Ed.DIFEL, Rio de Janeiro 2010
Síntese: Pe Paolo Cugini
Digitação: Carine Almeida Souza
Do sentido da vida: o recuo de uma questão
Acostuma-se com a impermanência ou ter fé na perenidade da vida? A oposição parece, em primeira abordagem, total. Mas talvez ela esconda uma afinidade mais secreta. Pois, para o cristão, como para o budista, é diante da finitude que a questão do sentido se desenvolve. Tanto para um quanto para o outro, o sábio é aquele que para ela se separa, desviando-se do “ter”, dos apegos e das posses deste mundo, valorizando o “ser”. A lógica da felicidade não é a única válida. (p. 11)
A banalidade do luto
A realidade última, a única a valer quando se trata do sentido da existência, não é aquela do “exemplar”, mas a do indivíduo único e singular. Com a ajuda do crescimento do individualismo, diminuiu o sentido se que o sentido da vida poderia vir de uma “contribuição” trazida a uma edificação grandiosa, trate-se ela da ciência, do socialismo, da pátria, para não falar de nossa construção européia...
Sob a aparente banalidade do mal, foi como um temível desafio que nos confrontamos: das respostas trazidas, pela maneira como adequamos os medos que ele suscita, dependem também as formas de vida que escolhemos ou aceitamos. Durante milênios, o sentido do sagrado inspirou todas as esferas da cultura humana, da arte à política, da mitologia á ética. Talvez fosse ilusório, mas era grandioso. Nossas morais sem transcendência podem compensar esse recuo do divino? Devem fazê-lo? Será que a ocultação das sabedorias antigas tornou-se tal, que a questão mais essencial de todas, essa do sentido da nossa vida, simplesmente se tornou derrisória? È possível, mas não está confirmado. Resta-nos, realmente, apenas a escolha entre as religiões constituídas e as psicoterapias? Ou ainda a coragem, para quem recusa tanto umas quanto outras? (p. 15 e 16)
A secularização e o esquecimento do sentido
A hipótese que eu gostaria de formular é a de que esse relativo sentimento do vazio nada tem de anedótico, mas está, bem pelo contrário estruturalmente ligado a um dos motivos mais essenciais do mundo leigo. Eu disse “relativo” por ter consciência de sua característica fugidia: podem-se viver em nossas sociedades modernas e, afinal de contas, nem tão mal assim, sem nunca se colocarem as questões fundamentais aqui evocadas. Podem até mesmo ser encontradas nisso dificuldades materiais tais que levem, pelo menos por algum tempo, a que elas sejam relegadas a um segundo plano. (p. 18 e 19)
No entanto, insisto em pensar que é superficial a idéia, tantas vezes levantada, de um vazio momentâneo, que um novo “grande propósito” logo viria preencher. (p. 19)
Foi nesse remanejamento secular do religioso que, em grande parte, residiu o extraordinário poder de fascínio que o comunismo exerceu durante um século e meio. Como, de outra forma, compreender que dezenas, ou mesmo centenas de milhões de homens nele se tenham inteiramente lançado? A religião é insubstituível como fornecedora de sentido. (p. 20)
Foi essa relação com o sentido, tanto da história mundial quanto da vida pessoal, que esvaneceu sem que nada tenha vindo substituí-la nesse terreno. E foi pela laicização do nosso universo que uma doutrina, ainda de certo modo religiosa, naufragou no Ocidente, antes até que a Perestroika lhe desse fim, no campo soviético. Por essa razão, o fim do comunismo implicou um vazio maior do que se disse, um vazio que não poderia ser preenchido por qualquer ideologia substituta, a menos que possuísse as mesma virtudes teológicas. Mas é este o ponto sensível: os avanços da laicidade, paralelamente aos do individualismo, criaram por todo lado obstáculos ao retorno dos dogmas e dos argumentos de autoridade. Com o naufrágio do marxismo, não foram somente as idéias políticas que animaram a vida de milhões de indivíduos que se viram invalidadas, mas também toda uma visão teológica da política. Não se trata, agora, de um simples período passageiro, uma investida provisória na esfera privada, destinado a logo ser ultrapassado pela emergência de um novo grande propósito, ecológico ou de outro tipo. Com toda evidência, a crise é estrutural, “historial”, por assim dizer, isto é, ligada a erosão que o universo leigo e democrático impingiu, sem exceção, a todas as formas tradicionais de religiosidade. (p. 21)
A busca do sentido, tomada dentro da lógica da secularização democrática, se conclui muitas vezes por uma ocultação ainda mas radical. (p. 22)
O budismo revisto: do esquecimento do sentido á sua negação
Qual é, de fato, a mensagem essencial que a maioria dos ocidentais conserva primeiramente do budismo? Comte-sponville, que parece em seus primeiros livros se identificar com a prática budista, formulou-a em termos concisos: contrariamente a certa idéia-feita, não é a esperança, mas, em sentido próprio, a dês-esperança que é a condição para a felicidade autêntica. Para se persuadir, basta refletir a isto, por um instante: esperar, por definição, é não está feliz, mas é estar sim na esperança, na falta, no desejo insatisfeito e impotente: “esperar é desejar sem gozo, sem saber, sem poder” (p. 24)
A finalidade de uma existência autêntica? Ela reside na desconstrução radical das ilusões do Eu: é quem, sempre, tem “vínculos”. É quem, sempre, egoísta, resiste e se agarra ás diversas posses, em vez de se fundir, como por antecipação, no espírito universal e impessoal ao qual deveria sabiamente pertencer. Pois a ilusão do vínculo, que nos faz “fortemente desejar belas pessoas, belas coisas ou experiências agradáveis nada é senão conseqüência da ilusão primeira, da qual dependem todas as demais e que é a do “si mesmo”. A partir daí, “o antídoto que vai eliminar as ilusões é a sabedoria, realizando a ausência de si”. (p. 26)
A estrutura pessoal do sentido
Pode-se colocar o seguinte axioma: não tem ou não faz sentido tudo que for alheio a uma vontade, mesmo que inconsciente, como em lapso, tudo que não for, de alguma forma, manifestação de uma subjetividade: assim, por exemplo, ninguém há de perguntar qual o “sentido” de uma árvore, de uma mesa ou de um cão. Mas, por outro lado, pode-se perguntar qual o sentido (o que quer dizer) de uma palavra, de uma observação, de uma atitude, de uma expressão facial, de uma obra de arte ou de qualquer outro sinal, em geral, do qual supõe, de maneira certa ou errada, ser ele expressão de uma vontade qualquer, o sinal de uma personalidade qualquer. (p. 30 e 31)
O fim do teológico-ético
Para a maioria de nós, então, a lei moral perdeu, após a lei jurídica, sua característica sagrada ou, pelo menos, sua ligação com fontes religiosas reveladas. Como o restante da cultura moderna de que participa, ela se colocou na “escala humana”. O fim do teológico-político – esse eclipse da teologia moral que João Paulo II não parou de denunciar – nos faz, desse modo, entrar em um círculo do qual é difícil, senão impossível, se abstrair: as questões existenciais, cujas respostas eram mais ou menos automáticas no universo tradicional, passaram a surgir com uma acidez inédita nas sociedades democráticas, onde são tragadas no turbilhão infinito da autonomia. (p. 33)
Fica claro, primeiramente, que a exigência da “preocupação com o outro” e até mesmo, se for o caso, do “dom de si” não desapareceu das grandes éticas leigas. Que elas determinem lutar contra o egoísmo, em nome de uma ação desinteressada, ou preferir a felicidade da maioria àquela de um só, nossas morais modernas estampam ideais que se pretendem, de certo modo, superiores à vida. È o critério, contra o qual já se irritava Nietsche, mais comprovado de um pensamento ainda “religioso”. Supor certos valores transcendem à própria vida é, de fato, trazer de volta, mesmo que no campo de ateísmo, a estrutura sem dúvida mais essencial de qualquer teologia: essa da vida cá na Terra e a do além. Pois bem, por esse dualismo as morais humanistas não se põe absolutamente de luto. Mais vale ser “vermelho do que morto”, colaborador do que prisioneiro em campo de concentração, pacifista muniquense do que partidário de uma guerra justa? Tais questões, e algumas outras do mesmo tipo, não param de perturbar a consciência moderna. (p. 35)
Recusa dos argumentos de autoridade ou rejeição da transcendência?
A idéia de que deveriam aceitar uma opinião por ser ela a das autoridades, quaisquer que sejam, inspira tão essencialmente náuseas aos Modernos, que ela pode ser usada para os definir. (p. 39)
Na visão moderna de rejeição dos argumentos de autoridade, todas as esferas em que se forma uma crença estão igualmente submetidas ao princípio da presença para si, sejam elas espirituais, éticas, estéticas ou, é claro, científicas: vi, de fato, o que acredito ter visto, não me terei enganado, não fui induzido por meus sentidos ou por algum artifício ilusório que me tenha escapado? Nesse caso, a experiência que pensei ter vivido não seria realmente minha, já que eu estava, sem me dar conta, afastado de mim mesmo, literalmente fora de mim, ou ao lado. (p. 40)
A transcendência na imanência
A fenomenologia desenvolveu uma tese cujo alcance ultrapassa muito o quadro estreito de filosofia de professor. Ela procura mostrar, em um paradoxo que resume todo o seu objeto, que meus conteúdos de consciência contêm mais do que efetivamente contêm, que há, por assim dizer, uma parte invisível em tudo que é visível, uma ausência no seio de toda presença. Mesmo sem recorrer a um raciocínio de ordem intelectual, não deixo de “perceber” certas estruturas que, em sentido próprio, não se colocaria efetivamente em minha consciência, se esta fosse um puro espelho objetivo, um simples aparelho de registro (máquina fotográfica ou gravador). Evocando um exemplo famoso, quando digo que “vejo” um cubo, na verdade vejo apenas três faces dele. O que, stricto sensu, é “efetivamente imanente” em mim são essas faces, não o cubo como tal, cujas seis faces, que não podem ser vistas “de uma só vez”, transcendem sempre o que realmente se coloca em minha representação subjetiva. No entanto, essa transcendência sem dúvida está, em outro sentido, também “em mim”: não preciso de qualquer demonstração para “saber” que tenho, diante de mim, um cubo. Ninguém vai dizer: “estou vendo ali três quadrados e deduzo, por isso, que deve se tratar de um cubo...”. Não está errado, então, afirmar que minha percepção contém “mais do que ela contém”. (p. 43 e 44)
Essa “transcendência imanente” é, por excelência, receptora da significação última das experiências vividas: a frase musical não teria sentido algum se eu só percebesse nela (o que seria o caso se eu fosse um puro gravador de som) uma seqüência de notas separadas uma das outras, como átomos. Deve, então, ser possível pensar e descrever a transcendência, sem deixara esfera da imanência. Não sendo demonstrativa, nem possuindo a exatidão das ciências matemático-físicas, a fenomenologia, nem por isso, impõem a nós. (p. 44)
Descendo o rio: a transcendência nos limites do humanismo
Na filosofia do século XVII, ainda, o homem era pensado a partir de Deus e, se podemos assim dizer, depois dele. Havia, de início, o criador, o ser absoluto e infinito e, em relação a ele, o ser humano se definia com falta, finitude. Daí suas fraquezas notórias, sua ignorância congênita, é claro, mas igualmente sua irrefreável propensão para o pecado. Essa perspectiva, dentro da qual Deus vinha lógica, moral e metafisicamente antes do homem, concordava ainda com o teológico-ético, com a função religiosa da moral.
E foi essa hierarquia que o aparecimento das ciências modernas, ao mesmo tempo que o de um espaço leigo, aboliu. Como havia sugerido Ernst Cassirer, o Século das Luzes foi aquele, no decorrer do qual a primazia do ser humano se viu, em todos os campos da cultura, confirmada. A ponto de Deus ter começado a parecer uma “idéia” daquele homem que ele era suposto ter criado e que, segundo a frase de Voltaire, “lhe tinha muito bem retribuído isso”. De Kant a Feuerbach, Marx ou Freud, a tirada espirituosa não cessou de ser lavada a sério. (p. 50 e 51)
As hipóteses deste livro
A primeira hipótese deste livro é a de que a questão do sentido e a do sagrado – de por que não seria insensato se pensar em um sacrifício – são inseparáveis. A segunda é a de que elas se ligam, hoje em dia, baseadas em um duplo processo. De um lado, o “desencantamento com o mundo” ou, melhor dizendo, o vasto movimento de humanização do divino que caracteriza, desde o século XVIII, o crescimento da laicidade na Europa. Em nome da recusa dos argumentos de autoridade e da liberdade de consciência, o conteúdo da revelação não cessou de ser “humanizado” no decorrer dos dois últimos séculos. Foi contra tal tendência que o papa multiplicou suas Encíclicas. É nesse contexto que devem ser interpretados seus combates, pense-se deles o que for. Paralelamente, porém, é também a uma lenta e inexorável divinização do humano que assistimos, ligada àquele nascimento do amor moderno, cujas especificidades os historiadores das mentalidades recentemente nos ensinaram a decifrar. As problemáticas éticas mais contemporâneas testemunham isso: da bioética ao humanitário, é o homem como tal que aparece, nos dias de hoje, como sagrado. Como se recoloca a questão do sentido da vida, na era do homem-Deus? (p. 52 e 53)
1. A humanização do divino: de João Paulo II a Drewermann
O desencantamento com o mundo não cessa com a simples separação entre a religião e a política. Não se limita ao fim do teológico-ético, indispensável à abertura de um espaço público leigo, mas produz, em profundidade, efeitos sobre as crenças individuais e as opiniões privadas. Várias pesquisas o confirmam: os católicos, em sua maioria, se tornaram, no sentido voltairiano do termo, “deístas”. Conservam, é certo, o sentimento de uma transcendência, mas cada vez mais abandonam os dogmas tradicionais em proveito de uma conversão à ideologia dos direitos do homem. As pessoas se dizem ainda católicas, mas submetem os mandamentos do Papa ao crivo humanista do exame crítico e não mais acreditam tanto na imortalidade da alma, na virgindade factual de Maria nem sequer na existência do Diabo... (p. 55 e 56)
A humanização ou a laicização da própria religião
Duas árvores, dessa forma, escondem a floresta, dois discursos, mais ou menos convencionais, dissimulam a base dos debates que cruzam atualmente o universo da religião.
O primeiro, o da “revanche de Deus”, visa aos fundamentalistas de todo tipo. Ele afirma, às vezes apoiado em bons argumentos, que estamos vivendo uma “volta do religioso”. (p. 56)
Por outro lado, porém, todas as pesquisas sociológicas sérias revelam a dimensão do movimento de secularização que ganha o mundo democrático europeu. A ponto de se dever falar, sobretudo no que se refere aos jovens, de uma verdadeira “descristianização”. (p. 57)
Símbolo atemporal ou verdade histórica: deve-se “humanizar” a mensagem de cristo?
Os diferentes episódios da vida de cristo, narrados pelos evangelhos, são fatos históricos ou símbolos vindos das profundezas da alma humana e dotados de uma significação atemporal? No primeiro caso, pertenceriam à ordem de uma verdade ao mesmo tempo revelada e positiva, impondo-se de maneira incontestável aos que acreditam; no segundo, remeter-se-iam à esfera do sentido, mitológico ou psicológico, requerendo uma interpretação.
O que está em jogo nesse debate é tão claro quanto decisivo: trata-se ainda de decidir se os fatos da religião devem conservar ou não sua condição de exterioridade radical com relação aos seres humanos ou, pelo contrário, devem se livrar de seus falsos brilhos externos, visando a uma interiorização de sua significação autêntica. E, se admitirmos que o religioso está ligado à idéia de uma exterioridade radical do divino com relação ao homens, sua interiorização não seria sinônimo de negação? Daí a reticência ancestral, quase visceral da Igreja, com relação às abordagens históricas do fenômeno religioso. (p. 65 e 66)
Drewermann era – e continua sendo, mesmo caído em desgraça – um padre católico. Todo o seu trabalho pode ser lido como uma tentativa de se reduzir ai máximo a parte de exterioridade embutida na mensagem cristã. Tratava-se de “desalienar” a religião em todos os planos, não somente o institucional, mas também o hermenêutico, mostrando que seu conteúdo não vinha de outro lugar que não o fundo do coração humano. (p. 66)
Não é a distinção entre mito e religião que tal leitura pretendia abolir, colocando o cristianismo no mesmo plano que o budismo, a teogonia egípcia ou mitologia grega?
A questão central, então, era mesmo a da interpretação e, nesse ponto, a posição de Drewermann era clara. No ensaio intitulado De la naissance des dieux à la naissance du Christ (1986), ele procurou realçar a significação verdadeira, a seu ver, ou seja, não se factual, do “mito” da natividade. “O nascimento do filho de Deus não se situa no plano da história, se situa no plano de uma realidade que apenas as imagens do mito são capazes de descrever. É conveniente, então, que se leia simbolicamente a história do nascimento de Jesus em Belém. E Drewermann insistiu nisso ao longo do livro inteiro: devem-se ligar esses símbolos a “experiências vitais”, a vivências humanas, para deixá-los agir em nós, da mesma maneira que os contos e lendas, essa “poesia do povo” onde o romantismo já encontrava seus arquétipos, antes que a Psicanálise viesse desvendar seu poder terapêutico. (p. 67)
São relatos simbólicos, e não fatos positivos e empíricos. É preciso, aqui, lembrar os termos com que Drewermann respondeu ao bispo: “A fé não define históricos (historisch). Não se pode tirar da fé efetiva nenhuma hipótese sobre o que se passou historicamente (historisch). Se a pesquisa histórica (historisch) esbarra em certas passagens, é preciso se contentar em dizer, a seu respeito, que não sabemos, ou explicar o que podemos saber, no âmbito dos nossos métodos atuais... Linguisticamente, há uma grande diferença entre fato histórico (historisch) e história (Geschichte)... Não deixo de afirmar que a multiplicação dos pães faz parte da história (Geschichte)! Com certeza! (p. 68 e 69)
Para tornar o debate menos simples, ou pelo menos mais completo, deve-se acrescentar que Drewermann, consciente do perigo que correria, opondo o imaginário ao real de maneira plana e binária, tentou introduzir a existência de um terceiro tipo de realidade vamos ainda ouvi-lo, quanto a isso: “Para muito dos ouvintes, o problema vem de que, quando dizemos ‘não histórico’ ou, pelo menos, ‘não constatável como fato’, eles compreendem: ‘perfeitamente imaginário’, ‘totalmente inventado’... O que precisamos... é de uma outra visão do real, além daquela dominante em nosso mundo moderno... A verdade é que existem realidades que ainda são inclassificáveis, e são desse tipo, precisamente, as realidades religiosas.” (p. 69 e 70)
Drewermann estava convencido de que essa versão da Psicanálise podia trazer muito à Teologia: somente ela, em sua opinião, poderia enfim nos permitir interpretar a significação autêntica da mensagem bíblica. (p. 71)
“... A Teologia deve se corrigir e de definir, ela mesma, de nova maneira (...) diante das perspectivas abertas pela Psicanálise. Mas, inversamente, a visão psicanalítica deve aceitar ser completada e aprofundada pela teologia, se não quiser, ela própria, se afundar em uma outra forma de positivismo. (p. 72)
Resulta que, dada essa humanização do divino, constantemente buscada por Drewemann, uma das exigências mais fundamentais do universo leigo se vê, senão satisfeita, pelo menos levada em consideração: a de uma espiritualidade compatível com aquela liberdade de consciência e autonomia que a recusa dos argumentos de autoridade nos leva a pensar. A religião entra, dessa maneira, na órbita de uma das visões morais que dominam o universo contemporâneo: a ética da “autenticidade” e do cuidado consigo que de tal modo sacraliza o homem, que vem a intimar o divino a não mais aparecer sob as espécies da “heteronomia”, que passa a ser assimilada ao “dogmatismo”. Não se deve mais procurar o divino em algum termo grandioso, situado radicalmente fora da humanidade, mas no amor que se encontra no coração de cada um de nós: “Somente o amor”, escreveu Drewermann, “crê na imortalidade. Só podemos descobris isso ao lado de uma pessoa que nos ama, da mesma forma que amamos. Só se pode chegar ao céu a dois...” A mensagem, trazida por verdadeiro terremoto, assustou a instituição. Mais ainda porque á humanização do divino, na teologia, corresponde, na sociedade contemporânea, à do Gênio maligno... (p. 76)
As metamorfoses do Diabo
Apesar dos esforços do Papa, o adversário desceu à Terra. A humanização do divino, a interiorização dos conteúdos religiosos pelo espírito humano interiorizou também o Maligno. Rousseau, que estava sempre pronto a apontar as falhas da história, compreendeu isso e foi um dos primeiros a formulá-lo: “Homem, não procura mais o autor do mal”, escreveu ele em Emílio, “és tu mesmo o autor. Não existe mal nenhum além daquele que causas ou daquele pelo qual sofres, e ambos vêm de ti.” Essa secularização aconteceu, e o discurso da Igreja convence cada vez menos. No entanto, o mal radical não se contentou em passar do demoníaco ao humano, de uma pessoa espiritual a uma pessoa carnal. (p. 80 e 81)
A desumanização do mal ou a redução ao contexto: o discurso do advogado
Última metamorfose do Diabo: contra as religiões que situavam o mal em uma entidade pessoal transcendente, mas também contra o humanismo ao estilo de Rousseau, que se contentava de deslocá-lo o ser humano, correndo o risco de diabolizar este último, as Ciências Humanas deram um passo suplementar na secularização do Maligno: é no seio de um contexto, de um “meio ambiente”, como tão bem se diz, que elas nos propõem, atualmente, que procuremos. Como se o homem, no fundo irresponsável por seus atos, nunca fosse senão o produto de uma série de contextos: os de sua classe e de sua nação, de sua família e de sua cultura, ou ainda, com a entrada no mercado da “sociobiologia”, os dos seus genes e de seus hormônios... E a máquina intelectual assim estabelecida funciona tanto e tão bem, que o Mal, em última instância, não se encontra mais em lugar algum. (p. 83)
2. Progresso moral ou “crepúsculo do dever”?
Declínio ou retorno da ética, progresso moral ou naufrágio da humanidade no individualismo e no consumismo infinito? O combate, paralelamente àquele sobre a cultura moderna, não pára de rondar a reflexão contemporânea. Cada início de ano literário o renova, com ensaios inéditos que tentam acrescentar sua contribuição decisiva e vêm relativizar o otimismo dos defensores de uma “geração moral”. (p. 94 e 95)
Na origem dessas legítimas interrogações: a aparição, no decorrer dos anos 1960, de uma visão de mundo caracterizada pela pretensão à “autenticidade” e exigindo, em nome do respeito dos indivíduos, a erradicação de todos os dogmatismos, fossem eles de origem moral ou religiosa. Segundo Gilles Lipovetsky, a entrada em cena dessa ética, longe de ser um episódio de superfície, circunscrito apenas àqueles anos 1960, marcou a conclusão derradeira do longo processo de secularização que nos trouxe, desde o século XVIII, à laicidade plena. As novas exigências de autonomia individual se traduziriam pela ruína dos ideais sacrificiais que ainda dominavam as primeiras morais leigas, republicanas e rigoristas. O diagnóstico que ele propôs merece reflexão. (p. 95)
A ética da autenticidade
Assim que se tornou “proibido proibir”, assim que toda normatividade passou a ser percebida como repressora, o indivíduo se tornou ele mesmo e para si mesmo sua própria norma. Mais uma vez, a reivindicação da autenticidade difundiu seus direitos: be yourself, era sua voz de comando, com o que lhe estava de tom imperativo! E novamente o direito à diferença veio se associar: com cada um precisando agora se tornar o que ele é e com o “ser si mesmo” recebendo o selo de uma nova legitimidade, não se poderia a priori prejulgar diferenças que o processo faria surgirem no final. O essencial era acabar com a transcendência das normas, ter acesso enfim à justa compreensão deste fato indubitável: a única transcendência a subsistir é aquela de si para si, aquela de um eu ainda inautêntico para um eu autêntico. (p. 97 e 98)
A secularização da ética: o eclipse do sagrado?
“Pela primeira vez, temos uma sociedade que, em vez de exaltar os mandamentos superiores, os eufemiza e descredita, que desvaloriza o ideal de abnegação ao estimular sistematicamente os desejos imediatos, a paixão do ego, a felicidade intimista e materialista (...) Organizando-se essencialmente fora da forma-dever, a ética passou a ocupar, em sua plena radicalidade, a época da ‘saída da religião’ (Marcel Gauchet).” Donde o aumento das exigências autenticitárias, do direito a ser si mesmo, fora de toda imposição de valores externos à própria pessoa. Nas sociedades “pós-moralistas”, então, “ o selo de qualidade ético ganha terreno, mas a exigência de devotamento desaparece (...), pois a ética eleita não ordena um sacrifício maios, uma entrega plana de si”. (p. 99 e 100)
Em direção a uma sacralização do humano
Qualquer que seja a maneira com analisemos, devemos reconhecer que a dedicação não é mais consequência obrigatória de antigas tradições. Não depende de qualquer sentimento comunitário irreprimível, mas, talvez, pela primeira vez na história da humanidade, ela precisa buscar sua fonte exclusivamente no próprio homem. Em outros termos, vivemos a passagem de uma lógica do auto-sacrifício. Nessas condições, não espanta a constatação de ela te adquirido formas mais suaves do que as anteriores! Por trás do aparente “crepúsculo do dever”, este, o dever, na realidade só acede a seu conceito, a sua verdade no momento em que afinal termina o reino da heteronomia. (p. 105)
A humanização do sacrifício
Sem abordar ainda a discussão que tais legítimas questões suscitam, faço a observação de que o dom de si, mesmo que limitado aos próprios filhos, permanece altamente enigmático. O que não deixa de ser exato é que ele se limita hoje em dia à exclusiva esfera dos familiares e amigos: a ação humanitária, por mais frágil e contestável que ainda seja, é reveladora de uma aspiração nova, que não se confunde com as formas tradicionais da caridade. Para além das críticas que lhe possamos fazer no plano político, ela traduz a exigência de uma solidariedade com a humanidade inteira, uma solidariedade, então, que não está mais ligada às antigas vinculações comunitárias, sejam elas religiosas, étnicas, nacionais ou familiares. (p. 107)
Em mais alto grau do que o fim dos valores sacrificiais, estamos vivendo, em sentindo próprio, a sua humanização: a passagem de um pensamento religioso do sacrifício para a idéia de que ele só pode ser exigido para e pelo homem propriamente. É essa nova distribuição do jogo que comanda, na ordem da ética, a aparição de preocupações inéditas. (p. 108)
Sem dúvida porque o longo processo pelo qual o divino se retira do nosso universo social e político se revela ligado a uma divinização do homem, que nos leva a novas formas de espiritualidade. O termo não está aqui empregado de maneira frouxa e descontrolada, mesmo que permaneça, em certo sentido, analógico: pois ali onde se encontra sacrifício também se encontra a idéia de valores superiores. E o fato de eles serem percebidos, atualmente, como inseridos no coração da humanidade, e não em qualquer transcendência vertical, nada muda nesse caso. (p. 108)
O casamento por amor, o nascimento da vida privada e o advento da afeição parental
Ao contrário da idéia muitas vezes aventada pelos pensadores tradicionalistas, a família não desapareceu com o Antigo regime: ela, inclusive, foi uma das raras instituições que de tal modo sobreviveu à revolução, que se mantém ainda hoje mais viva e provavelmente, apesar do alto número de divórcios, mais estável do que nunca. Essa permanência não deve no entanto dissimular a profundidade das mudanças ou mesmo das reviravoltas ocorridas desde o século XVII. A mais importante de todas, sem dúvida, reside na passagem do casamento “de razão”, com finalidade econômica e, em geral,organizado pelos pais ou, por intermédio deles, pela comunidade urbana a que pertenciam, a um casamento por amor, livremente escolhido pelos próprios cônjuges. Eis como um dos melhores historiadores franceses, François Lebrun, descreveu essa evolução: “em comparação com os dias de hoje, as funções da família conjugal de antigamente eram essencialmente econômicas: unidade de consumo e unidade de produção, ela devia ainda assegurar a conservação e a transmissão de um patrimônio. O casal se formava sobre essas bases econômicas pela escolha e vontade dos pais ou, às vezes, dos próprios interessados, mas sem que os seus sentimentos contassem muito... Nessas condições, a família muito secundariamente pôde ter funções afetivas e educativas. O com casamento era o casamento de razão, não o casamento por amor; é claro, o amor podia surgir posteriormente, a partir da vida em comum, mas um amor apaixonado, deixado para as relações extraconjugais.” (p. 115)
Outra faceta desse não reconhecimento da esfera privada era a liberdade com que a comunidade intervinha na vida familiar, de maneira que nos parece inconcebível. Uma demonstração disso, entre tantos outros sinais, era a prática do “charivari”, cujo estudo pareceu crucial para os historiadores da família. É significativo que essa estranha e barulhenta cerimônia, com que a comunidade exprimia sua condenação com relação a um casal desviado da norma, visasse sobretudo aos maridos traídos ou espancados: por sua fraqueza e incapacidade em manter a autoridade de chefe da família, eles punham a comunidade em perigo. Esta desvia então repor as coisas em ordem, nessa área que podemos imaginar que não era ainda considerada estritamente privada. Algumas regiões associavam o charivari à “azouade”, em que o infeliz marido era carregado por todo o vilarejo sentado de costas em um asno. Jean-Louis Flandrin chamou a atenção, como sintomático do peso exorbitante da comunidade nos negócios de família, o fato de na falta do marido (que podia ter fugido a tempo) ser o mais próximo vizinho que era então colocado sobre o asno, e isso para lembrá-lo do dever de vigilância, ou seja, de sua responsabilidade indireta na má conduta de seus considadãos! (p. 117 e 118)
A questão do sentido da vida, como assim, foi completamente revirada: a partir dali o amor profano passou então a dar, à existência dos indivíduos, sua significação mais manifestada. Foi também o que melhor passou a encarnar a “estrutura pessoal do sentido”. Era tentador ver nele uma promessa de emancipação e de felicidade. Toda a literatura moderna, porém, com uma insistência que não deixa de ser espantosa, invariavelmente o descreveu sob o signo da infelicidade. De A princesa de Clèves à A educação sentimental, de A cartuxa de Parma à A bela do senhor, a mesma advertência incessantemente foi feita: não há amor feliz. Como se o lugar do sentido fosse por natureza predisposta ao fracasso. Esse amor, já sugeri, não ocorre sem haver alguma imprudência, uma vez que imediatamente ele se propõe aos vínculos simultaneamente mais fortes e mais instáveis. Quanto a isso, é claro, à psicologia das paixões, substituída ou não pela psicanálise, não faltam explicações para justificar aquilo que aparece como destino. Mas essas justificações, por mais razoáveis que sejam, talvez nem cheguem ao essencial. De fato, pode ser que seja por motivos propriamente metafísicos que a vida sentimental dos Modernos se choca a dificuldades mais temíveis do que as apontadas pela antropologia. Posso perceber pelo menos duas. (p. 124)
O trágico do amor moderno
A primeira vem muito simplesmente do que foi dito: o indivíduo foi levado a fundar a parte mais importante de sua existência sobre sentimentos, sobre ligações afetivas às vezes violentas, no momento mesmo em que estava, mais do que nunca, privado da ajuda das tradições – da crença religiosa, mas também do apoio dado por uma comunidade tendo a experiência das solidariedades concretas. (p. 124 e 125)
A figura do enamorado a suspirar: a negação de si em benefício do outro
Na falta de se poder por muito tempo conservar o equilíbrio perfeito, a reciprocidade ideal dos sentimentos, o amor-paixão se refugia em uma negação de si que chega às raias do misticismo: já que o místico busca a “fusão em Deus”, quem ama visa a desaparecer no amado. Resta-lhe apenas o suspirar, mas ele, pelo menos, dispõe de um modelo confirmado: o do amor cortês, já compreendido pela poesia do século XII e depois reinterpretado pelos românticos, para uso dos modernos. A idealização do ser amado é o principal motivo disso: é a sua perfeição, qualidade normalmente reservada ao divino, que desperta os sentimentos, imprimindo-os no coração do enamorado como se este fosse um macio pedaço de será. A paixão ganha aí seu verdadeiro sentido: o da passividade absoluta. Assim como a sensação, em uma visão “realista”, é causada pelo impacto do mundo criado por Deus sobre uma sensibilidade passiva, os sentimentos são o efeito irremediavelmente produzido pelo choque do encontro com o ser amado. O amor cortês, então, é por natureza infeliz: o amado deve permanecer para sempre transcendente – razão por que a relação permanece o mais freqüentemente platônica, ao mesmo tempo desinteressada e desencarnada. É pela negação de si que o enamorado tenta levantar a cisão engendrada pelo desequilíbrio dos termos: abolindo-se completamente, ele pode esperar restabelecer um vínculo com essa quase-divindade que é o objeto do amor. Somente com a morte Tristão conseguiu se alçar ao nível de uma união na verdade impossível para qualquer encarnação terrestre. (P. 130 E 131)
O mito de Dom Juan: a negação do outro em benefício do eu
Aquele que ama se torna então a medida para toda coisa: ser, na verdade, é perceber ou ser percebido, amar ou ser amado. Don Juan é o equivalente sentimental dessa idealista teoria da percepção. Incessantemente ele seduz, mas os objetivos de sua sedução têm somente uma existência indiscernível. As mulheres são para ele apenas silhuetas, e é nessa negação do outro que ele consegue afirmar seu poder e sua liberdade supremos. Assim com a Tristão, não podemos imaginar Don Juan casado, mas os motivos dessa impossibilidade são inversos: o ser perfeito era inacessível ao enamorado suspirante que, renunciando à amada, mergulhava no vazio. Agora ele próprio é inacessível, ele que é toda a realidade, e seus objetivos, intercambiáveis, se tronam irreais. Por isso Don Juan fala de suas conquistas como de uma massa confusa e neutra: “De qualquer maneira, não posso recusar meu coração a tudo que eu vir e que se possa amar.” A seus olhos contam apenas as “ experiências” subjetivas, não os seres particulares que são sua causa eventual. Como egoísta rigoroso,é através delas que ele espera se compreender plenamente, coincidir afinal consigo mesmo, no gozo das energias vitais que as incessantes renovações lhe proporcionam: “As inclinações nascentes, afinal, têm encantos inexplicáveis, e todo o prazer do amor está na mudança.” (p. 132 e 133)
Bioética: a sacralização do corpo humano
Fecundação in vitro, pílula abortiva, inseminação artificial, clonagem, experiências com o embrião humano, eugenismo, novas definições dos limites da vida e da morte, doações de órgãos, manipulações e terapias genéticas, medicina preditiva: a imprensa não pára de evocar os inextricáveis dramas existenciais, éticos e jurídicos a que nos submetem esses poderes inéditos do homem sobre homem. Nunca, provavelmente, as barreiras tradicionais haviam sido tão forçadas. Nunca, sem dúvida, o progresso da ciências e das técnicas havia suscitado interrogações de tal dimensão moral e, arrisquemos a palavra, metafísica: tudo se passa como se o sentimento do sagrado, apesar da “morte de Deus”, subsistisse sem que, nem por isso, a espiritualidade ou a sabedoria que lhe deviam corresponder nos seja dada. Que o misto de inquietude e de fascínio suscitado pela bioética não fique alheio ao tema teológico da profanação é algo que três das suas motivações fundamentais tornam, por assim dizer, um ponto sensível na atualidade.
Isso vale, primeiramente, para a questão da identidade ou do próprio do homem como tal. Não somente se tornou possível conservar indefinidamente embriões congelados, reimplantá-los à vontade e sacudir dessa forma a lógica antigamente intangível das gerações – podendo, por exemplo, uma mulher se tornar mãe de sua irmã -, mas podem-se também “clonar” seres humanos, modificar suas células “germinais” com, como possível efeito, o aparecimento de mutações da espécie. O que virtualmente se colocou, então, não é nada menos do que a questão da constituição mesma da humanidade como tal e que se poderia variar para sempre. (p.145 e 146)
“Não deixa que façam ao outro...”: a extensão universal da caridade e dos direitos do homem
Entre o Bem e o Mal, uma nova categoria moral surgiu, no coração das novas preocupações caritativas: a da indiferença, que passou a ser preciso rechaçar ilimitada e implacavelmente de toda natureza. A Declaração de 1789 se livrou do enquadramento nacional que tinha originalmente – com o qual, de fato, ela não concernia apenas ao homem tal, mas ao cidadão, membro de uma nação com contornos históricos e geográficos determinados. Do ponto de vista filosófico, a idéia de assistência humanitária pertence à herança universalista da grande Declaração. Repousa na idéia de que todo indivíduo possui direitos, abstraindo o fato de seu enraizamento nessa ou naquela comunidade particular – étnica, nacional, religiosa, lingüística ou outra. Mas alça esse princípio a seu limite extremo, até o ponto em que o enquadramento nacional, que lhe servia ainda de local de nascimento, quase se apaga. Como Jean Chistophe Ruffin escreveu muito justamente: “Até aqui, filantropos, como Florence Nightingale, permaneceram prisioneiros de sua origem nacional: lutaram pela melhoria dos serviços de saúde dos exércitos, considerando implicitamente que cada campo devia cuidar dos ‘seus’ feridos. Dunant não tinha essas deformações nacionalistas. Ele viveu, pelo menos em pensamento, em um mundo ideal, que encontrou entre os feridos de Solferino. O mundo das vítimas era um mundo de iguais, e por terem sido atingidos pelas armas, aqueles homens delas se tinham livrado. Todos se tornavam neutros.” Não somente o humanitário pretendeu se libertar do enquadramento nacional, mas, tomando hoje a forma de um “direito de ingerência”, acabou se chocando inclusive com o seu princípio supremo: a sacrossanta soberania dos Estados. (p. 149 e 150)
Herdeira do cristianismo e dos direitos do homem, a idéia humanitária se afastou de tudo isso pelo alcance excepcional dado à idéia de universalidade. Com isso ela se confirmou como noção tipicamente moderna e ocidental. (p. 150 e 151)
Apesar de dever muito ao cristianismo, o dever de assistência humanitária pertence ao espaço aberto com a Revolução Francesa pelo universo leigo que, justamente por romper com as tradições particulares, pretendia se elevar até o cosmopolitismo. Uma nova religião, a da humanidade, acabava de nascer. (p. 151)
As núpcias da ética e da mídia: uma falsa caridade?
Por questões evidentes, a principal aliada da ação humanitária é a imagem televisionada. Em um tempo mínimo, ela fornece a um máximo de pessoas a única substância que ainda possa mobilizá-la: a indignação e a emoção. É por ela, primeiro e antes de mais nada, que as organizações caritativas podem esperar reunir fundos e energias necessários para o cumprimento das suas ações. É também por ela que podem atrair notoriedade e legitimidade. É uma tática indispensável, mas que não deixa de apresentar perigos, pois a televisão é o mínimo que se pode dizer, não tem boa imagem. Ela desacredita tanto quanto legitima. Escravizadas pelas indicações das pesquisas de audiência, submetidas à imperiosa lógica do espetáculo e do entretenimento, a cultura e a informação midiáticas estariam, se ouvirmos os boatos, em vias de perdição. Por necessidades técnicas tanto quanto ideológicas, a rapidez prima sobre a exigência de seriedade, o vivido sobre o concebido, o visível sobre o invisível, a imagem-choque sobre a idéia, a emoção sobre a explicação. Após as ilusões e as vaidades do “Estado cultural”, são então as da “sociedade midiática” que devem agora ser desvendadas. Às vezes, a justo título, mas também, outras vezes, por deformação profissional, muitos intelectuais se preocupam hoje com o magro conteúdo substancial proposto pelos shows televisivos, mesmo que apresentados sob os auspícios da “cultura”. (p. 156 e 157)
O álibi da inação e da covardia: uma falsa política
Foi dito e repetido à sociedade: o humanitário não é uma política. E, é claro, quem o disse estava coberto de razão: os Estados têm a sua lógica que não é aquela dos bons sentimentos, mas a do poder do cinismo e da força. A “descoberta”, na verdade, não é nova, mas gera, contra o humanitário em política, suspeito de dar crédito a uma “política moral”, uma série de objeções cuja presença é tão freqüente na mídia que basta recordá-las: desculpabilizando os cidadãos a baixo preço (um pequeno chefe é suficiente), o humanitário os desvia das necessidades da ação real, que é primeiramente social, diplomática e militar; mais ainda, corre o risco, ao atacar os efeitos e não as causas, de prolonga os conflitos e, com isso, as misérias engendradas; uma vez no local, serve de álibi para a inação dos Estados, como se viu na Bósnia, onde os capacetes-azuis, supostos para separar e proteger as populações em guerra, se tornaram reféns; o humanitário de Estado, ineficaz, dessa forma, ameaça o humanitário privado, por desacreditá-lo diante daqueles que ele pretendia socorrer; falsa política, é também uma falca justiça e um falso direito: não só a ingerência contraria o princípio de soberania dos Estados e faz que se possa temer a volta de um colonialismo disfarçado, mas, além disso, as intervenções que ela pretende legitimar são arbitrárias: por que a Somália ou o Iraque, e não o Tibete ou a Chechênia? Não são dois pesos e duas medidas? Sob a abstração “direito dos homens”, pelo qual todas as vítimas seriam iguais, certamente se estariam dissimulando preferências inconfessas... (p. 169 e 170)
O sentido de sua vida pelo outro ou com o outro?
Se o humanitário traz sentido, não pode, me parece, permanecer em seu aspecto negativo, aquele exclusivamente da “moral da urgência” (a justificação de si pela infelicidade dos outro). Não pode se poupar da reflexão sobre as possibilidades de se encontrar, fora das religiões tradicionais, um sentido comum, com aqueles cujos sofrimento e dignidade lhe parecem, a justo título, sagrados. Deve reatar, para além da própria ética que o anima, com os lugares que tradicionalmente foram os da vida comum, a cultura e a política. Ensinando-nos a reconhecer o sagrado no homem, deve também nos incitar a buscar como essa nova face do sentido pode e deve irradiar uma cultura e uma política democráticas, que hoje parecem ter no desencantamento sua principal característica. (p. 175)
A reassunção do sagrado na cultura e na política
Foi sem dúvida na esfera da arte que o fim do enraizamento religioso das normas e dos valores produziu as reviravoltas mais sensíveis. É nela também que a reassunção do sagrado pode possibilitar o renovamento, tão esperado desde a morte clinica das vanguardas, de um mundo comum aos homem do tempo presente. Muito freqüentemente, com efeito, vivemos hoje em dia em culturas do passado, longe das formas contemporâneas da arte, que permanece ainda distante demais de seu público. Seria preciso falar de um fim do “teológico-cultural” para designar com justeza a mutação extraordinária que caracterizou a modernidade, pelo menos desde o século XVII. Impossível compreender nossa situação atual com relação às obras, se não entendermos, pelo menos em seu princípio, os grandes momentos dessa evolução. (p. 176)
Vivemos, então, o fim do grandioso, pelo menos no sentido a que nos referimos acima. Qual filósofo de minha geração ousaria, sem causar risos, se comparar a Platão e Aristóteles, ou até mesmo, aos mais próximos de nós, a Spinoza, Kant ou Hegel? Qual compositor pretenderia ser um Mozart ou Beethoven, hoje? Qual político, sem sequer ir mais a diante na história passada, se compararia a Clemenceau, de Gaulle ou Churchill? E por que esses simples exemplos, que se poderia facilmente multiplicar e adaptar ao gosto de cada um, são tão impressionantes para qualquer homem de boa-fé? Falta de recuo histórico? Naufrágio intelectual da humanidade? Não creio. Aliás, basta se voltar para o lado dos homens de ciência para que a situação se mostre bem diferente. Não temos muita dificuldade para encontrar ali grandes espíritos. Com toda evidência, foi a cultura clássica, aquela das Ciências Humanas, que mudou de status, no mesmo momento em que se desligou da religião. (p. 179)
A dupla face da política como “técnica”: culto da performance e tecnocracia
Para que nossa visão do mundo se tornasse, de ponta a ponta, técnica, foi, então preciso um passo suplementar. Foi preciso que a vontade cessasse de visar a fins exteriores a si e tomasse, por assim dizer, a si mesma como objeto. Foi o que, segundo Heidegger, aconteceu à filosofia com Nietzsche, com efeito, a vontade autêntica, a vontade realizada é essa que cessa de ser vontade de qualquer coisa para se tornar “vontade de vontade”: vontade visando ao aumento das forças vitais, quer dizer, seu próprio aumento, sua própria intensificação como tal. A vontade atinge, assim, a perfeição de seu conceito: querendo a si mesma, ela se torna controle pelo controle, força pela força e cessa de estar sujeita a finalidades externas, como ainda estava no ideal progressista das Luzes. (p. 184)
CONCLUSÃO
O humanismo do homem-Deus
O cristianismo é um humanismo? Sem dúvida, pois ele situa o homem no centro da criação e lhe concede, nessa ordem intramundana, o lugar mais eminente: o de ter sido criado à imagem de Deus. No entanto, a questão colocada pelo Papa, a da reinstauração – no caso, contra a lei civil – de uma teologia moral baseada no “esplendor da verdade” deve incomodar os cristãos ligados aos princípios do humanismo democrático. Como, por exemplo, conciliar a afirmação de que o aborto é um assassinato como outro qualquer e se submeter à lei positiva que autoriza sua prática generalizada? A quem se deve obedecer? Tenta-se distinguir o direito da moral, a esfera pública da lei e a esfera privada da consciência. Mas a distinção não vale em caso de assassino e se mostra insuficiente para quem se pretende fiel aos ensinamentos do Magistério: foi isso, justamente, que João Paulo II no propôs contestar. (p. 193)
O humanismo “transcendental”
A posição, a partir do humanismo propriamente, quer dizer, em pleno acordo com a recusa dos argumentos de autoridade, de transcendências em todos os campos da vida, do pensamento e da cultura: estamos sempre, mesmo sem nos darmos conta, colocando valores superiores á existência, valores, em todo caso, pelos quais valeria a pena assumir um risco de morte. O amor, é claro, é o mais visível e mais forte, não só por se encantar em relações com outras pessoas, mas também por animar todas as demais ordens: do direito à ética, passando pela arte, a cultura e a ciência. Pode-se amar um ser humano, mas também a justiça, a beleza ou a verdade. Vivemos em sociedades pacificadas e pacifistas, alimentadas por ideologias vitalistas, com tendência a nos fazer acreditar que o risco é o mal absoluto. Melhor vermelho do que morto, dizem amiúde essas ideologias, e o slogan pretende ter valor de exemplo. Na verdade, ele dissimula o fato de vivermos permanentemente nesse risco e, sem isso, a vida não valeria a pena. Se não houver seres ou valores pelos quais eu me sinta, de algum modo, disposto a arriscar a vida, é porque sou um pobre coitado. É confessar que não amo. Pode-se às vezes esquecer isso, mas é difícil negá-lo sempre. E é por isso, também que a ligação a valores transcendendo radicalmente o mundo dos simples objetos, por serem esses valores de uma outra ordem, implica uma resistência ao materialismo, uma aspiração a uma espiritualidade enfim autêntica. Enfim porque, hoje em dia, é sobre uma base humana que ela reinstaura a categoria religiosa do Além da vida humana. No lado interior da consciência e não mais posterior, como queriam os princípios da teologia moral. Transcendências, então, na imanência de si, mas, mesmo assim, transcendências radicais com a relação ao materialismo. (p. 200 e 201)
Daí uma segunda analogia com a religião: não somente humanismo transcendental coloca valores que se situam além da vida, mas o faz precisar recorrer a uma demonstração suscetível de fundar esse gesto na razão. Quer dizer que esses valores conservam, apesar do enraizamento na consciência dos homens mais do que na Revelação autoritária, uma parcela inelutável de mistério. De descartes a Husserl, passando por Kant, uma certa tradição filosófica, à qual eu refiro esse humanismo transcendental, incessantemente estabeleceu valores ou significações “fora do mundo”. Que fossem designados sob a denominação de “idéias inatas”, verdades eternas, “categorias a priori” ou “existenciais”, isso, aqui, pouco importa: em todos os casos, tratava-se de desvendar uma transcendência radical com relação à esfera “ôntica” da simples natureza. (p. 201)
Terceira analogia com a religião: as transcendências, encarnadas na imanência de uma consciência eternamente misteriosa para si mesma, reúnem os seres humanos entre si. A posição de valores fora do mundo, inscrevam-se eles na ordem da ciência, da ética ou da arte, define a comunidade das pessoas, enquanto a inscrição dos valores dentro do mundo as separa. O humanismo transcendental é, então, um humanismo abstrato, no sentido que tem esse termo quando se trata de compreender a grande declaração : não é no fato de pertencer a uma comunidade que residem os direitos, pois eles são inerentes à humanidade do homem como tal, abstraindo-se seus enraizamentos particulares. Passam os valores universais a serem chamados a fazer a junção, enquanto os laços singulares criam sempre o risco, se forem mal compreendidos, de dividir: da religião, o humanismo transcendental, então, conserva o espírito, a idéia de um laço de comunidade entre os homens. Esse laço, simplesmente, não se situa mais em uma tradição, em uma herança imposta a partir do exterior, em um ponto anterior à consciência, mas posterior, que é onde devemos, de agora em diante, pensar o que pode ser o análogo moderno das tradições perdidas: uma identidade pós-tradicional. (p. 203)
Aqui temos,creio, o maior paradoxo da nossa relação leiga com o cristianismo: o nascimento da vida sentimental moderna, a fundação efetiva das mais preciosas relações humanas estava ligada à saída de uma religião que pretendia transmitir uma mensagem de amor. Era ela que conferia significação e pregnância aos comunitarismos de antigamente. Foi a ela, conseqüentemente, que foi preciso, de início, se opor, para abandonar a lógica do “casamento de conveniência”. A Igreja tenta, nos dias atuais, combater essa perda da relação tradicional com a Revelação. Ela se ergue contra as orgulhosas exigências da liberdade da consciência e do “pensar por si mesmo”. Uma chamada à razão que parece, por razões de princípio, destinada ao fracasso. Não que seja impossível encontrar alguma escuta entre aqueles, e que são muitos, que gostariam de encontrar referências enfim indubitáveis, verdades sólidas, passíveis de acalmarem os medos suscitado em cada um de nós pela vida contemporânea. O extraordinário sucesso, o sucesso “mitidiático” das viagens do Papa são prova disso. Mas a recusa dos argumentos de autoridade não é uma peripécia, um declínio acidental diante do qual bastaria se refazer: trata-se de um acontecimento do qual a história se utilizou para revelar o homem a si mesmo. Quanto a esse capítulo, a filosofia, afinal em unanimidade de Descartes a Hegel, foi vitoriosa de maneira irreversível sobre as pretensões da religião dogmática: o homem só é homem por sua liberdade, e a heteronomia tende à refeição. A restauração da religião por sua forma, aquela da tradição herdada, se choca, então, a obstáculos que não vêm de um simples combate contra uma pretensa decadência histórica. (p. 205 e 206)
A atualidade do conteúdo dos evangelhos, pelo contrário, não deixa de impressionar. Enquanto as religiões da Lei parecem fadadas ao declínio ou às tentações integristas, aquela do Amor consegue se conciliar com os motivos que os historiadores das mentalidades nos revelaram. Foi Philia que nos afastou da religião cristã, mas foi também o que lhe trouxe de volta o sentido e, de maneira inédita, alimenta Agapè. Os antigos se apegavam à forma religiosa como tal, mas seu conteúdo, a mensagem de amor, não passava absolutamente à realidade das relações humanas; os Modernos, pelo contrário, rejeitam a heteronomia do teológico-ético, mas vêem se introduzir em suas vidas cotidianas sentimentos aptos à valorização do conteúdo de um discurso que sacraliza o amor e o torna o lugar derradeiro do sentido da vida. O paradoxo é vivenciado concretamente por cristãos: eles se sentem às vezes mais próximos de um filósofo ateu pregando a beleza do Agapè do que de um chefe de Igreja preocupado em restaurar o brilho de um esplendor passado.
O humanismo moderno reata, dessa maneira, sem sequer se dar ao trabalho de ter pensado nisso, com um tema central do cristianismo: o amor é, por excelência, o sentido que anima, dá fôlego e alma à “estrutura pessoal do sentido”. (p. 206 e 207)
Acredito que vivemos hoje o momento em que os dois processos que tentei descrever neste livro – a humanização do divino e a divinização do humano – se cruzam. Pois bem, esse cruzamento é um ponto e esse ponto – como poderia ser de outra forma? -, uma confusão. Compreendo muito bem que essa indeterminação suscite um incômodo. Entre os materialistas, porque o reconhecimento de transcendências escapa da lógica da ciência e da genealogia. Entre os cristãos, é clero, porque os obriga a reformularem suas crenças em termos que possam ser, enfim, compatíveis com o princípio de rejeição dos argumentos de autoridade. Mas se o divino não é de ordem material, se sua “existência” não está no espaço e no tempo, é mesmo no coração dos homens que se deve agora situá-lo e nessas transcendências que eles percebem, neles próprios, lhes pertencerem e lhes escaparem para sempre. (p. 208)
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