Síntese:Paolo Cugini
A PRIMEIRA
GRÉCIA
Nobreza e arete
A educação é
uma função tão natural e universal da comunidade humana, que, pela sua própria
evidência, leva muito tempo a atingir a plena consciência daqueles que a
recebem e praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu primeiro vestígio na tradição literária. O
seu conteúdo, aproximadamente o mesmo em todos os povos, é ao mesmo tempo moral
e prático. Também entre os Gregos foi assim. Reveste, em parte, a forma de
mandamentos, como: honrar os deuses, honrar os deuses, honrar os deuses, honrar
pai e mãe, respeitar os estrangeiros; consiste por outro lado numa série de
preceitos sobre a moralidade externa e em regras de prudência para a vida,
transmitidas oralmente pelos séculos afora; e apresenta-se ainda como
comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais a cujo conjunto, na
medida em que é transmissível, os Gregos deram o nome de techne.
Da educação,
neste sentido, distingue-se a formação do Homem por meio da criação de um
tipo ideal intimamente coerente e claramente definido. Esta formação não é
possível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser.
A utilidade lhe é indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é
fundamental nela é o Kalon, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem
desejada, do ideal. O contraste entre estes dois aspectos da educação pode ser
acompanhado através da História: é componente fundamental da natureza humana.
As palavras com que os designamos não têm importância em si, mas é fácil ver
que, ao empregarmos as expressões educação e formação para designar estes
sentidos historicamente distintos, educação e formação têm raízes diversas. A
formação manifesta-se na forma integral do Homem, na sua conduta e
comportamento exterior e na sua atitude interior. Nem uma nem outra nasceram do acaso, mas são antes produtos de
uma disciplina consciente. Já Platão a comparou ao adestramento de cães de
raça. A princípio, esse adestramento limitava-se a uma reduzida classe social,
a nobreza.
É fato
fundamental da história da formação que toda a cultura superior surge da
diferenciação das classes sociais, que por sua vez se origina da diferença
natural de valor espiritual e corporal dos indivíduos.
A nobreza é a
fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma
nação. A história da formação grega – o aparecimento da personalidade nacional
helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo aristocrático
da Grécia primitiva com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao
qual aspira o escol da raça. Uma vez que
a mais antiga tradição escrita nos mostra uma cultura aristocrática que se
eleva acima do povo, importa que a
investigação histórica a tenha como ponto de partida. Toda a formação
posterior, por mais elevada que seja, e ainda que mude de conteúdo, conserva
bem clara a marca de sua origem. A formação não é outra coisa senão a forma
aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação.
O tema
essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que
remonta aos tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente
exato para este termo; mas a palavra “virtude”
na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão
do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao
heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega. Basta
isto para concluirmos onde devemos procurar a origem dela. É às concepções
fundamentais da nobreza cavaleiresca que remonta a sua raiz. Na sua forma mais
pura, é no conceito de arete que se concentra o ideal de educação dessa
época.
O testemunho
mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero, se com este nome
designamos as duas epopéias: a Ilíada e a Odisséia. Para nós, ele é ao mesmo
tempo a fonte histórica da vida daqueles dias e a expressão poética imutável
dos seus ideais. É preciso encará-los sob dois pontos de vista.
Por um lado,
temos de extrair dele a imagem que formamos do mundo aristocrático; por outro,
inquirir como o ideal de Homem ganha forma nos poemas homéricos e como a sua estreita esfera de
validade originária se alarga e se converte em força de formação de muito maior
amplitude.
Tanto em
Homero como nos séculos posteriores, o conceito de arete é freqüentemente usado
no seu sentido mais amplo, isto é não só designar a excelência humana, como
também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o
homem comum não tem arete e, se o escravo descende por acaso de uma família de
alta estripe, Zeus tira-lhe a metade da arete e ele deixa de ser quem era
antes. A arete é o atributo próprio de nobreza. Os gregos sempre consideram a
destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer posição
dominante. Senhorio de arete estavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavra
é a mesma: àpiotos, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era
constantemente empregado para designar a nobreza.
Só uma vez,
nos livros finais, Homero entende por arete as qualidades morais ou
espirituais. Em geral de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos primitivos, designa-se por arete a
força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo,
considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim
intimamente ligado a ela.
Sob o conceito
de arete é necessário compreender outras excelências além da força intrépida,
como nos é apresentada, sem, contar as exceções citadas, pela poesia dos tempos
mais antigos. A significação da palavra na linguagem comum penetra,
evidentemente, no estilo poético, mas a arete, como expressão da força e da
coragem heróicas, estava tão fortemente enraizada na linguagem tradicional da
poesia heróica, que esse significado havia de permanecer ali por muito tempo.
Era natural que, na idade guerreira das grandes migrações, o valor do homem
fosse apreciado sobretudo por aquelas qualidades, caso análogo aos que os
outros povos nos oferecem. Também o adjetivo agajós, que embora procede de
outra raiz corresponde ao substantivo arete, continha em si a conjugação de
nobreza e bravura militar. Às vezes significa nobre, outras, valente ou hábil;
quase nunca tem o sentido posterior de “bom”, como arete não tem o de virtude
moral. Todas as palavras deste grupo têm em Homero, apesar do predomínio do seu
significado guerreiro, um sentido “ético” mais geral. Derivam ambos da mesma
raiz: designam o homem nobre que, na vida privada como na guerra, rege-se por
normas certas de conduta, alheias ao comum dos homens. O código da nobreza
cavaleiresca tem assim uma dupla influência na educação grega. Dela herdou a
ética posterior da cidade, como uma das mais altas virtudes, a exigência da
coragem, cuja designação posterior – virilidade – recorda claramente a
identificação homérica da coragem com a arete varonil.
O sentido do
dever é, nos poemas homéricos, uma cacterística essencial da nobreza, que se
orgulha por lhe ser imposta uma medida exigente. A força educadora da nobreza
reside no fato de despertar o sentimento do dever em face do ideal, que deste
modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos. Pode-se sempre apelar para este sentimento –aidos –e a sua violação
desperta nos outros o sentimento que lhe
está estreitamente vinculado, a nemesis. Ambos são em Homero conceitos
constitutivos do ideal ético da aristocracia. O orgulho da nobreza, baseado
numa longa série de progenitores ilustres, é acompanhado pelo conhecimento pelo
conhecimento de que esta proeminência só se pode conservar através das virtudes
pelas quais foi conquistada.
A luta e a
vitória são, no conceito cavaleiresco, a autêntica prova de fogo da virtude
humana. Elas não significam simplesmente a superação física do adversário, mas
a comprovação da arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades
naturais. A palavra aristeia, empregada mais tarde para os combates singulares
dos grandes heróis épicos, corresponde plenamente àquela concepção.
Ainda em outro
aspecto é a Ilíada testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega
primitiva. Mostra como o velho conceito guerreiro da arete já não bastava aos
poetas de uma época mais juvenil, mas trazia uma nova imagem do Homem perfeito,
para o qual ao lado da ação estava a nobreza do espírito, e só a união de ambas
se encontrava o verdadeiro objetivo. E é altamente significativo que seja o
velho Fênix, educador de Aquiles, o herói protótipo dos Gregos, quem exprime
este ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim para que foi
educado:
“ Para ambas
as coisas: proferir palavras e realizar ações.”
Não foi sem
razão que os Gregos posteriores viram nestes versos a mais antiga formulação do
ideal de formação grego, no seu esforço para abranger a totalidade do
humano.
Intimamente
ligada à arete está a honra. Nos primeiros tempos era inseparável da habilidade
e do mérito. Segundo a bela explicação de Aristóteles a honra é a expressão
natural da medida ainda não consciente do ideal de arete, a que aspira.
Para Homero e para o mundo
da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em contrapartida, a maior tragédia humana. Os heróis
tratavam-se mutuamente com respeito e honra
constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de honra
era neles simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral
peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis
maiores e os príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta.
Ninguém receia, na Antiguidade, reclamar a honra devida a um serviço prestado.
A exigência de pagamento é para eles aspecto secundário e de modo nenhum
decisivo. O elogio e a reprovação são a
fonte da honra e da desonra.
A ânsia de se
distinguir e a aspiração à honra e á aprovação aparecem ao sentimento cristão
como vaidade pessoal pecaminosa; os Gregos, porém, viram nisso a aspiração da
pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o valor. De certo modo pode-se
dizer que a arete heróica só se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela
reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas
perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na imagem da sua
arete, tal como o acompanhou e dirigiu na vida.
Cultura e educação da nobreza homérica
Do ponto de vista histórico, a Ilíada é um
poema muito mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da
história da cultura.
Quando a
Odisséia pinta a existência do herói depois da guerra, as suas viagens
aventurosas e a sua vida caseira com a família e os amigos, inspira-se na vida
real dos nobres do seu tempo e projeta-a com ingênua vivacidade numa época mais
primitiva. Ela é, deste modo, a nossa fonte principal para conhecermos a
situação da antiga cultura aristocrática. Pertence aos Jôcios, em cuja terra
nasceu, mas podemos considerá-la típica quanto ao que nos interessa. Vê-se
claramente que as suas decisões não pertencem à tradição dos velhos cantos
heróicos, mas assentam na observação direta e realista das coisas
contemporâneas.
A nobreza da Ilíada é na sua maior parte uma
imagem ideal da fantasia, criada com a ajudados traços transmitidos pela
tradição dos antigos cantos heróicos. Domina-a, na sua totalidade, o ponto de
vista que determinou a forma daquela tradição, isto é, o espanto perante a
arete sobre-humana dos heróis da Antiguidade. Só um ou outro traço realista e
político, como a cena de Tersites, revela o tempo relativamente tardio do
nascimento da Ilíada na sua forma atual.
A nobreza da
Odisséia é uma classe fechada, com intensa consciência dos seus privilégios, do
seu domínio e dos seus costumes e modos de vida refinados. Em vez das
grandiosas paixões das figuras sobre-humanas e dos trágicos destinos da Ilíada
, deparamos no novo poema com grande número de figuras de estatura mais humana.
Todos têm algo de humano e amável; nos seus discursos e experiências domina o
que a retórica posterior apelidou de ethos.
A vida
sedentária, a posse de bens e a tradição são os pressupostos da cultura da
nobreza. Estas três características possibilitam a transmissão das formas de
vida de pais para filhos. Segundo os
imperativos dos costumes da nobreza, a finalidade do jovem consciente do seu
padrão deve ser aderir a esse “adestramento” distinto. E, apesar de na Odisséia
existir um sentimento de humanidade para com as pessoas comuns e até para com
os mendigos, apesar de faltar a orgulhosa e aguda separação entre os nobres e
os homens do povo, e existir a patriarcal proximidade de senhores e servos, não
se pode imaginar uma educação e formação consciente fora da classe
privilegiada. O adestramento como formação da personalidade humana, mediante o
conselho constante e a direção espiritual, é uma característica típica da
nobreza de todos os tempos e povos. Só esta classe pode aspirar à formação da
personalidade humana na sua totalidade, o que não se pode conseguir sem o
cultivo consciente de determinadas qualidades fundamentais. Não basta crescer,
como as plantas, de acordo com os usos e costumes dos antepassados. A posição e
o domínio preeminente dos nobres acarretam a obrigação de estruturar os seus
membros desde a mais tenra idade segundo os ideais válidos dentro do seu
círculo. A educação converte-se aqui, pela primeira vez, em formação, isto é,
na modelação do homem integral de acordo com um tipo fixo. A importância de um
tipo desta natureza para a formação do Homem esteve sempre presente na mente
dos Gregos. Esta idéia desempenha um papel decisivo em toda a cultura nobre,
quer se trate da fisionomia social do séc. XVIII, tal como nos é apresentada
por todos os retratos convencionais da época.
A mais alta
medida de todo o valor da personalidade humana é ainda, na Odisséia, o ideal
herdado da destreza guerreira; mas a ele se junta a elevada estima das virtudes
espirituais e sociais destacadas com predileção naquele poema. O seu herói é o
homem a quem nunca falta o conselho inteligente e que para cada ocasião acha a
palavra adequada. A sua honra é a sua destreza e o engenho da sua inteligência
que, na luta pela vida e na volta ao lar, sai sempre triunfante em face dos
inimigos mais poderosos e dos perigos que o espreitam.
É preciso dizer aqui uma
palavra sobre a importância dos elementos femininos na velha cultura
aristocrática. A arete própria da mulher é a formosura. Isto é tão evidente
como a valorização do homem pelos seus méritos corporais e espirituais. O culto da beleza feminina corresponde ao tipo de
formação cortesã de todas as idades cavaleirescas. A mulher, todavia, não surge
apenas como objeto da solicitação erótica do homem, como Helena ou Penélope,
mas também na sua firme posição social e jurídica de dona de casa. As suas
virtudes são, a este respeito, o sentido da modéstia e o desembaraço no governo
do lar.
Homero como educador
Conta Platão que era
opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia. Desde
então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a
apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando
buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia.
A
não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego
primitivo. O procedimento de separá-las surge relativamente tarde. Foi p
Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia
em atitude espiritual predominante.
A obra de
Homero é inspirada, na sua totalidade, por um pensamento “filosófico” relativo
à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. Não lhe escapa nada
do essencial da vida humana. O poeta contempla todo o conhecimento particular à
luz do seu conhecimento geral da essência das coisas. A preferência dos gregos
pela poesia gnômica, a tendência a avaliar tudo o que acontece pelas normas
mais altas e a partir premissas, o uso
freqüente de exemplos míticos, julgados tipos e ideais imperativos, todos estes
traços têm a sua origem última em Homero. Não há símbolo da concepção épica do
homem tão maravilhoso como a representação estampada no escudo de Aquiles e
descrita em detalhe pela Ilíada. Hefestos
pinta nele a terra, o céu e o mar, o sol infatigável, a lua cheia e as
constelações que povoam o céu. Cria ainda a imagem das duas mais belas cidades
dos homens. Numa delas, realizam-se bodas, festas, cortejos nupciais e
epitalâmios. Os jovens dançam em roda, ao som das flautas e das liras. As
mulheres, à parte, contemplam-nos, admiradas. O povo está reunido no mercado,
onde se desenrola um processo. Dois homens brigam a propósito do preço de um
morto. Os juízes sentam-se em pedras polidas, num círculo sagrado, e de cetros
na mão pronunciam a sentença. A outra cidade está cercada por dois exércitos
numerosos, de armaduras brilhantes, desejosos de a destruírem e saquearem. Os
seus habitantes, porém, não querem render-se, antes se mantêm firmes nas ameias
das muralhas para defenderem os velhos, as mulheres e as crianças. Contudo, os
homens saem secretamente e, junto à margem de um rio, onde há um bebedouro para
o gado, armam uma emboscada e assaltam um rebanho. Acode o inimigo e trava-se o
combate. Voam as lanças, no meio do tumulto, avançam Éris e Kydoimos, demônios
da guerra, e Ker, o demônio da morte, de vestes ensangüentadas, e arrastam
pelos pés os mortos e feridos. Há também um campo onde os lavradores abrem
sulcos com as suas juntas e, na ribanceira, um homem despeja vinho numa taça,
para refrescá-los. A seguir, vem uma herdade na época da colheita. Os ceifeiros
levam na mão a foice, jogam no chão as espigas, que são atadas em molhos, e o
proprietário permanece calado, de coração alegre, enquanto os servos preparam a
comida. Uma vinha com os seus alegres vinhateiros; um soberbo rebanho de bois
com grandes chifres, junto com os respectivos pastores e cães; uma pastagem no
fundo de um vale formoso, com ovelhas, apriscos e estábulos; um local para
dança, onde moços e moças bailam de mãos dadas e um divino cantor canta com voz
sonora, contemplam esta pintura exaustiva da vida humana, com o seu singelo,
magnífico e eterno significado. em volta do círculo do escudo, envolvendo todas
as cenas, flui o Oceano.
A perfeita
harmonia da natureza e da vida humana, revelada na descrição do escudo domina a
concepção homérica da realidade. Por toda a parte o grande ritmo uniforme
mantém a plenitude do seu movimento.
Para Homero,
como para os Gregos em geral, as últimas fronteiras da ética não são convenções
do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por este amplo sentido
da realidade, em relação ao qual todo “ realismo” aparece como irreal, que se
baseia a força ilimitada da epopéia homérica.
A arte da
motivação em Homero está ligada à sua maneira profunda de penetrar o que é
universal e necessário nos temas. Para ele, não há a simples aceitação passiva
das tradições nem a mera relação dos fatos, mas um desenvolvimento íntimo e
necessário das ações, que se sucedem
passo a passo, numa inviolável conexão de causas e efeitos. A ação dramática
desenrola-se dois poemas com interrupta continuidade desde os primeiros versos.
Homero, no
entanto, não é autor moderno que considera tudo simplesmente no seu
desenvolvimento interno, como experiência ou fenômeno de uma consciência
humana. No mundo em que vive, nada de grande acontece sem a cooperação de uma
força divina, e a mesma coisa acontece na epopéia.
A inevitável
onisciência do poeta não se revela em Homero na forma como nos fala das emoções
secretas e íntimas das suas personagens, como se ele próprio as tivesse sentido
(o que os nossos escritores precisam fazer), mas sim porque ele vê laços entre
o humano e o divino. Não são fáceis de assinalar os limites a partir dos quais
esta representação da realidade é, em Homero, artifício poético; mas,
evidentemente, é falso explicar sempre a intervenção dos deuses como simples
recurso da poesia épica. O poeta não vive num mundo de ilusão artística
consciente, por trás do qual se encontre o frio e frívolo iluminismo, e a
banalidade do dia-a-dia burguês. Se percorrermos com discernimento casos de
intervenção divina na épica homérica, veremos um desenvolvimento espiritual que
vai desde as intervenções mais exteriores e esporádicas, que poderão pertencer
aos usos mais antigos do estilo épico, até a condução contínua de certos homens
por uma divindade. Assim Ulisses é guiado por inspirações de Atena, sempre
renovadas.
A epopéia
conserva, assim, um duplicidade característica. Qualquer ação deve ser encarada
ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino. A
cena deste drama desenrola-se em dois planos. Seguimos constantemente a sua
marcha sub specie das ações e projetos humanos, e dos mais altos poderes que
governam o mundo. Desse modo surge à plena luz a limitação, a miopia e a
dependência das ações humanas em relação aos decretos sobre-humanos e
insondáveis. Os atores não podem ver esta conexão, tal como ela aparece aos
olhos do poeta. A intervenção dos deuses nos fatos e sofrimentos humanos obriga
o poeta grego a considerar sempre as ações e o destino do Homem na sua
significação absoluta, a subordiná-los à conexão universal do mundo e a avaliá-los
pelas mais altas normas religiosas e morais. Do ponto de vista da concepção do
mundo, a epopéia grega é mais objetiva e mais profunda que a épica medieval.
A epopéia
grega já contém o germe da filosofia grega. Por outro lado, revela-se com a
maior clareza o contraste entre a concepção do mundo puramente teomórfica dos
povos orientais, para a qual só Deus age e o Homem é apenas o objeto da sua
ação, e o caráter antropocêntrico do pensamento grego. Homero situa
resolutamente em primeiro plano o Homem e o seu destino, embora o enquadre na
perspectiva das idéias mais sublimes e dos problemas máximos da vida.
Quando dois
povos lutam entre si e imploram com preces e sacrifícios o auxílio dos eus
deuses, põem os deuses em situação delicada, sobretudo dentro de um pensamento
que acredita na onipotência e na justiça imparcial do poder divino. Assim,
vemos na Ilíada um pensamento religioso e moral já bastante avançado debater-se
com o problema de pôr em concordância o caráter original, particular e local da
maioria dos deuses com a exigência de um comando unitário do mundo. A
humanidade e proximidade dos deuses gregos induzia uma estirpe, que com plena
consciência do seu orgulho aristocrático se sentia intimamente aparentada aos
imortais, a supor que a vida e as atividades das forças celestes não
diferiam muito das que tinham lugar na
sua existência terrena. Em contraste com esta representação que tantas vezes se
choca contra a elevação abstrata dos filósofos posteriores, vê-se na Ilíada um
sentimento religioso cuja representação da divindade, e principalmente do
soberano supremo do mundo, serve de alimento às idéias mais sublimes da arte e
da filosofia posteriores. Só na Odisséia, porém, descobrimos uma concepção mais
coerente e sistemática do governo dos deuses.
A mais alta
divindade é para o poeta uma força sublime e onisciente que se encontra acima
dos esforços e pensamentos. Não se compara às paixões cegas que arrastam
consigo as faltas dos homens e os fazem cair nas rede de Ate. É através deste
prisma ético e religioso que o poeta encara os sofrimentos de Ulisses, expiada
com a morte. Toda a ação decorre até o fim invariavelmente em torno deste
problema.
É da essência
desta história que a vontade suprema, a qual orienta de um modo conseqüente e
poderoso o conjunto da ação e a conduz finalmente até um resultado justo e
feliz, aparece sem disfarce no momento culminante. O poeta ordena tudo quanto
ocorre no sistema do seu pensamento religioso. Cada personagem conserva
firmemente a sua atitude e o seu caráter.
Hesíodo e a vida do campo
Os Gregos
colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo. Nele se
revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e cultura dos nobres.
Principalmente o último e mais arraigado à terra dos poemas de Hesíodo que se
conservaram, os Erga, apresenta a mais viva descrição da vida campestre da
metrópole grega no final do séc. VIII e completa essencialmente a representação
da vida mais primitiva do povo grego que aprendemos do jônico Homero. Homero
acentua, com a maior nitidez, que toda a educação temo seu ponto de partida na
formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das qualidades
próprias dos senhores e dos heróis. Em Hesíodo revela-se a Segunda fonte da
cultura: o valor do trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias, dado pela
posterioridade ao poema rústico didático de Hesíodo, exprime isso
perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre
os cavaleiros nobres e os seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz
dos trabalhadores com a terra dura e com
os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno
para a formação do Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma
humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada
da classe senhorial, em Homero, não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige
dos seus habitantes uma vida de trabalho.
A mais elevada
vida espiritual do campo dimana naturalmente das camadas superiores. Como já
mostram a Ilíada e a Odisséia, a epopéia homérica foi cantada, primitivamente,
por trovadores ambulantes nas residências dos nobres. Mas até Hesíodo, que
cresceu num ambiente camponês e trabalhou no campo, teve conhecimento de
Homero, antes de despertar para a vocação de rapsodo. O seu poema dirige-se
primordialmente aos homens da sua condição e parte do princípio de que os seus
ouvintes entendem a linguagem artística de Homero, que é a que ele próprio emprega. Nada revela tão
claramente como a estrutura do poema de Hesíodo a essência do processo
espiritual que se realiza através do contato daquela classe com a poesia homérica.
Reflete-se
nele o processo da formação interior do poeta. Toda a elaboração poética de
Hesíodo se sujeita, sem vacilar, às formas estilizadas por Homero. Aceita dele
versos inteiros, fragmentos, palavras e frases. O uso deepítetos épicos
pertence também à linguagem de Homero. Daqui resulta um notável contraste entre
o fundo e a forma do novo poema. No entanto, para estes elementos não populares
penetrarem na existência dos camponeses e pastores simples e ligados à terra, e
elevarem os seus velados pressentimentos e desejos a uma claridade consciente e
a uma inspiração moral, era preciso dotá-los de uma expressão convincente. O
conhecimento da poesia homérica não significa para os homens do mundo hesíodico
só um enriquecimento enorme dos meios de expressão. Apesar do seu espírito
heróico e patético, tão oposto ao estilo
de vida deles, abria-lhes, pela precisão e clareza com que exprimia os mais
elevados problemas da vida humana, o caminho espiritual que os conduzia para
fora da estreiteza opressiva da sua existência, até a mais alta e mais pura
atmosfera do pensamento.
O poema de
Hesíodo permite-nos conhecer com clareza o tesouro espiritual que os camponeses
beócios possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa das sagas da
Teogonia encontramos muitos temas antiqüíssimos, já conhecidos de Homero, mas
também muitos outros que nele não aparecem. E nem sempre é fácil distinguir o
que já estava elaborado em forma poética daquilo que corresponde a simples
tradição oral. Hesíodo manifesta-se na Teogonia mais como pensador construtivo,
enquanto nos Erga está mais próximo da realidade e da vida do campo. Mas também
aqui quebra sem hesitar o fio do seu pensamento para contar longos mitos, na
certeza de agradar aos ouvintes. Também para o povo os mitos eram um assunto de
interesse ilimitado, incitavam a uma infinidade de narrações e reflexões e
constituíam toda a filosofia daqueles homens. Assim, na escolha inconsciente do
assunto das sagas manifesta-se a orientação espiritual própria dos camponeses.
Os preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida realista e pessimista
daquela classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os
oprimem: o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema
do cansaço e dos sofrimentos da vida humana; a narração das cinco idades do
mundo, que explica a enorme distância entre a própria existência e o mundo
resplandecente de Homero, e reflete a eterna nostalgia do Homem por melhores
tempos; o mito de Pandora, que é alheio ao pensamento cavaleiresco e exprime a
concepção triste e prosaica da mulher como fonte de todos os males. Não creio
que estejamos errados ao afirmar que não foi Hesíodo o primeiro a popularizar
estas histórias entre os camponeses. Mas foi ele, sem dúvida, o primeiro a
situá-las decisivamente no vasto contexto social e filosófico com que aparecem
nos seus poemas. O modo como, por exemplo, conta as histórias de Prometeu e
Pandora pressupõe nitidamente que já eram conhecidas dos seus ouvintes. Em face
destas tradições religiosas, éticas e sociais, o interesse dominante pela
epopéia homérica passa no ambiente de Hesíodo para segundo plano. A atitude
original do Homem perante a existência ganha forma nos mitos. Por isso é que
todas as classes sociais possuem o seu próprio tesouro de mitos.
Ao lado dos
mitos, o povo guarda a sua antiga sabedoria prática, adquirida pela experiência imemorial de incontáveis
gerações e que se compõe de conhecimentos e conselhos profissionais, e de
normas morais e sociais, concentradas em fórmulas breves, de modo a permitir
conservá-los na memória.
Em Hesíodo
introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalização a
todos estes elementos e adquire uma elaboração poética em forma de epopéia: a
idéia do direito. A propósito da luta pelos próprios direitos, contra as usurpações do seu irmão e a venalidade dos
nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, os Erga, uma fé apaixonada
no direito. A grande novidade desta obra está em o poeta falar na primeira
pessoa. Abandona a tradicional objetividade da epopéia e torna-se porta-voz de
uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direito.
Assim como
Homero descreve o destino dos heróis que lutam e sofre somo sendo um drama dos
deuses e dos homens, Hesíodo apresenta o simples acontecimento civil da ação
judicial como uma luta entre os poderes do Céu e da Terra pelo triunfo da
justiça. Deste modo, eleva à nobre categoria e à dignidade de uma verdadeira
epopéia um caso real da sua vida, por si mesmo sem importância. Naturalmente,
não pode transportar os seus ouvintes para o céu, como faz Homero, porque
nenhum mortal pode conhecer as decisões de Zeus, que humilha os poderosos e
exalta os humildes, deve fazer com que seja justa a sentença dos juízes.
Os três
elementos essenciais para uma doutrina racional do devir no mundo aparecem
também, com evidência, na representação mítica da Teogonia: o Caos, o espaço
vazio; a Terra e o Céu, fundamento e dossel do mundo, separados pelo Caos; e
Eros, a força originária criadora e animadora do Cosmos. A Terra e o Céu são elementos essenciais de toda concepção
mítica do mundo. E o Caos, que também encontramos nos mitos nórdicos, é
evidentemente uma idéia originária da raças indo-germânicas. O Eros de Hesíodo
é uma idéia especulativa original e de enorme fecundidade filosófica.
O pensamento
da teogonia não se contenta em pôr em interação os deuses reconhecidos e
venerados nos cultos nem se atém aos conceitos tradicionais da religião em
vigor. Pelo contrário, põe os dados da religião, no sentido mais amplo do
culto, da tradição mítica e da vida interior, a serviço de uma concepção
sistemática da origem do mundo e da vida interior, a serviço de uma concepção
sistemática da origem do mundo e da vida humana, elaborada pela imaginação e
pela inteligência. Julga assim toda força ativa como uma força divina, o que é
próprio de tal grau desenvolvimento espiritual. Estamos, pois, em presença de
um pensamento vivo e mítico, exposto sob a forma de um poema original. Mas este
sistema mítico é constituído e governado por um elemento racional, como prova o
fato de ele se entender muito além do círculo dos deuses de Homero e do culto,
e de não se confinar ao simples registro e combinação de deuses admitidos pela
tradição, mas elaborar uma interpretação criadora destes e inventar novas
personificações quando o exigem as novas necessidades do pensamento abstrato.
Estas breves
referências bastam para delinear o fundo dos mitos que Hesíodo introduz nos
Erga com o fim de explicar a presença do cansaço e do trabalho na vida humana,
e a existência do mal no mundo. Assim, logo no relato introdutório sobre a Éris
e a má vê-se que a Teogonia e os Erga, apesar da diferença dos assuntos, não
estavam separadas na mente do poeta e o pensamento do teólogo penetra o do
moralista, assim como o deste se manifesta claramente na Teogonia. Ambas as
obras provêm da íntima unidade da imagem do mundo de uma personalidade.
Hesíodo aplica
a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu, nos
Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos
devem ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte , desde a
origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes como causa
a sinistra ação de Prometeu, o roubo do fogo divino, que encara do ponto de
vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe
de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da
velhice, e outros males mil que hoje povoam a Terra e o mar.
O mito é como
um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem cessar. É o poeta
que realiza essa transformação. Mas não
a realiza em obediência a um simples desejo arbitrário. O poeta estrutura uma
nova forma de vida para o seu tempo e interpreta o mito de acordo com as suas
novas evidências interiores. O mito só se mantém vivo por meio da contínua
metamorfose da sua vida. Mas, a idéia nova é transportada pelo veículo seguro
do mito. Isto já é válido para a relação do poeta com a tradição, na epopéia
homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto que nele a
individualidade poética aparece de modo evidente, age com plena consciência e serve-se de
tradição mítica como de um instrumento para os eu próprio designo.
Este uso
normativo do mito revela-se com maior nitidez porque Hesíodo, nos Erga coloca a
narração das cinco idades do mundo logo em seguida à história de Prometeu,
mediante uma fórmula de transição que talvez não tenha estilo, mas é sumamente
característica para o que nos interessa.
É no intuito
educativo de Hesíodo que está a verdadeira raiz da sua poesia. Não depende do
predomínio da forma épica nem da matéria como tal. Se considerarmos os poemas
didáticos de Hesíodo como uma simples aplicação mais ou menos original da
linguagem e formas poéticas dos rapsodos há um conteúdo que as gerações
posteriores consideravam “prosaico” surgirão dúvidas sobre o caráter poético da
obra os filólogos antigos formularam dúvidas idênticas a respeito dos poemas
didáticos posteriores. O próprio Hesíodo encontrou justificação para a sua
missão poética na vontade profética em se converter em mestre do seu povo. Os
seus contemporâneos contemplavam Homero com estes olhos, pois não podiam
imaginar forma mais elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e
rapsodos homéricos. A missão educativa do poeta estava inseparavelmente ligada
à forma de linguagem épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero. Quando
Hesíodo recolheu a seu modo a herança de Homero, definiu para a posteridade,
transpondo os limites da mera poesia didática, a essência da criação poética no
sentido social, educador e construtivo. Esta força edificadora brota, para além
de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a
essência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo
renova. Ameaça iminente de um estado social dominado pela dimensão e pela
injustiça deu a Hesíodo a visão dos fundamentos em que se apoiava a vida
daquela sociedade e a de cada um dos seus membros. Esta visão essencial que
penetra o sentido simples e original da existência determina a função do
verdadeiro poeta. Para este não há
assuntos prosaicos ou poéticos em si.
Hesíodo é o
primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome. Deste modo
ergue-se acima da esfera épica, que a apregoa a fama e interpreta as sagas até
a realidade e as lutas atuais.
Educação estatal de Esparta
A Polis como forma de
cultura e os seus tipos
É na escritura social da vida da
polis que a cultura grega atinge pela primeira vez a forma clássica. A
sociedade aristocrática e a vida do campo não estão, é certo, totalmente
desligadas da polis. As formas de vida feudal e campesina aparecem na história
mais primitiva da polis e persistem ainda nos seus estágios finais. Mas a
direção espiritual pertence á vida das cidades. Ainda quando se baseia total ou
parcialmente nos princípios aristocráticos ou camponeses, a polis representa um
princípio novo, uma forma mais firme e mais acabada da vida social de
significado muito maior que nenhuma outra para os Gregos.
A polis é o centro principal a partir
do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega.
Só na polis se pode encontrar aquilo
que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo
decisivo a sua estrutura. No período primitivo da cultura grega, todos os ramos
da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida da
comunidade.
A polis é o marco social da história
da formação grega. É em relação a ela que temos de situar todas as obras da
“literatura”, até o fim do período ático.
Platão parte dos poetas, ao tentar
traçar nas Leis o esquema do pensamento político e pedagógico da Antiguidade
helênica, e chega à determinação de duas formas fundamentais que parecem
representar a totalidade da cultura política do seu povo: o estado militar
espartano e o estado jurídico da Jônia.
Temos, portanto, de considerar estes dois tipos com especial cuidado.
A primeira
Grécia
A mescla de dialetos diferentes,
visível na epopéia, prova que a criação artística da poesia homérica é fruto da
colaboração de várias raças e povos na elaboração do vocabulário, estilo e
métrica dos poemas.
As particularidade do espírito dórico
e jônico, ao contrário, revelam-se de maneira precisa nas formas da vida das cidades e na fisionomia espiritual da
polis. Ambos os tipos se juntam na Atenas dos séculos V e IV. Enquanto a vida
real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo do ideal jônico, na esfera
espiritual, por influência aristocrática da filosofia ática, vive a idéia
espartana de uma regeneração que, no ideal platônico da formação, funde-se numa
unidade superior com a idéia fundamental jônico-ática, despojada da sua forma
democrática de um Estado rígido pelo direito.
O ideal
Espartano do séc. IV e a tradição
A primeira
Grécia
Esparta não tem lugar autônomo nem
a história da filosofia da arte. A raça jônica, por exemplo, desempenha um
papel diretivo no desenvolvimento da consciência filosófica; mas em vão se
buscaria um nome espartano entre os moralistas e filósofos gregos. Em
contrapartida, Esparta tem, de pleno direito, um lugar na história da educação.
A criação mais característica de Esparta
é o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira vez, uma força
educadora no mais vasto sentido da palavra.
A crença de que a educação
espartana era uma preparação militar unilateral deriva da política de
Aristóteles.
Educação
estatal de Esparta
A primeira coisa a levar em
conta é que os Espartanos constituíam, entre a população lacônica, apenas uma
reduzida classe dominante, de formação tardia. Sob o seu domínio estava uma
classe popular, livre, operária e camponesa, os periecos, bem como os servos
hilotas, a massa dos submetidos, quase sem quaisquer direitos.
A assembléia do povo espartano não
é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela qualquer
discussão. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do
conselho dos anciãos. Este tem direito a dissolver a assembléia e pode retirar
da votação as propostas com resultado desfavorável.
A educação estendia-se aos adultos.
Ninguém era livre nem podia viver a seu bel-prazer: Tal como num acampamento, na cidade de todos tinham as
suas ocupações e modo d vida regulamentados em função das necessidades do
Estado e tinham consciência de não pertencerem a si próprios, mas á Pátria.
Esparta era um fenômeno difícil de
ser compreendido pela mentalidade cada vez mais individualista da Atenas
posterior a Péricles.
A primeira
Grécia
A estreita ligação entre o
indivíduo e a cidade estava, em tempo de paz, simplesmente latente para o
cidadão médio, mesmo num Estado como o espartano. No caso de perigo, todavia, a
idéia da totalidade manifestava-se subitamente com a maior força.
O ideal homérico da arete heróica
transforma-se no heroísmo do amor à pátria. O poeta aspira a impregnar deste
espírito a vida de todos os concidadãos. Quer criar um povo, um Estado de
heróis. A morte é bela quando é a de um
herói. E se é herói quando se morre pela pátria. Essa idéia dá á morte o
sentido de um holocausto da própria pessoa em prol de um bem mais alto.
Educação Espartal de Esparta
Os gregos primitivos não conheceram a
imortalidade da “alma”. O homem morria com a morte do corpo. A psyche homérica
significa antes o contrário: a imagem corpórea do próprio Homem, que vagueia no
Hades como uma sombra: um puro nada. Mas, se alguém, pela oferta de sua vida,
se eleva a um ser mais alto acima da existência humana comum, a polis
concede-lhe a imortalidade do seu eu ideal, isto é, do seu “nome”. Foi apartir
daí Qua a idéia da glória heróica guardou, aos olhos dos Gregos, este matriz
político. O homem político alcança a perfeição através da perenidade da sua
memória na comunidade pela qual viveu ou morreu. Só o crescente menosprezo pelo
Estado, próprio das épocas seguintes, e a progressiva valorização da alma
individual, que alcança o apogeu com o Cristianismo, possibilitaram aos
filósofos tomarem o desprezo da glória por uma exigência moral. Nada de
semelhante se encontra ainda na concepção do Estado de Demóstenes e de Cícero.
É coma alegria de Tirteu que se inicia o
desenvolvimento da ética do Estado. Assim como guarda a memória do herói caído,
também ele sublima a figura do guerreiro vencedor.
Honram-no jovens e anciãos, a vida
oferece-lhe distinção e singularidade, ninguém se atreve a prejudicá-lo ou
ofendê-lo. Quando chega á velhice, infunde um respeito profundo, e onde quer
que chegue todos lhe dão lugar. Na restrita comunidade da primitiva polis grega
isto não são apenas belas palavras. Esse Estado é realmente pequeno, mas tem na
sua essência algo ao mesmo tempo heróico e profundamente humano. Para os
gregos, e mesmo para toda a Antiguidade, o herói é, pura e simplesmente, a mais
alta forma de humanidade.
O Estado
Jurídico e o seu ideal de cidadão
É nos poemas homéricos que se vêem os
primeiros reflexos da vida da polis jônica. A guerra dos Gregos contra Tróia
não proporcionava nenhuma oportunidade para a descrição da cidade helênica, uma
vez que os Troianos eram considerados bárbaros por Homero. Mas, quando o poeta
nos descreve a defesa de Tróia, aparecem involuntariamente traços de uma polis
jônica, e Heitor, o libertador da pátria, converte-se no modelo de Calino e
Tirteu.
Os Gregos das colônias, uma vez separados
da metrópole, breve se tornaram um povo menos sedentário e menos ligado a
terra. A Odisséia já reflete a enorme vastidão dos horizontes marítimos que
eles rasgaram e o novo tipo humano criado pelos navegadores da Jônia. Ulisses
não é tanto o tipo do cavaleiro batalhador como a encarnação do aventureiro e
explorador, e do desembaraço astuto dos Jônios, habituados a se moverem em
todos os países e a se saírem bem em todas as situações. A ação da Odisséia
chega, para leste, até a Fenícia e
Cólquida; para sul, até o Egito; para o Ocidente, até a Sicília e a
Etiópia Ocidental; e para o norte, no Mar Negro, até o país dos Cimérios. É
perfeitamente comum a narração do encontro do navegante com uma frota de navios
e mercadores fenícios, cujo comércio se estendia a todo o Mediterrâneo e fazia
a mais perigosa concorrência aos Gregos. A viagem dos argonautas, com as suas
maravilhosas descrições de povos e países longínquos, é também uma autêntica
epopéia marítima. O comércio Jônico cresceu com o rápido desenvolvimento
industrial das cidades da Ásia Menor, com o incremento a partir do qual foi
desaparecendo o tipo de vida agrária.
A falta de outra tradições históricas,
basta o número extraordinário de colônias fundadas só pela cidade de Mileto
para testemunhar a força de expansão, o espírito de iniciativa e a vida
palpitante que nessa época reinava nas cidades gregas da Ásia Menor.
Vivacidade, liberdade e largueza de visão
e iniciativa pessoal são as características dominantes do novo tipo humano que
ali nasceu. Com a mudança das formas de vida deve Ter nascido também um novo
espírito. A ampliação dos horizontes e o
sentimento da própria energia abriram caminho para uma multidão de idéias
ousadas. O espírito de crítica independente com o que deparamos na poesia
individual de Arquíloco e na filosofia milesiana penetrou também, por certo, na
vida pública. Não temos nenhuma informação das lutas intestinas que se devem
Ter travado ali, como em qualquer outro lugar do mundo grego. Mas a série de
testemunhos que exaltam a justiça como fundamento da sociedade humana
estende-se, na literatura jônica, desde os tempos primitivos da epopéia até
Heráclito, através de Arquíloco e Anaximandro. Esta elevada estima pelo direito
por parte dos poetas e dos filósofos não precedem a realidade, como se poderia
pensar. Pelo contrário, é apenas o reflexo da importância fundamental que
aqueles progressos deviam Ter na vida pública daqueles tempos, isto é, desde o
século VIII até o início do século VI. O coro dos poetas continentais é
uníssono a partir de Hesíodo. E entre todos distingue-se a voz de Sólon de
Atenas.
Desde então, toda manifestação do
direito ficou sem discussão na mão dos nobres
que administravam a justiça segundo a tradição, sem leis escritas.
Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual
deve Ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios á
nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a
exigir leis escritas.
Homero apresenta-nos o antigo estado de
coisas. É com outro termo que designa, em geral, o direito: themis. Zeus dava
aos reis homéricos “cetro e themis”. Themis era o compêndio da grandeza
cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa
“lei”.
O homem justo, no sentido concreto
que desde então esta palavra adquiriu no pensamento grego, aquele que obedece á
lei e se regula pelas disposições dela, também cumpre na guerra o seu dever. O
ideal antigo e livre da arete heróica dos heróis homéricos converte-se em
rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos
os cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a
respeitar as fronteiras entre o próprio e o alheio. É entre as famosas máximas
poéticas do séc. VI que se encontra o verso- tão citado pelos filósofos
posteriores- que resume todas as virtudes na justiça. Fica assim definida de
modo rigoroso e completo a essência do novo Estado constitucional.
O conceito de justiça, tida como a
forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão,
super naturalmente todas as formas anteriores. Todavia, os graus anteriores da
arete não são por isso suprimidos; ao
contrário, são elevados a uma nova forma. É esse o sentido da exigência de
Platão, nas leis, de que o poema de Tirteu (onde a valentia é tida pela mais
alta arete) fosse no Estado ideal “reelaborado” de tal forma que se pudesse a
justiça no lugar da valentia. Platão não pretende excluir a virtude espartana,
mas pô-la simplesmente no seu lugar e subordiná-la á justiça. É preciso avaliar
deferentemente a coragem na guerra civil
a coragem perante o inimigo da pátria.
A aceitação consciente da antiga ética da
polis pela moral filosófica posterior e a influência que por meio desta ele
exerceu sobre o futuro são para nós um processo perfeitamente natural da
história do espírito. Nenhuma filosofia vive da pura razão. É apenas a forma
conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se desenrola na
história. Em qualquer dos casos, isto é verdadeiro para a filosofia de Plantão
e a de Aristóteles. Não podem ser compreendidas sem a cultura negra, nem a
cultura sem elas.
O fenômeno histórico aqui mencionado,
pelo qual a filosofia do séc. IV a.C. aceita a ética e o ideal humano da polis
antiga, tem uma analogia perfeita perfeita na época do nascimento da cultura da
polis. Esta aceitou igualmente os estágios anteriores da moral. Não se
apropriou só da arete heróica de Homero, mas também das virtudes guerreiras e
de toda a herança das idades aristocráticas, tal como no seu tempo fez, segundo
sabemos, a educação estatal espartana. A polis
incitava os seus cidadãos a competir nos jogos olímpicos e em outras
disputas, e premiava com as honras mais altas os que regressavam vencedores. A
princípio, a vitória apenas dava honras á família do vencedor; depois, com o
incremento do sentimento de solidariedade de toda a população, serviu ad maiorem patriae gloriam. Tal como nas
lutas ginásticas, a polis tomava parte, por meio dos seus filhos, nas tradições
musicais antigas e no cultivo da arte. Não foi só na esfera do direito que ela
criou a isonomia; instaurou-a também nos
mais altos bens da vida criada pela cultura nobre e que se convertiam agora em
patrimônio comum a todos cidadãos.
A gigantesca influência da polis na
vida dos indivíduos baseava-se na
idealidade do pensamento dela. O Estado converteu-se num ser
especificamente espiritual que reunia
em si os mais
altos aspectos da existência humana e os repartia como dons próprios este propósitos, pensamos hoje
sobretudo na pretensão do Estado em ministra a educação jovens. A educação
pública dos jovens é porém, uma exigência que a filosofia do séc. IV foi
a primeira a formular. Esparta é o único
dos Estados mais antigos a exercer influência
imediata na formação da juventude.
Para a identificação total de um grego
exigia-se não só o seu nome e o de seu pai , mas também o da sua cidade natal.
Pertencer a uma cidade tinha para os
Gregos um valor ideal análogo ao do sentimento nacional para os modernos.
Como suma da comunidade citadina, a
polis oferece muito. Em contrapartida, pode exigir o máximo. Impõe-se aos
indivíduos de modo vigoroso e implacável e neles imprime o seu caráter. É fonte
de todas as normas de vida válidas para os indivíduos. O valor do homem e da
sua conduta mede-se exclusivamente pelo
bem ou pelo mal que acarretam à cidade. Esse é paradoxal resultado da
luta incrivelmente apaixonada pela obtenção do direito e da igualdade dos
indivíduo. O homem forja-se com a lei uma corrente nova e apertada que mantém
unidas as forças e os impulsos divergentes e os centralizam, como a antiga
ordem social jamais teria podido fazer. O estado expressa-se objetivamente na
lei, alei converte-se em rei, como os Gregos disseram posteriormente, e esse
senhor invisível não só se subjuga os transgressores do direito e impede
usurpações dos mais fortes, como introduz as suas normas em todos os capítulos
da vida anteriormente reservada ao arbítrio de cada um. Até nos assuntos mais
íntimos da privada e da conduta moral dos cidadãos traça limites e caminhos.
Deste modo, o desemvolvimento do Estado leva, através da luta pela lei, à
criação de normas de vida novas e mais diferenciadas.
É esta a significação do novo Estado
implica a formação do Homem. Plantão afirma, com razão, que forma de Estado
implica a formação de um tipo de homem definido, e tanto ele como Aristóteles
exigem que a educação do Estado perfeito imprima em toda a marca do seu
espírito.
A lei representa o marco mais
importante no que, desde a formação grega segundo o puro ideal aristocrático,
leva a idéia do Homem formulada e defendida sistematicamente pelos os
filósofos. E a ética e a educação filosófica enlaçam-se, pelo o conteúdo e pela
forma, com as mais antigas legislações.
As posteriores críticas da lei, como
as que no tempo da democracia corrompidas foram movidas contra um legalismo do
Estado, opressor e despótico, não afetam o que acabamos de afirmar. Em oposição a este cepticismo, todos os
pensadores antigos são concordes no elogio da lei. Ela é, para eles, a alma da
polis. O povo deve lutar pela a sua lei como pela suas muralhas, diz Heráclito.
Surge aqui, por trás da imagem da cidade visível, defendida pela sua cinta de
muralha, a cidade invisível que tem na lei um firme baluarte.
Na medida em que o engloba no seu cosmos político, o Estado dá ao homem,
ao lado da vida privada, uma espécie de Segunda existência. Todos pertencem a
duas ordens de existência na vida do cidadão há uma distinção rigorosa entre o
que lhe é próprio e o que é comum. O homem não é só “idiota”; é “político” também. Precisa Ter, ao lado da
habilidade profissional, uma virtude cívica genérica, pela qual se põe em
relações de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da polis.
Torna-se evidente, assim, que a nova política do Homem não pode estar vinculada como, a educação popular de
Hesíodo, à idéia do trabalho humano. A concepção da arete hesiódica estava
impregnada do conteúdo da vida real e do
ethos profissional da classe rural, a que se dirigia. Se contemplarmos o processo evolutivo da
educação grega a partir do ponto de vista hodierno, inclinar-nos-emos a crer
que o novo movimento teria de aceitar o programa de Hesíodo: substituir a
formação geral da personalidade, própria dos nobres, por um novo conceito da
educação popular, em que se avaliaria cada homem pela eficácia do seu trabalho
específico, e o bem da comunidade resultaria de cada um realizar com a máxima
perfeição possível o seu trabalho particular, tal como o aristocrata Platão
exigia no Estado autoritário da sua República, dirigido por uma minoria
espiritualmente superior. Estaria de acordo com o tipo de vida popular e a
diversidade dos seus mestres; o trabalho não seria uma vergonha, mas o
fundamento único da consideração citadina. No entanto, e sem prejuízo do reconhecimento deste
importante fato social, a evolução real surgiu um curso completamente diverso.
O que realmente era novo e trouxe
definitivamente consigo a urbanização progressiva e geral do Homem foi a
exigência de todos os indivíduos participarem ativamente no Estado e na vida
pública e adquirem consciência dos seus deveres cívicos, completamente diversos
daqueles da esfera da sua profissão privada.
Para Socrátes, filho de um pedreiro,
um simples operário, constituía um paradoxo surpreendente o fato de um
sapateiro, um alfaiate ou um carpinteiro precisarem no seu trabalho de um certo
saber autêntico, ao passo que ao político bastava uma educação genérica, de
conteúdo bastante indeterminado, embora o seu “ofício” tratasse de coisas muito
mais importantes. É claro que o problema só se podia colocar nestes termos numa
época para a qual se tornava evidente que a
arete política devia ser um poder e um saber.
Quando o novo estado jurídico apareceu,
a virtude dos cidadãos consistiu na livre submissão de todos, sem distinção de
dignidade ou de sangue, á nova autoridade da lei. Para esta concepção de
virtude política, o ethos era muito mais importante que o logos. Pra ele,
tinham muito maior importância a fidelidade á lei e a disciplina que a questão
de saber até que ponto o homem comum estava apto a perceber os assuntos e fins
do Estado. Neste sentido, não existia o problema da cooperação.
A autoformação do indivíduo na poesia jônico- eólica
A nova estruturação do Estado sobre o
fundamento comum do direito para todos criou um tipo novo de Homem, o cidadão,
e fez da formulação de uma norma universalidade válida para a vida na cidade a
necessidade mais premente da nova comunidade. Todavia, enquanto os ideais da
primitiva sociedade nobre acharam na epopéia uma expressão objetiva, enquanto
Hesíodo formulou a sabedoria prática da ética aldeã e amoral do trabalho, e
Tirteu as severas exigências do Estado espartano, não achamos, á primeira vista,
uma expressão equivalente do novo ideal de cidadão na poesia da época. Como
vimos, a cultura da cidade aceitou pressurosa os anteriores estágios da
educação e colocou assim ao seu serviço, como meio de expressão dos seus
próprios ideais, a poesia, a música e a ginástica da Antiguidade aristocrática.
Não existia, pois, qualquer encarnação do seu conteúdo essencial em criação
poética própria que pudesse rivalizar com a poesia do passado, já então tornada
clássica. Apenas podemos mencionar as histórias relativas à fundação de certas
cidades, redigidas num estilo épico convencional. Mas nenhuma destas obras da
cultura citadina primitiva, já numericamente raras, se eleva à importância de
uma verdadeira epopéia do Estado, como entre os Romanos foi a Eneida de
Virgílio, a última das grandes obras do gênero.
Não foi na forma poética, mas antes na
criação da prosa, que o novo ethos do Estado encontrou a sua verdadeira
expressão revolucionária. É precisamente isto que significa a promulgação de
leis escritas. A luta pela submissão da vida e da ação a normas ideais
rigorosas e justas inicia-se resolutamente com a tradução dos seus preceitos em
proposições claras e universalmente válidas; e é precisamente esta a
característica do novo estágio de evolução da comunidade humana. A veemência
com que esta exigência moral foi sentida relegou, a princípio, para segundo
plano a necessidade de expressão intuitiva e artística do novo Homem. O Estado
constitucional nasce já do espírito racional e, por isso, não tem qualquer
afinidade de origem com a poesia. Os momentos poeticamente fecundos da vida da
cidade já haviam sido esgotados por Homero, Calino e Tirteu. A vida cotidiana
dos cidadãos permanece necessariamente inacessível, em toda a sua amplitude, à
elevação poética. E nenhum escritor jônico ou eólio captou o heroísmo político
de Sólon, que se tornaria fonte de uma nova grande poesia.
Em contrapartida, a esfera da
intimidade pessoal do Homem, totalmente alheia à vida política, abre um novo
mundo de experiência á poesia, que avidamente lhe explora as profundezas. É
neste mundo que nos introduz a poesia elegíaca e iâmbica dos Jônios e a lírica
eólica. A dinâmica da vontade individual
de viver, cuja manifestação podemos detectar, indiretamente, nas transformações
do Estado, devido à sua ação modeladora na vida da comunidade, revela-se aqui
na expressão de seus movimentos, na sua intimidade imediata. Sem a percepção
desta experiência espiritual, iria falar-nos o que há de mais essencial para
compreendermos as transformações políticas. As conexões causais entre o
espiritual e o material permanecem na maior obscuridade por ausência completa
de qualquer tradição relativa às condições econômicas da época. No entanto,
para a história da educação interessa-nos mais a forma espiritual que o Homem
da nova época conseguiu e os traços que por ela imprimiu na evolução
subsequente . E este vestígio do espírito jônico tem maior importância para a
história dos Gregos e da Humanidade. Pela primeira vez, os poetas exprimem em
nome próprio os seus sentimentos e opiniões. A vida comunitária permanece para
eles totalmente em segundo plano. Mesmo quando se referem a política, o que
sucede freqüentemente, não pretendem ditar normas universais e imperativas,
como Hesíodo, Calino, Tirteu ou Sólon, mas sim exprimir a sua paixão partidária
pessoal, como Alceu, ou reclamar os seus direitos individuais, como Arquíloco.
Até os animais, nas disputas das fábulas, reclamam una aos outros os “seus
direitos”, em humorística imitação das relações humanas. No entanto a expressão
franca das idéias pessoais do poeta pressupõe sempre a polis e a estrutura
social. O indivíduo assenta nessa estrutura, na sua sujeição e na sua
liberdade, quer esta relação permaneça sem se expressar, que ele se dirija
expressamente aos concidadãos com a sua opinião pessoal, como acontece em
Arquíloco.
Para os Gregos, o eu está em íntima e
viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a natureza e com a
sociedade humana, nunca separado e solitário. As manifestações da
individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer
que, numa poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e
representar em si próprio a totalidade do mundo objetivo e suas leis. Não é
pelo mero extravasamento da subjetividade que o indivíduo grego alcança a
liberdade e a ampliação de movimentos da sua consciência, mas sim pela sua
própria objetivação espiritual. E é na medida em que se contrapõe a um mundo
exterior, regido por leis próprias, que ele descobre as suas próprias leis
internas.
O ideal do Estado espartano encontra
a sua expressão poética na transferência da parênese homérica, que celebrava a
coragem dos heróis, para a atualidade real e vivida. O que ali acontecia com a
cidade inteira, com relação ao exército dos Espartanos, repete-se em Arquíloco
com relação á própria pessoa do poeta. Nas elegias, aparecem constantemente ele
próprio ou os seus companheiros como detentores dos papéis, distintos e
reflexões homéricas. Nestas transposições de conteúdo e de forma, surge nítido
e palpável o grande processo educativo que então se realiza através da íntima
apropriação do espírito da epopéia por parte da personalidade. Até á elevação
do indivíduo a um maior grau de liberdade na vida e no espírito deve-se, em
primeiro lugar, à influência formativa de Homero.
Originariamente, o iambo era de uso
corrente nas festas públicas de Dionisos e correspondia antes á explosão de um
sentimento popular do que á expressão de um rancor pessoal. Prova disso é que o
espírito do iambo se incorpora com a maior fidelidade e continua na comédia
ática, onde o poeta aparece claramente como o porta- voz da crítica possível.
Nada há contra o fato de que Arquíloco seja não só o porta- voz, mas também o
contraditor da opinião comum. Ambas as coisas estão ligadas à sua vocação para
a publicidade. Se de fato o iambo correspondesse apenas à expressão dos
sentimentos do eu, independentemente de qualquer consideração pelo mundo,
ficaria por explicar como é que o iambo filosófico de Semônides e os conselhos
políticos de Sólon provieram da mesma raiz. Se prestarmos atenção nós nos
daremos conta de que a poesia iâmbica de Arquíloco tem, ao lado do seu aspecto
crítico e satírico, um aspecto parenético, e que estão ambos intimamente
ligados.
Na primitiva poesia grega, toda a
evolução do iambo a partir de Arquílogo nos tira qualquer dúvida de que nestas
manifestações críticas a respeito dos homens, opiniões e tendências, que por
qualquer motivo chocaram a opinião pública, manifesta-se não um sentimento
subjetivo sem importância, mas sim a voz de um superior reconhecido.
A poderosa
influência desta poesia brotou de uma profunda necessidade dos tempos. Aparece
pela primeira vez na poesia grega um elemento que contrasta de maneira estranha
com o estilo sublime da forma épica, tal como este ainda aparece nas elegias de
Arquílogo. Este novo gênero é o tributo do estilo poético ao espírito da polis, cujas poderosas paixões não
podiam ser dominadas pela simples presença do epainos da educação aristocrática que encontramos em Homero. Já os
antigos haviam observado que a “natureza comum” do Homem reage melhor ao
aguilhão da censura do que ao louvor. O sentimento de segurança de Arquílogo
faz-nos sentir a popularidade do uso da crítica. Ataca as autoridades supremas
da cidade, os estrategos e os demagogos, previamente seguro do eco favorável
das suas críticas. Até na história das suas bodas com Neobule e nos apaixonados
e irônicos ataques ao pai da jovem, Licambes, que lhe rejeitou as pretensões, o
poeta pensa evidentemente na cidade inteira como num público presente. Ele é
simultaneamente acusador e juiz.
Quando mais
livre e conscientemente o eu humano
aspira a dirigir os passos do seu pensamento e da sua ação, tanto mais
fortemente vinculado se sente ao problema do destino.
A partir daí,
o desenvolvimento da idéia de Tyche entre
os Gregos segue os passos do desenvolvimento do problema da liberdade humana. O
esforço para alcançar a independência significa, em grande medida, a renúncia a
muito do que o Homem recebeu da tyche
como dom. E não é por acaso que encontramos em Arquílogo, pela primeira vez,
com toda a clareza, a confissão pessoal de que só é possível um homem
interiormente livre numa forma de vida escolhida e determinada por ele mesmo.
É evidente
que, quando os Gregos falam do ritmo de um edifício ou de uma estátua, não se
trata de uma transposição metafórica da linguagem musical. E a intuição
originária que se encontra no âmago da descoberta grega do ritmo da dança e da
música não se refere à fluência destas, mas sim, pelo contrário, às suas pausas
e à constante limitação do movimento.
Em Arquílogo
vemos a maravilha de uma nova formação pessoal, baseada no conhecimento
reflexivo de ume forma natural e última da vida humana, idêntica e fundamental.
Revela-se uma auto-submissão às próprias limitações, consciente e livre da
autoridade da mera tradição. O pensamento humano torna-se dono de si próprio e,
assim como aspira submetera vida da polis
a leis universalmente válidas, também penetra, para além destes limites, na
esfera da interioridade humana e também coloca balizas no caos das paixões. Nos
séculos seguintes, o palco desta luta é a poesia, dado que a filosofia só mais
tarde, e em segundo plano, nela toma parte. O magistério espiritual de
Arquílogo permite-nos ver claramente o caminho da poesia a partir de Homero. A
poesia da nova época nasce da necessidade, experimentada pelo indivíduo livre,
de separar progressivamente o humano do conteúdo mítico da epopéia, na qual se
havia exprimido até então. Quando o poeta “se apropria”, no verdadeiro sentido
da palavra, das idéias e problemas da epopéia, estes tornam-se independentes em
novas formas poéticas, tais como a elegia e o iambo, e transformam-se em vida
pessoal.
Da poesia
jônica do século e meio posterior a Arquílogo, conserva-se o suficiente para
que se veja que trilha o mesmo caminho, embora nenhuma possua a importância
espiritual do seu grande iniciador. Os poetas subseqüentes são sobretudo
influenciados pela forma reflexiva do iambo e da elegia de Arquílogo. Os iambos
de Semônides de Amorgos que se conservam são de caráter didático.
Do ponto de
vista histórico, a poesia hedonista é um dos momentos críticos mais importantes
da evolução grega. Só é preciso lembrar que o pensamento grego colocava sempre
o problema do indivíduo, na ética e na estrutura do Estado, como um conflito no
predomínio do prazer e da nobreza. Na sofística revela-se abertamente o
conflito entre dois impulsos de toda ação humana, e a filosofia de Platão
culmina com vitória sobre a aspiração do prazer a tornar-se o mais alto bem da
vida humana. Mas para que o contraste atingisse o ponto crítico, como sucedeu
no séc. V, para que se tentasse superá-lo como o tentou a filosofia ática de
Sócrates a Platão, e para que se chegasse, por fim, a uma fórmula harmônica,
tal como oferece o ideal da personalidade humana proposto por Aristóteles, foi
preciso que a busca da alegria plena de viver e do gozo do prazer achasse uma
afirmação resoluta e fundamental em face da exigência do, mantida epopéia e
pela antiga elegia. Isto aconteceu na poesia jônica, a partir de Arquílogo. O sentido
da evolução que assim realizou é evidentemente centrífugo. Liberta as forças e
abranda os vínculos da polis, pelo
menos com a mesma força com que cooperou na sua instauração, com a criação do
domínio da lei.
Para conquistarem o reconhecimento
público, as novas exigências precisavam exprimir-se na forma didática e
reflexiva própria da elegia e da poesia iâmbica posterior a Arquíloco. O
hedonismo não surge como sentimento ocasional do indivíduo. Pelo contrário, é
em princípios universais que os poetas fundamentam o “direito” do indivíduo a
gozar a vida. Os poemas de Semônides e Mimnerno recordam a cada passo que
estamos na época em que se vai iniciar a consideração racional milesiana da
natureza e a filosofia natural milesiana.
O pensamento não se detém entre os problemas da vida humana, como os
tratados de história da filosofia
relativos a esse período podem levar a crer, ao se limitarem, na maioria das
vezes, ao aspecto cosmológico. Ele invade e inspira o espírito da poesia, que
desde então se torna portadora dos ideais morais. Levantam-se problemas que têm de ser discutidos de per si. O poeta
surge aos ouvintes como o filósofo da vida. Os poemas de Semônides que se
conservam já não são, como os de Arquíloco, meras expansões impulsivas que
ocasionalmente assumem forma reflexiva, mas sim autênticas alocuções didáticas
sobre um tema determinado. E Mimnermo, que é um artista muito mais rigoroso que
Semônides, revela a mesma característica na maioria dos fragmentos que dele se
conservaram. Na sua passagem do heróico ao humano individual, a poesia conserva
a atitude educadora.
Enquanto a poesia jônica posterior a
Arquíloco apresenta, no decurso dos sécs.
VII-VI, a forma de uma reflexão universalmente válida sobre os direitos
naturais da vida, a poesia eólica de Safo de Lesbos e de Alceu exprime a
própria intimidade da vida individual. As explosões pessoais de Arquíloco são o
que mais se aproxima deste fenômeno único na vida espiritual dos Gregos, pois
não nos apresentam apenas idéias gerais, mas também experiências pessoais com
todos os tons da sensibilidade individual. Efetivamente, não se pode esquecer
que Arquíloco é um percursor da lírica eólica, embora os seus poemas, inclusive
os de ódio, em que se manifesta com
paixão a sua subjetividade, se orientem ainda por normas universais da
sensibilidade moral. A lírica eólica, principalmente em Safo, chega muito mais
longe e converte-se em pura expressão do sentimento. É evidente que a esfera do
individual adquire, por obra de Arquíloco, uma importância tal e uma riqueza
tão grande de possibilidades de expressão, que abre caminho á livre comunicação
dos mais secretos movimentos de alma. Foi graças a Arquíoloco que se adquiriu a
possibilidade de dar forma universal aos sentimentos mais subjetivos e
aparentemente desprovidos de forma, e de elevar até o universalmente humano
mesmo o que há de mais pessoal, sem lhe roubar por isso o encanto do
diretamente vivido.
Não é menos maravilhosa a autoformação
da intimidade humana na lírica eólica do que a criação na mesma época, entre os
Gregos da Ásia Menor, da filosofia ou do Estado jurídico. O reconhecimento
deste prodígio não deve, todavia, levar-nos a desviar os olhos da estreita
vinculação desta mesma poesia com o mundo exterior. Evidencia-se a partir da
rica e variada coleção de fragmentos descobertos nas últimas décadas que, assim
como os versos de Arquíloco se orientam diretamente para a vida que o rodeia,
também os poemas de Alceu e de Safo inspiram-se na vida circundante e são
escritos para um determinado círculo de pessoas. Encontram-se, por isso, presos
a certas convenções que nesta poesia aprendemos a compreender com tanta
exatidão como na obra de Píndaro. Deste modo, a conexão viva das canções de
Alceu dedicadas à bebida com as banquetes masculinos, e das canções nupciais e
amorosas de Safo com os círculos musicais das jovens companheiras que se
agrupam em redor da poetisa, adquire, ao nosso ver, uma significação profunda e
positiva.
Os banquetes, com as suas relações
livres e a sua elevada tradição espiritual, constituíam a mais alta conquista
para o florescimento da nova expansão da personalidade individual. Por
conseguinte, a individualidade masculina revela-se principalmente na ampla
corrente dos poemas simposiáticos, a qual jorra de mil fontes e desemboca nas
mais fortes comoções da alma.
A arte mais sublime de Safo reside
na descrição das experiências íntimas com o vivo realismo sem nada de patético
e com uma simplicidade análoga à das canções populares. Onde encontraremos na
arte ocidental algo que, antes de Goethe, se compare a ela? Se acreditarmos que
aquela canção foi composta por motivo das bodas de uma discípula e que Safo
usou uma linguagem tão incomparavelmente pessoal, não nos será preciso mais
para mostrar como aqui as convenções do estilo e da linguagem se fundem com sentimento
mais profundo, para conseguir a mais pura expressão da individualidade .Até a
simplicidade da situação parece iluminar os mais finos matizes do sentimento
que lhe confere o seu real significado.
E não é por acaso que só a mulher
é capaz desta individualidade, e, mesmo a mulher, só através da maior força que
lhe foi dada: o amor. É como a parta –voz do amor que Safo entra no reino da
poesia antes reservado aos homens.
Sólon: começo da formação política de Atenas
A última voz que se faz ouvir no
concreto espiritual das estirpes helênicas foi a da Ática, por volta do ano
600. Pareceu, a princípio, aceitar ou modificar docilmente os temas das outras,
principalmente os da raça jônica, com a qual se tinha afinidades. Mas cedo os
congraçou com independência numa unidade mais alta e regeu a sua própria
melodia, com clareza e plenitude cada vez maiores. A pujança ática só atingiu o
apogeu um século depois, com a tragédia de Esquilo. E pouco faltou para que
fosse ali que dela tivéssemos
insignificantes, da poesia de Sólon. Mas é
evidente que a sua conservação não é pura casualidade. Enquanto o Estado
ático e a sua vida espiritual autônoma subsistiram, Sólon foi uma coluna
fundamental do edifício da formação ática. Os seus versos imprimiram-se na alma
da juventude e eram evocados pelos oradores nos tribunais de justiça e nas
assembléias públicas, como expressão clássica do espírito da cidadania ática.
Sólon é o primeiro representante
do autêntico espírito ático e, ao mesmo tempo, o seu criador mais eminente. É
que, embora todo o povo estivesse predestinado, pela harmonia da sua
constituição espiritual, a realizar algo de extraordinário, o aparecimento nos
seus primórdios de uma personalidade capaz de dar forma àquela constituição foi
decisivo para o desenvolvimento posterior.
A cultura da nobreza ática era
inteiramente jônica. Quer na arte quer na poesia campeava o gosto e estilo
superior daqueles povos. É natural que esta influência se estendesse também aos
costumes e aos ideais de vida. A proibição, por Sólon, do fausto asiático e das
lamentações das mulheres, em uso até então nas cerimônias fúnebres dos senhores
mais importantes, foi uma concessão ao sentimento popular. Só cem anos depois
da sangrenta crise da guerra com os Persas rompeu definitivamente o predomínio
do modelo jônico- nos vestidos, nos penteados e nos costumes sociais.
Vimos que foi a idéia do direito
que deu ao ansioso pensamento do Homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos
de violentas alterações da ordem social e econômica, motivadas pelas tentativas
de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro
a apelar para a divina proteção da Dike,
na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade
contra a maldição da bybris e
designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus. Assim, o realismo cru da
sua fantasia religiosa pinta os efeitos da maldição da injustiça lançada sobre
a comunidade inteira por culpa de um só indivíduo: más colheitas, fome, pestes,
abortos, guerras e morte. Ao contrário, a imagem do Estado justo resplandece
com as cores brilhantes da benção divina: os campos geram o grão, e as
mulheres, filhos que são a imagem dos pais; os barcos trazem ganhos seguros; a
paz e a riqueza dominam a cidade.
Também Sólon fundamenta a sua
crença política na força de Dike, cuja imagem descreve com visível coloração
hesiódica. E de se acreditar que na luta de classes da cidade jônicas a fé
inquebrantável de Hesíodo num ideal de justiça tenha desempenhado já um certo
papel e tenha sido uma fonte íntima resistência para classe que lutava pelos
seus direitos. Sólon não redescobriu as idéias de Hesíodo. Não precisava
fazê-lo: limitou-se a desenvolvê-las.
Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível da
ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por
cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a bybris humana ultrapassa os seus
limites, sobrevêm , cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.
É esta convicção que induz Sólon
a intervir com as suas advertências na luta cega de interesses em que os seus
concidadãos se devoram. Vê a cidade caminhar para o abismo a passos largos e
procura travar ruína que a ameaça. Movidos pela avareza, os chefes do povo
enriquece injustamente; não poupam os bens do Estado nem os do templo, e não
respeitam os veneráveis fundamentos da Dike, que silenciosa contempla todo o
passado e o presente, e com o tempo acaba infalivelmente por castigar. Se
considerarmos, porém, a idéia que Sólon forma do castigo, descobriremos até que
ponto elas se afasta do realismo religioso em que se apóia a fé de Hesíodo na
justiça. O castigo divino não consiste em peste ou más colheitas, como em
Hesíodo, mas se realiza de modo imanente pela desordem que toda a violação do
direito gera no organismo social. Num Estado assim nascem as disputas
partidárias e guerras civis, os homens reúnem-se em associações que só conhecem
a violência e a injustiça, grandes bandos de miseráveis vêem-se na necessidade
de abandonar a pátria e peregrinar em servidão. E, ainda que haja alguém que
queira fugir a tal desgraça e se encerrar no recanto mais íntimo de sua casa, a
infelicidade geral “transpõem-lhe os altos muros”.
No concílio dos deuses, o
soberano Zeus refuta as queixas injustificadas dos mortais, que atribuem aos
deuses todas as desventuras da vida humana. Afirma, quase com as mesmas
palavras de Sólon, que não são os deuses mas sim os próprios homens que pela
sua imprudência aumentam os seus males. Sólon está conscientemente vinculado a
esta teodicéia homérica. A religião primitiva dos Gregos vê em todas as
desditas humanas, quer provenham do exterior quer tenham raízes na vontade nos
impulsos do próprio Homem, um designo inflexível das altas forças de Ate. Ao
contrário disto, a reflexão filosófica que o poeta da Odisséia põe na boca de Zeus, o mais alto titular do governo do
mundo, representa já um grau posterior no desenvolvimento da Ética. Ali se faz
clara distinção entre uma Ate, no sentido de um destino prepotente,
imprevisível e divino, e a culpabilidade
da ação humana, que aumenta a desventura do homem numa medida superior
às pressões do destino. Para Segunda é essencial a previsão da ação da injusta
conscientemente desejada. Neste ponto, o pensamento próprio de Sólon sobre o
significado do direito para uma vida sã da sociedade humana conflui com a
teodicéia homérica e lhe dá novo conteúdo.
O conhecimento universal de uma
legalidade política dos homens acarreta um dever de ação. Um mundo em que Sólon
vive já não deixa ao arbítrio dosa deuses a extensão que lhe deixavam as
crenças da Ilíada. Impera neste mundo
uma ordem jurídica estrita. Assim, Sólon tem de atribuir às culpas dos homens
uma boa parte do destino que o homem homérico aceitava passivamente das mãos
dos deuses. Deste modo, os deuses são meros executores da ordem moral, que por
sua vez é identificada com a vontade dos deuses. Em vez de se limitar a soltar
resignados lamentos sobre o destino do Homem e sua inexorabilidade , com os
líricos jônicos do seu tempo, que com
não menos profundidade sentiram o problema da dor do mundo, Sólon dirige aos
homens um apelo para ganharem consciência da responsabilidade na ação, e com a
sua conduta política e moral oferece um modele deste tipo de ação, vigoroso
testemunho da inesgotável força vital e da seriedade ética do caráter ático.
O elemento contemplativo também está
presente em Sólon. Precisamente na grande
elegia que se conservou inteira, a invocação às musas recoloca o problema da
culpa pessoal e confirma a sua importância na totalidade do pensamento de
Sólon. Surge aqui ligada a uma meditação genérica sobre o destino e os anseios
humanos, na qual, mais claramente ainda que nos poemas políticos, revela-se até
que ponto este homem de Estado baseava a sua ação numa convicção de caráter
religioso.
O pensamento filosófico e a descoberta do cosmos
Na época dos pré-socráticos, a função de guia
da educação nacional estava indiscutivelmente reservado aos poetas, a quem se
associava o legislador e o homem de Estado. É com os sofistas que muda pela
primeira vez este Estado de coisas. Estes separam-se nitidamente dos filósofos
da natureza e dos ontólogos do período primitivo. A sofística é um
acontecimento de tipo educativo, no sentido mais próprio. Só uma história da
educação pode dar-lhe o verdadeiro valor.
Não é fácil traçar a fronteira temporal
do momento em que surgem o pensamento racional. Passaria, provavelmente, pela
epopéia homérica. No entanto, nela é tão estreita a interpenetração do elemento
racional e do “pensamento mítico”, que mal se pode separá-los. Uma análise da
epopéia, a partir deste ponto de vista, nos mostrariam quão cedo o pensamento
racional s infiltra no mito e começa a influenciá-lo. A filosofia jônica da
natureza sucede a epopéia sem solução de continuidade.
Não é fácil definir-se se a idéia dos
poemas homéricos, segundo a qual o Oceano é a origem de todas as coisas, difere
da concepção de Tales, que considera a água o princípio original do mundo; seja
como for, é evidente que a representação do mar inesgotável colaborou para a
sua expressão. Em todas as partes da Teogonia
de Hesíodo reina a vontade expressa de uma compreensão construtiva e uma
perfeita coerência na ordem racional e na formulação dos problemas. Por outro
lado, a sua cosmologia ainda apresenta uma irreprimível pujança de criação
mitológica que muito mais tarde ainda age sobre as doutrinas dos “fisiólogos”,
nos primórdios da filosofia “ científica” , e sem a qual não se poderia
conceber atividade prodigiosa que se expande na criação das concepções
filosóficas do período mais antigo da ciência. O amor e o ódio, as duas forças
naturais de união e divisão da doutrina de Empédocles, têm a mesma raiz
espiritual dos eros cosmogônico de
Hesíodo. O início da filosofia científica não coincide, assim, nem com o
princípio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico. Mitogonia
autêntica ainda encontramos na filosofia de Platão e na de Aristóteles. São
exemplos o mito da alma em Platão, e, em Aristóteles, a idéia do amor das
coisas pelo motor imóvel do mundo.
A intuição mítica, sem o elemento
formador do logos, ainda é “cega” e
que a conceituação lógica, sem o núcleo vivo da “intuição mítica” originária,
permanece “vazia”. A partir deste ponto de vista devemos encarar a história da
filosofia grega como o processo de racionalização progressiva da concepção religiosa
do mundo implícita nos mitos. Se o representarmos por uma série de círculos
concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do
centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do
mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva que vai das esferas
exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e
Platão, ao centro, quer dizer, à alma. A partir deste ponto realiza-se, no
neoplatonismo, um movimento inverso, até o fim da filosofia antiga. Foi
precisamente o mito platônico da alma que teve a capacidade de resistir ao
processo de racionalização integral do ser e até de se infiltrar novamente e
dominar progressivamente, a partir do núcleo, o cosmos racionalizado. Foi aqui
que se inseriu a possibilidade da sua aceitação por parte da religião cristã,
que nele encontrou, por assim dizer, a cama feita.
Com freqüência
se debateu a questão de saber como foi possível à filosofia grega Ter começado
com os problemas da natureza e não com os relativos ao Homem.
Se juntarmos à
filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquílogo e a
poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e
ético-político, ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a
prosa da poesia para obtermos uma imagem completa da evolução do pensamento
filosófico, na qual também está compreendido o reino humano. A única diferença
reside no fato de a concepção do Estado ser, pela sua própria natureza, de
caráter imediatamente prático, ao passo que a investigação da physis, ou gênese, isto é, “origem”, é
impulsionada pela “teoria”. O problema do Homem não foi encarado pelos Gregos,
a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no estudo dos problemas do
mundo externo e particularmente da Medicina e da Matemática, é que se
descobriram intuições do tipo de uma techne
exata, que serviram de modelo para a investigaçaõ do Homem interior.
O espírito
grego, formado na legalidade do mundo exterior, cedo descobre também as leis
internasda alma e chega à concepção objetiva de um cosmos interior. Foi esta
descoberta que, num momento crítico da história grega, possibilitou, pela
primeira vez, a estruturação de uma nova formação humana, com fundamento no
conhecimento filosófico, no sentido proposto por Platão. A prioridade da
filosofia da natureza sobre a filosofia do espírito tem um “sentido” histórico
profundo, que se torna extremamente claro quando visto à luz da história da
educação. No fundo do pensamento dos antigos Jônios não há uma vontade
consciente de educar. Porém, no meio da decadência da concepção mítica do mundo
e no caos gerado pela fermentação de uma nova sociedade humana, encaram de um
modo inteiramente novo o mais profundo problema da vida, o problema do ser.
O que logo se
evidencia na figura humana destes primeiros filósofos – que, naturalmente, não
deram a se próprios este nome platônico – é a típica atitude espiritual:
devotamento incondicional ao conhecimento, estudo e aprofundamento do ser, em
si mesmo.
Pelo que
sabemos, foi Anaximandro o primeiro que teve a coragem de escrever em prosa as
suas idéias e de dinfundi-las, tal como o legislador escrevia as suas tábuas. O
filósofo elimina com isso a intimidade do seu pensamento; deixa de ser um,
aspira a ser ouvido por todos. Se, partindo do estilo da prosa jônica
posterior, quiséssemos aventurar uma conclusão retrospectiva em relação ao
estilo de Anaximandro, nós o veríamos em oposição às opiniões correntes entre
os seus contemporâneos, pelo uso da primeira pessoa do singular.
As mais
antigas autoridades perdem o seu valor. Só é verdade o que “eu” posso explicar
por razões concludentes, aquilo que o “meu” pensamento consegue justificar
perante si próprio. Toda a literatura jônica, desde Hecateu e Heródoto, criador
da Geografia e da Etnologia e pai da História, até os médicos, em cujos
escritos se encontramos fundamentos da ciência médica durante vários séculos,
está impregnada deste espírito e usa nas suas críticas aquela forma pessoal
característica. No entanto, realiza-se com o aparecimento do eu racional a superação do
individualismo mais rica de conseqüências: surge o conceito de verdade, o novo
conceito de uma validade universal no fluir dos fenômenos, perante a qual se
tem de curvar todo arbitrário.
O ponto de
partida dos pensadores naturalistas do séc. VI era o problema da origem, a physis, que deu o seu nome ao movimento
espirituale à forma de especulação que originou. Isto se justifica, se temos
presente o significado originário da palavra grega e não misturamos a ele a
moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o
que na nossa linguagem corrente denominados metafísica. Era a ele que se
subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo
movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava
envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi libertando dela. No
conceito grego de pbysis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o
problema da origem – que abriga o pensamento a ultrapassar os limites
do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da
investigação empírica (iotopin),do que deveria daquela origem e existe
atualmente (tá òvta). Era natural que a tendência inata dos
Jônios- grandes exploradores e observadores- para a investigação levasse as
questões a um maior aprofundamento, onde aparecem os problemas últimos. É
natural também que uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo,
se desenvolvesse que, uma vez colocado o
problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse progressivamente a
necessidade de ampliar o conhecimento dos fatos e a explicação dos fenômenos
particulares. Pela proximidade do Egito e dos países do Oriente Próximo
torna-se mais que verossímil- confirmam-no as tradições mais autênticas- que o
contato espiritual dos jônios com as mais antigas civilizações daqueles povos
não só tenha levado á adoção das conquistas técnicas na agrimensura, na náutica
e na observação do céu, mas tenha também dirigido a atenção daquela raça de
navegadores e comerciantes, de espírito vivo, para a consideração dos problemas
profundos que aqueles povos resolveram de maneira muito diferente dos Gregos,
por meio de mitos referentes ao nascimento do mundo e às histórias dos deuses.
Há, porém, algo de fundamentalmente
novo na maneira como os Gregos puseram a serviço do seu problema último- da
origem e essência das coisas- as observações empíricas que receberam do oriente
e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento
teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das realidades
aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É neste
momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás,
o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos
mitos. Porém, o simples fato de Ter sido um movimento espiritual unitário,
conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e
recíproca ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão
do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura
jônica, torna-se clara, se tonamos que os três primeiros pensadores- Tales,
Anaximandro e Anaxímenes- viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas
(início do séc. V). Tão evidente como a súbita interrupção de um elevado
florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção brutal de um destino
histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do tipo
espiritual desta magnífica série de grandes homens, um pouco anacronicamente
designados de “escola milesiana”. O modo de propor e resolver os problemas
segue, nos três, a mesma direção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos
fundamentais á física grega de Demócrito até Aristóteles.
A concepção da Terra e do mundo em
Anaxímandro é uma vitória do espírito geométrico. É o símbolo visível da
monumentalidade proporcional, própria do pensamento e da essência total do
homem arcaico. O mundo de Anaxímandro é construído segundo rigorosas proporções
matemáticas. O disco terrestre da concepção homérica não passa de uma
representação ilusória. Na realidade, o caminho diário do Sol do Oriente para o
Ocidente passa por debaixo da Terra, de modo a reaparecer no Oriente, no seu
ponto de partida. O mundo não é, assim, uma meia esfera, mais uma esfera
completa, em cujo centro se situa a Terra. São circulares não só o caminho do
Sol, mas também o da Lua e das estrelas.
O diâmetro da Terra tem 3 vezes a
sua altura, pois a Terra tem a forma de um cilindro achatado. Não se apoia numa
base sólida nem cresce para o ar, como uma árvore, a partir de raízes
invisíveis e profundas. Está suspensa no espaço do mundo. Não a pressão do ar
que sustenta. Conserva-se em equilíbrio porque se acha, de ambos os lados, a
igual distância da esfera celeste.
A época de Heródoto ocupou-se em preencher lacunas com
fatos novos e em suavizar ou suprimir a violência dos traços. Apenas deixa
ficar o que resiste à verificação empírica. Mas todo ímpeto e genialidade
criadora reside em Anaximandro e naqueles exploradores originais que, inspirados pela idéia de uma
ordem e de uma articulação universal do mundo, buscaram exprimi-las na linguagem
previamente estruturada das proporções matemáticas.
O princípio originário que
Anaximandro estabelece no lugar da água de Tales, o ilimitado, mostra a mesma
audácia em ultrapassar as fronteiras da aparência sensível. Todos os filósofos
da natureza estavam dominados pelo prodigioso espetáculo da geração e corrupção
das coisas, cuja imagem colorida os olhos humanos captam. O que será o fundo
inesgotável do qual tudo procede e ao qual tudo regressa? Tales julga que é a
água, que se evapora e se transforma em ar ou se congela e, por assim dizer, se
petrifica em sólido. Impressiona-o a sua enorme capacidade de transformação.
Toda a vida provém da umidade. Não sabemos qual dos antigos filósofos foi o
primeiro a ensinar que até o fogo das estrelas se alimenta das exalações do
mar, como os estóicos ainda acreditavam. Anaxímenes sustenta que o princípio
originário é o ar e não a água, e é a partir dele que procura, antes de tudo,
explicar a vida. O ar domina o mundo como a alma o corpo; e a própria alma é o
ar, sopro, pneuma. Anaximandro fala
do apeiron, que não é nenhum elemento
determinado, mas “tudo inclui e tudo governa”. Parece Ter sido esta a sua
própria expressão. Aristóteles opõe-se a isso, porque da “matéria” antes se
diria que em tudo se inclui, do que tudo
inclui. Contudo outros epítetos, como “imperecível” e “imortal”, que
Aristóteles usa na sua interpretação do apeiron,
mostram inequivocamente o seu sentido ativo. Só um Deus pode “governar” o todo.
E, segundo a tradição, foi o próprio filósofo que designou como divino o apeiron, que sem cessar produz novos
mundos para outra vez o assimilar. A saída das coisas do apeiron é uma separação dos contrários que lutam neste mundo, a
partir do todo originariamente unido. A isto se refere aquela grande máxima, a
única de Anaximandro que nos foi diretamente transmitida: Onde estiver a origem do que é aí também deve estar o seu fim, segundo
o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e
pena, conforme a sentença do tempo.
A existência das coisas
como tais, a individualização, seria um pecado original, uma sublevação contra
o princípio originário eterno, pela qual as criaturas teriam de padecer uma
pena. Quando o texto correto foi restaurado (pela adição que faltava nas antigas
edições) tornou-se claro que se trata apenas da compreensão da pleonexia das coisas. Não é uma culpa
das coisas, idéia estranha aos Gregos. É uma personificação pela qual
Anaximandro se figura a luta das coisas como a contenda dos homens num tribunal.
Temos diante de nós uma jônica. Lá está o mercado, onde se administra justiça;
sentado na sua cadeira, o juiz estabelece a pena (táttei). O juiz é tempo. Nós o sabemos pela as idéias políticas de
Sólon. O seu braço é inexorável. Quando um dos contendores tira demais do
outro, o excesso lhe é de novo retirado e dado ao que ficou com pouco. A idéia
de Sólon é esta: a dike não depende
dos decretos da justiça terrena e humana nem divina, como sucedia na antiga
religião de Hesíodo. É imanente ao próprio acontecer, no qual se realiza para
cada caso a compensação das desigualdades. Portanto, a sua inexorabilidade é o
“castigo de Zeus” , a “paga dos deuses”. Anaximando vai muito além. Esta
compensação eterna não se realiza só vida humana, mas também no mundo inteiro,
na totalidade dos seres. A evidência deste processo e sua imanência na esfera
humana levam-no a pensar que as coisas da natureza, com todas as suas forças e
aposições, também se encontram submetidas a uma ordem de justiça imanente e que
sua ascensão e sua decadência se realizam de acordo com essa ordem.
O que Anaximandro formula as suas com
as suas palavras é mais uma norma universal do que uma lei da natureza no
sentido moderno. O conhecimento desta norma do acontecer da natureza tem um
sentido religioso imediato. Não é uma simples descrição de fatos, mas uma
justificação da natureza do mundo. O
mundo revela-se como um cosmo, isto
é, como uma comunidade jurídica das coisas. Elas afirmam o seu sentido na
incessante e inexorável geração e corrupção, que dizer, naquilo que a
existência tem de mais incompreensível e insuportável para as aspirações da
vida do homem ingênuo. Não sabemos se próprio Anaximandro empregou neste
sentido a palavra cosmos . No seu
sucessor Anaxímenes já a encontramos, se é autêntico fragmento que se atribui a
ele. Mas, em principio, a idéia de cosmos encontra-se – embora sem o sentido
rigoroso que teve mais tarde--na concepção de um acontecer natural governado
pela dike eterna, de Anaximandro. Temos, por tanto, o
direto de caracterizar a concepção do mundo de Anaximandro como a íntima
descoberta do cosmos. Esta descoberta não se podia fazer senão no fundo alma
humana. Nada se teria podido fazer com o telescópios, observatórios ou qualquer
outro tipo investigação empírica. Foi da mesma faculdade intuitiva que brotou a
idéia de infinidade dos mundos, atribuída Anaximandro pela tradição. Sem dúvida
alguma, a idéia filosófica do cosmos representou uma ruptura com as
representações religiosas habituais. Mas esta ruptura representa a aparição de
uma nova concepção da divindade do ser, no meio do horror da fugacidade da
destruição, que tanto impressionou as novas gerações, como mostra os
poetas.
É neste estado de espírito que reside
a semente de incontáveis desenvolvimentos filosóficos. O conceito de cosmos
constituiu até os nossos dias uma das categorias essenciais de toda concepção
do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha gradualmente
perdido o sentido metafísico original. A idéia dos cosmos mostra, com simbólica
evidência da primitiva filosofia natural para a formação do homem grego. Assim
como em Sólon o conceito ético-jurídico da responsabilidade deriva da teodicéia
para a epopéia, também em Anaximandro a justiça do mundo recorda que o conceito
grego de causa, fundamental para o novo pensamento, coincidia originalmente com
o conceito de culpa e foi transferido da imputação jurídica à causalidade
física. Esta transposição espiritual está ligada à transposição análoga dos
conceitos de cosmos, dike e tisis, originários da vida jurídica, para o acontecer natural. O
fragmento de Anaximandro permite-nos obter uma visão profunda do
desenvolvimento do problema da causalidade a partir do problema teológico. A
sua dike é o princípio do processo de projeção da polis no universo. É certo
que nos pensadores jônicos não encontramos uma transposição expressa da
ordenação do mundo e da vida do Homem para o ser das coisas não humanas. Não
podia acontecer isso, porque as suas investigações prescindiam totalmente das
coisas humanas e visavam exclusivamente a determinação do fundamento eterno das
coisas. Mas, dado que se serviram da ordem da existência humana para tirar
conclusões a propósito da physis e
sua interpretação, a sua concepção continha em germe, desde o início, uma
futura e nova harmonia entre o ser eterno e o mundo da vida humana com os seus
valores.
O séc. VI, que, após o naturalismo
dissolvente do séc. VII, é uma luta decisiva em prol de uma nova estruturação
espiritual da vida, não representa só um vigoroso esforço filosófico, mas
também uma pujante expressão religiosa. O movimento órfico é um dos mais
significativos testemunhos desta nova
intimidade que penetra até o mais profundo da alma popular. No seu anseio por
um sentido novo e elevado da vida, está em contato com o esforço do pensamento
racional das concepções filosóficas para atingirem uma “norma” objetiva no ser
cósmico. É evidente que o conteúdo dogmático das crenças órficas não tem
importância. Os modernos, visando arranjar uma imagem que lhes permitisse
confirmar a sua idéia a priori de uma
religião de salvação, superestimaram-no enormemente. Todavia , anuncia-se nas crenças órficas
relativas à alma, um novo sentimento da
vida e uma nova forma da consciência de si próprio. Contrariamente ao conceito
homérico da alma, há na idéia órfica um elemento normativo expresso . Da crença na origem divina e na
imortalidade da alma decorre a exigência de conservá-la pura no seu estado
terreno de união com o corpo. O crente sente-se na obrigação de prestar contas
da sua vida. Já em Sólon encontramos a idéia da responsabilidade do indivíduo em
face da totalidade do Estado. Aqui deparamos com uma Segunda fonte de
responsabilidade ética: a idéia da pureza religiosa. Originalmente era numa
pureza meramente ritual, que depois se estendeu á esfera moral. Não se deve
confundi-la com a pureza ascética do espiritualismo posterior, que considera o
corpo com um mal em si mesmo. No entanto, os órficos e os pitagóricas guardam
já certos preceitos de abstenção ascética, principalmente a abstinência de
qualquer alimento de carne. E o desprezo do corpo começa já com brusca oposição
do corpo e da alma, oposição derivada da representação da ascendência da alma,
encarada como um hóspede divino na vida mortal da Terra. Evidentemente, a
pureza e impureza dos órficos deve ser entendida como o cumprimento ou a transgressão
das leis do Estado. O próprio “direito sagrado” dos Gregos antigos implica o
conceito de pureza. Bastou dar maior
extensão ao reino do valor, e já a idéia órfica da pureza pôde abarcar o
domínio total dos preceitos do nomos.
Isto não significa a sua transformação
numa moral cívica no sentido moderno, visto que o nomos grego, mesmo na sua forma racional, tem origem divina. Mas,
pela sua fusão com a idéia órfica da pureza, recebe um novo fundamento,
radicado no caráter sagrado e divino da alma individual.
Só por uma profunda necessidade dos
homens daquele tempo, aos quais a religião cultural já não satisfazia, se
explica a rápida difusão do movimento órfico na metrópole e nas colônias.
O conceito órfico da alma representa
um passo essencial no desenvolvimento da consciência pessoal humana. Sem ele
seria impensável a concepção platônica e aristotélica da divindade do espírito
e a distinção entre o Homem meramente sensível e o seu próprio eu, que constitui sua vocação plena.
Basta pensar num filósofo com Empédocles, impregnado da concepção órfica da
divindade, para atestar a profunda e persistente afinidade da nova religião com
os problemas do pensamento filosófico, a qual é visível em Pitágoras, pela
primeira vez. Empédocles exalta Pitágoras no seu poema órfico, Purificações. Interpenetram-se em
Empédocles as crenças órficas da alma e a filosofia jônica da natureza. A sua
síntese mostra-nos de modo muito significativo como as duas doutrinas se unem e
se completam numa mesma pessoa. É símbolo desta união complementar a imagem da
alma, balançada de lá pra cá no turbilhão dos elementos: o ar, a água, a terra
e o fogo empurram-na e atiram-na de uns para os outros, incessantemente. Assim sou eu, como um exilado de Deus, que
vagueia daqui para ali. A alma não tem no mundo da filosofia naturalista um
lugar adequado. Salva-se, porém, mediante a certeza religiosa de si própria. É
só quando se liga ao pensamento filosófico do cosmos, como em Heráclito, que
esta necessidade metafísica do homem religioso encontra satisfação.
Com Xenófanes de Cólofon, o segundo
dos grandes emigrados jônicos que estabeleceram o seu campo de ação no Ocidente
do mundo helênico, deixamos a linha dos pensadores rigorosos. A filosofia
milesiana da natureza nasce da investigação pura. Quando Anaximandro torna
acessível, na forma de livro, a sua doutrina, destina a sua especulação à
publicidade.Pitágoras funda uma sociedade cujo fim é a realização dos preceitos
do mestre. Ambos representam um esforço educativo muito afastado da pura teoria
filosófica. As suas críticas, porém, penetram tão profundamente em todas as
concepções geralmente aceites, que era impossível separá-las do resto da vida
espiritual. A filosofia da natureza recebeu dos movimentos políticos e sociais
da época os incitamentos mais fecundos, e devolveu de múltiplas formas o
recebido. Xenófanes é um poeta. Com ele, o espírito filosófico apoderou-se da
poesia. Isto é sinal inequívoco de que o espírito filosófico começa a torna-se
uma força educativa, pois a poesia continua a ser como sempre a expressão
autêntica da formação nacional. O
Impulso que levou a filosofia a adotar a forma poética mostra subjetivamente a
sua tendência a se apoderar da totalidade de ação humana na vida sentimental e
intelectual, e a aspiração que tem a exercer domínio espiritual. A nova prosa
jônica só gradualmente alarga o seu campo e, por estar expressa num dialeto
limitado a um círculo reduzido, nunca adquire a ressonância da poesia, que se
serve da linguagem de Homero e é, por conseguinte, pan-helênica é também a
influência a que o pensamento de Xenófanes aspira. Até um pensador abstrato e
rigoroso como Parmênides, ou um filósofo da natureza como Empédocles, adotam a
forma hesiódica da poesia didática. Talvez tenham sido incitados a fazê-lo pelo
exemplo de Xenófanes que, embora não tenha sido um verdadeiro pensador nem
tenha escrito nunca um poema didático sobre a natureza, como se disse
freqüentemente, foi um dos iniciadores da exposição poética da doutrina
filosófica. Nas suas elegias e silloi,
uma nova forma da poesia satírica, populariza os pontos de vista da física
jônica e empreende uma luta aberta contra o espírito da formação dominante.
A formação procede sobretudo de
Homero e de Hesíodo. O próprio Xenófanes afirma que foi de Homero que todos
aprenderam, desde o início. Homero é, por conseguinte, o alvo dos seus ataques
na sua luta pela nova formação. A filosofia substituiu a imagem homérica do
mundo por uma explicação natural e regular. A fantasia poética de Xenófanes é
arrebatada pela grandeza desta nova concepção do mundo. Significa o rompimento
com o politeísmo e antropomorfismo do mundo dos deuses.
O seu conceito de Deus, que
apresenta com o entusiástico pathos
da nova verdade, coincide com o do Universo. Há um só Deus, que não se pode
comparar aos mortais na forma e no espírito. É toda visão, todo ouvido e todo
pensamento. Conserva tudo em seu poder, sem qualquer esforço, só pelo
pensamento. Não corre daqui pra lá, apressado, como os deuses da epopéia.
Repousa imóvel em si mesmo. É ilusão dos homens pensar que os deuses nascem e
têm forma e roupagens humanas. Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos
e pudessem pintar como os homens, pintariam os deuses com o corpo e figura
semelhantes aos seus, como bois e cavalos. Os negros acreditavam em deuses
negros e de nariz achatado, os Trácios em deuses de olhos azuis e cabeleira
ruiva. Provêm de causas naturais todos os fenômenos do mundo exterior que os
homens atribuem à ação dos deuses em cuja presença tremem. O arco-íris não
passa de uma nuvem colorida; o mar é o ventre materno de todas as águas, ventos
e nuvens.
Nascemos todos da terra e da água.
Tudo quanto se faz e cresce é terra e água.
Tudo vem da terra e tudo a ela regressa.
A cultura não é um Dom dos deuses
aos mortais, como ensina o mito. Foram os homens que tudo descobriram pelos
seus esforços inquiridores, e é por meio deles que vão acrescentando novos
elementos à cultura.
Entre todas estas idéias não há
nenhuma nova. Anaximandro e Anaxímenes não pensaram, em princípio, em outra
coisa. São eles os verdadeiros criadores desta concepção naturalista do mundo.
Mas é Xenófanes o seu inflamado campeão e arauto. Acolhe-a não só com o ímpeto
que aspira a aniquilar todo o antigo, mas também com a força criadora de novos
valores religiosos e morais. A sua crítica corrosiva à insuficiência da imagem
homérica do mundo e dos deuses acarreta consigo a elaboração de uma nova crença,
mais digna. A decidida ação das novas verdades na vida e convicções dos homens
é o fundamento de uma nova formação. Os cosmos da filosofia da natureza
converte-se, por um movimento reflexo do desenvolvimento espiritual, no
protótipo da eunomia da sociedade
humana. É nele que a ética da cidade encontra a sua raiz metafísica.
As proposições de Parmênides
constituem um encadeamento rigorosamente lógico, impregnado da consciência da
força construtiva da conseqüência das idéias. Não é por acaso que os fragmentos
da sua obra que se conservam constituem a primeira série de proposições
filosóficas de conteúdo vasto e encadeamento rigoroso que o idioma grego nos
legou. O sentido daquele pensamento só poderá ser expresso e compreendido se
lhe seguirmos a marcha dinâmica. O seu produto imediato não é imagem estética.
A força com que Parmênides expõe aos ouvintes as suas doutrinas fundamentais
não deriva de uma convicção dogmática, mas da vitória da necessidade do
pensamento. O conhecimento é também uma absoluta ananke para Parmênides, que ainda o denomina dike ou moira,
evidentemente por influência de Anaximandro. É o mais alto fim a que
investigação humana pode aspirar. Mas quando diz que Dike mantém o ser fixo nos
seus limites, sem qualquer possibilidade de dissolução, de tal modo que já não
pode nascer nem perecer, vê-se que a sua Dike tem uma função contrária à de
Anaximandro, a qual se manifesta na geração e corrupção das coisas. A Dike de
Parmênides, que separa o ser de toda a geração e corrupção e o faz permanecer
imóvel em si mesmo, é a necessidade implícita no conceito do ser, interpretado
como “aspiração do ser à justiça”. Nas frases insistentemente repetidas “o ser é, o naõ-ser não é; e: o que é não
pode não-ser”, Parmênides exprime a necessidade do pensamento da qual
deveria a impossibilidade de realizar no conhecimento a contradição lógica.
Esta força daquilo que se adquiriu
no puro pensamento é a grande descoberta que domina toda a filosofia eleática.
Determina a forma polêmica dentro da qual o seu pensamento se desenvolve. O que
nas suas proposições fundamentais aparece como a descoberta de uma lei lógica é
para ele um conhecimento objetivo, cujo conteúdo o coloca em conflito com
toda a anterior filosofia da natureza.
Se é certo que o ser nunca não é e o não-ser nunca é, torna-se evidente para
Parmênides que o devir é impossível. A aparência , porém, revela –nos algo de
diferente. Os filósofos naturalistas, que nele confiam cegamente, sustentam que
o ser vem do não-ser e no não-ser se dissolve. No fundo, é a opinião de todos
nós. Confiamos nos olhos e nos ouvidos espiritual do homem. Aqueles que não o
seguem são como cegos e surdos, e emaranham-se em contradições sem saída. Não
tem outro remédio senão admitir que o ser e o não-ser são e não são o mesmo, ao
mesmo tempo. Se derivarmos o ser do não ser, admitiremos que a sua origem é
incognoscível. Ao verdadeiro conhecimento deve corresponder um objeto. Assim,
se de fato buscamos a verdade, temos de nos afastar da geração e corrupção que
levam a proposições impensáveis, e nos ater ao puro ser, que no pensamento nos
é dado. O pensamento e o ser são uma e a
mesma coisa.
A grande dificuldade do pensamento puro é
obter qualquer conhecimento concreto do conteúdo do seu objeto. Nos fragmentos
existentes da sua obra, Parmênides aparece-nos num esforço de dedução de uma
série de determinações precisas do seu novo conceito rigoroso do ser. Estas
notas, que se destacam no caminho que conduz à investigação dirigida pelo
pensamento puro, ele chama de atributos ou características do Ser. O Ser é
alheio ao devir, é imutável e portanto
imortal, total e único inabalável, eterno, onipresente, uno, coerente,
indivisível, homogêneo, ilimitado e completo. É perfeitamente notório que todos
os predicados positivos e negativos atribuídos por Parmênides ao Ser derivam da
contraposição à antiga filosofia naturalista e foram obtidos das à análise
crítica e rigorosa dos pressupostos nela implícitos. Não é este o lugar
propício para expô-lo detalhadamente.
Parmênides é o primeiro pensador
que levanta conscientemente o problema do método científico e o primeiro que
distingue com clareza os dois caminhos principais que a filosofia posterior há
de seguir: a percepção e o pensamento. O
que não conhecemos pela via do pensamento é apenas “opinião dos homens”. Toda a
salvação se baseia na substituição do mundo da opinião pelo mundo da verdade.
Parmênides considera esta conversão como algo violento e difícil, mas grande e
libertador. Põe na exposição do seu pensamento um ímpeto grandioso e um pathos religioso que transcende os
limites do lógico lhe conferem uma emoção profundamente humana. É o espetáculo
do Homem que luta por meio do pensamento e, pela primeira vez, liberta-se das
aparências sensíveis da realidade e descobre no espírito o órgão para chegar à
compreensão da totalidade e da unidade do Ser. Embora entravado e perturbado
por uma multiplicidade de problemas, revela-se neste conhecimento uma força
fundamental de concepção do mundo e de formação humana, especificamente
helênica. Em tudo que Parmênides escreveu palpita a emocionante experiência
desta conversão da investigação humana ao pensamento puro.
É isto que explica a estrutura de sua
obra, dividido em duas partes rigidamente constante, uma consagrada à “verdade” e outra à
“opinião”.
Em Xenófanes, a filosofia aproxima-se
da vida humana e adota uma atitude educadora e progressista. Em Parmênides
retorna claramente ao seu alheamento das coisas humanas. No seu conceito do Ser dilui-se toda a existência particular
e portanto também o Homem. A este respeito, Heráclito de Éfeso realiza a
revolução mas completa. A história da filosofia considerou-o por longo tempo um
filósofo da natureza e colocou o seu princípio originário, o fogo, na mesma
linha da água de Tales e do ar de Anaximandro. O vigor significativo das
misteriosas proposições do “Obscuro”, freqüentemente expressas em forma de
aforismos, já devia Ter evitado aos
historiadores a confusão deste temperado unicamente á fundamentação dos fatos.
Em parte alguma de Heráclito deparamos com uma consideração puramente teórica
das aparências ou até com a sombra de uma simples teoria física. O que assim se
poderia interpretar está em íntima conexão com um vasto contexto. Não
constituiu um fim em si. Não há qualquer dúvida que Heráclito se encontra sob a
poderosa influência da filosofia da natureza. A imagem total da realidade, o
cosmos, a incessante subida e descida da geração e destruição à fonte primitiva
inesgotável de que tudo brota e a que tudo regressa, o curso circular das formas
em contínua transformação, que constantemente percorre o Ser: tudo isso
constitui, em linhas gerais, a base mais sólida do seu pensamento.
Porém, enquanto os milesianos e, de
modo ainda mais rigoroso, o seu opositor Parmênides procura uma intuição
objetiva do Ser e dissolvem um mundo humano na imagem da natureza, em Heráclito
o coração humano constitui o centro emocional e apaixonado para onde convergem
os raios de todas as forças da natureza. O curso do mundo não é para ele um
espetáculo distante e sublime em cuja contemplação o espírito se afunda e se
esquece até submergir na totalidade do Ser. Pelo contrário, através do ser passa
o acontecer cósmico. Está convicto de que todas as palavras e ações dos homens
são um efeito daquela força superior, ainda que a maioria deles não saiba que
são meros instrumentos nas mãos de um Poder mais alto. É esta a grande novidade
que se revela em Heráclito. Os seus predecessores aperfeiçoaram a imagem dos
cosmos. Os homens ganharam consciência da eterna luta entre o ser e o devir.
Agora, levanta-se com imensa violência o problema de saber como é que o Homem
se impõe no meio daquela luta. Enquanto Hecateu e outros contemporâneos se
consagram com inteligência ímpeto juvenil á investigação variada e dispersa da história milesiana e satisfazem o seu
anseio com a coleta e assimilação de tudo o
que se refere aos países, povos e tradições do passado, Heráclito
profere estas graves palavras: A multiplicação dos conhecimentos não
proporciona sabedoria. E cria uma filosofia cujo sentido se encontra
expresso na profunda máxima: Investiguei-me
a mim próprio. É impossível exprimir a volta da filosofia ao Homem de modo
mais grandioso do que aquele que aparece em Heráclito.
As palavras acima
mencionadas estão intimamente ligadas às que se seguem: Por mais longe que vás
não encontrarás os limites da alma: Tão
profundo é o seu logos. É a primeira vez que aparece o sentimento da
dimensão da profundeza do logos e da
alma,, característico do seu pensamento. É desta nova fonte de conhecimento que
dimana a totalidade da sua filosofia.
O logos de Heráclito é um conhecimento de onde nascem, ao mesmo
tempo, “a palavra e a ação”. Se quisermos um exemplo deste tipo particular de
conhecimento, não será no pensamento para o qual o Ser nunca pode não ser que
deveremos proculá-lo, mas antes na visão profunda que se revela numa proposição
como esta: O ethos é o dáimon do Homem.
É sumamente significativo e de maior importância que na primeira frase do seu
livro, afortunadamente conservada, esteja expressa esta fecunda relação do
conhecimento com a vida. Trata-se aqui das palavras e das obras que os homens empreendem sem
compreenderem o logos, pois só ele
nos ensina a “agir acordados”, enquanto os que não o possuem “agem dormindo”.
Assim, o logos deve dar-nos uma nova
vida sapiente. Estende-se à esfera total do humano. Heráclito, é o primeiro
filósofo que introduz o conceito, o conhecimento do Ser está em íntima
dependência e conexão com a intelecção da ordem dos valores e orientação da
vida; e é com plena consciência que ele inclui a primeira na Segunda. A forma
profética das suas afirmações tira a sua íntima necessidade da aspiração do
filósofo a abrir os olhos dos mortais sobre si próprios, a revelar-lhes o
fundamento da vida, e despertá-los do seu sono. Muitas são as suas expressões
que insistem nesta vocação do intérprete. A natureza e a vida são um griphos, um enigma, um oráculo délfico,
uma sentença sibilina. É preciso saber interpreta-lhes o sentido: Heráclito
sente-se intérprete de enigmas, o Édipo da filosofia, que arranca os enigmas à
Esfinge; é que a natureza gosta de se
ocultar.
O próprio logos só pode ser determinado por meio
de imagens. O se tipo de universalidade, a ação que exerce, a consciência que
desperta naquele que inspira exprimem-se em Heráclito com maior clareza,
através do seu contraste favorito entre a vigília e o sono. Indica um critério
essencial do logos que o distingue do
estado de espírito habitual na multidão: o logos
é comum”. Para os homens “despertos” há um cosmos idêntico e unitário, enquanto
os “adormecidos”, por sua vez, também não têm o seu mundo particular, o seu
mundo de sonhos, que não é senão um sonho. Não devemos imaginar esta comunidade
social do logos de Heráclito como a
simples expressão figurada da universalidade lógica. A comunidade é o supremo
bem que a polis conhece, e engloba a
existência particular dos indivíduos. A atitude imperativa e ditatorial de
Heráclito, que a princípio poderia parecer individualismo exagerado, surge
agora como o seu oposto mais evidente, como a superação do vacilante arbítrio
individual, que ameaçava perder a totalidade da vida. É preciso seguir o logos. Revela-se nele uma comunidade
ainda mais alta e abrangente que a lei da polis.
É nele que a vida e o pensamento se devem basear. Cada qual pode “torna-se
forte” por meio do logos, “como a polis por meio da lei”. Os homens, é certo, vivem como se cada um
tivesse a sua razão particular.
O logos de Heráclito é o espírito,
enquanto órgão do sentido do cosmos. O que já existia em germe na concepção do
mundo de Anaximandro desabrocha, na consciência de Heráclito, na concepção de
um logos que conhece a si próprio e
conhece a sua ação e o seu lugar na ordem no mundo. Vive e pensa nele o mesmo
“fogo” que impregna e penetra o cosmos como vida e pensamento. Pela sua origem
divina, encontra-se apto a penetrar da intimidade divina da natureza, de onde
procede. Assim, na nova ordem do mundo formulada por Heráclito, o Homem
conquista uma posição como ser cósmico, dentro do cosmos descoberto pela
filosofia anterior.
A doutrina de Heráclito
surge como a primeira antropologia filosófica, em face dos filósofos
primitivos. A sua filosofia do Homem é, por assim dizer, o mais interior de
três círculos concêntricos pelos quais a sua filosofia se pode representar. O
círculo antropológico está no interior do cosmológico e do teológico; estes
círculos não podem contudo, separar-se. De modo nenhum se pode conceber o
antropológico independentemente do cosmológico e do teológico . O Homem de
Heráclito é uma parte do cosmos. Nessa condição está igualmente submetido às
leis do cosmos, tal como as suas demais partes. Quando, porém, ganha
consciência de que traz no seu próprio espírito a lei eterna da vida do todo,
adquiri a capacidade de participar da mais alta sabedoria, cujos decretos
procedem da lei divina. A liberdade do homem grego consiste em se sentir
subordinado, como membro, à totalidade da polis
e das suas leis. É uma liberdade completamente diferente daquela do
individualismo moderno, que se sente vinculado a uma universalidade
supra-sensível, devido à qual o Homem não pertence só ao Estado, mas também a
um mundo superior. A liberdade filosófica a que se eleva o pensamento de
Heráclito permanece fiel à essência do homem grego vinculado à polis, o qual se sente membro de uma
“comunidade” universal e submetida a ela. O sentimento religioso interroga-se
sobre o condutor pessoal deste conjunto e Heráclito também sente esta
necessidade. O Uno, que é o único sábio e
prudente, quer e não quer ser chamado Zeus. O sentimento político dos
Gregos desce tempo inclina-se a pensar como tirânico o governo de um só. O
pensamento de Heráclito está apto a conciliar as duas coisas, pois a lei não
significa para ele a maioria, mas sim a
emanação de um conhecimento superior.
A lei é também obediência ao comando de um só. A penetração de Heráclito no
sentido do mundo representa o nascimento de uma nova religião mais alta, a
compreensão espiritual do caminho da mais alta sabedoria. Viver e comporta-se
de acordo com ela é o que os Gregos chamaram
QPOVEIV. É a este conhecimento que leva a profecia de
Heráclito, baseada no logos
filosófico. A antiga filosofia da natureza não tinha formulado expressamente o
problema religioso. A sua concepção do mundo oferecia uma visão do Ser separado
do humano. A religião órfica preenchia este vazio e sustentava a crença no
caráter divino da alma, em meio ao turbilhão destruidor do devir universal onde
a filosofia da natureza parecia precipitar o Homem. Mas a filosofia da
natureza, no seu conceito de cosmos dominado pela Dike, oferecia um ponto de
cristalização à consciência religiosa.
Foi nele que Heráclito inseriu a sua interpretação do Homem, ao encará-lo no
seu aspecto estritamente cósmico foi pelo conceito heracliteano de alma que a
religião órfica se ergueu a um estágio mais alto. Pelo seu parentesco com o
“fogo eternamente vivo” do cosmos, a alma filosófica é capaz de conhecer a
divina sabedoria e de nela se manter. Assim, a oposição entre o pensamento
cosmológico e o pensamento religioso do séc.VI aparece superada e unificada na
síntese de Heráclito—que vive já no umbral da centúria seguinte. Já observamos
que a idéia de cosmos dos milesianos era mais uma norma do mundo que uma lei da
natureza no sentido moderno. Por meio do seu “nomos divino”, Heráclito eleva esta característica à categoria de
religião cósmica, e é na norma do mundo que ele fundamenta a norma da vida do
homem filosófico.
Luta e transformação da nobreza
Até agora foi só na luta política e
religiosa da Atenas de Sólon e no duro choque das idéias de Xenófanes com a
religião popular e com o ideal agonísticos do Homem da aristocracia grega que
vimos a influência da cultura jônica sobre a metrópole e o Ocidente helênico.
Os inimigos destas concepções descrevem a camada social que as defende como
limitada e mesquinhas, musculosa, retrógrada inimiga da ciência.
Na transição do séc.VI para o V, os
dois principais representantes deste movimento de oposição, Píndaro de Tebas e
Teóginis de Mégara, estão impregnados de uma profunda consciência de classe.
Dirigem-se ao círculo dos senhores, hostis e fechados às inovações políticas
dos Jônios. Mas esta aristocracia de Píndaro e de Teóginis já não repousa numa
paz imperturbável. Sente-se assaltada pelas vagas dos novos tempos e precisa
afirmar-se numa luta. É nesta luta pela existência material e espiritual que se
enraíza a consciência profunda e radical e os nobres têm do seu próprio valor
original. Ambos os poetas a refletem.
Do ponto de vista educativo, a
nobreza metropolitana tem, pela formação consciente de um tipo superior de
Homem, uma superioridade muito grande sobre os Jônios e sua aspiração a uma
formação interior, baseado num indivíduo e na natureza. Este ethos consciente e educador é
característico não apenas de Hesíodo, Tirteu e Sólon, mas também de Píndaro e
Teóginis, e opõe-se á ingênua espontaneidade com o que, entre
os jônios, irrompe o espírito em todas as suas fórmulas.
A única coisa que resta ao Homem
verdadeiramente nobre, si prescindimos das suas riquezas, é a riqueza interior,
isto é, a arte; e esta poucos a
possuem.
Restava, porém, uma ultima
barreira: a inquebrantável crença no
sangue. É ela que o leva a exigir, como o dever mais alto, a manutenção da sua
pureza. Levanta a voz contra os insensatos e desleais companheiros de classe
que julgam poder restaurar a fortuna por meio do casamento com filhas de
plebeus, ou dando as filhas aos filhos dos novos-ricos.
A idéia especificamente
aristocrática da conservação da raça foi
principalmente cultivada por Esparta e pelos grandes educadores do Estado do
séc. IV.
A política cultural dos tiranos
Já no séc. V começava a decair o florescimento da poesia
aristocrática. Os tiranos representam, contudo, uma fase de transição entre o
domínio da nobreza e o Estado democrático. A sua importância para a história da
educação não é menor que para a do desenvolvimento do Estado.
Encontramos a tirania, quase ao
mesmo tempo que na metrópole, na Jônia e nas ilhas, onde naturalmente parece
que se devia ter iniciado antes, devido ao seu desenvolvimento espiritual e
político. Por volta do ano 600, ou pouco depois, vemos o poder político de
Mileto, Éfeso e Samos nas mãos de conhecidos tiranos, que mantinham estreitas
relações com os seus congêneres da Hélade. Apesar de serem fenômeno de política
puramente interna, ou talvez por isso mesmo, os tiranos estavam ligados uns aos
outros por uma solidariedade internacional, frequentemente baseada em laços
matrimoniais. Anuncia-se a solidariedade, tão habitual no séc. V, entre as
democracias e as oligarquias. É assim que nasce pela primeira vez-- e isso é um
fato memorável -- uma política de largos vôos que, por exemplo, em Atenas,
Corinto e Mégara, levou à fundação de colônias. É típico destas colônias terem
com a sua metrópole uma ligação muito mais íntima que as primitivas fundações
deste tipo.
Nas outras regiões da Metrópole,
permanecia o regime aristocrático, que, como sempre, apoiava-se na propriedade
territorial, e em alguns locais – por exemplo
Egina, praça meramente comercial—também nas grandes riquezas. Em nenhum
lugar os tiranos se agüentavam por mais
de duas ou três gerações. A maioria das vezes era derrubado pela nobreza, já
experimentada na política e ciente do seu objetivo. Não obstante, porém, a
maior parte das vezes o usufruto da revolução cai logo sob o domínio do povo, como
em Atenas. Como observa Polibio na sua teoria das crises e transformações dos
regimes políticos, a causa principal da queda dos tiranos é, em geral, a
incapacidade dos filhos e netos, que só herdam do pai a força e não o vigor
espiritual, assim como a má utilização do poder recebido do povo num despotismo
arbitrário. OS tiranos tornam-se o terror da aristocracia derrubada, e legaram
essa característica aos seus sucessores democráticos. Mas o ódio da
aristocracia é apenas uma reação e uma forma unilateral da luta pelo poder.
A antiga tirania é intermediária
entre a realeza patriarcal dos tempos primitivos e a demagogia do período
democrático. Embora conservando a forma exterior do Estado aristocrático, o
tirano procurava reunir, tanto quanto possível todo os poderes nas suas mãos e
nas do círculo do seus partidários. Para isso apoia-se numa força militar não
muito grande, mais eficiente. Estados incapazes de estabelecer por si próprios
uma ordem eficaz e legal, de acordo com
a vontade da comunidade ou de uma grande maioria, só podiam ser governados por
uma minoria armada. A impopularidade desta pressão, que nem sequer o hábito foi
capaz de suavizar, obrigou os tiranos contabalançá-la por meio da cuidadosa manutenção das formas
exteriores de eleição para os cargos, pelo cultivo sistemático da lealdade e
pela busca de uma política econômica favorável ao público.
Os nobres que podiam converter-se
em rivais perigosos eram desterrados ou eram encarregados de tarefas honrosas
em outros lugares do país.
A tirania foi por muitos chamada
“o reino de Cronos”, isto é, a idade de ouro, e contava-se todo tipo de
histórias sobre as visitas pessoais do
senhor aos campos e suas conversas com povo simples e trabalhador, cujo
coração ganhava com a sua afabilidade e com a diminuição das contribuições.
Mesclavam-se intimamente nesta política a prudência, o tato político um instinto profundo e preciso das
necessidades do campo. Com o fim de evitar ao povo as viagens à cidade para
assistir aos litígios, deslocava-se pessoalmente ao campo na qualidade de juiz
de paz e ali celebrava as suas sessões.
O tirano é o protótipo do homem de
Estado que surgiu mais tarde, embora carecesse da responsabilidade deste. Deu o
primeiro exemplo de uma ação de previsão e de visão ampla, realizada pelo
cálculo dos fins e dos meios internos e externos, e ordenada segundo um plano.
Foi ele na verdade o verdadeiro político. O tirano é a manifestação específica
do crescente desenvolvimento da individualidade espiritual na esfera do Estado,
assim como em outras esferas o foram o filósofo e o poeta. No séc. IV, quando
despertou o interesse geral pelas individualidades importantes e a biografia
nasceu como gênero literário novo, o objeto preferido das suas descrições foram
os poetas, os filósofos e os tiranos.
O tirano mostra-se assim um
verdadeiro “político”: fomenta nos
cidadãos o sentimento da grandeza e do
valor da pátria. Não era novo, certamente, o interesse público por estas
coisas; mas aumentou subitamente, de modo assombroso, com o incitamento do
poder e com o emprego de grandes meios. O interesse do Estado pela cultura é um
sinal inequívoco do amor dos tiranos pelo povo. Depois da queda deles,
continuou no Estado democrático, que não fez mais do que seguir o exemplo dos
seus predecessores. Deixou de ser possível, a partir daí, pensar num organismo
estatal plenamente desenvolvido, sem uma atividade sistematizada nesta ordem. É
certo que as atividades culturais do Estado consistiram predominantemente na
glorificação da religião por meio da arte e na proteção dos artistas pelo
soberano, e que este empenho jamais colocou o Estado em conflito consigo
próprio.
Nunca ouvimos falar de uma
vinculação dos tiranos às personalidades filosóficas.
Sócrates
O problema socrático
Ora, o mais elementar a que nos podemos
ater é o próprio Sócrates, que nada deixou escrito, mas sim uma serie de obras
sobre ele todas provenientes da mesma época e tendo como autores seus
discípulos imediatos. Não é possível saber se estas obras ou partes delas foram
escritas em vida do próprio Sócrates, mas o mais provável é que não. A
semelhança entre as condições em que nasce a literatura socrática e aqueles de
que datam os mais antigos relatos cristãos sobre a vida e doutrina de Jesus foi
muitas vezes destacada e, de fato, salta à vista. É evidente que nem se quer a
influencia direta de Sócrates começou a plasmar-se em imagem harmoniosa nos
seus discípulos, senão depois de falecido o mestre. O abalo deste acontecimento
deixou na vida deles um traço fundo e forte. E tudo parece indicar precisamente
esta catástrofe que os levou a representar o seu mestre em escritos. É com isso
que se começa a desenrolar entre os contemporâneos o processo de cristalização
histórica de imagem de Sócrates, flutuante até antão.
Os restos que se conservam daquelas obras –
os diálogos de Platão e Xenofonte, as recordações deste ultimo sobre Sócrates e
finalmente os diálogos de Antíteses e de Esquines de Esfeto -, apesar do muito
que diferem entre si, revelam pelo menos uma coisa com absoluta clareza: aquilo
que sobretudo preocupava os discípulos era expor a personalidade imortal do
mestre, cujo profundo influxo haviam sentido na sua própria pessoa. O dialogo e
as memórias são as formas literárias que nascem nos meios socráticos para
satisfazer esta necessidade. Ambos estão ligados à consciência de que a herança
espiritual do mestre é inseparável da personalidade humana de Sócrates. Por
mais difícil que fosse transmitir aos que o não tinham conhecido uma impressão
do que fora aquele homem, era necessário tentá-lo a todo custo. Este anseio
representava para a sensibilidade grega algo de extraordinário, cuja
importância é impossível exagerar. O olhar focalizado nos homens e qualidade
humanas, tal como a própria vida, estava inteiramente submetido ao império do
típico. Há uma criação literária paralela, da primeira metade do séc. IV o
enkomion, que nos indica como teriam sido escritos os panegíricos de Sócrates,
de acordo com a concepção do homem predominante na primeira metade do séc. IV.
Este gênero literário deve igualmente a sua origem à exaltada valorização do
individuo fora do comum; mas só consegue compreender o seu valor pela
apresentação da personalidade celebrada, como a encarnação de todas as virtudes
que constituem o ideal típico do cidadão ou do chefe. Não era assim, por certo,
que se podia captar a personalidade humana de Sócrates que na Antiguidade
levou, pela primeira vez, à pratica da psicologia individual, cujo mestre mais
eminente é Platão. O retrato literário de Sócrates é a única imagem fiel,
decalcada sobre a realidade viva de uma individualidade grande e original, que
a era clássica grega nos transmitiu.
O exemplo de Sócrates provocou no conceito
de Arete uma mudança, cuja consciência se revela no interesse inesgotável
dedicado à sua pessoa.
Em contrapartida, é através do seu influxo
sobre terceiros que a personalidade humana de Sócrates se manifesta. O seu
órgão era a palavra. Por si mesmo, nunca plasmou por escrito esta palavra oral,
o que denota o quanto era importante para ele a relação da palavra com o ser
vivo a quem, naquele dado momento, se dirigia. Isto representava um obstáculo
quase insuperável para uma tentativa de exposição, sobretudo quando se tem
presente que a sua forma de conversar por meio de perguntas e respostas não se
encaixa em nenhum do gêneros literários tradicionais, mesmo que suponhamos a
existência de versões escritas daquelas conversas e, portanto, que o seu
conteúdo se podia reconstruir, parcialmente, com certa liberdade, como nos
mostra o exemplo do Fédon de Platão. Esta dificuldade serviu de estimulo à
criação do dialogo platônico, imitado em seguida pelos diálogos dos socráticos.
O dialogo
socrático de Platão é uma obra literária indubitavelmente baseada num sucesso
histórico: no fato de Sócrates ministrar os seus sentimentos sob a forma de
perguntas e respostas. É que ele considerava o dialogo a forma primitiva do
pensamento filosofo e o único Caminho para chegarmos a nos entender com os
outros. E era este fim pratico que ele visava. Platão dramaturgo inato, já
escrevera tragédias antes de entrar em contato com Sócrates. A tradição afirma
que ele as queimou todas, quando sob a impressão dos ensinamentos deste mestre,
dedicou-se à investigação filosófica da verdade. Mas, quando, após a morte de
Sócrates, resolveu manter viva, a seu modo, a imagem do mestre, descobriu na
imitação artística do dialogo socrático a missão que lhe permitiria colocar o
seu gênero dramático a serviço da filosofia. Não é só o dialogo, porem, o que
há de socrático nessa obra. A repetição estereotipada de certas teses
paradoxais características dos diálogos do Sócrates platônico e a sua
consciência com as informações de Xenofonte tornam evidente que os diálogos
platônicos também tem raízes, no que se refere ao conteúdo, no pensamento
socrático. Até onde chega, nestes diálogos, o socrático? Eis o problema. Os
informes de Xenofonte só coincidem com os de Platão num pequeno trecho, para
alem do qual nos deixa sobre brasas, com a sensação de que Xenofonte peca por
falta, enquanto, em contrapartida, Platão peca por excesso. Já Aristóteles
inclinava-se a crer que a maior parte dos pensamentos filosóficos do Sócrates
de Platão devem ser considerados doutrina deste e não daquele. Aristóteles faz
a este propósito algumas observaqções, cujo valor teremos que examinar. O
dialogo de Platão representa, segundo ele, um novo gênero artístico, uma
manifestação intermediaria entre a poesia e a prosa. É fora de duvida que isto
se refere em primeiro lugar à forma, que é a de um drama espiritual em
linguajem livre. Mas, segundo a opinião de Aristóteles sobre as liberdades que
Platão se permite na maneira de tratar o Sócrates histórico, devemos supor que
era também quanto ao conteúdo que Aristóteles considerava o dialogo platônico
uma mescla de poesia e prosa, de ficção e realidade.
Foi
Schleiermacher o primeiro a formular engenhosamente a complexidade deste
problema histórico, Tinha chegado à conclusão de que não devemos confiar
exclusivamente nem em Xenofonte nem em Platão, mas sim mover-nos
diplomaticamente, por assim dizer, entre dois personagens principais. Eis como
Schleiermacher coloca o problema: O que
é que Sócrates pode ter sido alem do que
Xenofonte nos conta dele, mas sem os traços de caráter e as máximas de vida que
Xenofonte proclama terminantemente como socráticos, e o que é que eles deve ter
sido para permitir e autorizar Platão a apresentá-lo como nos seus diálogos o
apresenta? Com certeza estas palavras não encerram nenhuma formula mágica
para o historiador; limitam-se ao esclarecer coma maior precisão possível o
campo dentro do qual devemos mover-nos com certo tato critico.
Os dados
históricos de Aristóteles sobre Sócrates são para nós tanto mais valiosos
quanto é certo que se referem todas à chamada teoria das idéias de Platão e à
relação desta com Sócrates. Este era um problema central, muito debatido na
Academia platônica, e, durante os dois decênios que Aristóteles esteve na
escola de Platão, deve-se igualmente ter debatido como freqüência o problema
das origens daquela teoria. Nos diálogos de Platão, Sócrates aparece com o
filosofo que expõe a teoria das idéias, pressupondo-a expressamente, como algo
familiar ao circulo dos seus discípulos. O problema da historicidade da
exposição platônica de Sócrates, neste ponto, tem uma importância decisiva para
a reconstituição do processo espiritual que fez brotar da socrática a filosofia
platônica. Aristóteles. Aristóteles, que, ao contrario de Platão na sua teria
das idéias, não atribui aos conceitos gerais uma existência dos fenômenos
concretos captados pelos sentidos, fornece três indicações importantes sobre a
relação que, neste ponto, existe entre Sócrates e Platão:
__Na primeira
época dos seus estudos, Platão seguira os ensinamentos de Crátilo, discípulo de
Heráclito, o qual ensinava que na natureza tudo flui e nada possui uma
consistência firme e estável. Quando conheceu Sócrates, Platão viu abrir-se
diante de si outro mundo. Sócrates circunscrevia-se inteiramente aos problemas
éticos e procurava investigar conceptualmente a essência permanente do justo,
do bom, do belo, etc. A idéia do eterno fluir de todas as coisas e a hipótese
de uma verdade estável parecem, à primeira vista, contraditórias. Platão,
porem, estava tão convencido, através de Crátilo, do fluir das coisas, que esta
convicção não sofreu a mínima quebra por parte da impressão tão funda que lhe
deve ter causado a tenaz busca de Sócrates, no sentido de encontrar um ponto
firme e estável no mundo moral do homem. Foi assim que Platão acabou por se
persuadir que ambos, Sócrates e Crátilo, tinham razão dado que se referiam a
dois mundos completamente diversos.
__Nestes
conceitos gerais aprendidos de Sócrates, Platão via agora o verdadeiro ser,
arrancado ao mundo do eterno fluir. Estes essenciais, que só captamos pelo
nosso pensamento e sobre as quais assenta o mundo do verdadeiro ser, Platão
chama de “idéias”. Segundo Aristóteles, era indubitável que com isto Platão se
elevava acima de Sócrates, que não falava das idéias nem estabelecia uma
separação entre estas e as coisas materiais.
__Há duas
coisas, segundo Aristóteles, que com justiça devem ser atribuídas a Sócrates e
que de nenhum modo lhe podem ser negadas: a determinação dos conceitos
universais e o método indutivo de investigação.
Supondo que
este ponto de vista sejam exato, ele nos permitiria deslindar em medida
considerável o que há de socrático e de platônico na figura de Sócrates que os
diálogos de Platão nos apresentam. Neste caso, a formula metódica de
Schleiermacher seria algo mais do que um postulado meramente ideal.
Efetivamente, nos diálogos que, segundo as investigações do século passado,
devem ser considerados como as primeiras obras de Platão, todas as
investigações de Sócrates assumem a forma de perguntas e respostas sobre
conceitos universais? E até o próprio Xenofonte nota expressamente, embora só
de passagem, que Sócrates desenvolvia incessantes investigações deste tipo,
esforçando-se por chegar a uma determinação dos conceitos. Isto abriria uma
porta de saída para nosso dilema – Platão ou Xenofonte – e nos permitiria
reconhecer em Sócrates o fundador da filosofia conceptual. É o que efetivamente
faz Eduard Zeller na sua historia da filosofia grega, pondo em pratica o plano
de investigação traçado por Schleiermacher. Segundo esta concepção, Sócrates
seria algo comparável ao limiar mais sóbrio da filosofia de Platão, no qual se
evitariam as audácias metafísicas deste e, fugindo à natureza para se limitar
ao campo de moral, pretender-se-ia, de certo modo, fundamentar teoricamente uma
nova sabedoria da vida orientada para o aspecto pratico.
Também os
eruditos da escola escocesa vêem em Platão, mas estes em todos os seus diálogos
socráticos, o único expositor congenial do seu mestre. Xenofonte é a encarnação
do burguês, incapaz de compreender qualquer coisa da importância de Sócrates.
No fundo, também não tem outra aspiração senão completar, tal como ele
interpreta, o que os outros disseram a cerca do mestre.
Sócrates, educador
Toda a exposição anterior nos fornece os marcos dentro dos quais, nas
paginas seguintes, estudaremos Sócrates: a sua figura torna-se o eixo da
historia da formação do homem grego pelo seu próprio esforço. Sócrates é o mais
espantoso fenômeno pedagógico da historia do Ocidente. Quem pretender descobrir
no campo da teoria e do pensamento sistemático a sua grandeza terá de lhe
atribuir demais, à custa de Platão, ou então duvidara radicalmente da sua
importância pessoal. Aristóteles tem razão quando considera substancialmente
obras de Platão, na sua estrutura teórica, a filosofia que este põe na boca do
seu Sócrates. Mas Sócrates é algo mais do que aquilo que resta como
“apontamento filosófico”, depois de se descontar da imagem que Platão traça de
Sócrates a teoria das idéias e o resto do conteúdo dogmático. É numa dimensão
inteiramente distinta que a apóia a importância desta figura. Não vem continuar
nenhuma tradição cientifica nem pode ser derivada de nenhuma constelação
sistemática na historia da filosofia. Sócrates é o homem do momento, num
sentido absolutamente elementar. À sua volta sopra uma aragem verdadeiramente
histórica. É a partir da camada media da burguesia Ática, daquela camada do
povo, imutável no mais intimo do seu ser, da consciência vigorosa e animada
pelo temor de Deus, para cujo forte sentir haviam apelado outrora os seus
aristocráticos chefes, Sólon e Ésquilo, é a partir desta camada que ele ascende
aos píncaros da formação espiritual. Mas agora esta camada fala pela boca de um
dos seus próprio filhos, da progênie do carteiro e da parteira do demos de
Alopeke. Sólon e Ésquilo tinham aparecido no momento oportuno para assimilar os
germes do pensamento, de ação dissolvente, que havia sido importado do
estrangeiro; e chegaram a dominá-lo em toda a sua profundidade interior, de tal
modo que, em vez de corrompê-las, ele contribui para fortificar as forças mais
vigorosas do caráter Ático. A situação espiritual, quando surgiu Sócrates,
apresenta uma certa analogia com esta. A Atenas de Péricles, que como cabeça de
um grande império vê-se inundada por influencias de todo o tipo e proveniência,
está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu
brilhante domínio em todos os campos da arte e da vida.Todos os valores
herdados se esfumam num abrire fechar de olhos, ao sopro de uma buliçosa
loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no
campo da moral que nesta altura o Estado e a sociedade são minados. É a segunda
vez que na historia da Grécia o espírito Ático invoca as forças centrípetas da
alma helênica contra as suas forças centrifugas, opondo ao cosmos físico das
forças naturais em luta, criação do espírito investigador da Jônia, uma ordem
dos valores humanos. Sólon descobrira as leis naturais da comunidade social e
política. Sócrates embrenham-se na própria alma, a fim de penetrar no cosmos
moral.
O Estado ateniense, que naquela época teve de levar à máxima tensão ao
seu poder, a fim de consolidar na Grécia a posição dominante que acabava de
conquistar, exigia dos seus cidadãos grandes sacrifícios. Sócrates combateu
mais de uma vez e distingui-se no campo de batalha. No processo movido contra
ele, foi o seu exemplar comportamento militar o que se destacou em primeiro
plano, para compensar as deficiências da sua carreira política. Sócrates era um
grande amigo do povo, mas era considerado mau democrata. Não simpatizava com a
intervenção política ativa dos Atenienses nas assembléias do povo ou como
jurados nos tribunais da justiça. Só uma vez agiu publicamente como membro do
senado e presidente da assembléia popular, na qual, sem previa resolução, a multidão
condenou à morte, por sentença em bloco, os chefes da batalha vitoriosa das
Arginusas, por não terem salvo, devido à tempestade, os náufragos que lutavam
com as ondas. Foi Sócrates o único dos prítanes que se negou a autorizar a
votação ilegal.
Sócrates viveu numa época
Segundo os dados do Fédon, foi cheio de esperanças que se entregou na
leitura do livro de Anaxágoras.
Não enxergamos na sua vida nenhum período que possamos considerar
específico de um filosofo da natureza. A filosofia da natureza não tinha
resposta para o problema que Sócrates guardava dentro de si e do qual tudo
dependia, na sua opinião. Podia, por isso, deixá-la de lado. E a segurança
inabalável com que desde o primeiro instante segue o seu caminho é o sinal da
sua grandeza.
No entanto, a atitude negativa de Sócrates ante a natureza aspecto
constantemente destacado desde Platão e Aristóteles – facilmente nos leva a
perder de vista outra coisa. Já na prova, exposta por Xenofonte, sobre a
adequação do cosmos a um fim, revela-se que Sócrates, em vez da antiga
filosofia da natureza, adota um pouco de vista antropológico, ao estudá-la: são
o homem e a estrutura do corpo humano o ponto de partida das suas conclusões.
E, se foram tiradas da obra de Diógenes as observações que contribuem para
isso, têm ainda o interesse de este filosofo da natureza ser também um medico
famoso. Por isso, tal como em alguns outros jovens filósofos da natureza –
basta recordar o nome de Empédocles -, a fisiologia humana ocupa nele um lugar
maior do que em nenhuma das antigas teorias pré-socráticas da natureza. Isto
correspondia, naturalmente, ao interesse de Sócrates e à sua maneira de colocar
o problema. Deparamos aqui com o lado positivo da sua atitude perante a
“ciência da natureza” do seu tempo, uma faceta frequentemente se ignora.
O que os antigos fisiólogos denominavam conhecimento era aos olhos de
Sócrates uma concepção do mundo, isto é, uma grandiosa fantasmagoria, uma
charlatanice sublime. São completamente irônicas as alusões que de vez em
quando ele faz àquela sabedoria inacessível para ele. Como acertadamente
observa Aristóteles, ele procede de modo exclusivamente indutivo. O seu método
tem algo da sobriedade do método empírico dos médicos.
Para conhecer
a posição que Sócrates ocupava na filosofia antiga e a sua feição
antropocêntrica, é importante não perder de vista a sua relação com as grandes
forças espirituais do seu tempo. Abundam surpreendentemente nele as referencias
ao exemplo da medicina. E não causais: relacionam-se com a estrutura essencial
do seu pensamento, com a consciência de si próprio e com o ethos de toda a sua
atuação. Sócrates é um autentico medico, a ponto de, segundo Xenofonte, não se
preocupa menos com a saúde física dos seus amigos do que com o seu bem-estar
espiritual. Mas é, sobretudo o médico-empírica. Era uma atitude explicável,
tendo em vista a concepção teológica da natureza e do homem, que pela primeira
vez surgiu conscientemente na medicina da época e que a partir daí foi ganhando
precisão cada vez maior até encontrar a sua expressão filosófica definitiva na
concepção biológica do mundo, de Aristóteles. È certo que a busca socrática da
essência do bom nasce de uma colocação do, problema absolutamente peculiar a Sócrates,
não aprendida por ele em parte alguma e que, aos olhos da filosofia
profissional da natureza daquele tempo, deveria ser considerada um problema
diletante,a que não sabe retorquir o cepticismo heróico do investigador físico.
Este diletantismo encerra, no entanto uma indagação criadora e não deixa de ser
importante chegar, a partir da medicina de um Hipocrates e de um Diógenes, à
conclusão de que era naquele problema que encontrava formulação oportuna a mais
profunda procura de todo o seu tempo.
Há uma certa
analogia interior entre o dialogo socrático e o ato de se desnudar para ser
examinado pelo medico ou pelo ginasta, antes de se lançar no combate, na arena.
Platão põe esta comparação na boca do próprio Sócrates. O ateniense daqueles
tempos sentia-se mais no seu meio no ginásio do que entre as quatro paredes da
sua casa, onde dormia e comia. Era ali, sob a transparência do céu da Grécia,
que diariamente se reuniam novos e velhos para se dedicarem ao cultivo do
corpo. Os pedaços de lazer dos intervalos eram dedicados à conversa. Não
sabemos se era banal ou elevado o nível médio daquelas conversas; o que é
certo, porem, é que as mais famosas escolas filosóficas do mundo, a Academia e
o Liceu, têm os nomes de dois famosos ginásios de Atenas. Quem tinha pra dizer
ou para perguntar alguma coisa que considerava de interessante geral, mas para
a qual não eram locais adequados nem a assembléia do povo nem o tribunal,
corria ao ginásio para dizê-la aos seus amigos e conhecidos. Era um encanto
constante a tensão espiritual, que se tinha certeza de ali encontrar. Para
variar, freqüentavam-se diversos estabelecimentos deste tipo, e em Atenas havia
muitos ginásios grandes e pequenos, públicos e privados.
Os ginásios
eram locais mais importantes do que quaisquer outros, pois era neles que as
pessoas se reuniam de maneira regular. À parte a sua peculiar finalidade, a
intensidade do comercio espiritual que fomentavam entre as pessoas levava a
desenvolverem-se neles certas qualidades que constituíam o terreno mais
propicio a qualquer sementeira de novos pensamentos e aspirações. Reinava neles
o lazer e a tranqüilidade. Nada de especial podia florescer neles durante muito
tempo, nem era possível lá dedicar-se aos negócios. Em contrapartida, era para
os problemas humanos de caráter geral que a atenção se voltava. Mas não
interessava apenas o conteúdo: podia ali expandir-se, em toda a sua força
flexível e suave elasticidade, o espírito, certo de deparar com o interesse de
um circulo de ouvintes em tensão critica, surgiu assim uma ginástica do
pensamento que logo teve tantos partidários e admiradores como a do corpo, e
não tardou a ser reconhecida como o que esta já vinha sendo havia muito: como
uma nova forma da Paidéia. A “dialética” socrática era uma planta indígena
peculiar a antítese mais completa do método educativo dos sofistas, que tinha
aparecido simultaneamente com aquela. Os sofistas são mestres ambulantes vindos
de fora, nimbados de um halo de celebridade inacessível e rodeados de um
reduzido circulo de discípulos. É por dinheiro que ministram os seus
ensinamentos. Estes versam sobre disciplinas ou artes especificas e dirigem-se
a um publico seleto de filhos de cidadãos abastados, desejosos de se instruírem.
O palco onde, em longo solilóquio, brilham os sofistas é a casa particular ou a
aula improvisada. Em contrapartida, Sócrates é um cidadão simples, a quem todos
conhecem. A sua ação passa quase despercebida; a conversa com ele agarra-se
quase espontaneamente, e como sem querer, a qualquer tema de ocasião. Não se
dedica ao ensino nem tem discípulos; assim o afirmar, pelo menos. Só tem
amigos, camaradas. A juventude sente-se fascinada pelo fio cortante daquele
espírito, ao qual não há nada que resista. Ele é para essa juventude ateniense
um espetáculo constantemente renovado, a que se assiste com entusiasmo, cujo
triunfo se celebra e que se procura imitar, fazendo por examinar do mesmo modo
as pessoas, tanto na própria casa como no circulo dos amigos e conhecidos. É em
torno de Sócrates que se agrupa o escol espiritual da juventude Ática.
O que é, pois,
essa filosofia cujo protótipo abraça em defesa daquele? Platão expõe em muitos
dos seus diálogos a essência de, na sua exposição, conserva-se sempre fiel à
essência desta “filosofia”. Pouco a pouco, tende a parecer neles cada vez mais
em primeiro lugar o resultado das investigações que Sócrates realiza com os
seus interlocutores; mas Platão devia ter a consciência de, na sua exposição,
conserva-se sempre fiel à essência do espírito socrático. Esta essência devia
manter-se incessantemente fecunda através de todas estas investigações.
O poder a serviço do qual o filosofo está ñ
tem valor apenas para embelezar a vida e mitigar a dor,mas também para se
sobrepor ao mundo. Logo em seguida a confissão “enquanto viver deixarei jamais
de filosofar”, vem um exemplo da sua maneira de falar e ensinar. E, para
compreendermos o seu conteúdo, também nos devamos partir da forma que Platão
nos apresenta como modelo, nesta e em muitas outras passagens.
Platão reduz
aqui a duas formas fundamentais a peculiar maneira socrática: a exortação
(protreptikos) e a indagação (elenchos). Ambas são elaboradas na forma de
perguntas. Estas enxertam-se na forma de parênese mais antiga, que, através da
tragédia, podemos seguir até a epopéia. Na conversa mantida no pátio da casa do
Sócrates, com que principia o Protágoras de Platão, deparamos mais uma vez com
a justa posição daquelas duas formas socráticas de discorrer.
Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de
vos exortar a vos e de instruir quem
quer que eu encontre, dizendo-lhe à minha maneira habitual: querido amigo, és
um ateniense, um cidadão da maior e mais famosa cidade do mundo, pela sua
sabedoria e pelo seu poder; e não te envergonhas de velar pela tua fortuna e
pelo seu aumento constante, pelo teu prestigio e pela tua honra, sem em
contrapartida te procurares em nada com conheceres o bem e a verdade e com tornares
a tua alma o melhor possível? E, se algum de vos duvidar disto asseverar q com
tal se preocupa, não o deixarei em paz nem seguirei tranquilamente o meu
carinho, mas interoogá-lo-ei, examiná-lo-ei e refutá-lo-ei; e se e se me
parecer que não tem qualquer Arete, mas que apenas a aparente, invectivá-lo-ei,
dizendo-lhe que sente o menor respeito pelo que há de mais respeitável e o
respeito mais profundo pelo que menos respeito merece. E farei isto com os
jovens e com os anciãos, com todos os que encontrar, com os de fora e com os de
dentro; mas sobretudo com os homens desta cidade, pois são por origem os mais
próximos de mim. Pois ficais sabendo que Deus assim mo ordenou, e julgou que
até agora não houve na nossa cidade nenhum bem maior para vós do que este
serviço que eu presto a Deus. É que todos os meus passos se reduzem a andar por
aí, persuadindo novos e velhos a não se preocuparem nem tanto em primeiro lugar
com o seu corpo e com a sua fortuna, mas antes com a perfeição da sua alma.
A “filosofia”
que Sócrates aqui professa não é um simples processo teórico de pensamento: é
ao mesmo tempo uma exortação e uma educação. A serviço destes objetivo estão
ainda o exame e a refutação socrática de todo o saber aparente e de toda a
excelência (arate) meramente imaginaria. Este exame não é mais que uma parte do
processo total, como Sócrates o descreve. Uma parte que parece ser, sem duvida
o aspecto mais original daquele processo. Mas antes de penetrarmos na essência
deste dialético “exame do Homem”, que costuma ser considerado o essencial da
filosofia socrática por encerrar o seu elemento teórico mais vigoroso, devemos
deter-nos nas palavras da exortação preliminares. A comparação estabelecida
entre o conteúdo material da vida do homem de negócios, ávido de dinheiro, e a
superior exigência de vida proclamada por Sócrates baseia-se na idéia da
preocupação ou do cuidado consciente do Homem em relação aos bens que mais
precisa. Sócrates exige que, em lugar de se preocupar com os ganhos, o Homem se
preocupe com a alma (UVXNSOEPAREIA). Esse conceito, que aparece no começo do
dialogo, surge outra vez no seu final.
Num belo
ensaio, Burnet investigou a evolução do conceito de alma através da historia do
espírito grego, demonstrando que o novo sentido que Sócrates da a esta palavra
não se pode explicar nem a partir do eidolon épico de Homero, a sombra de
Hades, nem da alma-sopro da filosofia
Jônica, nem do dáimon-alma dos órficos, nem da psyche da tragédia antiga. Eu
partindo, como fiz acima, da analise da forma característica do mundo socrático
de se exprimir, logo tive de chegar à mesma conclusão. Uma forma como a de
exortação socrática só podia brotar daquele peculiar pathos valorativo que em
Sócrates a palavra “alma” tem implícito. Os seus discursos protépticos são a
forma primitiva da diatribe filosófico-popular da época helenística, a qual por
sua vez contribui para modelar a ‘predica” cristã. No entanto, não se trata
aqui só da transferência e da continuidade da forma literária externa. Neste
sentido, estas conexões foram já frequentemente estudadas pela filogia
anterior, que seguiu através da evolução inteira a incorporação dos vários
motivos concretos no discurso exortativo. O que serve de base às três fases das
chamadas formas discursivas é esta fé: de que servira ao homem ganhar o mundo
inteiro, se isso redunda em detrimento de sua alma? É com razão que Adolf
Harnack, na sua Wessen des Christentums,
caracteriza essa fé no valor infinito da alma de cada homem como um dos três
pilares fundamentais da religião cristã. Mas, antes de o ser desta religião,
era já um pilar fundamental da “filosofia” e da educação socráticas. Sócrates
prega e converte, Vem “salvar a vida”.
A filosofia
não é senão a expressão racional consistente da estrutura interna fundamental
do homem grego, tal como podemos a seguir através dos séculos, nos supremos
representantes deste gênero. É indubitável que a religião dionisíaca e órfica
dos Gregos, bem como a dos mistérios, apresentam certas “fases preliminares” e
analogias; mas não se pode explicar este fenômeno dizendo que as formas
socráticas do discurso e da
representação derivam de uma seita religiosa que se pode afastar a seu
bel-prazer como estranha aos gregos, ou aceitar como oriental. Tratando-se de
Sócrates, o mais sóbrio dos homens, seria verdadeiramente absurdo pressupor a
existência de uma influencia eficaz destas seitas orgiásticas nas camadas
irracionais da sua alma. Pelo contrario, aquelas seitas e aqueles cultos são
nos Gregos as únicas formas de uma antiga devoção popular que denotam certos
indícios importantes e uma experiência interior individual, com a atitude
individualista da vida e a forma paralelas, em parte por si próprias, como
fruto de situações semelhantes, e em parte apoiando-se simplesmente, quando à
expressão, nas formas religiosas correntes, as quais aparecem na linguagem
filosófica plasmadas em metáforas e que por isso mesmo são formas desnaturadas.
Dois fatores
confluem na representação socrático do mundo interior como parte da “natureza”
do homem: o habito multissecular do pensamento e os dotes mais íntimos do
espírito helênico. E á aqui que nos surge o que distingue a filosofia socrática
da concepção crista da alma. A alam de que Sócrates fala só pode ser
compreendida com acerto se é concebida em conjunto com o corpo, mais ambos como
dois aspectos distintos da mesma natureza humana. No pensamento de Sócrates, o
psíquico não se opõem ao físico. Em Sócrates, o conceito de physis da antiga
filosofia da natureza engloba o espiritual, e com isso se transforma
essencialmente. Sócrates não pode crer que só o Homem tenha espírito, que, por
assim dizer, ele o haja arrebatado como monopólio seu. Uma natureza em que o
espiritual ocupe um lugar próprio tem de ser, por principio, capaz de
desenvolver uma força espiritual. Mas, assim como pela existência física. Por
assim dizer, a alma aparece ao olhar espiritual como algo de plástico no seu
próprio ser, e portanto acessível à forma e a ordem. Tal como o corpo, faz
parte dos cosmos; alem disso, é por si mesma um cosmos, embora para a
sensibilidade grega não pudesse haver a menor duvida de que o principio que se
manifesta nestes distintos campos da ordem é sempre, essencialmente, um e o
mesmo. É por isso que também se tem de tornar extensiva ao que os Gregos
designam por arete a analogia da alma com o corpo.
Para Sócrates, “o bom”, é sem duvida,
também aquilo que se faz ou que fazer por causa de si próprio, mas ao mesmo
tempo Sócrates reconhece nele o verdadeiramente útil, o salutar, e também,
portanto, o que dá prazer e felicidade, uma vez que é ele que leva a natureza
do Homem à realização do seu ser.
A nota nova
trazida por Sócrates é a de que não é através da expansão e satisfação da sua
natureza física, por mais restrita que esteja por vínculos e exigências
sociais, que o homem pode alcançar essa harmonia com o ser, mas sim pelo
domínio completo sobre si próprio, de acordo com a lei que ele descobriu no
exame da sua própria alma.
A experiência
da alma como fonte dos supremos valores humanos deu à existência aquele jeito
de interioridade, característico dos últimos tempos da antiguidade. A virtude e
a felicidade deslocaram-se, assim, para o interior do Homem. Um traço
significativo da consciência com que Sócrates dava este passo, nós o temos na
sua insistência para que as artes plásticas não se contentassem apenas com
produzir a beleza corpórea, mas aspirassem também a transmitir a expressão do
ser moral (áronineioqai to tñs uvxns noos).
O fato de este
cuidado da alma ser qualificado como “serviço de Deus”, de acordo com as
palavras que na Apologia Platão põe na boca de Sócrates, não quer dizer que
tenha qualquer sentido religioso, no sentido usual do termo. Pelo contrario, o
caminho que ele segue é, do ponto de vista cristão, um caminho demasiado
naturalista e laico. Antes de mais nada, este cuidado da alma não se traduz de
modo nenhum em descuido do corpo. Isto seria impossível, dado que se tratava de
um homem que aprendera do medico do corpo
a necessidade de submeter a “tratamento” especial a alma tanto a sã quanto a
enferma. A sua descoberta da alma não significa a separação dela e do corp,
como tantas vezes se afirmam em desabono da verdade, mas antes o domínio da
primeira sobre o segundo. Mens sana in corpore sano é uma frase que corresponde
a um autentico sentido socrático. Sócrates não desleixava o seu próprio corpo
nem os que o faziam. Ensinava os amigos a manterem o corpo são por meio de
endurecimento, e conversava demoradamente com eles sobre a dieta mais
conveniente para consegui-lo. Repelia a abundancia, por entender que era nociva
ao cuidado da lama. Por sua vez, levava uma vida de simplicidade espartana.
É Sócrates que
reestrutura a conexão da cultura espiritual com a cultura moral.
Tal como os
sofistas, em cujo ensino aparecem também estes temas, Sócrates partiu muitas
vezes de certas passagens dos poetas, principalmente de Homero, para com base
neles desenvolver ou ilustrar os conhecimentos políticos.
Os principais
testemunhos que possuímos são concordes em afirmar que Sócrates gostava também
de abordar assuntos militares, quando eles caiam no âmbito dos problemas
ético-politicos.
O problema da
educação dos governantes, que Xenofonte situa em primeiro plano, constituiu o
tema de um longo dialogo com o filosofo posterior hedonismo, Aristipo de
Cirene. Manifesta-se neste dialogo, com alegre colorido, a antítese espiritual
que desde o primeiro instante devia claramente surgir entre o mestre e o
discípulo. A premissa fundamental da qual Sócrates parte, neste dialogo, é a de
que toda a educação deve ser política. Tem necessariamente de educar o Homem
para uma de duas coisas: para governar ou para ser governado. Já na alimentação
se começa a marcar a diferença entre estes dois tipos de educação. O Homem que
é educado para governar tem de aprender a antepor o cumprimento dos deveres
mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome
e à sede. Tem de se acostumar à fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir
pouco, a deitar-se tarde e a se levantar cedo. Nenhum trabalho o deve assustar,
por árduo que seja. Não deve deixar atrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos.
Tem de se endurecer par o frio e par o calor. Não deve preocupa-se, se tiver de
acampar a céu aberto. Quem não é capaz de tudo isso fica condenado de figurar
entre as massas governadas. Sócrates designa com a palavra grega askessis,
equivalente à inglesa training, esta educação para a abstinência e para o
autodomínio.
Foi graças a
Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central da nossa
cultura ética. Esta idéia concebe a conduta moral como algo que brota do
interior do próprio individuo e não como a mera submissão exterior à lei, tal
qual a exigia o conceito tradicional da justiça. Mas, como a concepção ética
dos Gregos parte da vida coletiva e do conceito político de domínio, é pela
transferência da imagem de uma polis bem governada para a alma do Homem que ele
concebe o processo interior do Homem, temos de ter presente a dissolução da
autoridade exterior da lei, na época dos sofistas. Foi ela que abriu caminho à
lei interior.
A enkrateia
não constitui uma virtude especial, mas, como acertadamente diz Xenofonte, a
“base de todas a s virtudes” pois equivale a emancipar a razão da tirania da
natureza animal do homem e a estabilizar o império legal do espírito sobre os
instinto. E, como para Sócrates é o espiritual o verdadeiro eu do Homem,
podemos traduzir o conceito de enkrateia, sem a ele dar nenhuma conotação nova,
pela expressão, nele inspirada, “autodomínio”.
O principio
socrático do domínio interior do Homem por si próprio tem implícito um novo
conceito da liberdade. É digno de nota que o ideal da liberdade, que impera
como nenhum outro da época da revolução Francesa para cá, não desempenhe
nenhuma papel importante no período clássico do helenismo, embora não esteja
ausente desta época a idéia da liberdade, como tal. É à igualdade (to ioov), em
sentido político e jurídico, que fundamentalmente aspira a democracia grega. A
“liberdade” é conceito polivalente demais para a caracterização desta
exigência. Tanto pode indicar a independência do individuo como a de todo o
Estado ou da nação. É indubitável que de vez em quando se fala de uma
constituição livre ou se qualificam como livres os cidadãos do Estado em que essa
constituição vigora, mas com isso apenas se quer significar que não são
escravos de ninguém. Com efeito, nesta época, a palavra “livre” (eyevoepos) é
primordialmente o que se põe à palavra escravo (govyos).
O conceito
grego da liberdade, no sentido da época clássica, é um conceito positivo do
direito político. Baseia-se na premissa da escravatura como instituição
consolidada, mas ainda, como a base sobre a qual repousa a liberdade da
população citadina. A palavra eyevoepios “liberal, derivada daquele conceito,
designa a atitude própria do cidadão livre, tanto no modo de gastar o dinheiro
ou no modo de se exprimir, como no decoro exterior da sua maneira de viver,
todas elas atitudes que não se coadunariam com um escravo. Artes liberais são
aquelas que fazem parte da cultura liberal, que é a Paidéia do cidadão livre,
em oposição à incultura a mesquinhez do homem não-livre e do escravo. Foi
Sócrates que fez a liberdade um problema ético, problema logo desenvolvido com
intensidade diferente pelas escolas socráticas. Com certeza nem se quer
Sócrates procede a uma critica demolidora da divisão social dos homens da polis
em livres e escravos. Todavia, mesmo sem tocar nesta divisão, ela perde muito
do seu valor profundo, pelo fato de Sócrates a transferir para a órbita do
interior moral do Homem. De par com o desenvolvimento do conceito de “domínio
de si próprio”, tal qual o expusemos acima como sendo o império da razão sobre
os instintos, vai-se formando agora um novo conceito de liberdade interior.
Considera-se livre o homem que representa a antítese daquele que vive escravo
dos seus próprios apetites.
A sua
autarquia está completamente desprovida da afeição apolítica, do retraimento e
da marcada indiferença diante de tudo o que venha do exterior. Sócrates vive
ainda plenamente dentro da polis. E o conceito político engloba ao mesmo tempo
para ele toda a forma de comunidade humana. Situa o Homem dentro da vida
familiar e do circulo dos parentes e amigos. São estas as formas naturais e
mais estreitas da comunidade da vida humana, sem as quais não poderíamos
substituir. É por isso que Sócrates torna o ideal da concórdia na vida
política, onde aquele conceito se começou a formar, extensivo ao terreno da
família, e assinala a necessidade de cooperação dos órgãos do corpo humano, as
mãos, os pés e as demais partes do Homem, nenhuma das quais pode existir isoladamente.
Um bom amigo
constitui um bem do mais alto valor em todas as situações da vida. Mas o valor
dos amigos é tão diverso como o preço dos escravos. Quem sabe disso coloca-se
também, por sua vez, o problema do que ele representara para os seus amigos, e
procurara fazer subir, na medida do possível, este valor.
A decomposição
interna da sociedade e de todas as relações humanas, mesmo as familiares –
conseqüência desagregação política cada vez mais funda e da ação dos sicofantas
– acentua até o insuportável a insegurança do individuo isolado. O que, porem,
faz de Sócrates um mestre de uma nova arte da amizade é a consciência de que é
na utilidade externa de uns homens para os outros que se deve procurar a base
de toda a amizade verdadeira, mas antes no valor interior do Homem. É certo que
a experiência ensina que ate entre os homens bons e que aspiram a fins elevados
nem sempre reinam a amizade e a benevolência, mas, ao contrario, impera com
grande freqüência um antagonismo mais feroz que entre as criaturas pouco
dignas.
E, no entanto
a amizade rompe por entre todos estes obstáculos e cria laços entre os melhores
homens, que prefere esta fortuna interior a uma maior soma de dinheiro ou de
prestigio e põem desinteressadamente os seus bens e serviços à disposição dos
seus amigos, ao mesmo tempo em que desfrutam e se regozijam por participar das
poses e dos serviços dos amigos.
A amizade
começa pelo aperfeiçoamento da própria personalidade.
Chamam pela
Paidéia a grande capacidade de assimilação, a boa memória e a ânsia de saber
destes homens. Sócrates está convencido de que, se lhes fosse dada a educação
adequada, eles atingiram por eles próprios as maiores alturas e fariam felizes,
ao mesmo tempo, os outros homens. Àqueles que desprezam o saber e tudo confiam
as suas qualidades naturais faz compreender que são estas as que mais precisam
ser cultivadas, tal como os cavalos e cães da melhor qualidade, que a natureza
dotou de raça mais apurada e de melhor temperamento, precisam ser amestrados e
disciplinados com o maior rigor desde a nascença; é que se não fossem treinados
e disciplinados acabariam por se tornar piores que os outros. São precisamente
as naturezas mais bem-dotadas que precisam desenvolver o seu discernimento e o
seu juízo critico, para poderem dar os frutos correspondentes ao seu talento. E
aos ricos, que julgam pode desprezar a cultura, abre os olhos para que vejam a
inutilidade de uma riqueza que não se sabe empregar ou se emprega para meu fim.
Em
substituição do estudo livresco, outro caminho se abre a iniciação da “virtude
política”, caminho que parte da consciência da própria ignorância e do
conhecimento de si próprio, isto é, das suas próprias forças.
Aristóteles
diz expressamente que a definição dos conceitos é uma conquista de Sócrates, e
Xenofonte sustenta a mesma afirmação. Isto se fosse exato, acrescentaria um
novo traço essencial à imagem anteriormente delineada: Sócrates apareceria como
o criador da lógica. É neste dado que se baseia a antiga opinião que apresenta
Sócrates como o fundador da filosofia dos conceitos. Mas, recentemente,
Heinrich Maier pôs em duvida o valor dos testemunhos de Aristóteles e
Xenofonte, julgado poder provar que se baseiam simplesmente nos diálogos de
Platão que, se limitavam a expor a sua própria teoria. É Platão que, baseado
nas tentativas de um novo conceito do
saber que descobre em Sócrates, elabora a lógica e o conceito; segundo este
autor, Sócrates foi apenas o pregador, o profeta da autonomia moral.
A tradição que
chegou até nos é concorde
O tema do
dialogo socrático é a vontade de chegar com outros homens a uma inteligência,
que todos devem atacar, sobre um assunto que para todos encerra um valor
infinito: o dos valores supremos da vida. Para alcançar este resultado,
Sócrates parte sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral
aceitam. Esta aceitação serve de “base” ou hipótese, após o que se desenvolvem
as conseqüências quem dela resultam, confrontando-as com outros dados da nossa
consciência, considerados fatos estabelecidos. Um fator essencial deste
progresso mental dialético é a descoberta das contradições em que incorremos ao
aceitar determinadas teses. Estas contradições obrigam-nos a analisar uma vez
mais a exatidão dos dados aceitos como verdadeiros, para revê-los ou abandoná-los,
conforme os casos. O objetivo em vista é reduzir o valor geral e supremo os
vários fenômenos do valor. Todavia, não é das suas investigações sobre o
problema deste “bem em si” que Sócrates parte, mas antes de uma virtude
concreta qualquer tal qual a linguagem caracteriza por meio de qualificações
morais especiais, como, por exemplo, o que dominamos valente ou justo.
O dialogo
socrático não pretende exercitar nenhuma arte lógica da definição sobre
problemas éticos, mas é simplesmente o caminho, o “método” do logos para chegar
a uma conduta reta. Nenhum dos diálogos socráticos de Platão chega a definir
realmente o conceito moral que nele se investiga; mas ainda, existiu por muito
tempo a opinião geral de que nenhum destes diálogos chega realmente a um
resultado. Mas há de fato um resultado, que é visível, quando se comparam
vários diálogos os respectivos desenvolvimentos, de modo a ficar-se em
condições de captar o que encerram de típico. Todas estas tentativas para
“determinar” a essência de uma dada virtude desembocam, por ultimo, na
consciência de que tal essência tem necessariamente de consistir num saber, num
conhecimento.
O conhecimento
do bem, que Sócrates descobre na base de todas e cada uma das chamadas virtudes
humanas, não é uma operação da inteligência, mas antes como acertadamente
Platão compreendeu, a expressão consciente de um ser interior do Homem. Tem a
sua raiz numa camada profunda da alma, em que já não se podem separar, pois são
essencialmente uma e a mesma coisa, a penetração do conhecimento e a posse do
conhecido. A filosofia platônica é a tentativa de descer a este novo abismo do
conceito socrático do saber e esgotá-lo. Para Sócrates, não refuta a sua tese
do saber como virtude o fato de a grande massa dos homens invocar contra ela a
sua experiência de que nem sempre coincidem o conhecimento do bem e o
comportamento. Esta experiência prova apenas que o verdadeiro saber não abunda.
O próprio Sócrates não se gaba de possuí-lo. Mas, com a prova convincente da
ignorância do Homem que julga saber, abre um caminho para o conceito do saber é
para Sócrates uma verdade da firmeza absoluta, pois se demonstrar ser ela a base
de todo o pensamento e de toda conduta moral, assim que indagamos as premissas
destes. E a tese do saber como virtude já não constitui para os seus discípulos
um simples paradoxo, como a principio se julgou, mas a descrição da suprema
capacidade da natureza humana, que em Sócrates se torna realidade e tinha,
portanto, existência.
A meta da vida
é aquilo que a vontade quer pela sua própria natureza: o bom.
A verdadeira
essência da educação é dar ao Homem condições para alcançar o fim autentico da
sua vida. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com
phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos de uma
chamada cultura superior. Só pode alcançar o seu objetivo ao longo de toda a
vida do homem; de outro modo não alcança. Isto faz mudar o conceito de essência
da Paidéia. A cultura em sentido socrático converte-se na aspiração a uma
ordenação filosófica consciente da vida, que se propõe cumprir o destino
espiritual e moral do Homem. O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. A
cultura em sentido socrático converte-se na aspiração a uma ordenação
filosófica consciente da vida, que se propõe cumprir o destino espiritual e
moral do homem. O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. Esta é o seu
único patrimônio verdadeiro. Como todos os socráticos são unânimes nesta
concepção, o seu autor deve ter sido Sócrates, ainda que ele afirmasse de si
próprio que não sabia “educar os homens”. Poderíamos reproduzir numerosas
citações, onde se poderia inferir que, com a matiz socrático, o conceito e o
sentido da Paidéia se ampliam e aprofundam interiormente, e que o valor deste
bem para o Homem é exaltado até o Maximo.
A educação
para a virtude política que ele pretende instaurar pressupõe antes de tudo
restauração da polis no seu sentido moral interior. É certo que Sócrates, ao
contrario de Platão, não parece partir fundamentalmente da idéia de que os
Estados atuais não têm remédio. Não se sente ainda, naquilo que o seu ser tem,
mas é totalmente um cidadão de Atenas. Mas foi dele só dele que Platão recebeu
a idéia de que o renascimento do estado não se podia conseguir pela simples
implantação de um forte poder exterior, mas tinha de começar pela consciência
de cada um, como hoje diríamos, ou, para usar a linguajem dos gregos, pela sua
alma. Só desta fonte interior pode jorrar, purificada pela investigação do
logos, a verdadeira norma obrigatória e irrecusável para todos.
Neste sentido,
é completamente indiferente a Sócrates que se chama Sócrates e seja filosofo de
profissão o homem que ajudar ele a esclarecera esta norma. Quantas vezes ele
insiste em que não é ele, Sócrates, mas sim o logos quem diz isto ou aquilo! A
mim podeis refutar-me – diz -, não a ele porem. No fundo, o conflito com o
Estado nasce para a filosofia troca a herança de Tales pelo legado de Sólon. Ao
por nas mãos da filosofia o certo do seu Estado ideal, Platão compreendeu e
procurou eliminar a necessidade deste conflito entre o estado, no qual reside o
poder, e o filosofo, que investiga a norma suprema do comportamento. Mas o
Estado onde Sócrates vive não é nenhum Estado ideal. Sócrates foi a vida
inteira o simples cidadão de uma democracia que dava a qualquer outro o mesmo
direito que dava a ele de se manifestar sobre os mais altos problemas do bem
publico. Era por isso que ele tinha de considerar recebida de Deus e só d’Ele a
sua missão especial.
Fala do
“cuidado da alma” que prega tanto aos conterrâneos como aos estrangeiros, mas
acrescenta: As minhas predicas eram
dirigidas, sobretudo aos mais chegados a mim pelo nascimento. Não é a
“humanidade” que o seu “serviço de Deus” se consagra, mas sim à sua polis. É
por isso que ele não escreve, mas limita-se a falar com os homens presentes em
carne e osso; é tambem por isso que ele não professa teses abstratas, mas se
põe de acordo com os seus condições a respeito de algo comum, que serve de
ponto de partida para toda a conversação desta natureza e cuja raiz se situa na
origem e pátria comuns, no passado e na historia, na lei e na constituição
política comum que dá conteúdo concreto ao universal que o seu pensamento
procura. O pouco apreço pela ciência e pela erudição, o gosto pela dialética e
pelos debates em torno aos problemas do valor são características atenienses,
tanto quanto o sentido d Estado, dos bons costumes, do temor de deus, se deixar
para trás a charis espiritual que paira sobre tudo.
Sócrates é um
dos últimos cidadãos no sentido da antiga polis grega, e ao mesmo tempo a
encarnação e suprema exaltação da nova forma da individualidade moral e
espiritual. Ambas as coisas nele unidas sem compromissos. A primeira aponta
para um grande passado, a segunda para o futuro. É, de fato, um fenômeno único
e peculiar na historia do espírito grego. É da comunidade e da dualidade de
aspirações destes dois elementos integrantes do seu ser que dimana a usa idéia
ético-político da educação. É isto que lhe da educação. É isto que lhe dá sua
profunda tensão interior, o realismo do seu ponto de partida e o idealismo da
sua meta final. Aparece pela primeira vez no Ocidente o problema Estado-Igreja,
que ira se arrastar ao longo dos séculos posteriores. É que este problema, como
prova o caso de Sócrates, não é de modo nenhum um problema especificamente
cristão. Não está vinculado a uma
organização eclesiástica nem a uma fé revelada, mas surge também, numa fase
correspondente, no desenvolvimento do “homem natural” e da sua “cultura”. Não
aparece aqui com conflito entre duas formas comunitárias conscientes da sua
força, mas antes como a tensão entre a consciência que o individuo tem de
pertencer a uma comunidade terrena e a sua consciência de estar interior e diretamente
unido a Deus.. Este Deus, a serviço do qual Sócrates realiza a sua obra de
educador, é um Deus diferente dos “deuses em que a polis acreditava”. Se era
principalmente neste ponto que a acusação contra Sócrates insistia, então
acertava realmente no alvo. Era por certo um erro pensar a este propósito no
famoso daimon, cuja voz interior levou Sócrates a abster-se de executar muitos
atos. Isso poderia quando muito demonstrar que Sócrates possuía ao mesmo tempo,
alem do dom do saber, pelo qual batalhou mais que outro qualquer, aquele dom
instintivo cuja falta verificamos tão freqüentemente no racionalismo. É este
dom, e não a voz da consciência, o que na realidade aquele daimon significa
como o atestam os casos
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