Crítica
à ideologia da exclusão
“Síntese Pe. Paolo Cugini,
digitação Winne
Muryanne”
A experiência
inicial da Filosofia da Libertação consiste em
descobrir o “fato” opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem
“senhores” de outros sujeitos, no plano mundial (desde o início da expansão
européia em 1942; fato constitutivo que deu origem a “Modernidade”), Centro-Periferia;
no plano nacional (elites-massas, burguesia nacional-classe operária e povo);
no plano erótico (homem-mulher); no plano pedagógico (cultura imperial,
elitista, versus cultura periférica, popular etc.); no plano religioso (o
fetichismo em todos os níveis) etc... Esta “experiência” inicial vivenciada por
todo latino-americano, até mesmo nas aulas universitárias européias de
filosofia – se expressaria melhor dentro da categoria “Autrui” (outra pessoa
tratada como outro), como pauper
(pobre) [1]. O
pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras
do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita
a manipulação ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados
pela publicidade) não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente,
a “estima de si mesmo” [2]. O
oprimido, o torturado, o que se vê ser destruída a sua carne sofredora, todos
eles simplesmente gritam, clamando por justiça:
-Tenho fome! Não em mates! Tem compaixão de mim! – é o
que exclamam esses infelizes. (pag.18-19)
A filosofia da Libertação já era, no fim da década de
60, o mesmo que Ricoeur exige como necessário, quando escreve: “Falta-nos
conceber aqui um conceito cruzado de alteridade que faça justiça alternadamente
a primazia da estima do eu e aquela da convocação pelo outro a justiça” [3]. A
anterioridade do outro que interpela constitui a possibilidade do “eu próprio”
enquanto reflexivamente valioso, que passar a ser, então, o fundamento do ato
de justiça para com o Outro. (pag.20)
O meu tomo II de Para uma ética de la liberación
latinoamericana[4]
focaliza esta problemática. Ele nos apresentou muitas novidades e, também,
a exigência de se constituírem “novas” categorias na historia da filosofia
política[5];
mas, sobretudo, a necessidade de se desenvolver uma nova “arquitetônica”. A
primeira dessas categorias, a qual tivemos de dedicar toda a nossa atenção, foi
a de “Totalidade” dentro de um mundo oprimido. Ontologia significa pensar no
fundamento, no ser da Totalidade vigente.
O projeto (Entwur ontológico, de Heidegger) do sistema vigente justifica a opressão
do oprimido e a exclusão do Outro. Pouco a pouco se vislumbrou a utopia
(ouk-tópos: “a ausência de lugar” dentro da totalidade); surgiu, assim, o
projeto da libertação Outro. Trata-se da formação de outra Totalidade
analógica, constituída com o que há de melhor na anterior, partindo da exclusão
do Outro. Partindo da interpelação feita a nós pelo Outro e como resposta a
ela, a firmação do Outro enquanto outro
é a origem da possibilidade da negação dialética (a saber, o que eu denominei
de “método analéctico” ou “afirmação primitiva” do Outro). (pag.22-23)
O problema “populista” passou a ser
o ponto central. Era preciso depurar as categorias “povo” e “nação” (assim como
o “popular” e “nacionalista”), para evitar o fascismo e, por outro Aldo,
simultaneamente a ilusão abstracionista do marxismo classista de Althusser ou
do pensamento analítico anglo-saxão, ambos em voga. Foi assim que comecei a me
aprofundar em Marx. Isso iria me afastar, durante anos, da empreitada
hermenêutica (voltando a ela só ocasionalmente, mas com manifestações
divergências a respeito das assimetrias
existentes). (pag.25)
Uma primeira advertência. O retorno sistemático a Marx
que iniciei pelo fim da década de 70 foi devido a três fatos. Em primeiro
lugar, a crescente miséria do continente
latino-americano (que não parou de ficar cada vez mais pobre até chegar à
epidemia de cólera como conseqüência da progressiva desnutrição da maioria do
povo latino-americano). Em segundo lugar, ao desejo de poder levar a termo uma critica do capitalismo, que, tendo
triunfado aparentemente no norte (principalmente a partir de novembro de 1989),
está fracassando redondamente em 75% da humanidade: no sul; na África, na Ásia
e na América Latina. E, em terceiro lugar, a constatação de que a Filosofia da
libertação precisaria primeiro, constituir uma economia e uma política firmes, para só depois apoiar também a
parte pragmática, como aplicação da analítica. Ao invés de estudar os
comentadores europeus de Marx, eu me impus à tarefa de, em seminários,
reinterpretarem Marx integralmente. Minha primeira constatação foi a de
descobrir o abandono em que se encontrava o estudo seio, integro e criativo
sofrido pelas investigações sobre Marx de parte dos “grandes” filósofos
euro-norte-americanos (nos últimos anos não havia lido Marx seriamente.[6]
(pag. 25-26)
Nosso objetivo filosófico latino-americano era o de consolidar a “economia” através da
“poética” ou “tecnológica”, como a entende a Filosofia da Libertação[7];
mas, ao mesmo tempo, o de reformular o conceito de dependência, no intuito de
descrever a causa da diferença Norte/Sul (a “transferência de valor”, devido à
composição orgânica diferente dos capitais das nações desenvolvidas e das
subdesenvolvidas, dentro do processo de competição no capital e no mercado
mundial).[8]
(pag. 26-27)
Para a autora Salazar Bondy, em sua obra Existe uma filosofia em América Latina? a
resposta era negativa: não é possível filosofar dentro de uma situação como
esta! Mas para nós, sim, que tomamos como ponto de partida uma Filosofia da
Libertação, isso é possível, mas somente no caso de o leitor, intérprete ou filósofo
estiverem comprometidos com um processo
prático de libertação: tudo isso resume, exatamente, o tema de uma
filosofia e de uma ética da libertação.
(pag.31)
Sem a “economia”, tanto a “hermenêutica” como a
“pragmática” ficam sem conteúdo “carnal”: são meras comunidades de comunicação
ou de interpretação, sem caráter corporal ou carnal, isto é, sem subsumir em
sua reflexão o nível da “vida”.
Experimentemos pôr em prática a “filosofia econômica”
tal como efetuada por Marx. Nós nos localizaremos dentro da “situação
primitiva” que serve de ponto de partida para a lógica arquitetônica do
desenvolvimento do sistema de categorias de Marx. (pag.33)
A “pessoa” (um
Marx “personalista”?) apresenta-se no “mundo das mercadorias” (ou dos
fenômenos; ambas são expressões frequentes em Marx) graças a sua própria
“corporalidade”. Marx descreve a situação “anterior ao contrato” entre capital e trabalho, dentro do qual o trabalhador
não é “real”, senão pura “possibilidade”, uma vez que não possui condições
“objetivas” para sua própria “realização”. Seu própria ser, sua pessoa, sua
corporalidade não passam de negatividade, de “pobreza” (subjetividade
econômica; não se trata aqui da subjetividade hermenêutica do leitor de um
texto): é a subjetividade imediata de uma corporalidade sofredora, sem recursos,
sem alimento, sem capacidade para reproduzir sua vida; ele é um pobre. Este é o ponto de partida da
Filosofia da Libertação, enquanto “fato” latino-americano, descrito fenomenologicamente
como “fato” ético primeiramente por Lévinas. Agora também Marx o enquadra
dentro de um discurso arquitetônico e categórico e como “critica” a economia
política burguesa da sua época.
Até agora o “trabalho vivo” encontra-se na
exterioridade (ante festum, costumava
dizer Marx, e da mesma forma como apresenta Lévinas) e “negativamente”, como
“coisa” existente, como pura possibilidade não real sem “condições” – “pobre”. É o “não-capital”, o “não-ser”, o
“nada”. Entretanto, previne Marx, esta subjetividade em extrema pobreza é
“positivamente”, uma “potencia”. (pag.38-39)
Filosoficamente, tomando como ponto de referência a ontologia
de Hegel e seu elemento mais abstrato e essencial (o conceito de “realidade”),
Marx desenvolve uma “econômica” de grande aplicação atual. Atualmente, a maioria
da Humanidade (o Sul, os 75% do mundo capitalista, o mundo ex-colonial e
periférico) está submersa na “pobreza”: nem possui “condições” para sua
“realização”, nem as poderá possuir, por razões ecológicas, em um futuro
próximo. Está submersa na mais “absoluta pobreza” e baixará a graus de maior
miséria, Marx é o único filosofo
moderno que elaborou uma “econômica” adequada, apesar de os grandes filósofos europeus e
norte-americanos (sem interpretarem
seriamente Marx, porque ele não está na “moda”) o terem declarado um “cachorro morto”. Par a Filosofia d
Libertação, não é questão de moda, é questão de vida ou morte da maioria da
Humanidade. É uma questão ética
fundamental, em que está em jogo o caráter universal da razão e o sentido
de toda hermenêutica. (pag.40)
É por isso que a filosofia da Libertação considera a
“filosofia da miséria” como sua cláusula principal. (pag.42)
Sem querer me arrogar o direito de representar um
movimento amplo, a Filosofia da
Libertação, que eu ponho em prática desde 1969, toma como ponto de partida
uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da
população latino-america; a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central, a
tomada de consciência da impossibilidade de
uma filosofia autônoma dentro dessas circunstancias; a existência de tipos d opressão que estão a exigir não apenas uma
filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação” (em forma de ação,
em forma de práxis, cujo ponto de partida é a opressão e cuja meta a atingir é
a libertação, já indicada, por exemplo, no machismo ancestral enquanto opressão
da mulher etc). (pag.45-46)
Aquele ‘“Eu”, que se inicia co o “Eu conquisto” do
Cortés ou d Pizarro, praticamente anterior por um século ao ego cogito de Descartes, é causador do
genocídio do índio, da escravidão do negro africano e das guerras coloniais da
Ásia. A maioria da humanidade presente (o “Sul”) é “a outra face” da
Modernidade (não é nem pré-modernidade, nem antimodernidade, nem
pós-modernidade nem pode realizá-la, como pretende Habermas). Em 1976, quando
escrevemos nossa Filosofia de la
Liberación, antes, portanto, do movimento denominado “pós-moderno” europeu,
já criticávamos a modernidade tendo-nos inspirado no Heidegger definitivo para
o uso desse conceito. Na verdade, nós não somos “aquele outro, diferente da razão”, mas, pelo contrario, o
que pretendemos é manifestar eficazmente “a razão do Outro”: do índios
assassinado por genocídio, do escravo africano reduzido a uma mercadoria, da
mulher vilipendiada como objeto sexual, da criança subjugada pedagogicamente
(sujeito “bancário”, como a define Paulo Freire). (pag.47)
O que não pretendemos é uma Filosofia da Libertação do
Outro, isto é, daquele que está fora e distante dos horizonte desse mundo
hegemonias como o econômico-político do (fratricídio), da fálica e castradora
da mulher (do uxoricídio), e, não em ultimo lugar, o do individuo que considera
a natureza como mediação explorável para a valorização do valor capital (ecocídio).
(pag.48)
Segundo Marx, a “moral” ou o “direito” burguês
justifica, a partir de dentro, tudo aquilo a que forem aplicados os seus
próprios princípios. A escravidão é injustiça
para o sistema burguês ou socialista; mas será justa para o sistema escravagista. O trabalho assalariado é injusto para Marx ou dentro do regime
socialista, enquanto institucionalidade que rouba ao trabalhador uma parte do
fruto do seu trabalho (a mais-valia). Neste caso o critério ético é “externo”
anterior ao capital enquanto tal; é o “trabalho vivo”, a pessoa do trabalhador ante festum. Eis ai o critério “ético”,
de dentro do qual parte a “interpelação” – e na qual Lévinas situa-se no
aspecto da “exterioridade” do Outro, enquanto diferente da “Totalidade”
(Totalidade que é tanto o “sistema” quanto a “Lebenswelt” vigente, como já dissemos). (pag. 53)
A “interpretação” seria como que o ato-de-fala daquilo
que Marx metaforicamente denomina de “fantasmas que ficam fora do seu reino”. Tudo isso é esplendidamente manifestado através
do testemunho dado pó Tupac Amaru, inca rebelde do peru em 1781, que, ao ser
julgado e condenado á morte.
O libertador, que assume como sua a “interpelação” do
pobre, acaba sendo declarado pela “moral” vigente como igualmente culpado. São
“fantasmas” de outro reino. (pag.54)
Da nossa parte, como latino-americanos, participantes
de uma comunidade de comunicação periférica
– dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de partida (e não de
chagada) cotidiano, isto é, um a priori
não um ia posteriori – nós precisamos obrigatoriamente encontrar o
“enquadramento” filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de
dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação
ou, pura e simplesmente, de não-fazemos-parte dessa comunidade de comunicação
hegemônica. (pag.60)
Podemos iniciar, pela “interpretação” proveniente da
“exclusão” das pessoas de outras raças, pelo racismo do “apartheid” na África do Sul, pela discriminação, de
palestinos em Israel, ou de afro-americanos e indígenas na America Latina em
geral. O “racialmente excluído” lança, por exemplo, a comunidade de comunicação
real dos “brancos”, uma “interpretação”. Ele cobra os direitos que, como
pessoa, lhe cabem por justiça e que não lhe foram concedidos ou não foram
cumpridos. Tudo o que expusemos no parágrafo 2 deveria ser especificado, agora,
como casos de “interpelação” anti-racista. A luta em defesa de direitos raciais
iguais é um dos temas da Filosofia da
Libertação. (pag.67)
Do mesmo modo, dentro da sociedade capitalista, a
dominação do trabalhador assalariado – que é obrigado a vender seu trabalho
vivo em troca de dinheiro aos dons do capital – enquadra-o como um novo tipo de
“excluído” da comunidade de comunicação dos empresários, capitalistas, membros
ainda hegemônicos no “mundo da vida” da sociedade colonizada por esse “sistema”
controlado por eles. É nisto que consiste a luta de classes (sempre virtual
devido à essência do capital e, com bastante freqüência, efetiva), questão a
que Habermas e Apel não dão atenção, pro não lhes parecer objetiva ou
pertinente. (pag.68)
E, por ultimo, talvez o problema mais grave dos fins
do século XX, que começou em 1492 (quando a America Latina foi incorporada como
primeira periferia européia, uma vez
que tanto a África quanto a Ásia até o século XIX tinham sido apenas uma arena no exterior), e justamente a
distancia que aumenta cada vez mais entre a riqueza do capitalismo central do Norte e a crescente miséria di capitalismo
periférico do Sul. Entenda-se bem: a África, a Ásia e a America Latina (com
exceção da China, do Vietnã, de Cuba e de algum outro pais) são regiões de
“capitalismo dependente”. Este é, então, o tema que precisamos defender em
nosso diálogo: essa “interpelação” que a maioria da Humanidade (uns 75% dela se
encontra no Sul!) lança ao ar, cobrando seus direitos a vida, ao
desenvolvimento de sua própria cultura, econômica, política etc. (pag.69)
A pessoa que “interpela” a partir de fora da “comunidade” real “de produtores/ consumidores”
(cujos objetos materiais sempre também possuem um valor cultural e simbólico),
o “pobre”, apresenta como conteúdo, ponto de referência ou significado do seu
“ato-de-fala” (no enunciado m. 4 ou no de n. 18) a sua corporalidade sofredora (coisa que já estava implícita e
pressuposta da “interpelação” lançada em rosto ao que não assumiria sua re-sponsabilidade perante o Outro). Na
verdade, o ouvinte (O) jamais havia escutado um ato-de-fala que se tornasse
atroador como nos fins do nosso século XX. (pag.76)
Em todo “ato-de-trabalho” (não apenas tecnológico, mas
também econômico) sempre já se pressupõe a
priori, de maneira transcendental, uma “comunidade de produtores” destinada
a reproduzir a vida (humana): ela por sua vez, também pressupõe, em princípio,
uma ética, da mesma forma como em
todo “ato-de-fala” se pressupõe, analogicamente, uma “comunidade de
comunicação”. Mas em ambas estas comunidades (que, na realidade, são dois
aspectos dessa mesma “comunidade humana” em geral) enquanto reais (e não apenas enquanto ideais) sempre existem também “excluídos” os Outros (só que de maneira diferente: uns
como falantes, outros como produtores). Estes “outros”, entretanto, não são
alheios a “razão”, mas são Outros que tem suas “razões” para “propor”, para
“interpelar” contra a exclusão e defender sua inclusão na comunidade de acordo
com a justiça. (pag.77)
Na década de 60, tive a intenção de descrever os
“conteúdos materiais” da cultura latino-americana. Por razões metodológicas,
este projeto se transformou em uma descrição “histórica” – de maneira análoga a
que foi tentada por Taylor - dos conteúdos culturais do mundo Altino-americano.
(pag.80)
Somente a cultura européia moderna, ia partir, portanto, de 1492, é que foi “centro” de um
“sistema mundial”, e uma Historia Mundial, que de certo modo está em contradição (pelos diversos tipos de
“subsunção” e “exterioridade” que nós já indicamos em todas as nossas obras
anteriores) com todas as outras culturas
do planeta Terra, culturas estas que (em primeira instancia) serão
militarmente dominadas em forma de periferia.
Passou despercebido aos filósofos que, devido a este fato, o problema da
“universalidade” foi encarado pela Modernidade de um modo nunca abordado anteriormente. O “eurocentrismo” consiste exatamente
em confundir ou identificar aspectos da universalidade
abstrata (ou até transcendental) humana em geral com momentos da particularidade européia, de fato a primeira particularidade
mundial (em outras palavras, a primeira universalidade humana concreta). A
cultura, a civilização, a filosofia, o subjetivismo e outros elementos moderno-europeus passaram a ser
considerados pura e simplesmente (universal
humano abstrato) como cultura, civilização, filosofia, subjetivismo etc. Grande
parte dos êxitos da Modernidade não representam uma criatividade exclusivamente
européia; mas, sim, uma constante dialética de choque e contrachoque, efeito e
contra-efeito, entre a Europa moderna e sua periferia, até mesmo no tocante ao
que poderíamos denominar de formação paulatina do subjetivismo propriamente
moderno enquanto tal. (pg.87)
O eurocentrismo
de Weber consiste em supor a priori
que os “fenômenos culturais” produzidos “no solo do Ocidente” possuírem com exclusividade e partindo dos eu próprio rumo
evolutivo, já antes do século XVI, a característica de universalidade
implícita, “desde si”. A pergunta deveria ter sido a inversa: será que não foi
esse encadeamento de circunstancias que fez com que, justamente no sôo do
Ocidente e apenas aqui, se produzissem fenômenos culturais que – contra o que
nós sempre imaginávamos – dada a conquista de uma posição central no próprio inicio da historia do sistema mundial, levaram o ocidente moderno a obter vantagens
comparativas que, por sal vez, o estimularam a impor sua própria cultura às
demais, além disso, com pretensões de universalidade? (pag.89)
Poderá parecer um questão insignificante. Mas situar
no século XVII o início das vantagens comparativas já equivale a não ter dado a
devida atenção a conquista da America Latina a partir de fins do século XV e
durante todo o século Xvi. O caso, porém é que justamente durante esta fase
(que eu denomino de “proto-história do ego
cogito”) que se consegue o domínio sobre a America indígena - principalmente
no México até o Peru -, sendo ela como que um trampolim (antes do aparecimento
de Bacon, Newton ou Descartes) para a estruturação das vantagens sobre as
demais culturas afro-asiáticas. Em outras palavras, está se colocando como
“efeito” da racionalização a ciência, o “Eu moderno” (modern self) etc., quem
talvez já tenha sido o “efeito” do centralismo
europeu sobre sua periferia mundial
(centralismo este cultural, econômico, cientifico etc.; mas baseado, em seus
inícios, em uma superioridade técnico-militar em relação ao inicio americano
(que não existiu em relação às culturas afro-asiáticas, que lhe eram iguais ou
até superiores do ponto de vista cientifico e de “racionalização”, como, por
exemplo, o mundo muçulmano, mongólico na Índia, ou chinês). Quanto a esta
interpretação histórica (e, por isso mesmo, analítica) podem estar
completamente equivocados tanto Marx Weber quanto Charles Taylor.
O mesmo acontece com Habermas. De fato, este filosofo
de Frankfurt, ao escrever sobre a réplica critica, acaba manifestando
expressamente o eurocentrismo nos seguintes textos da sua obra El discurso filosófico de la modernidad. (pag.90-91)
Além do mais, como a Modernidade é um fenômeno mundial
(por ser a primeira Era que engloba as culturas do planeta, ou enquanto centro
metropolitano na Europa ou como colônia ou submundo embutido pela Europa na
periferia), esse contradiscurso –
exatamente ele e não outro – teve condições de se manifestar através dessa nova
razão critica européia que se inaugurava e se estruturava paralelamente,
partindo desse Outro dominado e explorado, desse Outro encoberto pela Europa
dominante (que sempre pretenderá negar esse tal contradiscurso). Só que esse
contradiscurso europeu (europeu por sua implantação geográfica) é,
conjuntamente, fruto da Europa central e da periferia dominada. Bartolomeu de las
Casas não poderia ter criticado a Espanha se não tivesse residido na periferia,
se não tivesse escutado os gemidos e presenciado as torturas sofridas pelos
índios. Foi justamente esse Outro que deu origem ao contradiscurso. É evidente
que caberia a Europa, enquanto parte visível desse iceberg, a hegemonia cultural (econômica e política), bem como a
“informação”, tendo sido ela também o “lugar” privilegiado do planeta para a
”discussão” dos problemas mundiais, também filosóficos. Só que essas
manifestações intelectuais, quando são anti-hegemônicas embora filosoficamente
européias (por exemplo, Montaigne, Pascal, Rousseau ou Marx), não são apenas
européias, por não terem origem exclusivamente
européia e, principalmente, pelo seu significado. Além disso, devemos dizer
que na Periferia também existiam manifestações intelectuais (e filosóficas, por
exemplo, Francisco Xavier Clavigero, 1731-1787, no México da época da Kant),
mas sempre como contradiscurso aos pontos de vista da hegemonia mundial
européia e contando apenas com recursos (sources)
provinciais ou regionais. Clavigero não conseguiu publicar suas obras em
espanhol, mas somente em italiano. As culturas da periferia, ele as deixou
isoladas e sem contactos entre si: elas só tinham laços comuns através da
Europa, já que foram antecipadamente reinterpretadas por essa Europa central.
Desta forma, a assim denominada filosofia “européia” não era, então, produto exclusivo da Europa, mas eram produções
da humanidade situada na Europa e que incluíam a contribuição das culturas
periféricas sempre em dialogo essencialmente co-estrutural (pag.92-94)
Por aí se vê que o estudo do pensamento (tradições e
filosofia) na America Latina, Ásia ou África não é uma tarefa episódica ou
paralela ao estudo da filosofia pura e
simplesmente (que seria a européia); mas que se trata de uma história que, com
toda a razão, vem resgatar o
contradiscurso não-hegemônico, dominado, silenciado e esquecido, o da
Alteridade, que constitui a própria modernidade. Kant (filósofo da hegemonia
central) e Clavigero (filósofo da periferia) por outro lado serão no futuro estudados
como duas faces de uma mesma época do pensamento humano. Não há duvida de que
Kant (devido a sua situação hegemônica) tenha produzido uma filosofia critica
que enfrenta o que há de melhor na produção mundial (situada empiricamente na
Europa), podendo ser, por isso mesmo, o ponto de partida durante séculos para
os filósofos do mundo inteiro. Dentro deste sentido estrito, Kant deixa de ser
um pensador exclusivamente europeu, passando a ser um pensador que teve a
oportunidade (por sua situação histórica, política, econômica e cultural) de
produzir uma filosofia de importância mundial.
Mas o pensamento filosófico de
Clavigero, de importância até agora apenas regional por pertencer a uma região
ou Periferia dominada, esquecida depressa dentro dos eu próprio México, é a
“outra face” da Modernidade (ou da totalidade mundial Modernidade/Alteridade),
também tendo, por isso mesmo, importância “mundial”. Futuramente ainda
deveremos estudar mais o fundo o que se produzia filosoficamente neste mundo
periférico para termos uma visão de conjunto. Kant/Clavigero fazem parte de uma
filosofia mundial centro-periférica no século XVIII. A futura história da
filosofia chegará a uma nova visão mundial
da filosofia e irá aprofundar aspectos por enquanto não sonhados, quando
descobrir a riqueza de temas da refração
na Periferia (causadora de uma filosofia periférica) do centro do sistema
(criador na Europa de uma filosofia central, única considerada até agora como
“filosofia”) A filosofia central e as filosofias periféricas são as duas faces
da filosofia na Modernidade e o contradiscurso
(tanto no centro quanto na periferia) é um patrimônio de todos os filósofos do
mundo, e não apenas dos europeus.
Este é um ponto essencial para o nosso projeto
filosófico. A filosofia da Libertação
é um contradiscurso, é uma filosofia crítica que nasce na periferia, mas tem pretensões
de âmbito mundial. Ela tem consciência expressa
de ser periférica, mas possui, ao mesmo tempo, pretensões de âmbito mundial.
Ela enfrenta conscientemente uma filosofia européia
(tanto a pós-moderna como a moderna, tanto a do comportamento como a
comunitária) que confunde e até mesmo identifica sua característica européia
concreta com o seu ignorado caráter funcional de “filosofia central” durante
cinco séculos. Discernir entre a: a) europeidade concreta – isto é, sua própria
moral (Sittlichkeit) ou ambiente
vital (Lebenswelt) europeus – b), a
posição funcional de “centro” que coube a Europa exercer, e c) a estrita
universalidade, iria fazer com que a filosofia européia despertasse de um
profundo sono em que estava submersa desde sua origem moderna. É que seu
“eurocentrismo” já estava completando, exatamente, cinco séculos.
Para isso seria preciso adquirir e manter uma
conscientização explicita desse novo
“horizonte”, tendo o sempre presente, do Outro colonial, do bárbaro, dessas
culturas em posição assimétrica, dominadas, “inferiores”; como fonte essencial
e indispensável para a estruturação da identidade do Eu moderno (essential Source in the constitution of the
identity of the modern Self), como fonte permanente, co-estruturadora. A
desconsideração desse Outro na estruturação do “Eu moderno” (modern self) é que invalida, na prática,
toda a analise histórica de Taylor, dado seu caráter eurocêntrico. E o
resultado dessa analise é apenas a descoberta de um dos aspectos da identidade
moderna, centralizada em si própria. Ela não representa a identidade da
modernidade, dialeticamente estruturada a partir da negação de sua alteridade (suposta [gasetzt], segundo Hegel, como
não-identidade consigo mesma, alienada), existência esta que é a “outra face”
da modernidade.
Precisamos, finalmente, sublimar que a reconstrução
histórica latino-americana deveria, além disso, ser elaborada a partir de
critérios universais. Em vista disso, e sem abandonar o nível empírico do
“ser-no-mundo” ou da “Lebenswelt” de Husserl, a Filosofia da Libertação
construiu categorias universalizantes que se projetam bem além de qualquer télos histórico-concretos. (pag.95-97)
Dentro de um “mundo” ou conjunto de uma cultura, já
que toda cultura é etnocêntrica, de um ethos,
de uma “comunidade de comunicação real” etc., sempre e a priori é impossível negar a existência de um Outro. Segundo
Aristóteles, na escravatura, o escravo não era considerado “humano”; segundo
Tomás de Aquino, na época do feudalismo, os ervo “simpliciter” (simplesmente)
não fazia parte da “civitas”; segundo Adam Smith, o assalariado (que vende os
eu trabalho) não era proprietário do fruto dos eu trabalho (e isto por uma
“situação de” segunda “natureza”, que se sobrepunha ao estado primitivo da
natureza); de acordo com o machismo, a mulher era um objeto sexual, obediente
“ama do lar”...; na sociedade patriarcal, a criança não possui direitos...; nas
culturas depredadoras ecológicas da natureza, as futuras gerações também não
têm direitos... Todos esses “Outros” - invisíveis e cada Totalidade, “mundo da
vida”, em determinado ethos (também o
moderno “central”, analisado por Taylor) – são negados, sem qualquer
“consciência ética” ao Outro, ao oprimido. O télos ou bem de uma cultura, e uma Totalidade, não pode ser necessariamente o fundamento definitivo
da moralidade dos atos. Ele o será apenas “por enquanto”, até se descobrir o
Outro negado nesse tipo de sistema.
Foi dentro deste contexto que a filosofia da
Libertação tentou superar a incomensurável relatividade dos sistemas
apresentados e apelar para um transcendentalismo formal-histórico que evite aos
inconvenientes dos “comunitaristas”, sem cair no relativismo. A ordem de
combate que se enuncia, então, é a seguinte: ‘Liberte a pessoa indignamente
tratada neste Outro oprimido!”Este principium
oppressionis é absoluto (vale para todo
sistema existencial ou funcional) e é sempre concreto (não é abstrato). É partindo do ethos concreto, da
‘Sittlichkeit” de Hegel, do “mundo” de Heidegger e da “vida cotidiana” de
Taylor que “se descobre” que o Outro está sendo negado. É possível “descobrir o
“escravo” como uma pessoa negada de maneira transcendental, abstrata ou
universal. A filosofia da Libertação tenta descrever a lógica da Totalidade
como totalização (otologia da “sociedade fechada”, como a apresentada por
Popper); e uma outra lógica a partir da qual se torna possível descobrir o
Outro como pessoa negada (a lógica da Alteridade).
Os heróis helênicos de Aristóteles caçavam escravos
com consciência “tranqüila”, “boa”, da mesma forma como o herói da
autenticidade moderna conquistou a América dos índios, escravizou a África e explorou
a Ásia, justificando tudo com o “bem” e o “hiperbem”, exatamente como Hegel
afiram ao falar do gentleman inglês:
“Os ingleses se
transformaram em missionários da civilização no mundo inteiro”. (pag.110-112)
Podemos concluir, englobando, que de centro modo volta
a repetir-se a critica ontológica d Hegel (Taylor) contra o formalismo de Kant
(Habermas e Apel), questão esta que coincide com a própria origem da Filosofia
da Libertação. É obvio que permeia um século e meio de historia entre o Hegel
real e nós; mas naquela época já encontramos o Schelling da ultima fase, Marx,
Lévinas e muitos outros. O debate se trata, portanto entre: 1) uma “moralidade
formal”, 2) uma “eticidade concreta” e 3) um tertium quid não tomando em conta no debate euro-norte-americano.
E, o que é mais importante, esse tertium
se situa dentro da perspectiva de uma periferia mundial empobrecida, explorada
e excluída (a grande atingida ausente); em outras palavras, ele toma como ponto
de partida uma alteridade ética mundial” (que tenta superar tanto a
“moralidade” formal – a de Kant ou a profundamente “transformada” pro Apel e
Habermas – quanto à “eticidade” substancial – a de Hegel e Heidegger ou a
“comunitária” de Taylor ou Macintyre). A alteridade permite superar o universalismo
formal da moralidade, pro um lado, e, por outro lado, a substancialidade
concreta da eticidade, partindo dos horizontes de uma nova problemática. O posicionamento
da Filosofia da Libertação parecerá estar concordando com Taylor por recomendar
que se recuperem os aspectos positivos desse “mundo da vida” orientado por bens
(contra Habermas ou Apel); mas ao mesmo tempo, descobre critérios “formais” que
permitem a critica de toda totalidade ontológica, sistêmica ou Sittlichkeit (contra Taylor), partindo
do princípio ético da alteridade do outro (indo bem mais além de Habermas ou
Apel).
O projeto de Libertação dos oprimidos e dos excluídos é aberto, partindo da exclusão do
Outro e indo mais além (jenseits) de
qualquer situação apresentada. A estruturação de alternativas – mesmo que fosse
necessária (o que não podemos descarta a
priori) a de uma utopia ou a de uma nova sociedade – não consiste na
“aplicação” de algum modelo ou situação ideal ou transcendental, nem tampouco
na execução autêntica de um determinado “mundo da vida” (quer seja ele o
moderno ou outro diferente), muito menos se for idealizado como efeito
indestrutível de uma lógica necessária (a da teologia ou razão histórica de
Hegel ou a o marxismo standard ou e
Stalin); mas deverá ser uma “des-coberta” responsável, como resposta a
“interpelação” do Outro, dentro de um lento processo de prudência (em que a
teoria de uma “comunidade de comunicação real”- que racional e processualmente
chega a um consenso de validade intersubjetiva – nos ajuda a compreender melhor
o progredir seletivo da frónesis de
libertação), durante o qual o filosofo (tal como o “intelectual orgânico” de
Gramsci deve tratar como seriedade as motivações éticas (com Taylor) da
libertação dos oprimidos e excluídos. (pag.118-120)
Em outras palavras, a filosofia de Rorty parte de uma
situação empírica, concreta e, historicamente, acadêmica e universitária, em
que a filosofia analítica está em “jogo” no meio de outros “jogos de
linguagem”. Dentro desta “situação” universitária e acadêmica, a “posição”
pessoal de Rorty é critica em duas fretes de combate: 1) perante sua antiga
comunidade de filósofos analíticos; 2) perante os filósofos que adotam noções
metafísicas (como, por exemplo, o tomismo tradicional) ou racionalizações
universalistas (que seria o “posicionamento” de um Karl-Otto Apel). Quer dizer,
cepticismo versus filosofia analítica
e versus racionalismo universalista.
Rorty se propõe afirmar a solidariedade
em face à dor (“pain”) e contra a crueldade (“cruelty”) – opondo-se, por
exemplo, ao posicionamento de um Lyotard -, atitude esta profundamente ética
que, pensa ele, poder ser adotado sem precisar recorrer a “razões”! universais.
Seu “posicionamento” é o de uma pessoa solidária em face à dor (“pain”) de
qualquer Outro em abstrato, tomando como ponto de partida a situação
contingente de quem assume, em caráter de participação, os conteúdos doe seu Lebenswelt (da sua vida cotidiana).
(pag.125)
A filosofia da Libertação, ao invés, parte de uma
‘situação” diferente: situa, desde o início a filosofia dentro do contexto da
vida pratica concreta, dentro do comportamento e solidariedade com o oprimido
(com o pobre explorado na periferia
do capitalismo, com a mulher dominada pelo machismo, com o negro racialmente
discriminado, com as culturas e etnias não-hegemônicas, com os ecologicamente
responsáveis pelas futuras gerações etc.). Não se trata, em primeira linha, de
uma reflexão sobre a palavra, a
linguagem, o “texto”, ou sobre o “livro”, na qualidade de observadores
externos. Trata-se, sito sim, de uma presença pratica e concreta “em” ou
“dentro” dos movimentos populares, feministas, ecologistas ou anti-racistas; na
relação “cara-a-cara” imediata na qualidade de” intelectual orgânico”, dando,
sem qualquer duvida, prioridade a “atuação comunicativa” (ou ao elemento
evolucionário do “ato-de-fala” [Speech
Act]), que é o ponto de partida com que o pensamento filosófico inicia sua
tarefa, isto é, começa a exercer sua função enquanto
reflexão (ato segundo) sobre o práxis enquanto tal (ato primeiro). É que a
mediação exercida mediante a analise de um texto – seja ele “analítico”
(partindo da Linguistic Turn), seja ele “hermenêutico” (à maneira do
“trabalho do leitor” [“travail du lecteur] apresentado por Ricoeur) – é sempre a posteriori e, algumas vezes, inexistentes,
como no caso da práxis de um analfabeto que não se expressa por escrito. O
ponto de partida é um sofredor (“Eu estou sofrendo...”), mas enquanto oprimido
dentro do plano político, erótico, concreto e que vem a tona enquanto sujeito em busca de libertação; e não
partindo da sala acadêmica de uma universidade, nem tampouco pura e
simplesmente enquanto disputa entre escolas filosóficas lingüísticas ou
analíticas. O ponto de partida é o pobre ou oprimido, que trabalha dentro
destas condições corporais de sofredor e necessitado. Por ai se vê que é
prioritário e necessário estruturar a “econômica” a partir desse oprimido, a
partir do sofrimento (pain) enquanto miséria (Elend, diria Marx) a
que está sujeita a pessoa subjugada (momento ético). É um ponto de partida, um
“we” (nós) que se situa “bem mais além” na exterioridade das “we-intentions” –
dominadoras, hegemônicas, centrais, vigentes – da “liberal irony”. É evidente
que o oprimido (como os da “Visão dos vencidos” em face à conquista da América)
também possui a sua própria linguagem, a “voz do oprimido”; só que esta passa
para o opressor e chega até ele na qualidade de “não-linguagem”... até o dia em
que um solidário “liberal ironist” a traduza
para a linguagem dominadora das “we-intentions” de Rorty (a fim de que esta a
aceite como linguagem, mesmo que seja a linguagem da Filosofia da Libertação).
Pode-se tomar como ponto de partida o sofrimento (pain) – como o faz Rorty ou a Filosofia
da Libertação -, mas são oportunas algumas perguntas: Que tipo de sofrimento? E quais são as causas desse sofrimento?
A Filosofia da Libertação, tendo já acolhido ética e
racionalmente a “interpelação” do oprimido, precisará, então, refletir sobre
toda a problemática que pressupõe e determina a própria pratica da libertação,
pratica de libertação erótica da mulher, da libertação pedagógica dos filhos e
do povo, de libertação econômica e política dos pobres e das nações
subdesenvolvidas etc. É um extenso programa de reflexão e de prática da
comunicação, de maneira estratégica e tática. Para a filosofia, a aceitação do
“ato-de-fala” interpelativo que provoca
uma atuação não é o ponto final; é apenas
o inicio! (pag. 126-128)
Segundo Rorty, essa descoberta do Outro – em posição
as “metáforas” de Davidson – está em função da “etnografia”, das informações
jornalísticas, das historias em quadrinhos, dos curtas-metragens e, de modo
especial, das “novelas”, mas nunca da filosofia. ‘Somente os poetas, suspeitos
para Nietzsche, conseguem avaliar com exatidão o que é contingente”: a contingência da linguagem. Diga-se de
passagem, que é esse mesmo discurso filosófico que nos arrebata esta arma da
nossa libertação.
Mais ainda, “segundo a opinião de Freud sobre o inconsciente,
a fantasia nos mostra a maneira de encarar qualquer tipo de vida humana como poesia;
ou, mais exatamente, de verificar que qualquer tipo de vida humana não está tão
atormentada pelo sofrimento, que não consiga aprender uma linguagem, nem tão
imersa em árduo trabalho, que não tenha nenhum tempo disponível para, durante
ele, forjar tentativa de enclausurar. Ele jamais considera esta vida como uma
total tentativa de enclausurar o próprio Eu dentro de suas aproprias metáforas”:
é a contingência do egoísmo (selfhood0;
um egoísmo, porém incomensurável (impossível de ser completamente avaliado) e
ainda mais perigoso quando se apresenta armado com os mais tecnificados,
atômicos computadorizados engenhos de guerra... como já presenciamos na Guerra
do Golfo.
E, mais um terceiro aspecto, o vocabulário do Iluminismo
racionalista se transformou em um obstáculo para as sociedades democráticas.
Não se preocupam em “fundamentar” racionalmente o liberalismo, mas apenas em
descobrir uma nova linguagem (uma nova metáfora) mais apropriada: “Os cidadãos
da minha utopia liberal são pessoas que possuem um senso de contingência da sua
linguagem de deliberação moral e, portanto, de suas consciências e, portanto,
de sua comunidade”: “Nós, os liberais”. Não se trata apenas do senso publico,
mas também do “senso privado de identificação
do ironista”. O “ironista” Rorty é um céptico (no bom sentido, como
Kierkegaard) como “vocabulário finalista”, mas é também um liberal (“a
crueldade é a prior coisa que lês praticam”). Ele é um critico da cotidianidade
(“ O contrario da ironia é o senso comum”), mas volta a cair nela quando az
exalta de maneira eurocêntrica. Acaba sendo, em ultima analise, um critico do
pretenso “senso comum do Ocidente” dentro, porém do seu ponto de vista
metafísico, embora, segundo Rorty, Hegel tenha sido um bom “ironista
dialético”. A “ironia” nunca poderá ser socializada (“parecer se inerente a
ironia que ele seja assunto privado”). “O ironista afeiçoa-se a definição de
pessoa enquanto sujeito de moral, moralmente importante demais para que seja algo capaz de ser humilhado. O senso de
solidariedade humana de uma pessoa baseia-se em um senso de perigo comum, e não
em uma pessoa comum ou eu um poder compartilhado”. (pag.137-139)
Segundo Rorty, “sofrimento é algo não-lingüístico: é
aquilo que nós, os seres humanos, temo e que nos liga até mesmo aos animais que
não adotam uma língua. É por isso que as vitimas da crueldade, as pessoas que
estão sofrendo, não apresentam muita coisa no sentido de linguagem. É por isso
que não existe nenhuma coisa final a voz
do oprimido ou a linguagem das
vítimas. A linguagem das vitimas, usada inicialmente, pára de funcionar, a
ponto de elas sofrerem demais para coordenar novas palavras. A tarefa, portanto, de traduzir a situação delas em
linguagem terá de ser desempenhada por algum outro em prol deles [...]
Normalmente, o teórico liberal não é (essa outra pessoa)” (pag.140)
A Filosofia da
Libertação pode, portanto, estar satisfeita por Rorty colocar, afinal, como
problema central a pergunta: “Você está sofrendo?” (are you suffering?). Mas
este é um ponto central da sua dissertação, com o único intuito de chegar a um
acordo com o outro sobre o vocabulário a ser adotado quando tratar deste
assunto: “Você está se afligindo?” (Are
you in pain?)”. Ora, é justamente é partir deste assunto que nós poderíamos
estabelecer um “dialogo” entre o neopragmatismo de Rorty e a Filosofia da
Libertação.
Só que a “intenção” desse diálogo imediatamente nos
separaria: segundo Rorty, o dialogo deve girar em torno da Linguagem; segundo a
Filosofia da Libertação, porém, em torno do próprio sofrimento do Outro, das
causas deste sofrimento e das maneira de superá-lo.
Nós achamos que o nosso filosofo, conseqüente nesses
últimos trinta anos co o sue projeto (pelo menos a partir do primeiro artigo de
1965, por nós comentado), ficou finalmente) para falarmos como Foucauld –
enredado na ‘rede” do seu próprio ponto de partida: a Filosofia da Linguagem.
Como crítico implacável que toma como ponto de partida a própria lógica do
pensamento analítico, é aí que ele encontra a única possibilidade de “praticar”
a filosofia: em um “dialogo” em que ele fala com alguém sobre diversos tópicos
sempre relacionados com a própria Linguagem. Eventualmente, ele também exercita
a sua critica, de maneira taxativa, contra certas linguagens criticas da
esquerda no plano econômico-político. Resultado: deixa os pobres sem Palavras!
‘Você está sofrendo?”(are you suffering?). Se dentro desse dialogo, o outro respondesse:
“sim, estou sofrendo...; estou sofrendo porque estão me torturando, estou
sofrendo porque me espancam nas manifestações do meu sindicato, estou sofrendo
porque não tenho o que comer, porque não tenho roupa, porque não tenho casa, porque
não tenho recurso para pagar a educação de meus filhos, que perambulam como cães
pela cidade, órfãos de pai e mãe; sim, eu estou sofrendo...” creio que o
dialogo poderia continuar de maneira honesta e séria graças a duas perguntas; a
primeira: “Por que sofres?”, e a segunda, inevitável se a
solidariedade de Rorty fosse séria: “Como poderei te ajudar?”. Só que, para
alguém fazer estas duas perguntas de maneira honesta e séria, é preciso que
esteja disposto a “entender”, a “compreender”, a “raciocinar”... sobre o que o Outro me disser. Será preciso
utilizar a “razão” para interpretar um “significado”, um “referente”. Além do
mais, a descrição do tipo e da causa
(do por que) do sofrimento exige que,
partindo das estruturas pessoais, privadas (ontogenéticas ou biográficas),
examinemos as estruturas sociais e históricas, publicas (filogenéticas ou
econômico-políticas). É neste ponto que precisamos concordar co Rorty em
abandonar o mero “dialogo”, a fim de
nos comprometermos com a utilização pratica da razão. Poderia parece que Rorty
se encontra na situação de Sartre em Les
Mots ou aquela da canção popular italiana: “Parole, parole, parole...” No
mundo da periferia (no assim chamado Terceiro Mundo, do qual Rorty nunca faz
qualquer menção, e são 80% da Humanidade!), dos pobres, dos miseráveis, dos
marginais das cidades do capitalismo periférico da Índia, da África, da America
Latina..., qualquer “dialogo” não consegue evitar este tema: “Tenho fome!
Ajude-me!”. A conseqüência necessária é a solidariedade em forma de atuação, em
forma de política, em forma de razão estratégica e tática, iniciada como ato de
comunicação (segundo Habermas), como cara-a-cara (segundo Lévinas) e partindo
da utopia enquanto idéia reguladora ou situação transcendental da ‘Comunidade
de pessoas livres”, de Marx.
Ninguém conseguirá ironizar ou banalizar a sua própria
fome; muito menos poderá considerar e tratar com espírito cômico (a questão é
trágica) a “interpelação” que explode do sofrimento de pobre nem, tampouco,
linguagens que tenham explicar as causas destes sofrimentos (como a usada pelo
próprio Marx) ou, o que é mais importante. Tendem a eliminá-los na vida
pratica. Para concluir, citemos uma “Grande palavra” de uma “Grande Narração”
feita por este Marx que atualmente não está em “moda” no diálogo das
universidades norte-americanas.
Acredito que este texto ainda tenha sentido hoje em
dia em Chicago (principalmente ao falarmos de um negro) ou em Los Angeles (principalmente
se tratar de um hispano-americano), em Nova Dehli, em Nairobi ou em São Paulo. Esta
“linguagem” tem cabimento ali onde houver “capital; em outras palavras, onde um
trabalhador estiver vendendo o seu trabalho por um salário que proporciona
lucros e gera ganância (com mais exatidão, Marx diria: mais-valia). É o que
está “vigorando” (tornando-se real?) em qualquer lugar do “globo terrestre”
(para não mencionarmos a “universalidade”, despertando, assim, este processo
antimetafísico e antiessencialista de imunização). (pag.153-156)
[1] Lévinas nos fala do Outro (Autrui)
como “pobre”; mas o mesmo o fará Marx, como veremos depois, e dentro de uma
mesma tradição, iniciada pelo Schelling já velho e por Feuerbach.
[2] Citação do texto de Ricoeur
(Soi-même comme um autre, p. 382).
[3] Op. Cit., p. 382.
[4] Siglo XXI, Buenos Aires, 1973.
[5] É aqui que o filosofo sente tristeza,
dor e até raiva. Há vinte anos publiquei “em espanhol” uma ética em cinco
volumes; e outras palavras, ela ainda está “inédita” para os filósofos do
centro (ingleses alemães ou franceses)! Muitos mal-entendidos se terem
resolvido se meus colegas tivessem lido esses tomos. Mas, como estão “em
espanhol”, é como se não tivesse sido publicados!Em Frances, encontra-se parte
do capítulo VI o terceiro deste tomo II, publicado com o titulo “Pensée
analéctique et philosophie de la libération”, em Analogie et Analéctique, Labor et Fides, Genebra, 1982, pp. 93-120.
Acabo de escrever uma nova versão deste mesmo tema, no debate com Karl-Otto
Apel, em Ethik und Befreiung, Argument,
Hamburgo, 1990; bem como no trabalho que já mencionei acima, intitulado “La
razón del Outro. La interpelación como
acto-de-habla (speech act)”
(fevereiro de 1991), partindo aqui de um enquadramento filosófico pragmático, e
não apenas fenomenológico-transontológico como em 1971.
[6] Pode-se perceber isso bem depressa, através das citações, da
bibliografia e da fraqueza dos argumentos a esse respeito.
[7] Veja-se minha obra Filosofia
de la Producción América, Bogotá, 1984, na qual desenvolvo toda uma
filosofia da poiesis (criatividade, que
precisa ser claramente distinguida da práxis,
prática).
[8] Veja-se o capítulo 15: “Los Manuscritos del 61-63 y el concepto de
dependência”, na minha obra El último
Marx (1963-1882), pp. 312ss.
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