idiota”; é  “político” também. Precisa Ter, ao lado da habilidade profissional, uma virtude cívica genérica, pela qual se põe em relações de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da polis. Torna-se evidente, assim, que a nova política do Homem não pode estar  vinculada como, a educação popular de Hesíodo, à idéia do trabalho humano. A concepção da arete hesiódica estava impregnada do conteúdo da vida real  e do ethos profissional da classe rural, a que se dirigia.  Se contemplarmos o processo evolutivo da educação grega a partir do ponto de vista hodierno, inclinar-nos-emos a crer que o novo movimento teria de aceitar o programa de Hesíodo: substituir a formação geral da personalidade, própria dos nobres, por um novo conceito da educação popular, em que se avaliaria cada homem pela eficácia do seu trabalho específico, e o bem da comunidade resultaria de cada um realizar com a máxima perfeição possível o seu trabalho particular, tal como o aristocrata Platão exigia no Estado autoritário da sua República, dirigido por uma minoria espiritualmente superior. Estaria de acordo com o tipo de vida popular e a diversidade dos seus mestres; o trabalho não seria uma vergonha, mas o fundamento único da consideração citadina. No entanto, e  sem prejuízo do reconhecimento deste importante fato social, a evolução real surgiu um curso completamente diverso.

         O que realmente era novo e trouxe definitivamente consigo a urbanização progressiva e geral do Homem foi a exigência de todos os indivíduos participarem ativamente no Estado e na vida pública e adquirem consciência dos seus deveres cívicos, completamente diversos daqueles da esfera da sua profissão privada.

         Para Socrátes, filho de um pedreiro, um simples operário, constituía um paradoxo surpreendente o fato de um sapateiro, um alfaiate ou um carpinteiro precisarem no seu trabalho de um certo saber autêntico, ao passo que ao político bastava uma educação genérica, de conteúdo bastante indeterminado, embora o seu “ofício” tratasse de coisas muito mais importantes. É claro que o problema só se podia colocar nestes termos numa época para a qual se tornava evidente que a  arete política devia ser um poder e um saber.

        Quando o novo estado jurídico apareceu, a virtude dos cidadãos consistiu na livre submissão de todos, sem distinção de dignidade ou de sangue, á nova autoridade da lei. Para esta concepção de virtude política, o ethos era muito mais importante que o logos. Pra ele, tinham muito maior importância a fidelidade á lei e a disciplina que a questão de saber até que ponto o homem comum estava apto a perceber os assuntos e fins do Estado. Neste sentido, não existia o problema da cooperação.

           

A autoformação do indivíduo na poesia jônico- eólica

 

        A nova estruturação do Estado sobre o fundamento comum do direito para todos criou um tipo novo de Homem, o cidadão, e fez da formulação de uma norma universalidade válida para a vida na cidade a necessidade mais premente da nova comunidade. Todavia, enquanto os ideais da primitiva sociedade nobre acharam na epopéia uma expressão objetiva, enquanto Hesíodo formulou a sabedoria prática da ética aldeã e amoral do trabalho, e Tirteu as severas exigências do Estado espartano, não achamos, á primeira vista, uma expressão equivalente do novo ideal de cidadão na poesia da época. Como vimos, a cultura da cidade aceitou pressurosa os anteriores estágios da educação e colocou assim ao seu serviço, como meio de expressão dos seus próprios ideais, a poesia, a música e a ginástica da Antiguidade aristocrática. Não existia, pois, qualquer encarnação do seu conteúdo essencial em criação poética própria que pudesse rivalizar com a poesia do passado, já então tornada clássica. Apenas podemos mencionar as histórias relativas à fundação de certas cidades, redigidas num estilo épico convencional. Mas nenhuma destas obras da cultura citadina primitiva, já numericamente raras, se eleva à importância de uma verdadeira epopéia do Estado, como entre os Romanos foi a Eneida de Virgílio, a última das grandes obras do gênero.

        Não foi na forma poética, mas antes na criação da prosa, que o novo ethos do Estado encontrou a sua verdadeira expressão revolucionária. É precisamente isto que significa a promulgação de leis escritas. A luta pela submissão da vida e da ação a normas ideais rigorosas e justas inicia-se resolutamente com a tradução dos seus preceitos em proposições claras e universalmente válidas; e é precisamente esta a característica do novo estágio de evolução da comunidade humana. A veemência com que esta exigência moral foi sentida relegou, a princípio, para segundo plano a necessidade de expressão intuitiva e artística do novo Homem. O Estado constitucional nasce já do espírito racional e, por isso, não tem qualquer afinidade de origem com a poesia. Os momentos poeticamente fecundos da vida da cidade já haviam sido esgotados por Homero, Calino e Tirteu. A vida cotidiana dos cidadãos permanece necessariamente inacessível, em toda a sua amplitude, à elevação poética. E nenhum escritor jônico ou eólio captou o heroísmo político de Sólon, que se tornaria fonte de uma nova grande poesia.

          Em contrapartida, a esfera da intimidade pessoal do Homem, totalmente alheia à vida política, abre um novo mundo de experiência á poesia, que avidamente lhe explora as profundezas. É neste mundo que nos introduz a poesia elegíaca e iâmbica dos Jônios e a lírica eólica.  A dinâmica da vontade individual de viver, cuja manifestação podemos detectar, indiretamente, nas transformações do Estado, devido à sua ação modeladora na vida da comunidade, revela-se aqui na expressão de seus movimentos, na sua intimidade imediata. Sem a percepção desta experiência espiritual, iria falar-nos o que há de mais essencial para compreendermos as transformações políticas. As conexões causais entre o espiritual e o material permanecem na maior obscuridade por ausência completa de qualquer tradição relativa às condições econômicas da época. No entanto, para a história da educação interessa-nos mais a forma espiritual que o Homem da nova época conseguiu e os traços que por ela imprimiu na evolução subsequente . E este vestígio do espírito jônico tem maior importância para a história dos Gregos e da Humanidade. Pela primeira vez, os poetas exprimem em nome próprio os seus sentimentos e opiniões. A vida comunitária permanece para eles totalmente em segundo plano. Mesmo quando se referem a política, o que sucede freqüentemente, não pretendem ditar normas universais e imperativas, como Hesíodo, Calino, Tirteu ou Sólon, mas sim exprimir a sua paixão partidária pessoal, como Alceu, ou reclamar os seus direitos individuais, como Arquíloco. Até os animais, nas disputas das fábulas, reclamam una aos outros os “seus direitos”, em humorística imitação das relações humanas. No entanto a expressão franca das idéias pessoais do poeta pressupõe sempre a polis e a estrutura social. O indivíduo assenta nessa estrutura, na sua sujeição e na sua liberdade, quer esta relação permaneça sem se expressar, que ele se dirija expressamente aos concidadãos com a sua opinião pessoal, como acontece em Arquíloco.

         Para os Gregos, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário. As manifestações da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer que, numa poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e representar em si próprio a totalidade do mundo objetivo e suas leis. Não é pelo mero extravasamento da subjetividade que o indivíduo grego alcança a liberdade e a ampliação de movimentos da sua consciência, mas sim pela sua própria objetivação espiritual. E é na medida em que se contrapõe a um mundo exterior, regido por leis próprias, que ele descobre as suas próprias leis internas.

           O ideal do Estado espartano encontra a sua expressão poética na transferência da parênese homérica, que celebrava a coragem dos heróis, para a atualidade real e vivida. O que ali acontecia com a cidade inteira, com relação ao exército dos Espartanos, repete-se em Arquíloco com relação á própria pessoa do poeta. Nas elegias, aparecem constantemente ele próprio ou os seus companheiros como detentores dos papéis, distintos e reflexões homéricas. Nestas transposições de conteúdo e de forma, surge nítido e palpável o grande processo educativo que então se realiza através da íntima apropriação do espírito da epopéia por parte da personalidade. Até á elevação do indivíduo a um maior grau de liberdade na vida e no espírito deve-se, em primeiro lugar, à influência formativa de Homero.

          Originariamente, o iambo era de uso corrente nas festas públicas de Dionisos e correspondia antes á explosão de um sentimento popular do que á expressão de um rancor pessoal. Prova disso é que o espírito do iambo se incorpora com a maior fidelidade e continua na comédia ática, onde o poeta aparece claramente como o porta- voz da crítica possível. Nada há contra o fato de que Arquíloco seja não só o porta- voz, mas também o contraditor da opinião comum. Ambas as coisas estão ligadas à sua vocação para a publicidade. Se de fato o iambo correspondesse apenas à expressão dos sentimentos do eu, independentemente de qualquer consideração pelo mundo, ficaria por explicar como é que o iambo filosófico de Semônides e os conselhos políticos de Sólon provieram da mesma raiz. Se prestarmos atenção nós nos daremos conta de que a poesia iâmbica de Arquíloco tem, ao lado do seu aspecto crítico e satírico, um aspecto parenético, e que estão ambos intimamente ligados.

             Na primitiva poesia grega, toda a evolução do iambo a partir de Arquílogo nos tira qualquer dúvida de que nestas manifestações críticas a respeito dos homens, opiniões e tendências, que por qualquer motivo chocaram a opinião pública, manifesta-se não um sentimento subjetivo sem importância, mas sim a voz de um superior reconhecido.

A poderosa influência desta poesia brotou de uma profunda necessidade dos tempos. Aparece pela primeira vez na poesia grega um elemento que contrasta de maneira estranha com o estilo sublime da forma épica, tal como este ainda aparece nas elegias de Arquílogo. Este novo gênero é o tributo do estilo poético ao espírito da polis, cujas poderosas paixões não podiam ser dominadas pela simples presença do epainos da educação aristocrática que encontramos em Homero. Já os antigos haviam observado que a “natureza comum” do Homem reage melhor ao aguilhão da censura do que ao louvor. O sentimento de segurança de Arquílogo faz-nos sentir a popularidade do uso da crítica. Ataca as autoridades supremas da cidade, os estrategos e os demagogos, previamente seguro do eco favorável das suas críticas. Até na história das suas bodas com Neobule e nos apaixonados e irônicos ataques ao pai da jovem, Licambes, que lhe rejeitou as pretensões, o poeta pensa evidentemente na cidade inteira como num público presente. Ele é simultaneamente acusador e juiz.

Quando mais livre e conscientemente o eu humano aspira a dirigir os passos do seu pensamento e da sua ação, tanto mais fortemente vinculado se sente ao problema do destino.

A partir daí, o desenvolvimento da idéia de Tyche entre os Gregos segue os passos do desenvolvimento do problema da liberdade humana. O esforço para alcançar a independência significa, em grande medida, a renúncia a muito do que o Homem recebeu da tyche como dom. E não é por acaso que encontramos em Arquílogo, pela primeira vez, com toda a clareza, a confissão pessoal de que só é possível um homem interiormente livre numa forma de vida escolhida e determinada por ele mesmo.

É evidente que, quando os Gregos falam do ritmo de um edifício ou de uma estátua, não se trata de uma transposição metafórica da linguagem musical. E a intuição originária que se encontra no âmago da descoberta grega do ritmo da dança e da música não se refere à fluência destas, mas sim, pelo contrário, às suas pausas e à constante limitação do movimento.

Em Arquílogo vemos a maravilha de uma nova formação pessoal, baseada no conhecimento reflexivo de ume forma natural e última da vida humana, idêntica e fundamental. Revela-se uma auto-submissão às próprias limitações, consciente e livre da autoridade da mera tradição. O pensamento humano torna-se dono de si próprio e, assim como aspira submetera vida da polis a leis universalmente válidas, também penetra, para além destes limites, na esfera da interioridade humana e também coloca balizas no caos das paixões. Nos séculos seguintes, o palco desta luta é a poesia, dado que a filosofia só mais tarde, e em segundo plano, nela toma parte. O magistério espiritual de Arquílogo permite-nos ver claramente o caminho da poesia a partir de Homero. A poesia da nova época nasce da necessidade, experimentada pelo indivíduo livre, de separar progressivamente o humano do conteúdo mítico da epopéia, na qual se havia exprimido até então. Quando o poeta “se apropria”, no verdadeiro sentido da palavra, das idéias e problemas da epopéia, estes tornam-se independentes em novas formas poéticas, tais como a elegia e o iambo, e transformam-se em vida pessoal.

Da poesia jônica do século e meio posterior a Arquílogo, conserva-se o suficiente para que se veja que trilha o mesmo caminho, embora nenhuma possua a importância espiritual do seu grande iniciador. Os poetas subseqüentes são sobretudo influenciados pela forma reflexiva do iambo e da elegia de Arquílogo. Os iambos de Semônides de Amorgos que se conservam são de caráter didático.

Do ponto de vista histórico, a poesia hedonista é um dos momentos críticos mais importantes da evolução grega. Só é preciso lembrar que o pensamento grego colocava sempre o problema do indivíduo, na ética e na estrutura do Estado, como um conflito no predomínio do prazer e da nobreza. Na sofística revela-se abertamente o conflito entre dois impulsos de toda ação humana, e a filosofia de Platão culmina com vitória sobre a aspiração do prazer a tornar-se o mais alto bem da vida humana. Mas para que o contraste atingisse o ponto crítico, como sucedeu no séc. V, para que se tentasse superá-lo como o tentou a filosofia ática de Sócrates a Platão, e para que se chegasse, por fim, a uma fórmula harmônica, tal como oferece o ideal da personalidade humana proposto por Aristóteles, foi preciso que a busca da alegria plena de viver e do gozo do prazer achasse uma afirmação resoluta e fundamental em face da exigência do, mantida epopéia e pela antiga elegia. Isto aconteceu na poesia jônica, a partir de Arquílogo. O sentido da evolução que assim realizou é evidentemente centrífugo. Liberta as forças e abranda os vínculos da polis, pelo menos com a mesma força com que cooperou na sua instauração, com a criação do domínio da lei.

       Para conquistarem o reconhecimento público, as novas exigências precisavam exprimir-se na forma didática e reflexiva própria da elegia e da poesia iâmbica posterior a Arquíloco. O hedonismo não surge como sentimento ocasional do indivíduo. Pelo contrário, é em princípios universais que os poetas fundamentam o “direito” do indivíduo a gozar a vida. Os poemas de Semônides e Mimnerno recordam a cada passo que estamos na época em que se vai iniciar a consideração racional milesiana da natureza e a filosofia natural milesiana.  O pensamento não se detém entre os problemas da vida humana, como os tratados de história  da filosofia relativos a esse período podem levar a crer, ao se limitarem, na maioria das vezes, ao aspecto cosmológico. Ele invade e inspira o espírito da poesia, que desde então se torna portadora dos ideais morais. Levantam-se problemas que têm de ser discutidos de per si. O poeta surge aos ouvintes como o filósofo da vida. Os poemas de Semônides que se conservam já não são, como os de Arquíloco, meras expansões impulsivas que ocasionalmente assumem forma reflexiva, mas sim autênticas alocuções didáticas sobre um tema determinado. E Mimnermo, que é um artista muito mais rigoroso que Semônides, revela a mesma característica na maioria dos fragmentos que dele se conservaram. Na sua passagem do heróico ao humano individual, a poesia conserva a atitude educadora.

          Enquanto a poesia jônica posterior a Arquíloco apresenta, no decurso dos sécs. VII-VI, a forma de uma reflexão universalmente válida sobre os direitos naturais da vida, a poesia eólica de Safo de Lesbos e de Alceu exprime a própria intimidade da vida individual. As explosões pessoais de Arquíloco são o que mais se aproxima deste fenômeno único na vida espiritual dos Gregos, pois não nos apresentam apenas idéias gerais, mas também experiências pessoais com todos os tons da sensibilidade individual. Efetivamente, não se pode esquecer que Arquíloco é um percursor da lírica eólica, embora os seus poemas, inclusive os de ódio, em que  se manifesta com paixão a sua subjetividade, se orientem ainda por normas universais da sensibilidade moral. A lírica eólica, principalmente em Safo, chega muito mais longe e converte-se em pura expressão do sentimento. É evidente que a esfera do individual adquire, por obra de Arquíloco, uma importância tal e uma riqueza tão grande de possibilidades de expressão, que abre caminho á livre comunicação dos mais secretos movimentos de alma. Foi graças a Arquíoloco que se adquiriu a possibilidade de dar forma universal aos sentimentos mais subjetivos e aparentemente desprovidos de forma, e de elevar até o universalmente humano mesmo o que há de mais pessoal, sem lhe roubar por isso o encanto do diretamente vivido.

         Não é menos maravilhosa a autoformação da intimidade humana na lírica eólica do que a criação na mesma época, entre os Gregos da Ásia Menor, da filosofia ou do Estado jurídico. O reconhecimento deste prodígio não deve, todavia, levar-nos a desviar os olhos da estreita vinculação desta mesma poesia com o mundo exterior. Evidencia-se a partir da rica e variada coleção de fragmentos descobertos nas últimas décadas que, assim como os versos de Arquíloco se orientam diretamente para a vida que o rodeia, também os poemas de Alceu e de Safo inspiram-se na vida circundante e são escritos para um determinado círculo de pessoas. Encontram-se, por isso, presos a certas convenções que nesta poesia aprendemos a compreender com tanta exatidão como na obra de Píndaro. Deste modo, a conexão viva das canções de Alceu dedicadas à bebida com as banquetes masculinos, e das canções nupciais e amorosas de Safo com os círculos musicais das jovens companheiras que se agrupam em redor da poetisa, adquire, ao nosso ver, uma significação profunda e positiva.

           Os banquetes, com as suas relações livres e a sua elevada tradição espiritual, constituíam a mais alta conquista para o florescimento da nova expansão da personalidade individual. Por conseguinte, a individualidade masculina revela-se principalmente na ampla corrente dos poemas simposiáticos, a qual jorra de mil fontes e desemboca nas mais fortes comoções da alma.

            A arte mais sublime de Safo reside na descrição das experiências íntimas com o vivo realismo sem nada de patético e com uma simplicidade análoga à das canções populares. Onde encontraremos na arte ocidental algo que, antes de Goethe, se compare a ela? Se acreditarmos que aquela canção foi composta por motivo das bodas de uma discípula e que Safo usou uma linguagem tão incomparavelmente pessoal, não nos será preciso mais para mostrar como aqui as convenções do estilo e da linguagem se fundem com sentimento mais profundo, para conseguir a mais pura expressão da individualidade .Até a simplicidade da situação parece iluminar os mais finos matizes do sentimento que lhe confere o seu real significado.

             E não é por acaso que só a mulher é capaz desta individualidade, e, mesmo a mulher, só através da maior força que lhe foi dada: o amor. É como a parta –voz do amor que Safo entra no reino da poesia antes reservado aos homens.

 

              Sólon: começo da formação política de Atenas

 

          A última voz que se faz ouvir no concreto espiritual das estirpes helênicas foi a da Ática, por volta do ano 600. Pareceu, a princípio, aceitar ou modificar docilmente os temas das outras, principalmente os da raça jônica, com a qual se tinha afinidades. Mas cedo os congraçou com independência numa unidade mais alta e regeu a sua própria melodia, com clareza e plenitude cada vez maiores. A pujança ática só atingiu o apogeu um século depois, com a tragédia de Esquilo. E pouco faltou para que fosse  ali que dela tivéssemos insignificantes, da poesia de Sólon. Mas é  evidente que a sua conservação não é pura casualidade. Enquanto o Estado ático e a sua vida espiritual autônoma subsistiram, Sólon foi uma coluna fundamental do edifício da formação ática. Os seus versos imprimiram-se na alma da juventude e eram evocados pelos oradores nos tribunais de justiça e nas assembléias públicas, como expressão clássica do espírito da cidadania ática.

              Sólon é o primeiro representante do autêntico espírito ático e, ao mesmo tempo, o seu criador mais eminente. É que, embora todo o povo estivesse predestinado, pela harmonia da sua constituição espiritual, a realizar algo de extraordinário, o aparecimento nos seus primórdios de uma personalidade capaz de dar forma àquela constituição foi decisivo para o desenvolvimento posterior.

             A cultura da nobreza ática era inteiramente jônica. Quer na arte quer na poesia campeava o gosto e estilo superior daqueles povos. É natural que esta influência se estendesse também aos costumes e aos ideais de vida. A proibição, por Sólon, do fausto asiático e das lamentações das mulheres, em uso até então nas cerimônias fúnebres dos senhores mais importantes, foi uma concessão ao sentimento popular. Só cem anos depois da sangrenta crise da guerra com os Persas rompeu definitivamente o predomínio do modelo jônico- nos vestidos, nos penteados e nos costumes sociais.

              Vimos que foi a idéia do direito que deu ao ansioso pensamento do Homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos de violentas alterações da ordem social e econômica, motivadas pelas tentativas de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro a  apelar para a divina proteção da Dike, na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade contra a maldição da bybris e designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus. Assim, o realismo cru da sua fantasia religiosa pinta os efeitos da maldição da injustiça lançada sobre a comunidade inteira por culpa de um só indivíduo: más colheitas, fome, pestes, abortos, guerras e morte. Ao contrário, a imagem do Estado justo resplandece com as cores brilhantes da benção divina: os campos geram o grão, e as mulheres, filhos que são a imagem dos pais; os barcos trazem ganhos seguros; a paz e a riqueza dominam a cidade.

              Também Sólon fundamenta a sua crença política na força de Dike, cuja imagem descreve com visível coloração hesiódica. E de se acreditar que na luta de classes da cidade jônicas a fé inquebrantável de Hesíodo num ideal de justiça tenha desempenhado já um certo papel e tenha sido uma fonte íntima resistência para classe que lutava pelos seus direitos. Sólon não redescobriu as idéias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo:  limitou-se a desenvolvê-las. Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível da ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a bybris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm , cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.

              É esta convicção que induz Sólon a intervir com as suas advertências na luta cega de interesses em que os seus concidadãos se devoram. Vê a cidade caminhar para o abismo a passos largos e procura travar ruína que a ameaça. Movidos pela avareza, os chefes do povo enriquece injustamente; não poupam os bens do Estado nem os do templo, e não respeitam os veneráveis fundamentos da Dike, que silenciosa contempla todo o passado e o presente, e com o tempo acaba infalivelmente por castigar. Se considerarmos, porém, a idéia que Sólon forma do castigo, descobriremos até que ponto elas se afasta do realismo religioso em que se apóia a fé de Hesíodo na justiça. O castigo divino não consiste em peste ou más colheitas, como em Hesíodo, mas se realiza de modo imanente pela desordem que toda a violação do direito gera no organismo social. Num Estado assim nascem as disputas partidárias e guerras civis, os homens reúnem-se em associações que só conhecem a violência e a injustiça, grandes bandos de miseráveis vêem-se na necessidade de abandonar a pátria e peregrinar em servidão. E, ainda que haja alguém que queira fugir a tal desgraça e se encerrar no recanto mais íntimo de sua casa, a infelicidade geral “transpõem-lhe os altos muros”.

               No concílio dos deuses, o soberano Zeus refuta as queixas injustificadas dos mortais, que atribuem aos deuses todas as desventuras da vida humana. Afirma, quase com as mesmas palavras de Sólon, que não são os deuses mas sim os próprios homens que pela sua imprudência aumentam os seus males. Sólon está conscientemente vinculado a esta teodicéia homérica. A religião primitiva dos Gregos vê em todas as desditas humanas, quer provenham do exterior quer tenham raízes na vontade nos impulsos do próprio Homem, um designo inflexível das altas forças de Ate. Ao contrário disto, a reflexão filosófica que o poeta da Odisséia põe na boca de Zeus, o mais alto titular do governo do mundo, representa já um grau posterior no desenvolvimento da Ética. Ali se faz clara distinção entre uma Ate, no sentido de um destino prepotente, imprevisível e divino, e a culpabilidade  da ação humana, que aumenta a desventura do homem numa medida superior às pressões do destino. Para Segunda é essencial a previsão da ação da injusta conscientemente desejada. Neste ponto, o pensamento próprio de Sólon sobre o significado do direito para uma vida sã da sociedade humana conflui com a teodicéia homérica e lhe dá novo conteúdo.

         O conhecimento universal de uma legalidade política dos homens acarreta um dever de ação. Um mundo em que Sólon vive já não deixa ao arbítrio dosa deuses a extensão que lhe deixavam as crenças da Ilíada. Impera neste mundo uma ordem jurídica estrita. Assim, Sólon tem de atribuir às culpas dos homens uma boa parte do destino que o homem homérico aceitava passivamente das mãos dos deuses. Deste modo, os deuses são meros executores da ordem moral, que por sua vez é identificada com a vontade dos deuses. Em vez de se limitar a soltar resignados lamentos sobre o destino do Homem e sua inexorabilidade , com os líricos  jônicos do seu tempo, que com não menos profundidade sentiram o problema da dor do mundo, Sólon dirige aos homens um apelo para ganharem consciência da responsabilidade na ação, e com a sua conduta política e moral oferece um modele deste tipo de ação, vigoroso testemunho da inesgotável força vital e da seriedade ética do caráter ático.

         O elemento contemplativo também está presente em Sólon. Precisamente na grande elegia que se conservou inteira, a invocação às musas recoloca o problema da culpa pessoal e confirma a sua importância na totalidade do pensamento de Sólon. Surge aqui ligada a uma meditação genérica sobre o destino e os anseios humanos, na qual, mais claramente ainda que nos poemas políticos, revela-se até que ponto este homem de Estado baseava a sua ação numa convicção de caráter religioso.

 

O pensamento filosófico e a descoberta do cosmos

 

       Na época dos pré-socráticos, a função de guia da educação nacional estava indiscutivelmente reservado aos poetas, a quem se associava o legislador e o homem de Estado. É com os sofistas que muda pela primeira vez este Estado de coisas. Estes separam-se nitidamente dos filósofos da natureza e dos ontólogos do período primitivo. A sofística é um acontecimento de tipo educativo, no sentido mais próprio. Só uma história da educação pode dar-lhe o verdadeiro valor.

        Não é fácil traçar a fronteira temporal do momento em que surgem o pensamento racional. Passaria, provavelmente, pela epopéia homérica. No entanto, nela é tão estreita a interpenetração do elemento racional e do “pensamento mítico”, que mal se pode separá-los. Uma análise da epopéia, a partir deste ponto de vista, nos mostrariam quão cedo o pensamento racional s infiltra no mito e começa a influenciá-lo. A filosofia jônica da natureza sucede a epopéia sem solução de continuidade.

          Não é fácil definir-se se a idéia dos poemas homéricos, segundo a qual o Oceano é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a água o princípio original do mundo; seja como for, é evidente que a representação do mar inesgotável colaborou para a sua expressão. Em todas as partes da Teogonia de Hesíodo reina a vontade expressa de uma compreensão construtiva e uma perfeita coerência na ordem racional e na formulação dos problemas. Por outro lado, a sua cosmologia ainda apresenta uma irreprimível pujança de criação mitológica que muito mais tarde ainda age sobre as doutrinas dos “fisiólogos”, nos primórdios da filosofia “ científica” , e sem a qual não se poderia conceber atividade prodigiosa que se expande na criação das concepções filosóficas do período mais antigo da ciência. O amor e o ódio, as duas forças naturais de união e divisão da doutrina de Empédocles, têm a mesma raiz espiritual dos eros cosmogônico de Hesíodo. O início da filosofia científica não coincide, assim, nem com o princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico. Mitogonia autêntica ainda encontramos na filosofia de Platão e na de Aristóteles. São exemplos o mito da alma em Platão, e, em Aristóteles, a idéia do amor das coisas pelo motor imóvel do mundo.

           A intuição mítica, sem o elemento formador do logos, ainda é “cega” e que a conceituação lógica, sem o núcleo vivo da “intuição mítica” originária, permanece “vazia”. A partir deste ponto de vista devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos. Se o representarmos por uma série de círculos concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva que vai das esferas exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e Platão, ao centro, quer dizer, à alma. A partir deste ponto realiza-se, no neoplatonismo, um movimento inverso, até o fim da filosofia antiga. Foi precisamente o mito platônico da alma que teve a capacidade de resistir ao processo de racionalização integral do ser e até de se infiltrar novamente e dominar progressivamente, a partir do núcleo, o cosmos racionalizado. Foi aqui que se inseriu a possibilidade da sua aceitação por parte da religião cristã, que nele encontrou, por assim dizer, a cama feita.

Com freqüência se debateu a questão de saber como foi possível à filosofia grega Ter começado com os problemas da natureza e não com os relativos ao Homem.

Se juntarmos à filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquílogo e a poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e ético-político, ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a prosa da poesia para obtermos uma imagem completa da evolução do pensamento filosófico, na qual também está compreendido o reino humano. A única diferença reside no fato de a concepção do Estado ser, pela sua própria natureza, de caráter imediatamente prático, ao passo que a investigação da physis, ou gênese, isto é, “origem”, é impulsionada pela “teoria”. O problema do Homem não foi encarado pelos Gregos, a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no estudo dos problemas do mundo externo e particularmente da Medicina e da Matemática, é que se descobriram intuições do tipo de uma techne exata, que serviram de modelo para a investigaçaõ do Homem interior.

O espírito grego, formado na legalidade do mundo exterior, cedo descobre também as leis internasda alma e chega à concepção objetiva de um cosmos interior. Foi esta descoberta que, num momento crítico da história grega, possibilitou, pela primeira vez, a estruturação de uma nova formação humana, com fundamento no conhecimento filosófico, no sentido proposto por Platão. A prioridade da filosofia da natureza sobre a filosofia do espírito tem um “sentido” histórico profundo, que se torna extremamente claro quando visto à luz da história da educação. No fundo do pensamento dos antigos Jônios não há uma vontade consciente de educar. Porém, no meio da decadência da concepção mítica do mundo e no caos gerado pela fermentação de uma nova sociedade humana, encaram de um modo inteiramente novo o mais profundo problema da vida, o problema do ser.

O que logo se evidencia na figura humana destes primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a se próprios este nome platônico – é a típica atitude espiritual: devotamento incondicional ao conhecimento, estudo e aprofundamento do ser, em si mesmo.

Pelo que sabemos, foi Anaximandro o primeiro que teve a coragem de escrever em prosa as suas idéias e de dinfundi-las, tal como o legislador escrevia as suas tábuas. O filósofo elimina com isso a intimidade do seu pensamento; deixa de ser um, aspira a ser ouvido por todos. Se, partindo do estilo da prosa jônica posterior, quiséssemos aventurar uma conclusão retrospectiva em relação ao estilo de Anaximandro, nós o veríamos em oposição às opiniões correntes entre os seus contemporâneos, pelo uso da primeira pessoa do singular.

As mais antigas autoridades perdem o seu valor. Só é verdade o que “eu” posso explicar por razões concludentes, aquilo que o “meu” pensamento consegue justificar perante si próprio. Toda a literatura jônica, desde Hecateu e Heródoto, criador da Geografia e da Etnologia e pai da História, até os médicos, em cujos escritos se encontramos fundamentos da ciência médica durante vários séculos, está impregnada deste espírito e usa nas suas críticas aquela forma pessoal característica. No entanto, realiza-se com o aparecimento do eu racional a superação do individualismo mais rica de conseqüências: surge o conceito de verdade, o novo conceito de uma validade universal no fluir dos fenômenos, perante a qual se tem de curvar todo arbitrário. 

O ponto de partida dos pensadores naturalistas do séc. VI era o problema da origem, a physis, que deu o seu nome ao movimento espirituale à forma de especulação que originou. Isto se justifica, se temos presente o significado originário da palavra grega e não misturamos a ele a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o que na nossa linguagem corrente denominados metafísica. Era a ele que se subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi libertando dela. No conceito grego de pbysis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que abriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica (iotopin),do  que deveria daquela origem e existe atualmente  (tá  òvta). Era natural que a tendência inata dos Jônios- grandes exploradores e observadores- para a investigação levasse as questões a um maior aprofundamento, onde aparecem os problemas últimos. É natural também que uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse  que, uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos fatos e a explicação dos fenômenos particulares. Pela proximidade do Egito e dos países do Oriente Próximo torna-se mais que verossímil- confirmam-no as tradições mais autênticas- que o contato espiritual dos jônios com as mais antigas civilizações daqueles povos não só tenha levado á adoção das conquistas técnicas na agrimensura, na náutica e na observação do céu, mas tenha também dirigido a atenção daquela raça de navegadores e comerciantes, de espírito vivo, para a consideração dos problemas profundos que aqueles povos resolveram de maneira muito diferente dos Gregos, por meio de mitos referentes ao nascimento do mundo e às histórias dos deuses.

         Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os Gregos puseram a serviço do seu problema último- da origem e essência das coisas- as observações empíricas que receberam do oriente e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É neste momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás, o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos mitos. Porém, o simples fato de Ter sido um movimento espiritual unitário, conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e recíproca ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica, torna-se clara, se tonamos que os três primeiros pensadores- Tales, Anaximandro e Anaxímenes- viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas (início do séc. V). Tão evidente como a súbita interrupção de um elevado florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção brutal de um destino histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do tipo espiritual desta magnífica série de grandes homens, um pouco anacronicamente designados de “escola milesiana”. O modo de propor e resolver os problemas segue, nos três, a mesma direção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos fundamentais á física grega de Demócrito até Aristóteles.

             A concepção da Terra e do mundo em Anaxímandro é uma vitória do espírito geométrico. É o símbolo visível da monumentalidade proporcional, própria do pensamento e da essência total do homem arcaico. O mundo de Anaxímandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. O disco terrestre da concepção homérica não passa de uma representação ilusória. Na realidade, o caminho diário do Sol do Oriente para o Ocidente passa por debaixo da Terra, de modo a reaparecer no Oriente, no seu ponto de partida. O mundo não é, assim, uma meia esfera, mais uma esfera completa, em cujo centro se situa a Terra. São circulares não só o caminho do Sol, mas também o da Lua e das estrelas.

              O diâmetro da Terra tem 3 vezes a sua altura, pois a Terra tem a forma de um cilindro achatado. Não se apoia numa base sólida nem cresce para o ar, como uma árvore, a partir de raízes invisíveis e profundas. Está suspensa no espaço do mundo. Não a pressão do ar que sustenta. Conserva-se em equilíbrio porque se acha, de ambos os lados, a igual distância da esfera celeste.

               A época de  Heródoto ocupou-se em preencher lacunas com fatos novos e em suavizar ou suprimir a violência dos traços. Apenas deixa ficar o que resiste à verificação empírica. Mas todo ímpeto e genialidade criadora reside em Anaximandro e naqueles exploradores  originais que, inspirados pela idéia de uma ordem e de uma articulação universal do mundo, buscaram exprimi-las na linguagem previamente estruturada das proporções matemáticas.

               O princípio originário que Anaximandro estabelece no lugar da água de Tales, o ilimitado, mostra a mesma audácia em ultrapassar as fronteiras da aparência sensível. Todos os filósofos da natureza estavam dominados pelo prodigioso espetáculo da geração e corrupção das coisas, cuja imagem colorida os olhos humanos captam. O que será o fundo inesgotável do qual tudo procede e ao qual tudo regressa? Tales julga que é a água, que se evapora e se transforma em ar ou se congela e, por assim dizer, se petrifica em sólido. Impressiona-o a sua enorme capacidade de transformação. Toda a vida provém da umidade. Não sabemos qual dos antigos filósofos foi o primeiro a ensinar que até o fogo das estrelas se alimenta das exalações do mar, como os estóicos ainda acreditavam. Anaxímenes sustenta que o princípio originário é o ar e não a água, e é a partir dele que procura, antes de tudo, explicar a vida. O ar domina o mundo como a alma o corpo; e a própria alma é o ar, sopro, pneuma. Anaximandro fala do apeiron, que não é nenhum elemento determinado, mas “tudo inclui e tudo governa”. Parece Ter sido esta a sua própria expressão. Aristóteles opõe-se a isso, porque da “matéria” antes se diria que em  tudo se inclui, do que tudo inclui. Contudo outros epítetos, como “imperecível” e “imortal”, que Aristóteles usa na sua interpretação do apeiron, mostram inequivocamente o seu sentido ativo. Só um Deus pode “governar” o todo. E, segundo a tradição, foi o próprio filósofo que designou como divino o apeiron, que sem cessar produz novos mundos para outra vez o assimilar. A saída das coisas do apeiron é uma separação dos contrários que lutam neste mundo, a partir do todo originariamente unido. A isto se refere aquela grande máxima, a única de Anaximandro que nos foi diretamente transmitida: Onde estiver a origem do que é aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a sentença do tempo.

         A existência das coisas como tais, a individualização, seria um pecado original, uma sublevação contra o princípio originário eterno, pela qual as criaturas teriam de padecer uma pena. Quando o texto correto foi restaurado (pela adição que faltava nas antigas edições) tornou-se claro que se trata apenas da compreensão da pleonexia das coisas. Não é uma culpa das coisas, idéia estranha aos Gregos. É uma personificação pela qual Anaximandro se figura a luta das coisas como a contenda dos homens num tribunal. Temos diante de nós uma jônica. Lá está o mercado, onde se administra justiça; sentado na sua cadeira, o juiz estabelece a pena (táttei). O juiz é tempo. Nós o sabemos pela as idéias políticas de Sólon. O seu braço é inexorável. Quando um dos contendores tira demais do outro, o excesso lhe é de novo retirado e dado ao que ficou com pouco. A idéia de Sólon é esta: a dike não depende dos decretos da justiça terrena e humana nem divina, como sucedia na antiga religião de Hesíodo. É imanente ao próprio acontecer, no qual se realiza para cada caso a compensação das desigualdades. Portanto, a sua inexorabilidade é o “castigo de Zeus” , a “paga dos deuses”. Anaximando vai muito além. Esta compensação eterna não se realiza só vida humana, mas também no mundo inteiro, na totalidade dos seres. A evidência deste processo e sua imanência na esfera humana levam-no a pensar que as coisas da natureza, com todas as suas forças e aposições, também se encontram submetidas a uma ordem de justiça imanente e que sua ascensão e sua decadência se realizam de acordo com essa ordem.

          O que Anaximandro formula as suas com as suas palavras é mais uma norma universal do que uma lei da natureza no sentido moderno. O conhecimento desta norma do acontecer da natureza tem um sentido religioso imediato. Não é uma simples descrição de fatos, mas uma justificação da natureza do mundo.       O mundo revela-se como um cosmo, isto é, como uma comunidade jurídica das coisas. Elas afirmam o seu sentido na incessante e inexorável geração e corrupção, que dizer, naquilo que a existência tem de mais incompreensível e insuportável para as aspirações da vida do homem ingênuo. Não sabemos se próprio Anaximandro empregou neste sentido a palavra cosmos . No seu sucessor Anaxímenes já a encontramos, se é autêntico fragmento que se atribui a ele. Mas, em principio, a idéia de cosmos encontra-se – embora sem o sentido rigoroso que teve mais tarde--na concepção de um acontecer natural governado pela dike  eterna, de Anaximandro. Temos, por tanto, o direto de caracterizar a concepção do mundo de Anaximandro como a íntima descoberta do cosmos. Esta descoberta não se podia fazer senão no fundo alma humana. Nada se teria podido fazer com o telescópios, observatórios ou qualquer outro tipo investigação empírica. Foi da mesma faculdade intuitiva que brotou a idéia de infinidade dos mundos, atribuída Anaximandro pela tradição. Sem dúvida alguma, a idéia filosófica do cosmos representou uma ruptura com as representações religiosas habituais. Mas esta ruptura representa a aparição de uma nova concepção da divindade do ser, no meio do horror da fugacidade da destruição, que tanto impressionou as novas gerações, como mostra os poetas. 

         É neste estado de espírito que reside a semente de incontáveis desenvolvimentos filosóficos. O conceito de cosmos constituiu até os nossos dias uma das categorias essenciais de toda concepção do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha gradualmente perdido o sentido metafísico original. A idéia dos cosmos mostra, com simbólica evidência da primitiva filosofia natural para a formação do homem grego. Assim como em Sólon o conceito ético-jurídico da responsabilidade deriva da teodicéia para a epopéia, também em Anaximandro a justiça do mundo recorda que o conceito grego de causa, fundamental para o novo pensamento, coincidia originalmente com o conceito de culpa e foi transferido da imputação jurídica à causalidade física. Esta transposição espiritual está ligada à transposição análoga dos conceitos de cosmos, dike e tisis, originários da vida jurídica, para o acontecer natural. O fragmento de Anaximandro permite-nos obter uma visão profunda do desenvolvimento do problema da causalidade a partir do problema teológico. A sua dike é o princípio do processo de projeção da polis  no universo. É certo que nos pensadores jônicos não encontramos uma transposição expressa da ordenação do mundo e da vida do Homem para o ser das coisas não humanas. Não podia acontecer isso, porque as suas investigações prescindiam totalmente das coisas humanas e visavam exclusivamente a determinação do fundamento eterno das coisas. Mas, dado que se serviram da ordem da existência humana para tirar conclusões a propósito da physis e sua interpretação, a sua concepção continha em germe, desde o início, uma futura e nova harmonia entre o ser eterno e o mundo da vida humana com os seus valores.

          O séc. VI, que, após o naturalismo dissolvente do séc. VII, é uma luta decisiva em prol de uma nova estruturação espiritual da vida, não representa só um vigoroso esforço filosófico, mas também uma pujante expressão religiosa. O movimento órfico é um dos mais significativos testemunhos desta nova intimidade que penetra até o mais profundo da alma popular. No seu anseio por um sentido novo e elevado da vida, está em contato com o esforço do pensamento racional das concepções filosóficas para atingirem uma “norma” objetiva no ser cósmico. É evidente que o conteúdo dogmático das crenças órficas não tem importância. Os modernos, visando arranjar uma imagem que lhes permitisse confirmar a sua idéia a priori de uma religião de salvação, superestimaram-no enormemente. Todavia , anuncia-se nas crenças órficas relativas à alma,  um novo sentimento da vida e uma nova forma da consciência de si próprio. Contrariamente ao conceito homérico da alma, há na idéia órfica um elemento normativo expresso . Da crença na origem divina e na imortalidade da alma decorre a exigência de conservá-la pura no seu estado terreno de união com o corpo. O crente sente-se na obrigação de prestar contas da sua vida. Já em Sólon encontramos a idéia da responsabilidade do indivíduo em face da totalidade do Estado. Aqui deparamos com uma Segunda fonte de responsabilidade ética: a idéia da pureza religiosa. Originalmente era numa pureza meramente ritual, que depois se estendeu á esfera moral. Não se deve confundi-la com a pureza ascética do espiritualismo posterior, que considera o corpo com um mal em si mesmo. No entanto, os órficos e os pitagóricas guardam já certos preceitos de abstenção ascética, principalmente a abstinência de qualquer alimento de carne. E o desprezo do corpo começa já com brusca oposição do corpo e da alma, oposição derivada da representação da ascendência da alma, encarada como um hóspede divino na vida mortal da Terra. Evidentemente, a pureza e impureza dos órficos deve ser entendida como o cumprimento ou a transgressão das leis do Estado. O próprio “direito sagrado” dos Gregos antigos implica o conceito de pureza. Bastou dar  maior extensão ao reino do valor, e já a idéia órfica da pureza pôde abarcar o domínio total dos preceitos do nomos. Isto  não significa a sua transformação numa moral cívica no sentido moderno, visto que o nomos grego, mesmo na sua forma racional, tem origem divina. Mas, pela sua fusão com a idéia órfica da pureza, recebe um novo fundamento, radicado no caráter sagrado e divino da alma individual.

         Só por uma profunda necessidade dos homens daquele tempo, aos quais a religião cultural já não satisfazia, se explica a rápida difusão do movimento órfico na metrópole e nas colônias.

          O conceito órfico da alma representa um passo essencial no desenvolvimento da consciência pessoal humana. Sem ele seria impensável a concepção platônica e aristotélica da divindade do espírito e a distinção entre o Homem meramente sensível e o seu próprio eu, que constitui sua vocação plena. Basta pensar num filósofo com Empédocles, impregnado da concepção órfica da divindade, para atestar a profunda e persistente afinidade da nova religião com os problemas do pensamento filosófico, a qual é visível em Pitágoras, pela primeira vez. Empédocles exalta Pitágoras no seu poema órfico, Purificações. Interpenetram-se em Empédocles as crenças órficas da alma e a filosofia jônica da natureza. A sua síntese mostra-nos de modo muito significativo como as duas doutrinas se unem e se completam numa mesma pessoa. É símbolo desta união complementar a imagem da alma, balançada de lá pra cá no turbilhão dos elementos: o ar, a água, a terra e o fogo empurram-na e atiram-na de uns para os outros, incessantemente. Assim sou eu, como um exilado de Deus, que vagueia daqui para ali. A alma não tem no mundo da filosofia naturalista um lugar adequado. Salva-se, porém, mediante a certeza religiosa de si própria. É só quando se liga ao pensamento filosófico do cosmos, como em Heráclito, que esta necessidade metafísica do homem religioso encontra satisfação.

         Com Xenófanes de Cólofon, o segundo dos grandes emigrados jônicos que estabeleceram o seu campo de ação no Ocidente do mundo helênico, deixamos a linha dos pensadores rigorosos. A filosofia milesiana da natureza nasce da investigação pura. Quando Anaximandro torna acessível, na forma de livro, a sua doutrina, destina a sua especulação à publicidade.Pitágoras funda uma sociedade cujo fim é a realização dos preceitos do mestre. Ambos representam um esforço educativo muito afastado da pura teoria filosófica. As suas críticas, porém, penetram tão profundamente em todas as concepções geralmente aceites, que era impossível separá-las do resto da vida espiritual. A filosofia da natureza recebeu dos movimentos políticos e sociais da época os incitamentos mais fecundos, e devolveu de múltiplas formas o recebido. Xenófanes é um poeta. Com ele, o espírito filosófico apoderou-se da poesia. Isto é sinal inequívoco de que o espírito filosófico começa a torna-se uma força educativa, pois a poesia continua a ser como sempre a expressão autêntica da formação nacional.  O Impulso que levou a filosofia a adotar a forma poética mostra subjetivamente a sua tendência a se apoderar da totalidade de ação humana na vida sentimental e intelectual, e a aspiração que tem a exercer domínio espiritual. A nova prosa jônica só gradualmente alarga o seu campo e, por estar expressa num dialeto limitado a um círculo reduzido, nunca adquire a ressonância da poesia, que se serve da linguagem de Homero e é, por conseguinte, pan-helênica é também a influência a que o pensamento de Xenófanes aspira. Até um pensador abstrato e rigoroso como Parmênides, ou um filósofo da natureza como Empédocles, adotam a forma hesiódica da poesia didática. Talvez tenham sido incitados a fazê-lo pelo exemplo de Xenófanes que, embora não tenha sido um verdadeiro pensador nem tenha escrito nunca um poema didático sobre a natureza, como se disse freqüentemente, foi um dos iniciadores da exposição poética da doutrina filosófica. Nas suas elegias e silloi, uma nova forma da poesia satírica, populariza os pontos de vista da física jônica e empreende uma luta aberta contra o espírito da formação dominante.

          A formação procede sobretudo de Homero e de Hesíodo. O próprio Xenófanes afirma que foi de Homero que todos aprenderam, desde o início. Homero é, por conseguinte, o alvo dos seus ataques na sua luta pela nova formação. A filosofia substituiu a imagem homérica do mundo por uma explicação natural e regular. A fantasia poética de Xenófanes é arrebatada pela grandeza desta nova concepção do mundo. Significa o rompimento com o politeísmo e antropomorfismo do mundo dos deuses.

           O seu conceito de Deus, que apresenta com o entusiástico pathos da nova verdade, coincide com o do Universo. Há um só Deus, que não se pode comparar aos mortais na forma e no espírito. É toda visão, todo ouvido e todo pensamento. Conserva tudo em seu poder, sem qualquer esforço, só pelo pensamento. Não corre daqui pra lá, apressado, como os deuses da epopéia. Repousa imóvel em si mesmo. É ilusão dos homens pensar que os deuses nascem e têm forma e roupagens humanas. Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem pintar como os homens, pintariam os deuses com o corpo e figura semelhantes aos seus, como bois e cavalos. Os negros acreditavam em deuses negros e de nariz achatado, os Trácios em deuses de olhos azuis e cabeleira ruiva. Provêm de causas naturais todos os fenômenos do mundo exterior que os homens atribuem à ação dos deuses em cuja presença tremem. O arco-íris não passa de uma nuvem colorida; o mar é o ventre materno de todas as águas, ventos e nuvens.

 

                  Nascemos todos da terra e da água.

                  Tudo quanto se faz e cresce é terra e água.

                   Tudo vem da terra e tudo a ela regressa.

            

            A cultura não é um Dom dos deuses aos mortais, como ensina o mito. Foram os homens que tudo descobriram pelos seus esforços inquiridores, e é por meio deles que vão acrescentando novos elementos à cultura.

             Entre todas estas idéias não há nenhuma nova. Anaximandro e Anaxímenes não pensaram, em princípio, em outra coisa. São eles os verdadeiros criadores desta concepção naturalista do mundo. Mas é Xenófanes o seu inflamado campeão e arauto. Acolhe-a não só com o ímpeto que aspira a aniquilar todo o antigo, mas também com a força criadora de novos valores religiosos e morais. A sua crítica corrosiva à insuficiência da imagem homérica do mundo e dos deuses acarreta consigo a elaboração de uma nova crença, mais digna. A decidida ação das novas verdades na vida e convicções dos homens é o fundamento de uma nova formação. Os cosmos da filosofia da natureza converte-se, por um movimento reflexo do desenvolvimento espiritual, no protótipo da eunomia da sociedade humana. É nele que a ética da cidade encontra a sua raiz metafísica.

             As proposições de Parmênides constituem um encadeamento rigorosamente lógico, impregnado da consciência da força construtiva da conseqüência das idéias. Não é por acaso que os fragmentos da sua obra que se conservam constituem a primeira série de proposições filosóficas de conteúdo vasto e encadeamento rigoroso que o idioma grego nos legou. O sentido daquele pensamento só poderá ser expresso e compreendido se lhe seguirmos a marcha dinâmica. O seu produto imediato não é imagem estética. A força com que Parmênides expõe aos ouvintes as suas doutrinas fundamentais não deriva de uma convicção dogmática, mas da vitória da necessidade do pensamento. O conhecimento é também uma absoluta ananke para Parmênides, que ainda o denomina dike ou moira, evidentemente por influência de Anaximandro. É o mais alto fim a que investigação humana pode aspirar. Mas quando diz que Dike mantém o ser fixo nos seus limites, sem qualquer possibilidade de dissolução, de tal modo que já não pode nascer nem perecer, vê-se que a sua Dike tem uma função contrária à de Anaximandro, a qual se manifesta na geração e corrupção das coisas. A Dike de Parmênides, que separa o ser de toda a geração e corrupção e o faz permanecer imóvel em si mesmo, é a necessidade implícita no conceito do ser, interpretado como “aspiração do ser à justiça”. Nas frases insistentemente repetidas “o ser é, o naõ-ser não é; e: o que é não pode não-ser”, Parmênides exprime a necessidade do pensamento da qual deveria a impossibilidade de realizar no conhecimento a contradição lógica.

            Esta força daquilo que se adquiriu no puro pensamento é a grande descoberta que domina toda a filosofia eleática. Determina a forma polêmica dentro da qual o seu pensamento se desenvolve. O que nas suas proposições fundamentais aparece como a descoberta de uma lei lógica é para ele um conhecimento objetivo, cujo conteúdo o coloca em conflito com toda  a anterior filosofia da natureza. Se é certo que o ser nunca não é e o não-ser nunca é, torna-se evidente para Parmênides que o devir é impossível. A aparência , porém, revela –nos algo de diferente. Os filósofos naturalistas, que nele confiam cegamente, sustentam que o ser vem do não-ser e no não-ser se dissolve. No fundo, é a opinião de todos nós. Confiamos nos olhos e nos ouvidos espiritual do homem. Aqueles que não o seguem são como cegos e surdos, e emaranham-se em contradições sem saída. Não tem outro remédio senão admitir que o ser e o não-ser são e não são o mesmo, ao mesmo tempo. Se derivarmos o ser do não ser, admitiremos que a sua origem é incognoscível. Ao verdadeiro conhecimento deve corresponder um objeto. Assim, se de fato buscamos a verdade, temos de nos afastar da geração e corrupção que levam a proposições impensáveis, e nos ater ao puro ser, que no pensamento nos é dado. O pensamento e o ser são uma e a mesma coisa.

            A grande dificuldade do pensamento puro é obter qualquer conhecimento concreto do conteúdo do seu objeto. Nos fragmentos existentes da sua obra, Parmênides aparece-nos num esforço de dedução de uma série de determinações precisas do seu novo conceito rigoroso do ser. Estas notas, que se destacam no caminho que conduz à investigação dirigida pelo pensamento puro, ele chama de atributos ou características do Ser. O Ser é alheio ao devir, é imutável  e portanto imortal, total e único inabalável, eterno, onipresente, uno, coerente, indivisível, homogêneo, ilimitado e completo. É perfeitamente notório que todos os predicados positivos e negativos atribuídos por Parmênides ao Ser derivam da contraposição à antiga filosofia naturalista e foram obtidos das à análise crítica e rigorosa dos pressupostos nela implícitos. Não é este o lugar propício para expô-lo detalhadamente.

            Parmênides é o primeiro pensador que levanta conscientemente o problema do método científico e o primeiro que distingue com clareza os dois caminhos principais que a filosofia posterior há de seguir:  a percepção e o pensamento. O que não conhecemos pela via do pensamento é apenas “opinião dos homens”. Toda a salvação se baseia na substituição do mundo da opinião pelo mundo da verdade. Parmênides considera esta conversão como algo violento e difícil, mas grande e libertador. Põe na exposição do seu pensamento um ímpeto grandioso e um pathos religioso que transcende os limites do lógico lhe conferem uma emoção profundamente humana. É o espetáculo do Homem que luta por meio do pensamento e, pela primeira vez, liberta-se das aparências sensíveis da realidade e descobre no espírito o órgão para chegar à compreensão da totalidade e da unidade do Ser. Embora entravado e perturbado por uma multiplicidade de problemas, revela-se neste conhecimento uma força fundamental de concepção do mundo e de formação humana, especificamente helênica. Em tudo que Parmênides escreveu palpita a emocionante experiência desta conversão da investigação humana ao pensamento puro.

          É isto que explica a estrutura de sua obra, dividido em duas partes rigidamente constante,  uma consagrada à “verdade” e outra à “opinião”.

          Em Xenófanes, a filosofia aproxima-se da vida humana e adota uma atitude educadora e progressista. Em Parmênides retorna claramente ao seu alheamento das coisas humanas. No seu conceito  do Ser dilui-se toda a existência particular e portanto também o Homem. A este respeito, Heráclito de Éfeso realiza a revolução mas completa. A história da filosofia considerou-o por longo tempo um filósofo da natureza e colocou o seu princípio originário, o fogo, na mesma linha da água de Tales e do ar de Anaximandro. O vigor significativo das misteriosas proposições do “Obscuro”, freqüentemente expressas em forma de aforismos,  já devia Ter evitado aos historiadores a confusão deste temperado unicamente á fundamentação dos fatos. Em parte alguma de Heráclito deparamos com uma consideração puramente teórica das aparências ou até com a sombra de uma simples teoria física. O que assim se poderia interpretar está em íntima conexão com um vasto contexto. Não constituiu um fim em si. Não há qualquer dúvida que Heráclito se encontra sob a poderosa influência da filosofia da natureza. A imagem total da realidade, o cosmos, a incessante subida e descida da geração e destruição à fonte primitiva inesgotável de que tudo brota e a que tudo regressa, o curso circular das formas em contínua transformação, que constantemente percorre o Ser: tudo isso constitui, em linhas gerais, a base mais sólida do seu pensamento.

            Porém, enquanto os milesianos e, de modo ainda mais rigoroso, o seu opositor Parmênides procura uma intuição objetiva do Ser e dissolvem um mundo humano na imagem da natureza, em Heráclito o coração humano constitui o centro emocional e apaixonado para onde convergem os raios de todas as forças da natureza. O curso do mundo não é para ele um espetáculo distante e sublime em cuja contemplação o espírito se afunda e se esquece até submergir na totalidade do Ser. Pelo contrário, através do ser passa o acontecer cósmico. Está convicto de que todas as palavras e ações dos homens são um efeito daquela força superior, ainda que a maioria deles não saiba que são meros instrumentos nas mãos de um Poder mais alto. É esta a grande novidade que se revela em Heráclito. Os seus predecessores aperfeiçoaram a imagem dos cosmos. Os homens ganharam consciência da eterna luta entre o ser e o devir. Agora, levanta-se com imensa violência o problema de saber como é que o Homem se impõe no meio daquela luta. Enquanto Hecateu e outros contemporâneos se consagram com inteligência ímpeto juvenil á investigação variada e dispersa da história milesiana e satisfazem o seu anseio com a coleta e assimilação de tudo o  que se refere aos países, povos e tradições do passado, Heráclito profere estas graves palavras: A  multiplicação dos conhecimentos não proporciona sabedoria. E cria uma filosofia cujo sentido se encontra expresso na profunda máxima: Investiguei-me a mim próprio. É impossível exprimir a volta da filosofia ao Homem de modo mais grandioso do que aquele que aparece em Heráclito.

        As palavras acima mencionadas estão intimamente ligadas às que se seguem: Por mais longe que vás não encontrarás os limites da alma: Tão profundo é o seu logos. É a primeira vez que aparece o sentimento da dimensão da profundeza do logos e da alma,, característico do seu pensamento. É desta nova fonte de conhecimento que dimana a totalidade da sua filosofia.

        O logos de Heráclito é um conhecimento de onde nascem, ao mesmo tempo, “a palavra e a ação”. Se quisermos um exemplo deste tipo particular de conhecimento, não será no pensamento para o qual o Ser nunca pode não ser que deveremos proculá-lo, mas antes na visão profunda que se revela numa proposição como esta: O ethos é o dáimon do Homem. É sumamente significativo e de maior importância que na primeira frase do seu livro, afortunadamente conservada, esteja expressa esta fecunda relação do conhecimento com a vida. Trata-se aqui das palavras e  das obras que os homens empreendem sem compreenderem o logos, pois só ele nos ensina a “agir acordados”, enquanto os que não o possuem “agem dormindo”. Assim, o logos deve dar-nos uma nova vida sapiente. Estende-se à esfera total do humano. Heráclito, é o primeiro filósofo que introduz o conceito, o conhecimento do Ser está em íntima dependência e conexão com a intelecção da ordem dos valores e orientação da vida; e é com plena consciência que ele inclui a primeira na Segunda. A forma profética das suas afirmações tira a sua íntima necessidade da aspiração do filósofo a abrir os olhos dos mortais sobre si próprios, a revelar-lhes o fundamento da vida, e despertá-los do seu sono. Muitas são as suas expressões que insistem nesta vocação do intérprete. A natureza e a vida são um griphos, um enigma, um oráculo délfico, uma sentença sibilina. É preciso saber interpreta-lhes o sentido: Heráclito sente-se intérprete de enigmas, o Édipo da filosofia, que arranca os enigmas à Esfinge; é  que a natureza gosta de se ocultar.

          O próprio logos só pode ser determinado por meio de imagens. O se tipo de universalidade, a ação que exerce, a consciência que desperta naquele que inspira exprimem-se em Heráclito com maior clareza, através do seu contraste favorito entre a vigília e o sono. Indica um critério essencial do logos que o distingue do estado de espírito habitual na multidão: o logos é comum”. Para os homens “despertos” há um cosmos idêntico e unitário, enquanto os “adormecidos”, por sua vez, também não têm o seu mundo particular, o seu mundo de sonhos, que não é senão um sonho. Não devemos imaginar esta comunidade social do logos de Heráclito como a simples expressão figurada da universalidade lógica. A comunidade é o supremo bem que a polis conhece, e engloba a existência particular dos indivíduos. A atitude imperativa e ditatorial de Heráclito, que a princípio poderia parecer individualismo exagerado, surge agora como o seu oposto mais evidente, como a superação do vacilante arbítrio individual, que ameaçava perder a totalidade da vida. É preciso seguir o logos. Revela-se nele uma comunidade ainda mais alta e abrangente que a lei da polis. É nele que a vida e o pensamento se devem basear. Cada qual pode “torna-se forte” por meio do logos, “como a polis por meio da lei”. Os homens, é certo, vivem como se cada um tivesse a sua razão particular.

                O logos de Heráclito é o espírito, enquanto órgão do sentido do cosmos. O que já existia em germe na concepção do mundo de Anaximandro desabrocha, na consciência de Heráclito, na concepção de um logos que conhece a si próprio e conhece a sua ação e o seu lugar na ordem no mundo. Vive e pensa nele o mesmo “fogo” que impregna e penetra o cosmos como vida e pensamento. Pela sua origem divina, encontra-se apto a penetrar da intimidade divina da natureza, de onde procede. Assim, na nova ordem do mundo formulada por Heráclito, o Homem conquista uma posição como ser cósmico, dentro do cosmos descoberto pela filosofia anterior.

            A doutrina de Heráclito surge como a primeira antropologia filosófica, em face dos filósofos primitivos. A sua filosofia do Homem é, por assim dizer, o mais interior de três círculos concêntricos pelos quais a sua filosofia se pode representar. O círculo antropológico está no interior do cosmológico e do teológico; estes círculos não podem contudo, separar-se. De modo nenhum se pode conceber o antropológico independentemente do cosmológico e do teológico . O Homem de Heráclito é uma parte do cosmos. Nessa condição está igualmente submetido às leis do cosmos, tal como as suas demais partes. Quando, porém, ganha consciência de que traz no seu próprio espírito a lei eterna da vida do todo, adquiri a capacidade de participar da mais alta sabedoria, cujos decretos procedem da lei divina. A liberdade do homem grego consiste em se sentir subordinado, como membro, à totalidade da polis e das suas leis. É uma liberdade completamente diferente daquela do individualismo moderno, que se sente vinculado a uma universalidade supra-sensível, devido à qual o Homem não pertence só ao Estado, mas também a um mundo superior. A liberdade filosófica a que se eleva o pensamento de Heráclito permanece fiel à essência do homem grego vinculado à polis, o qual se sente membro de uma “comunidade” universal e submetida a ela. O sentimento religioso interroga-se sobre o condutor pessoal deste conjunto e Heráclito também sente esta necessidade. O Uno, que é o único sábio e prudente, quer e não quer ser chamado Zeus. O sentimento político dos Gregos desce tempo inclina-se a pensar como tirânico o governo de um só. O pensamento de Heráclito está apto a conciliar as duas coisas, pois a lei não significa para ele a maioria, mas sim a  emanação de um conhecimento superior. A lei é também obediência ao comando de um só. A penetração de Heráclito no sentido do mundo representa o nascimento de uma nova religião mais alta, a compreensão espiritual do caminho da mais alta sabedoria. Viver e comporta-se de acordo com ela é  o que os Gregos chamaram QPOVEIV. É  a este conhecimento que leva a profecia de Heráclito, baseada no logos filosófico. A antiga filosofia da natureza não tinha formulado expressamente o problema religioso. A sua concepção do mundo oferecia uma visão do Ser separado do humano. A religião órfica preenchia este vazio e sustentava a crença no caráter divino da alma, em meio ao turbilhão destruidor do devir universal onde a filosofia da natureza parecia precipitar o Homem. Mas a filosofia da natureza, no seu conceito de cosmos dominado pela Dike, oferecia um ponto de cristalização à  consciência religiosa. Foi nele que Heráclito inseriu a sua interpretação do Homem, ao encará-lo no seu aspecto estritamente cósmico foi pelo conceito heracliteano de alma que a religião órfica se ergueu a um estágio mais alto. Pelo seu parentesco com o “fogo eternamente vivo” do cosmos, a alma filosófica é capaz de conhecer a divina sabedoria e de nela se manter. Assim, a oposição entre o pensamento cosmológico e o pensamento religioso do séc.VI aparece superada e unificada na síntese de Heráclito—que vive já no umbral da centúria seguinte. Já observamos que a idéia de cosmos dos milesianos era mais uma norma do mundo que uma lei da natureza no sentido moderno. Por meio do seu “nomos divino”, Heráclito eleva esta característica à categoria de religião cósmica, e é na norma do mundo que ele fundamenta a norma da vida do homem filosófico.

          

Luta e transformação da nobreza

            Até agora foi só na luta política e religiosa da Atenas de Sólon e no duro choque das idéias de Xenófanes com a religião popular e com o ideal agonísticos do Homem da aristocracia grega que vimos a influência da cultura jônica sobre a metrópole e o Ocidente helênico. Os inimigos destas concepções descrevem a camada social que as defende como limitada e mesquinhas, musculosa, retrógrada inimiga da ciência.

           Na transição do séc.VI para o V, os dois principais representantes deste movimento de oposição, Píndaro de Tebas e Teóginis de Mégara, estão impregnados de uma profunda consciência de classe. Dirigem-se ao círculo dos senhores, hostis e fechados às inovações políticas dos Jônios. Mas esta aristocracia de Píndaro e de Teóginis já não repousa numa paz imperturbável. Sente-se assaltada pelas vagas dos novos tempos e precisa afirmar-se numa luta. É nesta luta pela existência material e espiritual que se enraíza a consciência profunda e radical e os nobres têm do seu próprio valor original. Ambos os poetas a refletem.

            Do ponto de vista educativo, a nobreza metropolitana tem, pela formação consciente de um tipo superior de Homem, uma superioridade muito grande sobre os Jônios e sua aspiração a uma formação interior, baseado num indivíduo e na natureza. Este ethos consciente e educador é característico não apenas de Hesíodo, Tirteu e Sólon, mas também de Píndaro e Teóginis, e opõe-se á ingênua espontaneidade com  o que, entre os jônios, irrompe o espírito em todas as suas fórmulas.

             A única coisa que resta ao Homem verdadeiramente nobre, si prescindimos das suas riquezas, é a riqueza interior, isto é, a arte; e esta poucos a possuem.

             Restava, porém, uma ultima barreira:  a inquebrantável crença no sangue. É ela que o leva a exigir, como o dever mais alto, a manutenção da sua pureza. Levanta a voz contra os insensatos e desleais companheiros de classe que julgam poder restaurar a fortuna por meio do casamento com filhas de plebeus, ou dando as filhas aos filhos dos novos-ricos.

             A idéia especificamente aristocrática  da conservação da raça foi principalmente cultivada por Esparta e pelos grandes educadores do Estado do séc. IV.

             

A política cultural dos tiranos

 

           Já no séc. V começava  a decair o florescimento da poesia aristocrática. Os tiranos representam, contudo, uma fase de transição entre o domínio da nobreza e o Estado democrático. A sua importância para a história da educação não é menor que para a do desenvolvimento do Estado.

            Encontramos a tirania, quase ao mesmo tempo que na metrópole, na Jônia e nas ilhas, onde naturalmente parece que se devia ter iniciado antes, devido ao seu desenvolvimento espiritual e político. Por volta do ano 600, ou pouco depois, vemos o poder político de Mileto, Éfeso e Samos nas mãos de conhecidos tiranos, que mantinham estreitas relações com os seus congêneres da Hélade. Apesar de serem fenômeno de política puramente interna, ou talvez por isso mesmo, os tiranos estavam ligados uns aos outros por uma solidariedade internacional, frequentemente baseada em laços matrimoniais. Anuncia-se a solidariedade, tão habitual no séc. V, entre as democracias e as oligarquias. É assim que nasce pela primeira vez-- e isso é um fato memorável -- uma política de largos vôos que, por exemplo, em Atenas, Corinto e Mégara, levou à fundação de colônias. É típico destas colônias terem com a sua metrópole uma ligação muito mais íntima que as primitivas fundações deste tipo.

          Nas outras regiões da Metrópole, permanecia o regime aristocrático, que, como sempre, apoiava-se na propriedade territorial, e em alguns locais – por exemplo  Egina, praça meramente comercial—também nas grandes riquezas. Em nenhum lugar os tiranos se agüentavam  por mais de duas ou três gerações. A maioria das vezes era derrubado pela nobreza, já experimentada na política e ciente do seu objetivo. Não obstante, porém, a maior parte das vezes o usufruto da revolução cai logo sob o domínio do povo, como em Atenas. Como observa Polibio na sua teoria das crises e transformações dos regimes políticos, a causa principal da queda dos tiranos é, em geral, a incapacidade dos filhos e netos, que só herdam do pai a força e não o vigor espiritual, assim como a má utilização do poder recebido do povo num despotismo arbitrário. OS tiranos tornam-se o terror da aristocracia derrubada, e legaram essa característica aos seus sucessores democráticos. Mas o ódio da aristocracia é apenas uma reação e uma forma unilateral da luta pelo poder.

           A antiga tirania é intermediária entre a realeza patriarcal dos tempos primitivos e a demagogia do período democrático. Embora conservando a forma exterior do Estado aristocrático, o tirano procurava reunir, tanto quanto possível todo os poderes nas suas mãos e nas do círculo do seus partidários. Para isso apoia-se numa força militar não muito grande, mais eficiente. Estados incapazes de estabelecer por si próprios uma ordem eficaz  e legal, de acordo com a vontade da comunidade ou de uma grande maioria, só podiam ser governados por uma minoria armada. A impopularidade desta pressão, que nem sequer o hábito foi capaz de suavizar, obrigou os tiranos contabalançá-la  por meio da cuidadosa manutenção das formas exteriores de eleição para os cargos, pelo cultivo sistemático da lealdade e pela busca de uma política econômica favorável ao público.

            Os nobres que podiam converter-se em rivais perigosos eram desterrados ou eram encarregados de tarefas honrosas em outros lugares do país.

             A tirania foi por muitos chamada “o reino de Cronos”, isto é, a idade de ouro, e contava-se todo tipo de histórias sobre as visitas pessoais do  senhor aos campos e suas conversas com povo simples e trabalhador, cujo coração ganhava com a sua afabilidade e com a diminuição das contribuições. Mesclavam-se intimamente nesta política a prudência, o tato político  um instinto profundo e preciso das necessidades do campo. Com o fim de evitar ao povo as viagens à cidade para assistir aos litígios, deslocava-se pessoalmente ao campo na qualidade de juiz de paz e ali celebrava as suas sessões.

            O tirano é o protótipo do homem de Estado que surgiu mais tarde, embora carecesse da responsabilidade deste. Deu o primeiro exemplo de uma ação de previsão e de visão ampla, realizada pelo cálculo dos fins e dos meios internos e externos, e ordenada segundo um plano. Foi ele na verdade o verdadeiro político. O tirano é a manifestação específica do crescente desenvolvimento da individualidade espiritual na esfera do Estado, assim como em outras esferas o foram o filósofo e o poeta. No séc. IV, quando despertou o interesse geral pelas individualidades importantes e a biografia nasceu como gênero literário novo, o objeto preferido das suas descrições foram os poetas, os filósofos e os tiranos.

             O tirano mostra-se assim um verdadeiro “político”:  fomenta nos cidadãos o sentimento da grandeza  e do valor da pátria. Não era novo, certamente, o interesse público por estas coisas; mas aumentou subitamente, de modo assombroso, com o incitamento do poder e com o emprego de grandes meios. O interesse do Estado pela cultura é um sinal inequívoco do amor dos tiranos pelo povo. Depois da queda deles, continuou no Estado democrático, que não fez mais do que seguir o exemplo dos seus predecessores. Deixou de ser possível, a partir daí, pensar num organismo estatal plenamente desenvolvido, sem uma atividade sistematizada nesta ordem. É certo que as atividades culturais do Estado consistiram predominantemente na glorificação da religião por meio da arte e na proteção dos artistas pelo soberano, e que este empenho jamais colocou o Estado em conflito consigo próprio.

             Nunca ouvimos falar de uma vinculação dos tiranos às personalidades filosóficas.

 

 

 

 

       

       Sócrates

 

O problema socrático

 

     Ora, o mais elementar a que nos podemos ater é o próprio Sócrates, que nada deixou escrito, mas sim uma serie de obras sobre ele todas provenientes da mesma época e tendo como autores seus discípulos imediatos. Não é possível saber se estas obras ou partes delas foram escritas em vida do próprio Sócrates, mas o mais provável é que não. A semelhança entre as condições em que nasce a literatura socrática e aqueles de que datam os mais antigos relatos cristãos sobre a vida e doutrina de Jesus foi muitas vezes destacada e, de fato, salta à vista. É evidente que nem se quer a influencia direta de Sócrates começou a plasmar-se em imagem harmoniosa nos seus discípulos, senão depois de falecido o mestre. O abalo deste acontecimento deixou na vida deles um traço fundo e forte. E tudo parece indicar precisamente esta catástrofe que os levou a representar o seu mestre em escritos. É com isso que se começa a desenrolar entre os contemporâneos o processo de cristalização histórica de imagem de Sócrates, flutuante até antão.

     Os restos que se conservam daquelas obras – os diálogos de Platão e Xenofonte, as recordações deste ultimo sobre Sócrates e finalmente os diálogos de Antíteses e de Esquines de Esfeto -, apesar do muito que diferem entre si, revelam pelo menos uma coisa com absoluta clareza: aquilo que sobretudo preocupava os discípulos era expor a personalidade imortal do mestre, cujo profundo influxo haviam sentido na sua própria pessoa. O dialogo e as memórias são as formas literárias que nascem nos meios socráticos para satisfazer esta necessidade. Ambos estão ligados à consciência de que a herança espiritual do mestre é inseparável da personalidade humana de Sócrates. Por mais difícil que fosse transmitir aos que o não tinham conhecido uma impressão do que fora aquele homem, era necessário tentá-lo a todo custo. Este anseio representava para a sensibilidade grega algo de extraordinário, cuja importância é impossível exagerar. O olhar focalizado nos homens e qualidade humanas, tal como a própria vida, estava inteiramente submetido ao império do típico. Há uma criação literária paralela, da primeira metade do séc. IV o enkomion, que nos indica como teriam sido escritos os panegíricos de Sócrates, de acordo com a concepção do homem predominante na primeira metade do séc. IV. Este gênero literário deve igualmente a sua origem à exaltada valorização do individuo fora do comum; mas só consegue compreender o seu valor pela apresentação da personalidade celebrada, como a encarnação de todas as virtudes que constituem o ideal típico do cidadão ou do chefe. Não era assim, por certo, que se podia captar a personalidade humana de Sócrates que na Antiguidade levou, pela primeira vez, à pratica da psicologia individual, cujo mestre mais eminente é Platão. O retrato literário de Sócrates é a única imagem fiel, decalcada sobre a realidade viva de uma individualidade grande e original, que a era clássica grega nos transmitiu.

     O exemplo de Sócrates provocou no conceito de Arete uma mudança, cuja consciência se revela no interesse inesgotável dedicado à sua pessoa.

     Em contrapartida, é através do seu influxo sobre terceiros que a personalidade humana de Sócrates se manifesta. O seu órgão era a palavra. Por si mesmo, nunca plasmou por escrito esta palavra oral, o que denota o quanto era importante para ele a relação da palavra com o ser vivo a quem, naquele dado momento, se dirigia. Isto representava um obstáculo quase insuperável para uma tentativa de exposição, sobretudo quando se tem presente que a sua forma de conversar por meio de perguntas e respostas não se encaixa em nenhum do gêneros literários tradicionais, mesmo que suponhamos a existência de versões escritas daquelas conversas e, portanto, que o seu conteúdo se podia reconstruir, parcialmente, com certa liberdade, como nos mostra o exemplo do Fédon de Platão. Esta dificuldade serviu de estimulo à criação do dialogo platônico, imitado em seguida pelos diálogos dos socráticos.

O dialogo socrático de Platão é uma obra literária indubitavelmente baseada num sucesso histórico: no fato de Sócrates ministrar os seus sentimentos sob a forma de perguntas e respostas. É que ele considerava o dialogo a forma primitiva do pensamento filosofo e o único Caminho para chegarmos a nos entender com os outros. E era este fim pratico que ele visava. Platão dramaturgo inato, já escrevera tragédias antes de entrar em contato com Sócrates. A tradição afirma que ele as queimou todas, quando sob a impressão dos ensinamentos deste mestre, dedicou-se à investigação filosófica da verdade. Mas, quando, após a morte de Sócrates, resolveu manter viva, a seu modo, a imagem do mestre, descobriu na imitação artística do dialogo socrático a missão que lhe permitiria colocar o seu gênero dramático a serviço da filosofia. Não é só o dialogo, porem, o que há de socrático nessa obra. A repetição estereotipada de certas teses paradoxais características dos diálogos do Sócrates platônico e a sua consciência com as informações de Xenofonte tornam evidente que os diálogos platônicos também tem raízes, no que se refere ao conteúdo, no pensamento socrático. Até onde chega, nestes diálogos, o socrático? Eis o problema. Os informes de Xenofonte só coincidem com os de Platão num pequeno trecho, para alem do qual nos deixa sobre brasas, com a sensação de que Xenofonte peca por falta, enquanto, em contrapartida, Platão peca por excesso. Já Aristóteles inclinava-se a crer que a maior parte dos pensamentos filosóficos do Sócrates de Platão devem ser considerados doutrina deste e não daquele. Aristóteles faz a este propósito algumas observaqções, cujo valor teremos que examinar. O dialogo de Platão representa, segundo ele, um novo gênero artístico, uma manifestação intermediaria entre a poesia e a prosa. É fora de duvida que isto se refere em primeiro lugar à forma, que é a de um drama espiritual em linguajem livre. Mas, segundo a opinião de Aristóteles sobre as liberdades que Platão se permite na maneira de tratar o Sócrates histórico, devemos supor que era também quanto ao conteúdo que Aristóteles considerava o dialogo platônico uma mescla de poesia e prosa, de ficção e realidade.

Foi Schleiermacher o primeiro a formular engenhosamente a complexidade deste problema histórico, Tinha chegado à conclusão de que não devemos confiar exclusivamente nem em Xenofonte nem em Platão, mas sim mover-nos diplomaticamente, por assim dizer, entre dois personagens principais. Eis como Schleiermacher coloca o problema: O que é que Sócrates pode ter sido alem do que Xenofonte nos conta dele, mas sem os traços de caráter e as máximas de vida que Xenofonte proclama terminantemente como socráticos, e o que é que eles deve ter sido para permitir e autorizar Platão a apresentá-lo como nos seus diálogos o apresenta? Com certeza estas palavras não encerram nenhuma formula mágica para o historiador; limitam-se ao esclarecer coma maior precisão possível o campo dentro do qual devemos mover-nos com certo tato critico.

Os dados históricos de Aristóteles sobre Sócrates são para nós tanto mais valiosos quanto é certo que se referem todas à chamada teoria das idéias de Platão e à relação desta com Sócrates. Este era um problema central, muito debatido na Academia platônica, e, durante os dois decênios que Aristóteles esteve na escola de Platão, deve-se igualmente ter debatido como freqüência o problema das origens daquela teoria. Nos diálogos de Platão, Sócrates aparece com o filosofo que expõe a teoria das idéias, pressupondo-a expressamente, como algo familiar ao circulo dos seus discípulos. O problema da historicidade da exposição platônica de Sócrates, neste ponto, tem uma importância decisiva para a reconstituição do processo espiritual que fez brotar da socrática a filosofia platônica. Aristóteles. Aristóteles, que, ao contrario de Platão na sua teria das idéias, não atribui aos conceitos gerais uma existência dos fenômenos concretos captados pelos sentidos, fornece três indicações importantes sobre a relação que, neste ponto, existe entre Sócrates e Platão:

__Na primeira época dos seus estudos, Platão seguira os ensinamentos de Crátilo, discípulo de Heráclito, o qual ensinava que na natureza tudo flui e nada possui uma consistência firme e estável. Quando conheceu Sócrates, Platão viu abrir-se diante de si outro mundo. Sócrates circunscrevia-se inteiramente aos problemas éticos e procurava investigar conceptualmente a essência permanente do justo, do bom, do belo, etc. A idéia do eterno fluir de todas as coisas e a hipótese de uma verdade estável parecem, à primeira vista, contraditórias. Platão, porem, estava tão convencido, através de Crátilo, do fluir das coisas, que esta convicção não sofreu a mínima quebra por parte da impressão tão funda que lhe deve ter causado a tenaz busca de Sócrates, no sentido de encontrar um ponto firme e estável no mundo moral do homem. Foi assim que Platão acabou por se persuadir que ambos, Sócrates e Crátilo, tinham razão dado que se referiam a dois mundos completamente diversos.

__Nestes conceitos gerais aprendidos de Sócrates, Platão via agora o verdadeiro ser, arrancado ao mundo do eterno fluir. Estes essenciais, que só captamos pelo nosso pensamento e sobre as quais assenta o mundo do verdadeiro ser, Platão chama de “idéias”. Segundo Aristóteles, era indubitável que com isto Platão se elevava acima de Sócrates, que não falava das idéias nem estabelecia uma separação entre estas e as coisas materiais.

__Há duas coisas, segundo Aristóteles, que com justiça devem ser atribuídas a Sócrates e que de nenhum modo lhe podem ser negadas: a determinação dos conceitos universais e o método indutivo de investigação.

Supondo que este ponto de vista sejam exato, ele nos permitiria deslindar em medida considerável o que há de socrático e de platônico na figura de Sócrates que os diálogos de Platão nos apresentam. Neste caso, a formula metódica de Schleiermacher seria algo mais do que um postulado meramente ideal. Efetivamente, nos diálogos que, segundo as investigações do século passado, devem ser considerados como as primeiras obras de Platão, todas as investigações de Sócrates assumem a forma de perguntas e respostas sobre conceitos universais? E até o próprio Xenofonte nota expressamente, embora só de passagem, que Sócrates desenvolvia incessantes investigações deste tipo, esforçando-se por chegar a uma determinação dos conceitos. Isto abriria uma porta de saída para nosso dilema – Platão ou Xenofonte – e nos permitiria reconhecer em Sócrates o fundador da filosofia conceptual. É o que efetivamente faz Eduard Zeller na sua historia da filosofia grega, pondo em pratica o plano de investigação traçado por Schleiermacher. Segundo esta concepção, Sócrates seria algo comparável ao limiar mais sóbrio da filosofia de Platão, no qual se evitariam as audácias metafísicas deste e, fugindo à natureza para se limitar ao campo de moral, pretender-se-ia, de certo modo, fundamentar teoricamente uma nova sabedoria da vida orientada para o aspecto pratico.

Também os eruditos da escola escocesa vêem em Platão, mas estes em todos os seus diálogos socráticos, o único expositor congenial do seu mestre. Xenofonte é a encarnação do burguês, incapaz de compreender qualquer coisa da importância de Sócrates. No fundo, também não tem outra aspiração senão completar, tal como ele interpreta, o que os outros disseram a cerca do mestre.

 

 

 

Sócrates, educador

 

Toda a exposição anterior nos fornece os marcos dentro dos quais, nas paginas seguintes, estudaremos Sócrates: a sua figura torna-se o eixo da historia da formação do homem grego pelo seu próprio esforço. Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da historia do Ocidente. Quem pretender descobrir no campo da teoria e do pensamento sistemático a sua grandeza terá de lhe atribuir demais, à custa de Platão, ou então duvidara radicalmente da sua importância pessoal. Aristóteles tem razão quando considera substancialmente obras de Platão, na sua estrutura teórica, a filosofia que este põe na boca do seu Sócrates. Mas Sócrates é algo mais do que aquilo que resta como “apontamento filosófico”, depois de se descontar da imagem que Platão traça de Sócrates a teoria das idéias e o resto do conteúdo dogmático. É numa dimensão inteiramente distinta que a apóia a importância desta figura. Não vem continuar nenhuma tradição cientifica nem pode ser derivada de nenhuma constelação sistemática na historia da filosofia. Sócrates é o homem do momento, num sentido absolutamente elementar. À sua volta sopra uma aragem verdadeiramente histórica. É a partir da camada media da burguesia Ática, daquela camada do povo, imutável no mais intimo do seu ser, da consciência vigorosa e animada pelo temor de Deus, para cujo forte sentir haviam apelado outrora os seus aristocráticos chefes, Sólon e Ésquilo, é a partir desta camada que ele ascende aos píncaros da formação espiritual. Mas agora esta camada fala pela boca de um dos seus próprio filhos, da progênie do carteiro e da parteira do demos de Alopeke. Sólon e Ésquilo tinham aparecido no momento oportuno para assimilar os germes do pensamento, de ação dissolvente, que havia sido importado do estrangeiro; e chegaram a dominá-lo em toda a sua profundidade interior, de tal modo que, em vez de corrompê-las, ele contribui para fortificar as forças mais vigorosas do caráter Ático. A situação espiritual, quando surgiu Sócrates, apresenta uma certa analogia com esta. A Atenas de Péricles, que como cabeça de um grande império vê-se inundada por influencias de todo o tipo e proveniência, está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu brilhante domínio em todos os campos da arte e da vida.Todos os valores herdados se esfumam num abrire fechar de olhos, ao sopro de uma buliçosa loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no campo da moral que nesta altura o Estado e a sociedade são minados. É a segunda vez que na historia da Grécia o espírito Ático invoca as forças centrípetas da alma helênica contra as suas forças centrifugas, opondo ao cosmos físico das forças naturais em luta, criação do espírito investigador da Jônia, uma ordem dos valores humanos. Sólon descobrira as leis naturais da comunidade social e política. Sócrates embrenham-se na própria alma, a fim de penetrar no cosmos moral.

O Estado ateniense, que naquela época teve de levar à máxima tensão ao seu poder, a fim de consolidar na Grécia a posição dominante que acabava de conquistar, exigia dos seus cidadãos grandes sacrifícios. Sócrates combateu mais de uma vez e distingui-se no campo de batalha. No processo movido contra ele, foi o seu exemplar comportamento militar o que se destacou em primeiro plano, para compensar as deficiências da sua carreira política. Sócrates era um grande amigo do povo, mas era considerado mau democrata. Não simpatizava com a intervenção política ativa dos Atenienses nas assembléias do povo ou como jurados nos tribunais da justiça. Só uma vez agiu publicamente como membro do senado e presidente da assembléia popular, na qual, sem previa resolução, a multidão condenou à morte, por sentença em bloco, os chefes da batalha vitoriosa das Arginusas, por não terem salvo, devido à tempestade, os náufragos que lutavam com as ondas. Foi Sócrates o único dos prítanes que se negou a autorizar a votação ilegal.

Sócrates viveu numa época em que Atenas via, pela primeira vez, filósofos e estudos filosóficos. Ainda que não nos tivesse chegado a noticia referente às suas relações com Arquelau, teríamos de supor que, como contemporâneo de Eurípides e Péricles, estabeleceu contato, desde muito cedo, com a filosofia da natureza de Anaxágoras e Diógenes de Apolônia. Não há razões para duvidar do caráter histórico e dos dados que, a propósito da sua evolução, Sócrates aponta no Fédon de Platão, pelo menos na parte em que refere os seus antigos contatos com as teorias dos fisiólogos. É certo que na Apologia platônica Sócrates nega terminantemente a pretensão de possuir nesta matéria conhecimentos especializados, mas terá lido, sem duvida, como todos os Atenienses cultos, o livro de Anaxágoras, que, como ele próprio diz naquela passagem, podia-se adquirir por um dracma nas livrarias as sumbulantes do teatro. Xenofonte diz-nos que ainda mais tarde, em cãs, na companhia dos seus jovens amigos, Sócrates revia as obras dos “antigos sábios”, isto é, dos poetas e pensadores, para delas tirar algumas teses importantes. Talvez a cena da comedia de Aristófanes, em que Sócrates aparece expondo as doutrinas físicas de Diógenes sobre o ar, como principio primário, e sobre o turbilhão cosmogônico, não se encontrasse tão longe da verdade como hoje costuma pensar a maioria dos autores. Ma até que ponto assimilou Sócrates estes ensinamentos?

Segundo os dados do Fédon, foi cheio de esperanças que se entregou na leitura do livro de Anaxágoras.

Não enxergamos na sua vida nenhum período que possamos considerar específico de um filosofo da natureza. A filosofia da natureza não tinha resposta para o problema que Sócrates guardava dentro de si e do qual tudo dependia, na sua opinião. Podia, por isso, deixá-la de lado. E a segurança inabalável com que desde o primeiro instante segue o seu caminho é o sinal da sua grandeza.

No entanto, a atitude negativa de Sócrates ante a natureza aspecto constantemente destacado desde Platão e Aristóteles – facilmente nos leva a perder de vista outra coisa. Já na prova, exposta por Xenofonte, sobre a adequação do cosmos a um fim, revela-se que Sócrates, em vez da antiga filosofia da natureza, adota um pouco de vista antropológico, ao estudá-la: são o homem e a estrutura do corpo humano o ponto de partida das suas conclusões. E, se foram tiradas da obra de Diógenes as observações que contribuem para isso, têm ainda o interesse de este filosofo da natureza ser também um medico famoso. Por isso, tal como em alguns outros jovens filósofos da natureza – basta recordar o nome de Empédocles -, a fisiologia humana ocupa nele um lugar maior do que em nenhuma das antigas teorias pré-socráticas da natureza. Isto correspondia, naturalmente, ao interesse de Sócrates e à sua maneira de colocar o problema. Deparamos aqui com o lado positivo da sua atitude perante a “ciência da natureza” do seu tempo, uma faceta frequentemente se ignora.

O que os antigos fisiólogos denominavam conhecimento era aos olhos de Sócrates uma concepção do mundo, isto é, uma grandiosa fantasmagoria, uma charlatanice sublime. São completamente irônicas as alusões que de vez em quando ele faz àquela sabedoria inacessível para ele. Como acertadamente observa Aristóteles, ele procede de modo exclusivamente indutivo. O seu método tem algo da sobriedade do método empírico dos médicos.

Para conhecer a posição que Sócrates ocupava na filosofia antiga e a sua feição antropocêntrica, é importante não perder de vista a sua relação com as grandes forças espirituais do seu tempo. Abundam surpreendentemente nele as referencias ao exemplo da medicina. E não causais: relacionam-se com a estrutura essencial do seu pensamento, com a consciência de si próprio e com o ethos de toda a sua atuação. Sócrates é um autentico medico, a ponto de, segundo Xenofonte, não se preocupa menos com a saúde física dos seus amigos do que com o seu bem-estar espiritual. Mas é, sobretudo o médico-empírica. Era uma atitude explicável, tendo em vista a concepção teológica da natureza e do homem, que pela primeira vez surgiu conscientemente na medicina da época e que a partir daí foi ganhando precisão cada vez maior até encontrar a sua expressão filosófica definitiva na concepção biológica do mundo, de Aristóteles. È certo que a busca socrática da essência do bom nasce de uma colocação do, problema absolutamente peculiar a Sócrates, não aprendida por ele em parte alguma e que, aos olhos da filosofia profissional da natureza daquele tempo, deveria ser considerada um problema diletante,a que não sabe retorquir o cepticismo heróico do investigador físico. Este diletantismo encerra, no entanto uma indagação criadora e não deixa de ser importante chegar, a partir da medicina de um Hipocrates e de um Diógenes, à conclusão de que era naquele problema que encontrava formulação oportuna a mais profunda procura de todo o seu tempo.

Há uma certa analogia interior entre o dialogo socrático e o ato de se desnudar para ser examinado pelo medico ou pelo ginasta, antes de se lançar no combate, na arena. Platão põe esta comparação na boca do próprio Sócrates. O ateniense daqueles tempos sentia-se mais no seu meio no ginásio do que entre as quatro paredes da sua casa, onde dormia e comia. Era ali, sob a transparência do céu da Grécia, que diariamente se reuniam novos e velhos para se dedicarem ao cultivo do corpo. Os pedaços de lazer dos intervalos eram dedicados à conversa. Não sabemos se era banal ou elevado o nível médio daquelas conversas; o que é certo, porem, é que as mais famosas escolas filosóficas do mundo, a Academia e o Liceu, têm os nomes de dois famosos ginásios de Atenas. Quem tinha pra dizer ou para perguntar alguma coisa que considerava de interessante geral, mas para a qual não eram locais adequados nem a assembléia do povo nem o tribunal, corria ao ginásio para dizê-la aos seus amigos e conhecidos. Era um encanto constante a tensão espiritual, que se tinha certeza de ali encontrar. Para variar, freqüentavam-se diversos estabelecimentos deste tipo, e em Atenas havia muitos ginásios grandes e pequenos, públicos e privados.

Os ginásios eram locais mais importantes do que quaisquer outros, pois era neles que as pessoas se reuniam de maneira regular. À parte a sua peculiar finalidade, a intensidade do comercio espiritual que fomentavam entre as pessoas levava a desenvolverem-se neles certas qualidades que constituíam o terreno mais propicio a qualquer sementeira de novos pensamentos e aspirações. Reinava neles o lazer e a tranqüilidade. Nada de especial podia florescer neles durante muito tempo, nem era possível lá dedicar-se aos negócios. Em contrapartida, era para os problemas humanos de caráter geral que a atenção se voltava. Mas não interessava apenas o conteúdo: podia ali expandir-se, em toda a sua força flexível e suave elasticidade, o espírito, certo de deparar com o interesse de um circulo de ouvintes em tensão critica, surgiu assim uma ginástica do pensamento que logo teve tantos partidários e admiradores como a do corpo, e não tardou a ser reconhecida como o que esta já vinha sendo havia muito: como uma nova forma da Paidéia. A “dialética” socrática era uma planta indígena peculiar a antítese mais completa do método educativo dos sofistas, que tinha aparecido simultaneamente com aquela. Os sofistas são mestres ambulantes vindos de fora, nimbados de um halo de celebridade inacessível e rodeados de um reduzido circulo de discípulos. É por dinheiro que ministram os seus ensinamentos. Estes versam sobre disciplinas ou artes especificas e dirigem-se a um publico seleto de filhos de cidadãos abastados, desejosos de se instruírem. O palco onde, em longo solilóquio, brilham os sofistas é a casa particular ou a aula improvisada. Em contrapartida, Sócrates é um cidadão simples, a quem todos conhecem. A sua ação passa quase despercebida; a conversa com ele agarra-se quase espontaneamente, e como sem querer, a qualquer tema de ocasião. Não se dedica ao ensino nem tem discípulos; assim o afirmar, pelo menos. Só tem amigos, camaradas. A juventude sente-se fascinada pelo fio cortante daquele espírito, ao qual não há nada que resista. Ele é para essa juventude ateniense um espetáculo constantemente renovado, a que se assiste com entusiasmo, cujo triunfo se celebra e que se procura imitar, fazendo por examinar do mesmo modo as pessoas, tanto na própria casa como no circulo dos amigos e conhecidos. É em torno de Sócrates que se agrupa o escol espiritual da juventude Ática.

O que é, pois, essa filosofia cujo protótipo abraça em defesa daquele? Platão expõe em muitos dos seus diálogos a essência de, na sua exposição, conserva-se sempre fiel à essência desta “filosofia”. Pouco a pouco, tende a parecer neles cada vez mais em primeiro lugar o resultado das investigações que Sócrates realiza com os seus interlocutores; mas Platão devia ter a consciência de, na sua exposição, conserva-se sempre fiel à essência do espírito socrático. Esta essência devia manter-se incessantemente fecunda através de todas estas investigações.

     O poder a serviço do qual o filosofo está ñ tem valor apenas para embelezar a vida e mitigar a dor,mas também para se sobrepor ao mundo. Logo em seguida a confissão “enquanto viver deixarei jamais de filosofar”, vem um exemplo da sua maneira de falar e ensinar. E, para compreendermos o seu conteúdo, também nos devamos partir da forma que Platão nos apresenta como modelo, nesta e em muitas outras passagens.

Platão reduz aqui a duas formas fundamentais a peculiar maneira socrática: a exortação (protreptikos) e a indagação (elenchos). Ambas são elaboradas na forma de perguntas. Estas enxertam-se na forma de parênese mais antiga, que, através da tragédia, podemos seguir até a epopéia. Na conversa mantida no pátio da casa do Sócrates, com que principia o Protágoras de Platão, deparamos mais uma vez com a justa posição daquelas duas formas socráticas de discorrer.

Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vos e de  instruir quem quer que eu encontre, dizendo-lhe à minha maneira habitual: querido amigo, és um ateniense, um cidadão da maior e mais famosa cidade do mundo, pela sua sabedoria e pelo seu poder; e não te envergonhas de velar pela tua fortuna e pelo seu aumento constante, pelo teu prestigio e pela tua honra, sem em contrapartida te procurares em nada com conheceres o bem e a verdade e com tornares a tua alma o melhor possível? E, se algum de vos duvidar disto asseverar q com tal se preocupa, não o deixarei em paz nem seguirei tranquilamente o meu carinho, mas interoogá-lo-ei, examiná-lo-ei e refutá-lo-ei; e se e se me parecer que não tem qualquer Arete, mas que apenas a aparente, invectivá-lo-ei, dizendo-lhe que sente o menor respeito pelo que há de mais respeitável e o respeito mais profundo pelo que menos respeito merece. E farei isto com os jovens e com os anciãos, com todos os que encontrar, com os de fora e com os de dentro; mas sobretudo com os homens desta cidade, pois são por origem os mais próximos de mim. Pois ficais sabendo que Deus assim mo ordenou, e julgou que até agora não houve na nossa cidade nenhum bem maior para vós do que este serviço que eu presto a Deus. É que todos os meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e velhos a não se preocuparem nem tanto em primeiro lugar com o seu corpo e com a sua fortuna, mas antes com a perfeição da sua alma.

A “filosofia” que Sócrates aqui professa não é um simples processo teórico de pensamento: é ao mesmo tempo uma exortação e uma educação. A serviço destes objetivo estão ainda o exame e a refutação socrática de todo o saber aparente e de toda a excelência (arate) meramente imaginaria. Este exame não é mais que uma parte do processo total, como Sócrates o descreve. Uma parte que parece ser, sem duvida o aspecto mais original daquele processo. Mas antes de penetrarmos na essência deste dialético “exame do Homem”, que costuma ser considerado o essencial da filosofia socrática por encerrar o seu elemento teórico mais vigoroso, devemos deter-nos nas palavras da exortação preliminares. A comparação estabelecida entre o conteúdo material da vida do homem de negócios, ávido de dinheiro, e a superior exigência de vida proclamada por Sócrates baseia-se na idéia da preocupação ou do cuidado consciente do Homem em relação aos bens que mais precisa. Sócrates exige que, em lugar de se preocupar com os ganhos, o Homem se preocupe com a alma (UVXNSOEPAREIA). Esse conceito, que aparece no começo do dialogo, surge outra vez no seu final.

Num belo ensaio, Burnet investigou a evolução do conceito de alma através da historia do espírito grego, demonstrando que o novo sentido que Sócrates da a esta palavra não se pode explicar nem a partir do eidolon épico de Homero, a sombra de Hades, nem da alma-sopro  da filosofia Jônica, nem do dáimon-alma dos órficos, nem da psyche da tragédia antiga. Eu partindo, como fiz acima, da analise da forma característica do mundo socrático de se exprimir, logo tive de chegar à mesma conclusão. Uma forma como a de exortação socrática só podia brotar daquele peculiar pathos valorativo que em Sócrates a palavra “alma” tem implícito. Os seus discursos protépticos são a forma primitiva da diatribe filosófico-popular da época helenística, a qual por sua vez contribui para modelar a ‘predica” cristã. No entanto, não se trata aqui só da transferência e da continuidade da forma literária externa. Neste sentido, estas conexões foram já frequentemente estudadas pela filogia anterior, que seguiu através da evolução inteira a incorporação dos vários motivos concretos no discurso exortativo. O que serve de base às três fases das chamadas formas discursivas é esta fé: de que servira ao homem ganhar o mundo inteiro, se isso redunda em detrimento de sua alma? É com razão que Adolf Harnack, na sua Wessen des Christentums, caracteriza essa fé no valor infinito da alma de cada homem como um dos três pilares fundamentais da religião cristã. Mas, antes de o ser desta religião, era já um pilar fundamental da “filosofia” e da educação socráticas. Sócrates prega e converte, Vem “salvar a vida”.

A filosofia não é senão a expressão racional consistente da estrutura interna fundamental do homem grego, tal como podemos a seguir através dos séculos, nos supremos representantes deste gênero. É indubitável que a religião dionisíaca e órfica dos Gregos, bem como a dos mistérios, apresentam certas “fases preliminares” e analogias; mas não se pode explicar este fenômeno dizendo que as formas socráticas do discurso e da  representação derivam de uma seita religiosa que se pode afastar a seu bel-prazer como estranha aos gregos, ou aceitar como oriental. Tratando-se de Sócrates, o mais sóbrio dos homens, seria verdadeiramente absurdo pressupor a existência de uma influencia eficaz destas seitas orgiásticas nas camadas irracionais da sua alma. Pelo contrario, aquelas seitas e aqueles cultos são nos Gregos as únicas formas de uma antiga devoção popular que denotam certos indícios importantes e uma experiência interior individual, com a atitude individualista da vida e a forma paralelas, em parte por si próprias, como fruto de situações semelhantes, e em parte apoiando-se simplesmente, quando à expressão, nas formas religiosas correntes, as quais aparecem na linguagem filosófica plasmadas em metáforas e que por isso mesmo são formas desnaturadas.

Dois fatores confluem na representação socrático do mundo interior como parte da “natureza” do homem: o habito multissecular do pensamento e os dotes mais íntimos do espírito helênico. E á aqui que nos surge o que distingue a filosofia socrática da concepção crista da alma. A alam de que Sócrates fala só pode ser compreendida com acerto se é concebida em conjunto com o corpo, mais ambos como dois aspectos distintos da mesma natureza humana. No pensamento de Sócrates, o psíquico não se opõem ao físico. Em Sócrates, o conceito de physis da antiga filosofia da natureza engloba o espiritual, e com isso se transforma essencialmente. Sócrates não pode crer que só o Homem tenha espírito, que, por assim dizer, ele o haja arrebatado como monopólio seu. Uma natureza em que o espiritual ocupe um lugar próprio tem de ser, por principio, capaz de desenvolver uma força espiritual. Mas, assim como pela existência física. Por assim dizer, a alma aparece ao olhar espiritual como algo de plástico no seu próprio ser, e portanto acessível à forma e a ordem. Tal como o corpo, faz parte dos cosmos; alem disso, é por si mesma um cosmos, embora para a sensibilidade grega não pudesse haver a menor duvida de que o principio que se manifesta nestes distintos campos da ordem é sempre, essencialmente, um e o mesmo. É por isso que também se tem de tornar extensiva ao que os Gregos designam por arete a analogia da alma com o corpo.

     Para Sócrates, “o bom”, é sem duvida, também aquilo que se faz ou que fazer por causa de si próprio, mas ao mesmo tempo Sócrates reconhece nele o verdadeiramente útil, o salutar, e também, portanto, o que dá prazer e felicidade, uma vez que é ele que leva a natureza do Homem à realização do seu ser.

A nota nova trazida por Sócrates é a de que não é através da expansão e satisfação da sua natureza física, por mais restrita que esteja por vínculos e exigências sociais, que o homem pode alcançar essa harmonia com o ser, mas sim pelo domínio completo sobre si próprio, de acordo com a lei que ele descobriu no exame da sua própria alma.

A experiência da alma como fonte dos supremos valores humanos deu à existência aquele jeito de interioridade, característico dos últimos tempos da antiguidade. A virtude e a felicidade deslocaram-se, assim, para o interior do Homem. Um traço significativo da consciência com que Sócrates dava este passo, nós o temos na sua insistência para que as artes plásticas não se contentassem apenas com produzir a beleza corpórea, mas aspirassem também a transmitir a expressão do ser moral (áronineioqai to tñs uvxns noos).

O fato de este cuidado da alma ser qualificado como “serviço de Deus”, de acordo com as palavras que na Apologia Platão põe na boca de Sócrates, não quer dizer que tenha qualquer sentido religioso, no sentido usual do termo. Pelo contrario, o caminho que ele segue é, do ponto de vista cristão, um caminho demasiado naturalista e laico. Antes de mais nada, este cuidado da alma não se traduz de modo nenhum em descuido do corpo. Isto seria impossível, dado que se tratava de um homem  que aprendera do medico do corpo a necessidade de submeter a “tratamento” especial a alma tanto a sã quanto a enferma. A sua descoberta da alma não significa a separação dela e do corp, como tantas vezes se afirmam em desabono da verdade, mas antes o domínio da primeira sobre o segundo. Mens sana in corpore sano é uma frase que corresponde a um autentico sentido socrático. Sócrates não desleixava o seu próprio corpo nem os que o faziam. Ensinava os amigos a manterem o corpo são por meio de endurecimento, e conversava demoradamente com eles sobre a dieta mais conveniente para consegui-lo. Repelia a abundancia, por entender que era nociva ao cuidado da lama. Por sua vez, levava uma vida de simplicidade espartana.

É Sócrates que reestrutura a conexão da cultura espiritual com a cultura moral.

Tal como os sofistas, em cujo ensino aparecem também estes temas, Sócrates partiu muitas vezes de certas passagens dos poetas, principalmente de Homero, para com base neles desenvolver ou ilustrar os conhecimentos políticos.

Os principais testemunhos que possuímos são concordes em afirmar que Sócrates gostava também de abordar assuntos militares, quando eles caiam no âmbito dos problemas ético-politicos.

O problema da educação dos governantes, que Xenofonte situa em primeiro plano, constituiu o tema de um longo dialogo com o filosofo posterior hedonismo, Aristipo de Cirene. Manifesta-se neste dialogo, com alegre colorido, a antítese espiritual que desde o primeiro instante devia claramente surgir entre o mestre e o discípulo. A premissa fundamental da qual Sócrates parte, neste dialogo, é a de que toda a educação deve ser política. Tem necessariamente de educar o Homem para uma de duas coisas: para governar ou para ser governado. Já na alimentação se começa a marcar a diferença entre estes dois tipos de educação. O Homem que é educado para governar tem de aprender a antepor o cumprimento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome e à sede. Tem de se acostumar à fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir pouco, a deitar-se tarde e a se levantar cedo. Nenhum trabalho o deve assustar, por árduo que seja. Não deve deixar atrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos. Tem de se endurecer par o frio e par o calor. Não deve preocupa-se, se tiver de acampar a céu aberto. Quem não é capaz de tudo isso fica condenado de figurar entre as massas governadas. Sócrates designa com a palavra grega askessis, equivalente à inglesa training, esta educação para a abstinência e para o autodomínio.

Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central da nossa cultura ética. Esta idéia concebe a conduta moral como algo que brota do interior do próprio individuo e não como a mera submissão exterior à lei, tal qual a exigia o conceito tradicional da justiça. Mas, como a concepção ética dos Gregos parte da vida coletiva e do conceito político de domínio, é pela transferência da imagem de uma polis bem governada para a alma do Homem que ele concebe o processo interior do Homem, temos de ter presente a dissolução da autoridade exterior da lei, na época dos sofistas. Foi ela que abriu caminho à lei interior.

A enkrateia não constitui uma virtude especial, mas, como acertadamente diz Xenofonte, a “base de todas a s virtudes” pois equivale a emancipar a razão da tirania da natureza animal do homem e a estabilizar o império legal do espírito sobre os instinto. E, como para Sócrates é o espiritual o verdadeiro eu do Homem, podemos traduzir o conceito de enkrateia, sem a ele dar nenhuma conotação nova, pela expressão, nele inspirada, “autodomínio”.

O principio socrático do domínio interior do Homem por si próprio tem implícito um novo conceito da liberdade. É digno de nota que o ideal da liberdade, que impera como nenhum outro da época da revolução Francesa para cá, não desempenhe nenhuma papel importante no período clássico do helenismo, embora não esteja ausente desta época a idéia da liberdade, como tal. É à igualdade (to ioov), em sentido político e jurídico, que fundamentalmente aspira a democracia grega. A “liberdade” é conceito polivalente demais para a caracterização desta exigência. Tanto pode indicar a independência do individuo como a de todo o Estado ou da nação. É indubitável que de vez em quando se fala de uma constituição livre ou se qualificam como livres os cidadãos do Estado em que essa constituição vigora, mas com isso apenas se quer significar que não são escravos de ninguém. Com efeito, nesta época, a palavra “livre” (eyevoepos) é primordialmente o que se põe à palavra escravo (govyos).

O conceito grego da liberdade, no sentido da época clássica, é um conceito positivo do direito político. Baseia-se na premissa da escravatura como instituição consolidada, mas ainda, como a base sobre a qual repousa a liberdade da população citadina. A palavra eyevoepios “liberal, derivada daquele conceito, designa a atitude própria do cidadão livre, tanto no modo de gastar o dinheiro ou no modo de se exprimir, como no decoro exterior da sua maneira de viver, todas elas atitudes que não se coadunariam com um escravo. Artes liberais são aquelas que fazem parte da cultura liberal, que é a Paidéia do cidadão livre, em oposição à incultura a mesquinhez do homem não-livre e do escravo. Foi Sócrates que fez a liberdade um problema ético, problema logo desenvolvido com intensidade diferente pelas escolas socráticas. Com certeza nem se quer Sócrates procede a uma critica demolidora da divisão social dos homens da polis em livres e escravos. Todavia, mesmo sem tocar nesta divisão, ela perde muito do seu valor profundo, pelo fato de Sócrates a transferir para a órbita do interior moral do Homem. De par com o desenvolvimento do conceito de “domínio de si próprio”, tal qual o expusemos acima como sendo o império da razão sobre os instintos, vai-se formando agora um novo conceito de liberdade interior. Considera-se livre o homem que representa a antítese daquele que vive escravo dos seus próprios apetites.

A sua autarquia está completamente desprovida da afeição apolítica, do retraimento e da marcada indiferença diante de tudo o que venha do exterior. Sócrates vive ainda plenamente dentro da polis. E o conceito político engloba ao mesmo tempo para ele toda a forma de comunidade humana. Situa o Homem dentro da vida familiar e do circulo dos parentes e amigos. São estas as formas naturais e mais estreitas da comunidade da vida humana, sem as quais não poderíamos substituir. É por isso que Sócrates torna o ideal da concórdia na vida política, onde aquele conceito se começou a formar, extensivo ao terreno da família, e assinala a necessidade de cooperação dos órgãos do corpo humano, as mãos, os pés e as demais partes do Homem, nenhuma das quais pode existir isoladamente.

Um bom amigo constitui um bem do mais alto valor em todas as situações da vida. Mas o valor dos amigos é tão diverso como o preço dos escravos. Quem sabe disso coloca-se também, por sua vez, o problema do que ele representara para os seus amigos, e procurara fazer subir, na medida do possível, este valor.

A decomposição interna da sociedade e de todas as relações humanas, mesmo as familiares – conseqüência desagregação política cada vez mais funda e da ação dos sicofantas – acentua até o insuportável a insegurança do individuo isolado. O que, porem, faz de Sócrates um mestre de uma nova arte da amizade é a consciência de que é na utilidade externa de uns homens para os outros que se deve procurar a base de toda a amizade verdadeira, mas antes no valor interior do Homem. É certo que a experiência ensina que ate entre os homens bons e que aspiram a fins elevados nem sempre reinam a amizade e a benevolência, mas, ao contrario, impera com grande freqüência um antagonismo mais feroz que entre as criaturas pouco dignas.

E, no entanto a amizade rompe por entre todos estes obstáculos e cria laços entre os melhores homens, que prefere esta fortuna interior a uma maior soma de dinheiro ou de prestigio e põem desinteressadamente os seus bens e serviços à disposição dos seus amigos, ao mesmo tempo em que desfrutam e se regozijam por participar das poses e dos serviços dos amigos.

A amizade começa pelo aperfeiçoamento da própria personalidade.

Chamam pela Paidéia a grande capacidade de assimilação, a boa memória e a ânsia de saber destes homens. Sócrates está convencido de que, se lhes fosse dada a educação adequada, eles atingiram por eles próprios as maiores alturas e fariam felizes, ao mesmo tempo, os outros homens. Àqueles que desprezam o saber e tudo confiam as suas qualidades naturais faz compreender que são estas as que mais precisam ser cultivadas, tal como os cavalos e cães da melhor qualidade, que a natureza dotou de raça mais apurada e de melhor temperamento, precisam ser amestrados e disciplinados com o maior rigor desde a nascença; é que se não fossem treinados e disciplinados acabariam por se tornar piores que os outros. São precisamente as naturezas mais bem-dotadas que precisam desenvolver o seu discernimento e o seu juízo critico, para poderem dar os frutos correspondentes ao seu talento. E aos ricos, que julgam pode desprezar a cultura, abre os olhos para que vejam a inutilidade de uma riqueza que não se sabe empregar ou se emprega para meu fim.

Em substituição do estudo livresco, outro caminho se abre a iniciação da “virtude política”, caminho que parte da consciência da própria ignorância e do conhecimento de si próprio, isto é, das suas próprias forças.

Aristóteles diz expressamente que a definição dos conceitos é uma conquista de Sócrates, e Xenofonte sustenta a mesma afirmação. Isto se fosse exato, acrescentaria um novo traço essencial à imagem anteriormente delineada: Sócrates apareceria como o criador da lógica. É neste dado que se baseia a antiga opinião que apresenta Sócrates como o fundador da filosofia dos conceitos. Mas, recentemente, Heinrich Maier pôs em duvida o valor dos testemunhos de Aristóteles e Xenofonte, julgado poder provar que se baseiam simplesmente nos diálogos de Platão que, se limitavam a expor a sua própria teoria. É Platão que, baseado nas tentativas  de um novo conceito do saber que descobre em Sócrates, elabora a lógica e o conceito; segundo este autor, Sócrates foi apenas o pregador, o profeta da autonomia moral.

A tradição que chegou até nos é concorde em apresentar Sócrates como o mestre insuperável na arte de persuadir sob a forma de perguntas e respostas, na arte da dialética, embora também Xenofonte relegue este aspecto para segundo plano, por trás da pregação moral. Outro problema é saber quais eram o sentido e objetivo destas tentativas de determinação dos conceitos; o que não oferece a menor duvida é o fato em si. Reconheçamos que, mantendo-nos dentro da concepção tradicional de Sócrates como puro filosofo dos conceitos, não poderíamos compreender a tendência que o seu discípulo Antístenes adquiriu logo para a simples ética e parênese. Mas inversamente, se limitarmos a personalidade de Sócrates ao “evangelho da vontade moral”, também se tornara inexplicável o nascimento da teoria platônica das idéias e a estreita relação que o próprio Platão estabelece entre ela e a “filosofia de Sócrates. Para este dilema só há uma saída: reconhecer que a forma de Sócrates abordar o problema ético não era uma mera profecia, uma pregação destinada a sacudir a moral do Homem, mas que a sua exortação ao “cuidado da alma” traduzia-se no esforço de penetrar na essência da moral por meio da força do logos.

O tema do dialogo socrático é a vontade de chegar com outros homens a uma inteligência, que todos devem atacar, sobre um assunto que para todos encerra um valor infinito: o dos valores supremos da vida. Para alcançar este resultado, Sócrates parte sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral aceitam. Esta aceitação serve de “base” ou hipótese, após o que se desenvolvem as conseqüências quem dela resultam, confrontando-as com outros dados da nossa consciência, considerados fatos estabelecidos. Um fator essencial deste progresso mental dialético é a descoberta das contradições em que incorremos ao aceitar determinadas teses. Estas contradições obrigam-nos a analisar uma vez mais a exatidão dos dados aceitos como verdadeiros, para revê-los ou abandoná-los, conforme os casos. O objetivo em vista é reduzir o valor geral e supremo os vários fenômenos do valor. Todavia, não é das suas investigações sobre o problema deste “bem em si” que Sócrates parte, mas antes de uma virtude concreta qualquer tal qual a linguagem caracteriza por meio de qualificações morais especiais, como, por exemplo, o que dominamos valente ou justo.

O dialogo socrático não pretende exercitar nenhuma arte lógica da definição sobre problemas éticos, mas é simplesmente o caminho, o “método” do logos para chegar a uma conduta reta. Nenhum dos diálogos socráticos de Platão chega a definir realmente o conceito moral que nele se investiga; mas ainda, existiu por muito tempo a opinião geral de que nenhum destes diálogos chega realmente a um resultado. Mas há de fato um resultado, que é visível, quando se comparam vários diálogos os respectivos desenvolvimentos, de modo a ficar-se em condições de captar o que encerram de típico. Todas estas tentativas para “determinar” a essência de uma dada virtude desembocam, por ultimo, na consciência de que tal essência tem necessariamente de consistir num saber, num conhecimento.

O conhecimento do bem, que Sócrates descobre na base de todas e cada uma das chamadas virtudes humanas, não é uma operação da inteligência, mas antes como acertadamente Platão compreendeu, a expressão consciente de um ser interior do Homem. Tem a sua raiz numa camada profunda da alma, em que já não se podem separar, pois são essencialmente uma e a mesma coisa, a penetração do conhecimento e a posse do conhecido. A filosofia platônica é a tentativa de descer a este novo abismo do conceito socrático do saber e esgotá-lo. Para Sócrates, não refuta a sua tese do saber como virtude o fato de a grande massa dos homens invocar contra ela a sua experiência de que nem sempre coincidem o conhecimento do bem e o comportamento. Esta experiência prova apenas que o verdadeiro saber não abunda. O próprio Sócrates não se gaba de possuí-lo. Mas, com a prova convincente da ignorância do Homem que julga saber, abre um caminho para o conceito do saber é para Sócrates uma verdade da firmeza absoluta, pois se demonstrar ser ela a base de todo o pensamento e de toda conduta moral, assim que indagamos as premissas destes. E a tese do saber como virtude já não constitui para os seus discípulos um simples paradoxo, como a principio se julgou, mas a descrição da suprema capacidade da natureza humana, que em Sócrates se torna realidade e tinha, portanto, existência.

A meta da vida é aquilo que a vontade quer pela sua própria natureza: o bom.

A verdadeira essência da educação é dar ao Homem condições para alcançar o fim autentico da sua vida. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos de uma chamada cultura superior. Só pode alcançar o seu objetivo ao longo de toda a vida do homem; de outro modo não alcança. Isto faz mudar o conceito de essência da Paidéia. A cultura em sentido socrático converte-se na aspiração a uma ordenação filosófica consciente da vida, que se propõe cumprir o destino espiritual e moral do Homem. O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. A cultura em sentido socrático converte-se na aspiração a uma ordenação filosófica consciente da vida, que se propõe cumprir o destino espiritual e moral do homem. O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. Esta é o seu único patrimônio verdadeiro. Como todos os socráticos são unânimes nesta concepção, o seu autor deve ter sido Sócrates, ainda que ele afirmasse de si próprio que não sabia “educar os homens”. Poderíamos reproduzir numerosas citações, onde se poderia inferir que, com a matiz socrático, o conceito e o sentido da Paidéia se ampliam e aprofundam interiormente, e que o valor deste bem para o Homem é exaltado até o Maximo.

A educação para a virtude política que ele pretende instaurar pressupõe antes de tudo restauração da polis no seu sentido moral interior. É certo que Sócrates, ao contrario de Platão, não parece partir fundamentalmente da idéia de que os Estados atuais não têm remédio. Não se sente ainda, naquilo que o seu ser tem, mas é totalmente um cidadão de Atenas. Mas foi dele só dele que Platão recebeu a idéia de que o renascimento do estado não se podia conseguir pela simples implantação de um forte poder exterior, mas tinha de começar pela consciência de cada um, como hoje diríamos, ou, para usar a linguajem dos gregos, pela sua alma. Só desta fonte interior pode jorrar, purificada pela investigação do logos, a verdadeira norma obrigatória e irrecusável para todos.

Neste sentido, é completamente indiferente a Sócrates que se chama Sócrates e seja filosofo de profissão o homem que ajudar ele a esclarecera esta norma. Quantas vezes ele insiste em que não é ele, Sócrates, mas sim o logos quem diz isto ou aquilo! A mim podeis refutar-me – diz -, não a ele porem. No fundo, o conflito com o Estado nasce para a filosofia troca a herança de Tales pelo legado de Sólon. Ao por nas mãos da filosofia o certo do seu Estado ideal, Platão compreendeu e procurou eliminar a necessidade deste conflito entre o estado, no qual reside o poder, e o filosofo, que investiga a norma suprema do comportamento. Mas o Estado onde Sócrates vive não é nenhum Estado ideal. Sócrates foi a vida inteira o simples cidadão de uma democracia que dava a qualquer outro o mesmo direito que dava a ele de se manifestar sobre os mais altos problemas do bem publico. Era por isso que ele tinha de considerar recebida de Deus e só d’Ele a sua missão especial.

Fala do “cuidado da alma” que prega tanto aos conterrâneos como aos estrangeiros, mas acrescenta: As minhas predicas eram dirigidas, sobretudo aos mais chegados a mim pelo nascimento. Não é a “humanidade” que o seu “serviço de Deus” se consagra, mas sim à sua polis. É por isso que ele não escreve, mas limita-se a falar com os homens presentes em carne e osso; é tambem por isso que ele não professa teses abstratas, mas se põe de acordo com os seus condições a respeito de algo comum, que serve de ponto de partida para toda a conversação desta natureza e cuja raiz se situa na origem e pátria comuns, no passado e na historia, na lei e na constituição política comum que dá conteúdo concreto ao universal que o seu pensamento procura. O pouco apreço pela ciência e pela erudição, o gosto pela dialética e pelos debates em torno aos problemas do valor são características atenienses, tanto quanto o sentido d Estado, dos bons costumes, do temor de deus, se deixar para trás a charis espiritual que paira sobre tudo.

Sócrates é um dos últimos cidadãos no sentido da antiga polis grega, e ao mesmo tempo a encarnação e suprema exaltação da nova forma da individualidade moral e espiritual. Ambas as coisas nele unidas sem compromissos. A primeira aponta para um grande passado, a segunda para o futuro. É, de fato, um fenômeno único e peculiar na historia do espírito grego. É da comunidade e da dualidade de aspirações destes dois elementos integrantes do seu ser que dimana a usa idéia ético-político da educação. É isto que lhe da educação. É isto que lhe dá sua profunda tensão interior, o realismo do seu ponto de partida e o idealismo da sua meta final. Aparece pela primeira vez no Ocidente o problema Estado-Igreja, que ira se arrastar ao longo dos séculos posteriores. É que este problema, como prova o caso de Sócrates, não é de modo nenhum um problema especificamente cristão.  Não está vinculado a uma organização eclesiástica nem a uma fé revelada, mas surge também, numa fase correspondente, no desenvolvimento do “homem natural” e da sua “cultura”. Não aparece aqui com conflito entre duas formas comunitárias conscientes da sua força, mas antes como a tensão entre a consciência que o individuo tem de pertencer a uma comunidade terrena e a sua consciência de estar interior e diretamente unido a Deus.. Este Deus, a serviço do qual Sócrates realiza a sua obra de educador, é um Deus diferente dos “deuses em que a polis acreditava”. Se era principalmente neste ponto que a acusação contra Sócrates insistia, então acertava realmente no alvo. Era por certo um erro pensar a este propósito no famoso daimon, cuja voz interior levou Sócrates a abster-se de executar muitos atos. Isso poderia quando muito demonstrar que Sócrates possuía ao mesmo tempo, alem do dom do saber, pelo qual batalhou mais que outro qualquer, aquele dom instintivo cuja falta verificamos tão freqüentemente no racionalismo. É este dom, e não a voz da consciência, o que na realidade aquele daimon significa como o atestam os casos em que Sócrates o invoca. Mas o conhecimento da essência e da força do bem, que se apodera do seu interior como força arrebatadora, converte-se para ele num novo caminho para encontrar o Divino. É certo que, pelo seu modo de ser espiritual, Sócrates é incapaz de “aceitar qualquer dogma”. Mas um homem que vive e morre como ele viveu e morreu tem a Deus as suas raízes. O discurso em que ele afirma que se deve obedecer antes a Deus do que ao homem encera indubitavelmente uma nova religião, tal como a sua fé no valor da alma, superior ao de todas as coisas. Embora não lhe faltassem os profetas, faltava à religião grega, antes de Sócrates aparecer, um Deus que desse ao individuo a ordem para fazer frente às tentações e às ameaças de todo um mundo. Da raiz desta confiança em Deus brota em Sócrates uma nova forma de espírito heróico, que desde o primeiro instante imprime o seu caráter na idéia grega da arte. Na Apologia, Platão apresenta Sócrates como a encarnação da suprema bravura e megalopsychia, e no Fedon enaltece a morte do filosofo como a façanha da superação heróica da vida. Assim, até na fase máxima da sua espiritualização a Arete grega permanece fiel às suas origens; e da luta de Sócrates, tal como dos trabalhos dos heróis de Homero, brota a força humana criadora de um novo arquétipo, que terá em Platão o seu profeta e mensageiro poético.  


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