segunda-feira, 17 de julho de 2023

Enrique Dussel - Filosofia da Libertação


 


Crítica à ideologia da exclusão

 

“Síntese Pe. Paolo Cugini,

 digitação Winne Muryanne”

 

A experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o “fato” opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem “senhores” de outros sujeitos, no plano mundial (desde o início da expansão européia em 1942; fato constitutivo que deu origem a “Modernidade”), Centro-Periferia; no plano nacional (elites-massas, burguesia nacional-classe operária e povo); no plano erótico (homem-mulher); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista, versus cultura periférica, popular etc.); no plano religioso (o fetichismo em todos os níveis) etc... Esta “experiência” inicial vivenciada por todo latino-americano, até mesmo nas aulas universitárias européias de filosofia – se expressaria melhor dentro da categoria “Autrui” (outra pessoa tratada como outro), como pauper (pobre) [1]. O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulação ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados pela publicidade) não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente, a “estima de si mesmo” [2]. O oprimido, o torturado, o que se vê ser destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça:

-Tenho fome! Não em mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes. (pag.18-19)

A filosofia da Libertação já era, no fim da década de 60, o mesmo que Ricoeur exige como necessário, quando escreve: “Falta-nos conceber aqui um conceito cruzado de alteridade que faça justiça alternadamente a primazia da estima do eu e aquela da convocação pelo outro a justiça” [3]. A anterioridade do outro que interpela constitui a possibilidade do “eu próprio” enquanto reflexivamente valioso, que passar a ser, então, o fundamento do ato de justiça para com o Outro. (pag.20)

            O meu tomo II de Para uma ética de la liberación latinoamericana[4] focaliza esta problemática. Ele nos apresentou muitas novidades e, também, a exigência de se constituírem “novas” categorias na historia da filosofia política[5]; mas, sobretudo, a necessidade de se desenvolver uma nova “arquitetônica”. A primeira dessas categorias, a qual tivemos de dedicar toda a nossa atenção, foi a de “Totalidade” dentro de um mundo oprimido. Ontologia significa pensar no fundamento, no ser da Totalidade vigente. O projeto (Entwur ontológico, de Heidegger) do sistema vigente justifica a opressão do oprimido e a exclusão do Outro. Pouco a pouco se vislumbrou a utopia (ouk-tópos: “a ausência de lugar” dentro da totalidade); surgiu, assim, o projeto da libertação Outro. Trata-se da formação de outra Totalidade analógica, constituída com o que há de melhor na anterior, partindo da exclusão do Outro. Partindo da interpelação feita a nós pelo Outro e como resposta a ela, a firmação do Outro enquanto outro é a origem da possibilidade da negação dialética (a saber, o que eu denominei de “método analéctico” ou “afirmação primitiva” do Outro). (pag.22-23)

            O problema “populista” passou a ser o ponto central. Era preciso depurar as categorias “povo” e “nação” (assim como o “popular” e “nacionalista”), para evitar o fascismo e, por outro Aldo, simultaneamente a ilusão abstracionista do marxismo classista de Althusser ou do pensamento analítico anglo-saxão, ambos em voga. Foi assim que comecei a me aprofundar em Marx. Isso iria me afastar, durante anos, da empreitada hermenêutica (voltando a ela só ocasionalmente, mas com manifestações divergências a respeito das assimetrias existentes). (pag.25)

Uma primeira advertência. O retorno sistemático a Marx que iniciei pelo fim da década de 70 foi devido a três fatos. Em primeiro lugar, a crescente miséria do continente latino-americano (que não parou de ficar cada vez mais pobre até chegar à epidemia de cólera como conseqüência da progressiva desnutrição da maioria do povo latino-americano). Em segundo lugar, ao desejo de poder levar a termo uma critica do capitalismo, que, tendo triunfado aparentemente no norte (principalmente a partir de novembro de 1989), está fracassando redondamente em 75% da humanidade: no sul; na África, na Ásia e na América Latina. E, em terceiro lugar, a constatação de que a Filosofia da libertação precisaria primeiro, constituir uma economia e uma política firmes, para só depois apoiar também a parte pragmática, como aplicação da analítica. Ao invés de estudar os comentadores europeus de Marx, eu me impus à tarefa de, em seminários, reinterpretarem Marx integralmente. Minha primeira constatação foi a de descobrir o abandono em que se encontrava o estudo seio, integro e criativo sofrido pelas investigações sobre Marx de parte dos “grandes” filósofos euro-norte-americanos (nos últimos anos não havia lido Marx seriamente.[6] (pag. 25-26)

Nosso objetivo filosófico latino-americano era o de consolidar a “economia” através da “poética” ou “tecnológica”, como a entende a Filosofia da Libertação[7]; mas, ao mesmo tempo, o de reformular o conceito de dependência, no intuito de descrever a causa da diferença Norte/Sul (a “transferência de valor”, devido à composição orgânica diferente dos capitais das nações desenvolvidas e das subdesenvolvidas, dentro do processo de competição no capital e no mercado mundial).[8] (pag. 26-27)

Para a autora Salazar Bondy, em sua obra Existe uma filosofia em América Latina? a resposta era negativa: não é possível filosofar dentro de uma situação como esta! Mas para nós, sim, que tomamos como ponto de partida uma Filosofia da Libertação, isso é possível, mas somente no caso de o leitor, intérprete ou filósofo estiverem comprometidos com um processo prático de libertação: tudo isso resume, exatamente, o tema de uma filosofia e de uma ética da libertação.  (pag.31)

Sem a “economia”, tanto a “hermenêutica” como a “pragmática” ficam sem conteúdo “carnal”: são meras comunidades de comunicação ou de interpretação, sem caráter corporal ou carnal, isto é, sem subsumir em sua reflexão o nível da “vida”.

Experimentemos pôr em prática a “filosofia econômica” tal como efetuada por Marx. Nós nos localizaremos dentro da “situação primitiva” que serve de ponto de partida para a lógica arquitetônica do desenvolvimento do sistema de categorias de Marx. (pag.33)

 A “pessoa” (um Marx “personalista”?) apresenta-se no “mundo das mercadorias” (ou dos fenômenos; ambas são expressões frequentes em Marx) graças a sua própria “corporalidade”. Marx descreve a situação “anterior ao contrato” entre capital e trabalho, dentro do qual o trabalhador não é “real”, senão pura “possibilidade”, uma vez que não possui condições “objetivas” para sua própria “realização”. Seu própria ser, sua pessoa, sua corporalidade não passam de negatividade, de “pobreza” (subjetividade econômica; não se trata aqui da subjetividade hermenêutica do leitor de um texto): é a subjetividade imediata de uma corporalidade sofredora, sem recursos, sem alimento, sem capacidade para reproduzir sua vida; ele é um pobre. Este é o ponto de partida da Filosofia da Libertação, enquanto “fato” latino-americano, descrito fenomenologicamente como “fato” ético primeiramente por Lévinas. Agora também Marx o enquadra dentro de um discurso arquitetônico e categórico e como “critica” a economia política burguesa da sua época.

Até agora o “trabalho vivo” encontra-se na exterioridade (ante festum, costumava dizer Marx, e da mesma forma como apresenta Lévinas) e “negativamente”, como “coisa” existente, como pura possibilidade não real sem “condições” – “pobre”. É o “não-capital”, o “não-ser”, o “nada”. Entretanto, previne Marx, esta subjetividade em extrema pobreza é “positivamente”, uma “potencia”. (pag.38-39)

Filosoficamente, tomando como ponto de referência a ontologia de Hegel e seu elemento mais abstrato e essencial (o conceito de “realidade”), Marx desenvolve uma “econômica” de grande aplicação atual. Atualmente, a maioria da Humanidade (o Sul, os 75% do mundo capitalista, o mundo ex-colonial e periférico) está submersa na “pobreza”: nem possui “condições” para sua “realização”, nem as poderá possuir, por razões ecológicas, em um futuro próximo. Está submersa na mais “absoluta pobreza” e baixará a graus de maior miséria, Marx é o único filosofo moderno que elaborou uma “econômica” adequada, apesar de os grandes filósofos europeus e norte-americanos (sem interpretarem seriamente Marx, porque ele não está na “moda”) o terem declarado um “cachorro morto”. Par a Filosofia d Libertação, não é questão de moda, é questão de vida ou morte da maioria da Humanidade. É uma questão ética fundamental, em que está em jogo o caráter universal da razão e o sentido de toda hermenêutica. (pag.40)

É por isso que a filosofia da Libertação considera a “filosofia da miséria” como sua cláusula principal. (pag.42)

Sem querer me arrogar o direito de representar um movimento amplo, a Filosofia da Libertação, que eu ponho em prática desde 1969, toma como ponto de partida uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da população latino-america; a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central, a tomada de consciência da impossibilidade de uma filosofia autônoma dentro dessas circunstancias; a existência de tipos d opressão que estão a exigir não apenas uma filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação” (em forma de ação, em forma de práxis, cujo ponto de partida é a opressão e cuja meta a atingir é a libertação, já indicada, por exemplo, no machismo ancestral enquanto opressão da mulher etc). (pag.45-46)

Aquele ‘“Eu”, que se inicia co o “Eu conquisto” do Cortés ou d Pizarro, praticamente anterior por um século ao ego cogito de Descartes, é causador do genocídio do índio, da escravidão do negro africano e das guerras coloniais da Ásia. A maioria da humanidade presente (o “Sul”) é “a outra face” da Modernidade (não é nem pré-modernidade, nem antimodernidade, nem pós-modernidade nem pode realizá-la, como pretende Habermas). Em 1976, quando escrevemos nossa Filosofia de la Liberación, antes, portanto, do movimento denominado “pós-moderno” europeu, já criticávamos a modernidade tendo-nos inspirado no Heidegger definitivo para o uso desse conceito. Na verdade, nós não somos “aquele outro, diferente da razão”, mas, pelo contrario, o que pretendemos é manifestar eficazmente “a razão do Outro”: do índios assassinado por genocídio, do escravo africano reduzido a uma mercadoria, da mulher vilipendiada como objeto sexual, da criança subjugada pedagogicamente (sujeito “bancário”, como a define Paulo Freire). (pag.47)

O que não pretendemos é uma Filosofia da Libertação do Outro, isto é, daquele que está fora e distante dos horizonte desse mundo hegemonias como o econômico-político do (fratricídio), da fálica e castradora da mulher (do uxoricídio), e, não em ultimo lugar, o do individuo que considera a natureza como mediação explorável para a valorização do valor capital (ecocídio). (pag.48)

Segundo Marx, a “moral” ou o “direito” burguês justifica, a partir de dentro, tudo aquilo a que forem aplicados os seus próprios princípios. A escravidão é injustiça para o sistema burguês ou socialista; mas será justa para o sistema escravagista. O trabalho assalariado é injusto para Marx ou dentro do regime socialista, enquanto institucionalidade que rouba ao trabalhador uma parte do fruto do seu trabalho (a mais-valia). Neste caso o critério ético é “externo” anterior ao capital enquanto tal; é o “trabalho vivo”, a pessoa do trabalhador ante festum. Eis ai o critério “ético”, de dentro do qual parte a “interpelação” – e na qual Lévinas situa-se no aspecto da “exterioridade” do Outro, enquanto diferente da “Totalidade” (Totalidade que é tanto o “sistema” quanto a “Lebenswelt” vigente, como já dissemos). (pag. 53)

A “interpretação” seria como que o ato-de-fala daquilo que Marx metaforicamente denomina de “fantasmas que ficam fora do seu reino”. Tudo isso é esplendidamente manifestado através do testemunho dado pó Tupac Amaru, inca rebelde do peru em 1781, que, ao ser julgado e condenado á morte.

O libertador, que assume como sua a “interpelação” do pobre, acaba sendo declarado pela “moral” vigente como igualmente culpado. São “fantasmas” de outro reino. (pag.54)

Da nossa parte, como latino-americanos, participantes de uma comunidade de comunicação periférica – dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de partida (e não de chagada) cotidiano, isto é, um a priori não um ia posteriori – nós precisamos obrigatoriamente encontrar o “enquadramento” filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação ou, pura e simplesmente, de não-fazemos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica. (pag.60)

Podemos iniciar, pela “interpretação” proveniente da “exclusão” das pessoas de outras raças, pelo racismo do “apartheid” na África do Sul, pela discriminação, de palestinos em Israel, ou de afro-americanos e indígenas na America Latina em geral. O “racialmente excluído” lança, por exemplo, a comunidade de comunicação real dos “brancos”, uma “interpretação”. Ele cobra os direitos que, como pessoa, lhe cabem por justiça e que não lhe foram concedidos ou não foram cumpridos. Tudo o que expusemos no parágrafo 2 deveria ser especificado, agora, como casos de “interpelação” anti-racista. A luta em defesa de direitos raciais iguais é um dos temas da Filosofia da Libertação. (pag.67)

Do mesmo modo, dentro da sociedade capitalista, a dominação do trabalhador assalariado – que é obrigado a vender seu trabalho vivo em troca de dinheiro aos dons do capital – enquadra-o como um novo tipo de “excluído” da comunidade de comunicação dos empresários, capitalistas, membros ainda hegemônicos no “mundo da vida” da sociedade colonizada por esse “sistema” controlado por eles. É nisto que consiste a luta de classes (sempre virtual devido à essência do capital e, com bastante freqüência, efetiva), questão a que Habermas e Apel não dão atenção, pro não lhes parecer objetiva ou pertinente. (pag.68)

E, por ultimo, talvez o problema mais grave dos fins do século XX, que começou em 1492 (quando a America Latina foi incorporada como primeira periferia européia, uma vez que tanto a África quanto a Ásia até o século XIX tinham sido apenas uma arena no exterior), e justamente a distancia que aumenta cada vez mais entre a riqueza do capitalismo central do Norte e a crescente miséria di capitalismo periférico do Sul. Entenda-se bem: a África, a Ásia e a America Latina (com exceção da China, do Vietnã, de Cuba e de algum outro pais) são regiões de “capitalismo dependente”. Este é, então, o tema que precisamos defender em nosso diálogo: essa “interpelação” que a maioria da Humanidade (uns 75% dela se encontra no Sul!) lança ao ar, cobrando seus direitos a vida, ao desenvolvimento de sua própria cultura, econômica, política etc. (pag.69)

A pessoa que “interpela” a partir de fora da “comunidade” real “de produtores/ consumidores” (cujos objetos materiais sempre também possuem um valor cultural e simbólico), o “pobre”, apresenta como conteúdo, ponto de referência ou significado do seu “ato-de-fala” (no enunciado m. 4 ou no de n. 18) a sua corporalidade sofredora (coisa que já estava implícita e pressuposta da “interpelação” lançada em rosto ao que não assumiria sua re-sponsabilidade perante o Outro). Na verdade, o ouvinte (O) jamais havia escutado um ato-de-fala que se tornasse atroador como nos fins do nosso século XX. (pag.76)

Em todo “ato-de-trabalho” (não apenas tecnológico, mas também econômico) sempre já se pressupõe a priori, de maneira transcendental, uma “comunidade de produtores” destinada a reproduzir a vida (humana): ela por sua vez, também pressupõe, em princípio, uma ética, da mesma forma como em todo “ato-de-fala” se pressupõe, analogicamente, uma “comunidade de comunicação”. Mas em ambas estas comunidades (que, na realidade, são dois aspectos dessa mesma “comunidade humana” em geral) enquanto reais (e não apenas enquanto ideais) sempre existem também “excluídos” os Outros (só que de maneira diferente: uns como falantes, outros como produtores). Estes “outros”, entretanto, não são alheios a “razão”, mas são Outros que tem suas “razões” para “propor”, para “interpelar” contra a exclusão e defender sua inclusão na comunidade de acordo com a justiça. (pag.77)

Na década de 60, tive a intenção de descrever os “conteúdos materiais” da cultura latino-americana. Por razões metodológicas, este projeto se transformou em uma descrição “histórica” – de maneira análoga a que foi tentada por Taylor - dos conteúdos culturais do mundo Altino-americano. (pag.80)

Somente a cultura européia moderna, ia partir, portanto, de 1492, é que foi “centro” de um “sistema mundial”, e uma Historia Mundial, que de certo modo está em contradição (pelos diversos tipos de “subsunção” e “exterioridade” que nós já indicamos em todas as nossas obras anteriores) com todas as outras culturas do planeta Terra, culturas estas que (em primeira instancia) serão militarmente dominadas em forma de periferia. Passou despercebido aos filósofos que, devido a este fato, o problema da “universalidade” foi encarado pela Modernidade de um modo nunca abordado anteriormente. O “eurocentrismo” consiste exatamente em confundir ou identificar aspectos da universalidade abstrata (ou até transcendental) humana em geral com momentos da particularidade européia, de fato a primeira particularidade mundial (em outras palavras, a primeira universalidade humana concreta). A cultura, a civilização, a filosofia, o subjetivismo e outros elementos moderno-europeus passaram a ser considerados pura e simplesmente (universal humano abstrato) como cultura, civilização, filosofia, subjetivismo etc. Grande parte dos êxitos da Modernidade não representam uma criatividade exclusivamente européia; mas, sim, uma constante dialética de choque e contrachoque, efeito e contra-efeito, entre a Europa moderna e sua periferia, até mesmo no tocante ao que poderíamos denominar de formação paulatina do subjetivismo propriamente moderno enquanto tal.  (pg.87)

 O eurocentrismo de Weber consiste em supor a priori que os “fenômenos culturais” produzidos “no solo do Ocidente” possuírem com exclusividade e partindo dos eu próprio rumo evolutivo, já antes do século XVI, a característica de universalidade implícita, “desde si”. A pergunta deveria ter sido a inversa: será que não foi esse encadeamento de circunstancias que fez com que, justamente no sôo do Ocidente e apenas aqui, se produzissem fenômenos culturais que – contra o que nós sempre imaginávamos – dada a conquista de uma posição central no próprio inicio da historia do sistema mundial, levaram o ocidente moderno a obter vantagens comparativas que, por sal vez, o estimularam a impor sua própria cultura às demais, além disso, com pretensões de universalidade? (pag.89)

Poderá parecer um questão insignificante. Mas situar no século XVII o início das vantagens comparativas já equivale a não ter dado a devida atenção a conquista da America Latina a partir de fins do século XV e durante todo o século Xvi. O caso, porém é que justamente durante esta fase (que eu denomino de “proto-história do ego cogito”) que se consegue o domínio sobre a America indígena - principalmente no México até o Peru -, sendo ela como que um trampolim (antes do aparecimento de Bacon, Newton ou Descartes) para a estruturação das vantagens sobre as demais culturas afro-asiáticas. Em outras palavras, está se colocando como “efeito” da racionalização a ciência, o “Eu moderno” (modern self) etc., quem talvez já tenha sido o “efeito” do centralismo europeu sobre sua periferia mundial (centralismo este cultural, econômico, cientifico etc.; mas baseado, em seus inícios, em uma superioridade técnico-militar em relação ao inicio americano (que não existiu em relação às culturas afro-asiáticas, que lhe eram iguais ou até superiores do ponto de vista cientifico e de “racionalização”, como, por exemplo, o mundo muçulmano, mongólico na Índia, ou chinês). Quanto a esta interpretação histórica (e, por isso mesmo, analítica) podem estar completamente equivocados tanto Marx Weber quanto Charles Taylor.

O mesmo acontece com Habermas. De fato, este filosofo de Frankfurt, ao escrever sobre a réplica critica, acaba manifestando expressamente o eurocentrismo nos seguintes textos da sua obra El discurso filosófico de la modernidad. (pag.90-91)

Além do mais, como a Modernidade é um fenômeno mundial (por ser a primeira Era que engloba as culturas do planeta, ou enquanto centro metropolitano na Europa ou como colônia ou submundo embutido pela Europa na periferia), esse contradiscurso – exatamente ele e não outro – teve condições de se manifestar através dessa nova razão critica européia que se inaugurava e se estruturava paralelamente, partindo desse Outro dominado e explorado, desse Outro encoberto pela Europa dominante (que sempre pretenderá negar esse tal contradiscurso). Só que esse contradiscurso europeu (europeu por sua implantação geográfica) é, conjuntamente, fruto da Europa central e da periferia dominada. Bartolomeu de las Casas não poderia ter criticado a Espanha se não tivesse residido na periferia, se não tivesse escutado os gemidos e presenciado as torturas sofridas pelos índios. Foi justamente esse Outro que deu origem ao contradiscurso. É evidente que caberia a Europa, enquanto parte visível desse iceberg, a hegemonia cultural (econômica e política), bem como a “informação”, tendo sido ela também o “lugar” privilegiado do planeta para a ”discussão” dos problemas mundiais, também filosóficos. Só que essas manifestações intelectuais, quando são anti-hegemônicas embora filosoficamente européias (por exemplo, Montaigne, Pascal, Rousseau ou Marx), não são apenas européias, por não terem origem exclusivamente européia e, principalmente, pelo seu significado. Além disso, devemos dizer que na Periferia também existiam manifestações intelectuais (e filosóficas, por exemplo, Francisco Xavier Clavigero, 1731-1787, no México da época da Kant), mas sempre como contradiscurso aos pontos de vista da hegemonia mundial européia e contando apenas com recursos (sources) provinciais ou regionais. Clavigero não conseguiu publicar suas obras em espanhol, mas somente em italiano. As culturas da periferia, ele as deixou isoladas e sem contactos entre si: elas só tinham laços comuns através da Europa, já que foram antecipadamente reinterpretadas por essa Europa central. Desta forma, a assim denominada filosofia “européia” não era, então, produto exclusivo da Europa, mas eram produções da humanidade situada na Europa e que incluíam a contribuição das culturas periféricas sempre em dialogo essencialmente co-estrutural (pag.92-94)

Por aí se vê que o estudo do pensamento (tradições e filosofia) na America Latina, Ásia ou África não é uma tarefa episódica ou paralela ao estudo da filosofia pura e simplesmente (que seria a européia); mas que se trata de uma história que, com toda a razão, vem resgatar o contradiscurso não-hegemônico, dominado, silenciado e esquecido, o da Alteridade, que constitui a própria modernidade. Kant (filósofo da hegemonia central) e Clavigero (filósofo da periferia) por outro lado serão no futuro estudados como duas faces de uma mesma época do pensamento humano. Não há duvida de que Kant (devido a sua situação hegemônica) tenha produzido uma filosofia critica que enfrenta o que há de melhor na produção mundial (situada empiricamente na Europa), podendo ser, por isso mesmo, o ponto de partida durante séculos para os filósofos do mundo inteiro. Dentro deste sentido estrito, Kant deixa de ser um pensador exclusivamente europeu, passando a ser um pensador que teve a oportunidade (por sua situação histórica, política, econômica e cultural) de produzir uma filosofia de importância mundial.  Mas o pensamento filosófico de Clavigero, de importância até agora apenas regional por pertencer a uma região ou Periferia dominada, esquecida depressa dentro dos eu próprio México, é a “outra face” da Modernidade (ou da totalidade mundial Modernidade/Alteridade), também tendo, por isso mesmo, importância “mundial”. Futuramente ainda deveremos estudar mais o fundo o que se produzia filosoficamente neste mundo periférico para termos uma visão de conjunto. Kant/Clavigero fazem parte de uma filosofia mundial centro-periférica no século XVIII. A futura história da filosofia chegará a uma nova visão mundial da filosofia e irá aprofundar aspectos por enquanto não sonhados, quando descobrir a riqueza de temas da refração na Periferia (causadora de uma filosofia periférica) do centro do sistema (criador na Europa de uma filosofia central, única considerada até agora como “filosofia”) A filosofia central e as filosofias periféricas são as duas faces da filosofia na Modernidade e o contradiscurso (tanto no centro quanto na periferia) é um patrimônio de todos os filósofos do mundo, e não apenas dos europeus.

Este é um ponto essencial para o nosso projeto filosófico. A filosofia da Libertação é um contradiscurso, é uma filosofia crítica que nasce na periferia, mas tem pretensões de âmbito mundial. Ela tem consciência expressa de ser periférica, mas possui, ao mesmo tempo, pretensões de âmbito mundial. Ela enfrenta conscientemente uma filosofia européia (tanto a pós-moderna como a moderna, tanto a do comportamento como a comunitária) que confunde e até mesmo identifica sua característica européia concreta com o seu ignorado caráter funcional de “filosofia central” durante cinco séculos. Discernir entre a: a) europeidade concreta – isto é, sua própria moral (Sittlichkeit) ou ambiente vital (Lebenswelt) europeus – b), a posição funcional de “centro” que coube a Europa exercer, e c) a estrita universalidade, iria fazer com que a filosofia européia despertasse de um profundo sono em que estava submersa desde sua origem moderna. É que seu “eurocentrismo” já estava completando, exatamente, cinco séculos.

Para isso seria preciso adquirir e manter uma conscientização explicita desse novo “horizonte”, tendo o sempre presente, do Outro colonial, do bárbaro, dessas culturas em posição assimétrica, dominadas, “inferiores”; como fonte essencial e indispensável para a estruturação da identidade do Eu moderno (essential Source in the constitution of the identity of the modern Self), como fonte permanente, co-estruturadora. A desconsideração desse Outro na estruturação do “Eu moderno” (modern self) é que invalida, na prática, toda a analise histórica de Taylor, dado seu caráter eurocêntrico. E o resultado dessa analise é apenas a descoberta de um dos aspectos da identidade moderna, centralizada em si própria. Ela não representa a identidade da modernidade, dialeticamente estruturada a partir da negação de sua alteridade (suposta [gasetzt], segundo Hegel, como não-identidade consigo mesma, alienada), existência esta que é a “outra face” da modernidade.

Precisamos, finalmente, sublimar que a reconstrução histórica latino-americana deveria, além disso, ser elaborada a partir de critérios universais. Em vista disso, e sem abandonar o nível empírico do “ser-no-mundo” ou da “Lebenswelt” de Husserl, a Filosofia da Libertação construiu categorias universalizantes que se projetam bem além de qualquer télos histórico-concretos. (pag.95-97)

Dentro de um “mundo” ou conjunto de uma cultura, já que toda cultura é etnocêntrica, de um ethos, de uma “comunidade de comunicação real” etc., sempre e a priori é impossível negar a existência de um Outro. Segundo Aristóteles, na escravatura, o escravo não era considerado “humano”; segundo Tomás de Aquino, na época do feudalismo, os ervo “simpliciter” (simplesmente) não fazia parte da “civitas”; segundo Adam Smith, o assalariado (que vende os eu trabalho) não era proprietário do fruto dos eu trabalho (e isto por uma “situação de” segunda “natureza”, que se sobrepunha ao estado primitivo da natureza); de acordo com o machismo, a mulher era um objeto sexual, obediente “ama do lar”...; na sociedade patriarcal, a criança não possui direitos...; nas culturas depredadoras ecológicas da natureza, as futuras gerações também não têm direitos... Todos esses “Outros” - invisíveis e cada Totalidade, “mundo da vida”, em determinado ethos (também o moderno “central”, analisado por Taylor) – são negados, sem qualquer “consciência ética” ao Outro, ao oprimido. O télos ou bem de uma cultura, e uma Totalidade, não pode ser necessariamente o fundamento definitivo da moralidade dos atos. Ele o será apenas “por enquanto”, até se descobrir o Outro negado nesse tipo de sistema.

Foi dentro deste contexto que a filosofia da Libertação tentou superar a incomensurável relatividade dos sistemas apresentados e apelar para um transcendentalismo formal-histórico que evite aos inconvenientes dos “comunitaristas”, sem cair no relativismo. A ordem de combate que se enuncia, então, é a seguinte: ‘Liberte a pessoa indignamente tratada neste Outro oprimido!”Este principium oppressionis é absoluto (vale para todo sistema existencial ou funcional) e é sempre concreto (não é abstrato). É partindo do ethos concreto, da ‘Sittlichkeit” de Hegel, do “mundo” de Heidegger e da “vida cotidiana” de Taylor que “se descobre” que o Outro está sendo negado. É possível “descobrir o “escravo” como uma pessoa negada de maneira transcendental, abstrata ou universal. A filosofia da Libertação tenta descrever a lógica da Totalidade como totalização (otologia da “sociedade fechada”, como a apresentada por Popper); e uma outra lógica a partir da qual se torna possível descobrir o Outro como pessoa negada (a lógica da Alteridade).

Os heróis helênicos de Aristóteles caçavam escravos com consciência “tranqüila”, “boa”, da mesma forma como o herói da autenticidade moderna conquistou a América dos índios, escravizou a África e explorou a Ásia, justificando tudo com o “bem” e o “hiperbem”, exatamente como Hegel afiram ao falar do gentleman inglês:

 “Os ingleses se transformaram em missionários da civilização no mundo inteiro”. (pag.110-112)

Podemos concluir, englobando, que de centro modo volta a repetir-se a critica ontológica d Hegel (Taylor) contra o formalismo de Kant (Habermas e Apel), questão esta que coincide com a própria origem da Filosofia da Libertação. É obvio que permeia um século e meio de historia entre o Hegel real e nós; mas naquela época já encontramos o Schelling da ultima fase, Marx, Lévinas e muitos outros. O debate se trata, portanto entre: 1) uma “moralidade formal”, 2) uma “eticidade concreta” e 3) um tertium quid não tomando em conta no debate euro-norte-americano. E, o que é mais importante, esse tertium se situa dentro da perspectiva de uma periferia mundial empobrecida, explorada e excluída (a grande atingida ausente); em outras palavras, ele toma como ponto de partida uma alteridade ética mundial” (que tenta superar tanto a “moralidade” formal – a de Kant ou a profundamente “transformada” pro Apel e Habermas – quanto à “eticidade” substancial – a de Hegel e Heidegger ou a “comunitária” de Taylor ou Macintyre). A alteridade permite superar o universalismo formal da moralidade, pro um lado, e, por outro lado, a substancialidade concreta da eticidade, partindo dos horizontes de uma nova problemática. O posicionamento da Filosofia da Libertação parecerá estar concordando com Taylor por recomendar que se recuperem os aspectos positivos desse “mundo da vida” orientado por bens (contra Habermas ou Apel); mas ao mesmo tempo, descobre critérios “formais” que permitem a critica de toda totalidade ontológica, sistêmica ou Sittlichkeit (contra Taylor), partindo do princípio ético da alteridade do outro (indo bem mais além de Habermas ou Apel).

O projeto de Libertação dos oprimidos e dos excluídos é aberto, partindo da exclusão do Outro e indo mais além (jenseits) de qualquer situação apresentada. A estruturação de alternativas – mesmo que fosse necessária (o que não podemos descarta a priori) a de uma utopia ou a de uma nova sociedade – não consiste na “aplicação” de algum modelo ou situação ideal ou transcendental, nem tampouco na execução autêntica de um determinado “mundo da vida” (quer seja ele o moderno ou outro diferente), muito menos se for idealizado como efeito indestrutível de uma lógica necessária (a da teologia ou razão histórica de Hegel ou a o marxismo standard ou e Stalin); mas deverá ser uma “des-coberta” responsável, como resposta a “interpelação” do Outro, dentro de um lento processo de prudência (em que a teoria de uma “comunidade de comunicação real”- que racional e processualmente chega a um consenso de validade intersubjetiva – nos ajuda a compreender melhor o progredir seletivo da frónesis de libertação), durante o qual o filosofo (tal como o “intelectual orgânico” de Gramsci deve tratar como seriedade as motivações éticas (com Taylor) da libertação dos oprimidos e excluídos. (pag.118-120)

Em outras palavras, a filosofia de Rorty parte de uma situação empírica, concreta e, historicamente, acadêmica e universitária, em que a filosofia analítica está em “jogo” no meio de outros “jogos de linguagem”. Dentro desta “situação” universitária e acadêmica, a “posição” pessoal de Rorty é critica em duas fretes de combate: 1) perante sua antiga comunidade de filósofos analíticos; 2) perante os filósofos que adotam noções metafísicas (como, por exemplo, o tomismo tradicional) ou racionalizações universalistas (que seria o “posicionamento” de um Karl-Otto Apel). Quer dizer, cepticismo versus filosofia analítica e versus racionalismo universalista. Rorty se propõe afirmar a solidariedade em face à dor (“pain”) e contra a crueldade (“cruelty”) – opondo-se, por exemplo, ao posicionamento de um Lyotard -, atitude esta profundamente ética que, pensa ele, poder ser adotado sem precisar recorrer a “razões”! universais. Seu “posicionamento” é o de uma pessoa solidária em face à dor (“pain”) de qualquer Outro em abstrato, tomando como ponto de partida a situação contingente de quem assume, em caráter de participação, os conteúdos doe seu Lebenswelt (da sua vida cotidiana). (pag.125)

A filosofia da Libertação, ao invés, parte de uma ‘situação” diferente: situa, desde o início a filosofia dentro do contexto da vida pratica concreta, dentro do comportamento e solidariedade com o oprimido (com o pobre explorado na periferia do capitalismo, com a mulher dominada pelo machismo, com o negro racialmente discriminado, com as culturas e etnias não-hegemônicas, com os ecologicamente responsáveis pelas futuras gerações etc.). Não se trata, em primeira linha, de uma reflexão sobre a palavra, a linguagem, o “texto”, ou sobre o “livro”, na qualidade de observadores externos. Trata-se, sito sim, de uma presença pratica e concreta “em” ou “dentro” dos movimentos populares, feministas, ecologistas ou anti-racistas; na relação “cara-a-cara” imediata na qualidade de” intelectual orgânico”, dando, sem qualquer duvida, prioridade a “atuação comunicativa” (ou ao elemento evolucionário do “ato-de-fala” [Speech Act]), que é o ponto de partida com que o pensamento filosófico inicia sua tarefa, isto é, começa a exercer sua função enquanto reflexão (ato segundo) sobre o práxis enquanto tal (ato primeiro). É que a mediação exercida mediante a analise de um texto – seja ele “analítico” (partindo da Linguistic Turn), seja ele “hermenêutico” (à maneira do “trabalho do leitor” [“travail du lecteur] apresentado por Ricoeur) – é sempre a posteriori e, algumas vezes, inexistentes, como no caso da práxis de um analfabeto que não se expressa por escrito. O ponto de partida é um sofredor (“Eu estou sofrendo...”), mas enquanto oprimido dentro do plano político, erótico, concreto e que vem a tona enquanto sujeito em busca de libertação; e não partindo da sala acadêmica de uma universidade, nem tampouco pura e simplesmente enquanto disputa entre escolas filosóficas lingüísticas ou analíticas. O ponto de partida é o pobre ou oprimido, que trabalha dentro destas condições corporais de sofredor e necessitado. Por ai se vê que é prioritário e necessário estruturar a “econômica” a partir desse oprimido, a partir do sofrimento (pain) enquanto miséria (Elend, diria Marx) a que está sujeita a pessoa subjugada (momento ético). É um ponto de partida, um “we” (nós) que se situa “bem mais além” na exterioridade das “we-intentions” – dominadoras, hegemônicas, centrais, vigentes – da “liberal irony”. É evidente que o oprimido (como os da “Visão dos vencidos” em face à conquista da América) também possui a sua própria linguagem, a “voz do oprimido”; só que esta passa para o opressor e chega até ele na qualidade de “não-linguagem”... até o dia em que um solidário “liberal ironist” a traduza para a linguagem dominadora das “we-intentions” de Rorty (a fim de que esta a aceite como linguagem, mesmo que seja a linguagem da Filosofia da Libertação).

Pode-se tomar como ponto de partida o sofrimento (pain) – como o faz Rorty ou a Filosofia da Libertação -, mas são oportunas algumas perguntas: Que tipo de sofrimento? E quais são as causas desse sofrimento?

A Filosofia da Libertação, tendo já acolhido ética e racionalmente a “interpelação” do oprimido, precisará, então, refletir sobre toda a problemática que pressupõe e determina a própria pratica da libertação, pratica de libertação erótica da mulher, da libertação pedagógica dos filhos e do povo, de libertação econômica e política dos pobres e das nações subdesenvolvidas etc. É um extenso programa de reflexão e de prática da comunicação, de maneira estratégica e tática. Para a filosofia, a aceitação do “ato-de-fala” interpelativo que provoca uma atuação não é o ponto final; é apenas o inicio! (pag. 126-128)

Segundo Rorty, essa descoberta do Outro – em posição as “metáforas” de Davidson – está em função da “etnografia”, das informações jornalísticas, das historias em quadrinhos, dos curtas-metragens e, de modo especial, das “novelas”, mas nunca da filosofia. ‘Somente os poetas, suspeitos para Nietzsche, conseguem avaliar com exatidão o que é contingente”: a contingência da linguagem. Diga-se de passagem, que é esse mesmo discurso filosófico que nos arrebata esta arma da nossa libertação.

Mais ainda, “segundo a opinião de Freud sobre o inconsciente, a fantasia nos mostra a maneira de encarar qualquer tipo de vida humana como poesia; ou, mais exatamente, de verificar que qualquer tipo de vida humana não está tão atormentada pelo sofrimento, que não consiga aprender uma linguagem, nem tão imersa em árduo trabalho, que não tenha nenhum tempo disponível para, durante ele, forjar tentativa de enclausurar. Ele jamais considera esta vida como uma total tentativa de enclausurar o próprio Eu dentro de suas aproprias metáforas”: é a contingência do egoísmo (selfhood0; um egoísmo, porém incomensurável (impossível de ser completamente avaliado) e ainda mais perigoso quando se apresenta armado com os mais tecnificados, atômicos computadorizados engenhos de guerra... como já presenciamos na Guerra do Golfo.

E, mais um terceiro aspecto, o vocabulário do Iluminismo racionalista se transformou em um obstáculo para as sociedades democráticas. Não se preocupam em “fundamentar” racionalmente o liberalismo, mas apenas em descobrir uma nova linguagem (uma nova metáfora) mais apropriada: “Os cidadãos da minha utopia liberal são pessoas que possuem um senso de contingência da sua linguagem de deliberação moral e, portanto, de suas consciências e, portanto, de sua comunidade”: “Nós, os liberais”. Não se trata apenas do senso publico, mas também do “senso privado de identificação do ironista”. O “ironista” Rorty é um céptico (no bom sentido, como Kierkegaard) como “vocabulário finalista”, mas é também um liberal (“a crueldade é a prior coisa que lês praticam”). Ele é um critico da cotidianidade (“ O contrario da ironia é o senso comum”), mas volta a cair nela quando az exalta de maneira eurocêntrica. Acaba sendo, em ultima analise, um critico do pretenso “senso comum do Ocidente” dentro, porém do seu ponto de vista metafísico, embora, segundo Rorty, Hegel tenha sido um bom “ironista dialético”. A “ironia” nunca poderá ser socializada (“parecer se inerente a ironia que ele seja assunto privado”). “O ironista afeiçoa-se a definição de pessoa enquanto sujeito de moral, moralmente importante demais para que seja algo capaz de ser humilhado. O senso de solidariedade humana de uma pessoa baseia-se em um senso de perigo comum, e não em uma pessoa comum ou eu um poder compartilhado”. (pag.137-139)

Segundo Rorty, “sofrimento é algo não-lingüístico: é aquilo que nós, os seres humanos, temo e que nos liga até mesmo aos animais que não adotam uma língua. É por isso que as vitimas da crueldade, as pessoas que estão sofrendo, não apresentam muita coisa no sentido de linguagem. É por isso que não existe nenhuma coisa final a voz do oprimido ou a linguagem das vítimas. A linguagem das vitimas, usada inicialmente, pára de funcionar, a ponto de elas sofrerem demais para coordenar novas palavras. A tarefa, portanto, de traduzir a situação delas em linguagem terá de ser desempenhada por algum outro em prol deles [...] Normalmente, o teórico liberal não é (essa outra pessoa)” (pag.140)

 A Filosofia da Libertação pode, portanto, estar satisfeita por Rorty colocar, afinal, como problema central a pergunta: “Você está sofrendo?” (are you suffering?). Mas este é um ponto central da sua dissertação, com o único intuito de chegar a um acordo com o outro sobre o vocabulário a ser adotado quando tratar deste assunto: “Você está se afligindo?” (Are you in pain?)”. Ora, é justamente é partir deste assunto que nós poderíamos estabelecer um “dialogo” entre o neopragmatismo de Rorty e a Filosofia da Libertação.

Só que a “intenção” desse diálogo imediatamente nos separaria: segundo Rorty, o dialogo deve girar em torno da Linguagem; segundo a Filosofia da Libertação, porém, em torno do próprio sofrimento do Outro, das causas deste sofrimento e das maneira de superá-lo.

Nós achamos que o nosso filosofo, conseqüente nesses últimos trinta anos co o sue projeto (pelo menos a partir do primeiro artigo de 1965, por nós comentado), ficou finalmente) para falarmos como Foucauld – enredado na ‘rede” do seu próprio ponto de partida: a Filosofia da Linguagem. Como crítico implacável que toma como ponto de partida a própria lógica do pensamento analítico, é aí que ele encontra a única possibilidade de “praticar” a filosofia: em um “dialogo” em que ele fala com alguém sobre diversos tópicos sempre relacionados com a própria Linguagem. Eventualmente, ele também exercita a sua critica, de maneira taxativa, contra certas linguagens criticas da esquerda no plano econômico-político. Resultado: deixa os pobres sem Palavras!

‘Você está sofrendo?”(are you suffering?). Se dentro desse dialogo, o outro respondesse: “sim, estou sofrendo...; estou sofrendo porque estão me torturando, estou sofrendo porque me espancam nas manifestações do meu sindicato, estou sofrendo porque não tenho o que comer, porque não tenho roupa, porque não tenho casa, porque não tenho recurso para pagar a educação de meus filhos, que perambulam como cães pela cidade, órfãos de pai e mãe; sim, eu estou sofrendo...” creio que o dialogo poderia continuar de maneira honesta e séria graças a duas perguntas; a primeira: “Por que sofres?”, e a segunda, inevitável se a solidariedade de Rorty fosse séria: “Como poderei te ajudar?”. Só que, para alguém fazer estas duas perguntas de maneira honesta e séria, é preciso que esteja disposto a “entender”, a “compreender”, a “raciocinar”... sobre o que o Outro me disser. Será preciso utilizar a “razão” para interpretar um “significado”, um “referente”. Além do mais, a descrição do tipo e da causa (do por que) do sofrimento exige que, partindo das estruturas pessoais, privadas (ontogenéticas ou biográficas), examinemos as estruturas sociais e históricas, publicas (filogenéticas ou econômico-políticas). É neste ponto que precisamos concordar co Rorty em abandonar o mero “dialogo”, a fim de nos comprometermos com a utilização pratica da razão. Poderia parece que Rorty se encontra na situação de Sartre em Les Mots ou aquela da canção popular italiana: “Parole, parole, parole...” No mundo da periferia (no assim chamado Terceiro Mundo, do qual Rorty nunca faz qualquer menção, e são 80% da Humanidade!), dos pobres, dos miseráveis, dos marginais das cidades do capitalismo periférico da Índia, da África, da America Latina..., qualquer “dialogo” não consegue evitar este tema: “Tenho fome! Ajude-me!”. A conseqüência necessária é a solidariedade em forma de atuação, em forma de política, em forma de razão estratégica e tática, iniciada como ato de comunicação (segundo Habermas), como cara-a-cara (segundo Lévinas) e partindo da utopia enquanto idéia reguladora ou situação transcendental da ‘Comunidade de pessoas livres”, de Marx.

Ninguém conseguirá ironizar ou banalizar a sua própria fome; muito menos poderá considerar e tratar com espírito cômico (a questão é trágica) a “interpelação” que explode do sofrimento de pobre nem, tampouco, linguagens que tenham explicar as causas destes sofrimentos (como a usada pelo próprio Marx) ou, o que é mais importante. Tendem a eliminá-los na vida pratica. Para concluir, citemos uma “Grande palavra” de uma “Grande Narração” feita por este Marx que atualmente não está em “moda” no diálogo das universidades norte-americanas.

Acredito que este texto ainda tenha sentido hoje em dia em Chicago (principalmente ao falarmos de um negro) ou em Los Angeles (principalmente se tratar de um hispano-americano), em Nova Dehli, em Nairobi ou em São Paulo. Esta “linguagem” tem cabimento ali onde houver “capital; em outras palavras, onde um trabalhador estiver vendendo o seu trabalho por um salário que proporciona lucros e gera ganância (com mais exatidão, Marx diria: mais-valia). É o que está “vigorando” (tornando-se real?) em qualquer lugar do “globo terrestre” (para não mencionarmos a “universalidade”, despertando, assim, este processo antimetafísico e antiessencialista de imunização). (pag.153-156)



[1] Lévinas nos fala do Outro (Autrui) como “pobre”; mas o mesmo o fará Marx, como veremos depois, e dentro de uma mesma tradição, iniciada pelo Schelling já velho e por Feuerbach.

[2]  Citação do texto de Ricoeur (Soi-même comme um autre, p. 382).

[3] Op. Cit., p. 382.

[4] Siglo XXI, Buenos Aires, 1973.

[5]  É aqui que o filosofo sente tristeza, dor e até raiva. Há vinte anos publiquei “em espanhol” uma ética em cinco volumes; e outras palavras, ela ainda está “inédita” para os filósofos do centro (ingleses alemães ou franceses)! Muitos mal-entendidos se terem resolvido se meus colegas tivessem lido esses tomos. Mas, como estão “em espanhol”, é como se não tivesse sido publicados!Em Frances, encontra-se parte do capítulo VI o terceiro deste tomo II, publicado com o titulo “Pensée analéctique et philosophie de la libération”, em Analogie et Analéctique, Labor et Fides, Genebra, 1982, pp. 93-120. Acabo de escrever uma nova versão deste mesmo tema, no debate com Karl-Otto Apel, em Ethik und Befreiung, Argument, Hamburgo, 1990; bem como no trabalho que já mencionei acima, intitulado “La razón del Outro. La interpelación como acto-de-habla (speech act)” (fevereiro de 1991), partindo aqui de um enquadramento filosófico pragmático, e não apenas fenomenológico-transontológico como em 1971.

[6] Pode-se perceber isso bem depressa, através das citações, da bibliografia e da fraqueza dos argumentos a esse respeito.

[7] Veja-se minha obra Filosofia de la Producción América, Bogotá, 1984, na qual desenvolvo toda uma filosofia da poiesis (criatividade, que precisa ser claramente distinguida da práxis, prática).

[8] Veja-se o capítulo 15: “Los Manuscritos del 61-63 y el concepto de dependência”, na minha obra El último Marx (1963-1882), pp. 312ss.

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