Nícias – Ó Lisímaco, parece-me que conheces a Sócrates somente através de seu pai, e que jamais o encontraste, senão quando criança, nas ocasiões em que, acompanhando o pai entre o povo, possas tê-lo encontrado, ou num templo ou nalguma outra reunião. Mas, depois de adulto, não o encontraste nunca, pelo que vejo.
Lisímaco – E por que, Nícias?
Nícias – Porque, ao que me parece, não sabes que qualquer um que se aproxime dele e ponha-se com ele a raciocinar, qualquer que seja o assunto a tratar, arrastado na espiral do discurso, é inevitavelmente constrangido a ir adiante, até que chegue a dar conta de si, e a dizer de que modo vive e de que modo viveu; e, uma vez chegado a isto, Sócrates não o deixa mais, enquanto não tiver discernido muito bem cada palavra. Eu tenho o hábito de frequentá-lo e sei que nisso ninguém lhe escapa, como sei muito bem que nem mesmo eu lhe escaparei. Porque, ó Lisímaco, tenho prazer em estar com ele, e penso que não é mal que haja alguém que nos recorde que não temos vivido e não vivemos como se deveria, pois somos inevitavelmente induzidos a ser mais atentos com relação ao futuro, quando não nos subtraiamos a semelhantes provas, e, segundo o dito de Sólon, nos mostremos dispostos e consideremos justo dever continuar a aprender enquanto vivemos, e não creiamos que com a velhice devamos necessariamente perder também o juízo. Para mim, em todo caso, não é coisa nova nem desagradável o fato de ser posto á prova por Sócrates; e já o sabia há muito que, estando Sócrates presente, o discurso giraria não sobre os jovens, mas sobre nós mesmos [...] (Platão, Laques, 187 d- 188 b).
Só Deus é sapiente, e isto ele quis dizer no seu oráculo: que pouco ou nada vale a sapiência do homem; e, afirmando que Sócrates é sapiente, não quis, creio, referir-se propriamente a mim, Sócrates, mas apenas usar o, meu nome como um exemplo; como se tivesse querido dizer o seguinte: “Os homens, entre vós é sapientíssimo aquele que, como Sócrates, tenha reconhecido quem na verdade, a sua sapiência não tem nenhum valor” (Platão, Apologia de Sócrates, 23 a-b).
Se alguém crê dizer alguma coisa sobre questões em torno as quais não diz nada que tenha sentido, sobre estes eles [i.é, Sócrates e os seguidores do método socrático] o interrogam. Depois analisam com facilidade as suas opiniões, enquanto opiniões de alguém privado de rigor no pensamento: com o discurso as reúnem e as confrontam entre si, e assim em seguida demonstram que elas, ao mesmo tempo, a respeito dos mesmos assuntos, com relação às mesmas coisas, segundo os mesmos ponto de vista, estão todas em oposição entre si. E aqueles, assistindo a tudo isso, experimentam em descontentamento com eles mesmos, fazem-se mais dóceis diante dos outros, e assim libertam-se de todas as enraizadas e orgulhosas opiniões que tinham sobre si, e esta é entre todas a libertação mais doce para quem a assiste e a mais estavelmente fundada para quem passa por ela. Pensam, com efeito, [...] os autores desta purificação, de maneira análoga ao que dizem os médicos do corpo, isto é, que um corpo não pode gozar do alimento que se lhe oferece antes de se eliminarem dele os impedimentos internos; exatamente a mesma coisa aqueles purificadores chegaram a pensar da alma, isto é, que ela não desfrutará dos conhecimentos a ela fornecidos antes que alguém, exercitando a confutação, reduza á vergonha de si o confutado, tirando as opiniões que cortam a via aos conhecimentos e purificando-a totalmente de modo a saber somente o que sabe e nada mais [...]. Por todas estas coisas [...] nós devemos afirmar que a confutação é a maior, a fundamental purificação, e quem não foi beneficiado por ela, seja ele o Grande Rei, só pode ser considerado como maculado pelas mais graves impurezas e privado de educação, e até mesmo um bruto, justamente naquelas coisas com relação ás quais qualquer um que verdadeiramente quisesse ser um homem feliz. Acreditava estar purificado e embelezado da maneira mais plena (Platão, Sofista, 230 b-e).
Sócrates – Tu sentes as dores, caro Teeteto: sinal de que não estás vazio, mas pleno.
Teeteto – Não sei, ó Sócrates: digo-te só aquilo que experimento.
Sócrates – Meu caro amigo, e não ouviste dizer que sou filho de uma hábil e vigorosa parteira, chamada Fenarete?
Teeteto – Sim, isto ouvi dizer.
Sócrates – E que eu exerço a mesma arte, ouviste dizer?
Teeteto – Não, nunca.
Sócrates – Sabe, pois, que assim é. Tu, porém, não deves dizê-lo aos outros. Não o sabem, caro amigo, que eu possuo esta arte; e, não sabendo, não dizem isto de mim, mas que eu sou o mais extravagante dos homens e que não faço outra coisa senão semear dúvidas. Também isto terás ouvido dizer, não é verdade?
Teeteto – Sim.
Sócrates – E queres que eu te diga a razão disso? Teeteto – Perfeitamente.
Sócrates – Procura entender bem o que é esta profissão de parteira, e compreenderás mais facilmente o que quero dizer. Tu sabes que nenhuma mulher, enquanto é capaz de conceber e gerar, atua como parteira com relação a outras mulheres; mas só aquelas que não podem mais gerar.
Teeteto – Certo.
Sócrates – A causa disso dizem Ter sido Artêmis, a quem coube presidir os partos sendo virgem. Ela, pois, ás mulheres estéreis, não concedeu atuar como parteiras, sendo a natureza humana demasiado débil para que alguém possa adquirir uma arte da qual tenha tido experiência; mas atribuiu este ofício àquelas mulheres que pela sua idade não podiam mais gerar, honrando deste modo a semelhança que elas tinham com ela.
Teeteto – Naturalmente.
Sócrates – E não é também natural, e até mesmo necessário, que sejam as parteiras a reconhecer, melhor do que qualquer outra, se uma mulher está grávida ou não?
Teeteto – Certamente.
Sócrates – E não são as parteiras que, administrando remédios e fazendo encantamentos, podem despertar as dores ou torná-las menores se querem; e facilitar o parto ás que têm dificuldade; e também fazer abortar, se pensam que devem fazê-lo, quando o feto está ainda imaturo?
Teeteto – É verdade.
Sócrates – E não observaste nunca a respeito delas também o seguinte: que são habilíssimas em promover casamentos, especialistas que são em conhecer que homem e que mulher devem se unir para gerar os melhores filhos?
Teeteto – Não sabia disso.
Sócrates – Pois então sabe que desta arte elas se vangloriam mais do que do corte do umbigo. Pensa um pouco: crês que seja a mesma arte ou duas artes distintas a de recolher com todo cuidado os frutos da terra, e a de reconhecer q]em que terra tal planta deve ser plantada, e que semente deve ser semeada?
Teeteto – A mesma arte, creio.
Sócrates – E quanto a mulher, crês que sejam diferentes a arte de semear e a de colher?
Teeteto – Não me parece.
Sócrates – Não é, com efeito. Mas, por causa daquele tipo de união de homem e mulher, contra as leis e contra a natureza, ao qual se dá o nome de rufianismo, as parteiras que são coisas da sua reputação, abstêm-se também de promover casamentos honestos, por medo de serem acusadas de fazer uma mau negócio; pois só às parteiras verdadeiramente dignas convém, creio eu, promover casamentos como se deve.
Teeteto – A mim também parece.
Sócrates – Este é, portanto, o ofício das parteiras; e ele é digno, mas inferior ao meu. Com efeito, às mulheres não ocorre dar à luz ora a quimeras e ora a seres reais, o que não é fácil reconhecer; pois se isto acontecesse, não te parece que seria um grande e belo ofício para as parteiras distinguir o verdadeiro do não-verdadeiro?
Teeteto – Sim, isto me parece.
Sócrates – Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em todo o resto á das parteiras, mas difere dela no fato de agir sobre homens e não sobre mulheres, e cuidar das almas grávidas e não dos corpos. E a minha maior capacidade é que eu consigo discernir seguramente se a alma do jovem dá á luz a uma quimera e a uma mentira, ou se a algo real. Pois eu tenho em comum com as parteiras o fato ser também estéril... de sapiência; e a reprovação que muitos já me fizeram, que eu sempre interrogo os outros, mas não manifesto nunca sobre qualquer questão o meu pensamento, ignorante que sou, é uma reprovação verdadeira. E a razão é que o Deus obrigou-me a ser obstetra, mas proibiu-me gerar. Eu sou, portanto, ignorante, e de mim não saiu nenhuma sapiente descoberta que tenha sido produzida pela minha alma; ao invés, aqueles que se comprazem da minha compainha, embora alguns deles pareçam no início totalmente ignorantes, continuando a freqüentar-me, consegue em seguida, desde que Deus o permita, extraordinário proveito, como eles mesmos e os outros constatam. E é claro que não aprenderam nada de mim, mas unicamente por si mesmos aprenderam e geraram muitas e belas coisas. Porém, o mérito de tê-los ajudado caba a Deus e a mim. E eis a prova. Muitos que não conheciam isto e consideravam que o mérito fosse todos deles, e olhavam-me com certo desprezo, um dia, mais cedo do que deviam, afastaram-se de mim, por sua própria vontade ou instigados por outros; e, uma vez longe, não fizeram senão abortar em todas as suas produções, por causa das más ligações que contraíram, mas também arruinaram, por falta de educação, tudo aquilo que com a minha ajuda tinham dado à luz, tendo mais em conta as mentiras e as quimeras do que a verdade; e acabaram por parecer extremamente ignorantes a si mesmos e aos outros. Há alguns que voltam a buscar a minha companhia e fazem proezas para conseguir isto; e se com alguns deles o demônio que está sempre presente em mim me impede de estabelecer relações, com outros, ao contrário, o permite, e estes voltam a tirar proveito disso. Ora, os que se relacionam comigo também nisso padecem as mesmas penas das mulheres parturientes: pois sentem as dores, e dia e noite estão cheios de inquietação muito mais que as mulheres. E a minha arte tem justamente o poder de, ao mesmo tempo, suscitar e acalmar as suas dores. Assim se passa necessidade de mim, esforço-me por encontrar-lhes um lugar; e com a ajuda de Deus, consigo muito facilmente encontrar alguém com quem possam relacionar-se e encontrar satisfação nisso. E assim, a muitos aproximei de Pródico, e muitos a outros sábios e divinos homens. Pois bem, caro amigo, contei-te toda esta história justamente por isso, porque suspeito que tu, e talvez tu mesmo creias, estejas grávido e sintas as dores do parto. Portanto, confia-te a mim, que sou obstetra e filho de parteira; e o que te pergunto, tenta responder da melhor maneira possível. Se, depois, examinando as tuas respostas, eu encontrar que algumas são quimeras e não verdades, arranco-as de ti e lanço-as fora, e não te zangues comigo como fazem com seus filhos as que dão á luz pela primeira vez. Já muitos, caro amigo, têm contra mim está esta má disposição, tanto que estão até mesmo prontos e agredir-me se eu tento arrancar deles alguma opinião extravagante; e não vêem que faço isso por benevolência, longe como estão de saber que nenhum Deus quer o mal dos homens; e não é, na verdade, por maldade que eu faço isso, mas só porque não considero lícito aceitar a falsidade ou obscurecer a verdade (6. Platão, Teeteto, 148 e- 151 d. Maier).
Sócrates ocupava-se de questões éticas e não da natureza na sua totalidade, mas no âmbito daquelas buscava o universal, tendo por primeiro fixado a atenção sobre as definições. Ora, Platão aceitou esta doutrina socrática, mas acreditou, por causa das convicções que ele acolheu dos heraclitanos [i.é, aquelas doutrinas segundo as quais todas as coisas sensíveis estão em perene fluxo], que as definições se referissem a outras realidades e não às sensíveis: de fato, ele afirmava ser impossível que a definição universal se referisse a alguns objetos sensíveis, porque sujeitos a contínua mudança; ele então chamou estas outras realidades de Idéias e afirmou que os sensíveis existem separados delas [...] (Aristóteles, Metafísica, A 6, 987 b 1ss).
E ainda:
Sócrates [...] buscava a essência das coisas e a reta razão: de fato ele tentava seguir o procedimento silogístico, e o princípio dos silogismos é, justamente, a essência [...]. Com efeito, duas são as descobertas que com razão podem ser atribuídas a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição universal; e estas descobertas constituem a base da ciência (Aristóteles, Metafísica, M 4, 1078 b 23-30).
E enfim:
A este modo de raciocinar [próprio dos platônicos] deu início Sócrates mediante as definições; Sócrates, porém, não sabia as definições das coisas particulares (Aristóteles, Metafísica, M 9, 10086 b 2 ss; cf.
De que modo tomava os seus amigos mais hábeis na dialética, eis o que tentarei expor. Sócrates considerava que todos os que conhecem o que é um objeto podem explicá-lo também aos outros, mas os que não o conhecem, dizia não ser estranho que se enganassem e enganassem os outros. Por isso, estando com os amigos, não cessava de examinar o que é cada objeto (Xenofonte, Memoráveis, IV 6, 1).
[Sócrates] acrescentava também que o vocábulo “dialética” derivava do uso de reunir-se para discutir, distinguindo as coisas por gêneros; em conseqüência disso, era preciso preparar-se da melhor maneira possível neste exercício e aplicar-se a ele com o máximo cuidado, porque este estudo, porque este estudo toma os homens ótimos e aptos em sumo grau para dirigir e para discutir (Xenofonte, Memoráveis, IV, 5, 12).
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