segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A razoabilidade da fé

 




 

Wilken, Robert Louis. Alla ricercar del volto di Dio. La nascita del pensiero cristiano. Milano: Vita e Pensiero, 2006.

Tradução e síntese: Paolo Cugini

A igreja sempre foi acusada de se basear na fé e não na razão, com os seus dogmas, os seus apelos à autoridade da Escritura, o seu papa e os seus bispos, a igreja parecia um obstáculo à mudança e o caminho do iluminismo. De acordo com Gibbon: “o cristianismo, enfraqueceu e poluiu as faculdades da mente e abriu o caminho para uma era de escuridão que se extingue o fogo brilhante do intelecto aceso pelos antigos gregos minando a confiança no poder da razão O cristianismo sufocou o espírito crítico e de pesquisa”.

Ninguém pode ler o discurso de Celso sobre a verdade ou o contra-Celso de Orígenes e ficar com a impressão de que Celso, o filósofo pagão, apelou à razão e apresentou argumentos e Orígenes se contentou em confiar na autoridade da Escritura. Como seus críticos, os pensadores cristãos apreciavam a dialética comparação, referia-se a evidências e experiências e usava a razão para avaliar, julgar, interpretar e explicar o que de tempos em tempos se acreditava ser a verdade. Isso, não apenas em livros destinados a não-cristãos, mas também em ensaios e tratados para seus leitores.

 Agostinho afirmou que ninguém certamente acredita em nada se primeiro não pensou que tinha que acreditar.  Nem todo mundo que pensa acredita, pois muitos pensam justamente para não acreditar, mas todo aquele que acredita pensa, pensa com acreditar e acredita com pensamento. Origenes disse que o desejo de conhecer a verdade das coisas está impresso em nossas almas e é natural para os seres humanos.

O cristianismo introduziu algo novo na vida intelectual e precisamente o conceito de que a fé é a porta que leva ao conhecimento de Deus. Isaías afirmava que: se você acredita, entenderá (Isaías 7,9). Se ouvirmos a exortação de Jesus aos seus discípulos para terem fé, ou estudarmos as cartas de São Paulo, que afirmou que o Evangelho é o poder de Deus para a salvação de qualquer pessoa na Fé (Rom 1,16), percebemos que a fé é uma marca da pessoa autenticamente religiosa. A profissão de fé cristã começa com a palavra credo, que se pensa também para indicar a mesma profissão de toda a Fé Cristã e sinônimo de religião cristã e os fiéis também são chamados de crentes. Porque os primeiros pensadores cristãos insistiam tanto que quando se trata de Deus e do que lhe diz respeito, o raciocínio parte da fé?

Num tratado de Santo Agostinho intitulado A utilidade de acreditar, Agostinho escreveu que é mais difícil alcançar a verdade do que afirmar descaradamente que a conhece. O pensamento de Agostinho parte dos fatos da revelação da manifestação de Deus em Cristo conforme contado pelas Escrituras. Acredita-se que Deus se deu a conhecer através de uma pessoa que historicamente viveu em um lugar e tempo específicos foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia. Breves resumos históricos enquadram os escritos de Agostinho através desses eventos. Deus se deu a conhecer, e é por isso que a verdade cristã dependia de coisas que aconteceram muito antes em uma determinada região da terra e, com o tempo, o que sabemos dos eventos do passado depende no testemunho de quem os viveu. Estes acontecimentos históricos são únicos e irrepetíveis e não é possível realizar uma experiência para verificar se o que foi relatado corresponde à verdade.

Agostinho distingue entre o conhecimento histórico que depende da bondade das testemunhas e o conhecimento matemático, que é o conhecimento certo e demonstrável. Um evento no passado deve ser baseado na palavra de outra pessoa; o verbo acreditar indica que estamos falando de probabilidades e não de certezas.

Quando escreve seu tratado sobre a utilidade de acreditar, Agostinho evita a palavra conhecimento para conhecimento histórico. Mas então, revisando seus escritos na velhice, mudou sua opinião não sobre a natureza do conhecimento histórico, mas sobre o uso da palavra conhecimento. Agostinho reconhece que no uso comum usamos conhecimento tanto para conhecimento histórico quanto para conhecimento matemático, porém, ele deseja preservar a distinção dos dois significados da palavra. O que caracteriza o conhecimento histórico é que ele é baseado no depoimento de testemunhas dignas de fé e é uma das razões pelas quais a palavra mártir gozava de tanto prestígio no léxico cristão.

O conhecimento histórico requer testemunhas e as testemunhas exigem fé, isto é, confiança naqueles que testemunham, mas Agostinho também introduz o tema da autoridade em sua discussão sobre a fé. Nossa crença diz que depende da autoridade. Nas línguas contemporâneas, a palavra autoridade é frequentemente associada à ideia da coerção do poder e da força, ou seja, daquilo que pode nos impor o respeito à lei e às regras e nos reduzir à obediência. Na época de Agostinho a palavra autoridade tinha uma gama de significados que difere da atual. O uso em latim aucthoritas deriva da palavra autor e, em seu sentido original, o autor era a pessoa que garantia a autenticidade e, portanto, a validade de um documento. A autoridade era, portanto, a qualidade de uma pessoa que autorizou a agir com base em uma declaração. Neste sentido a autoridade é um aspecto inevitável e indispensável da vida social; na verdade, o que acreditamos ser verdade muitas vezes depende da integridade e confiabilidade de outra pessoa.

Para explicar este ponto Agostinho dá um exemplo: uma criança não pode saber com certeza quem é seu pai se não confiar na palavra de sua mãe. Este é um conhecimento que não pode ser obtido pelo raciocínio: a única maneira pela qual alguém pode ter certeza de seu próprio pai é acreditar na autoridade da mãe, porque só ela pode saber quem é o pai e o filho deve confiar na palavra dela, ou seja, deve acreditar nela. Sem fé, ou seja, sem confiar na verdade do testemunho dos outros, o vínculo da espécie humana seria abalado pela ausência de autoridade na sociedade, não só romperia o frágil vínculo de confiança que une as pessoas, mas também impediria a aprendizagem. Como se pode aprender uma língua estrangeira senão acreditando naqueles que a utilizam desde a infância?

Agostinho pensa em como se pode conhecer a Deus através de Cristo, mas percebe que existem semelhanças entre aprender um ofício ou criar os filhos e a capacidade de amar a Deus. Se a fé na autoridade for necessária para aprender a arar um campo, ainda mais na religião. O que Agostinho tenta mostrar é que o conhecimento adquirido com a fé não é principalmente um problema de encontrar informações. A conquista da verdade religiosa assemelha-se antes ao aprendizado de uma habilidade artesanal, exigindo prática e habilidades naturais, uma atitude correta, uma classificação de importância das coisas que amamos. Por isso, segundo Agostinho, é necessário tornar-se servo dos sábios a primeira tarefa de um intérprete sério e confiar-se ao autor.

Agostinho argumenta que há duas maneiras pelas quais a alma é conduzida a Deus através da autoridade e através da razão. A autoridade requer fé e prepara o homem para a razão, a razão leva à inteligência e ao conhecimento mesmo que a razão não abandone completamente a autoridade ao considerar em quem deve acreditar. Para Agostinho o ponto de partida não é a verdade ou falsidade de certos ensinamentos, mas a vida das pessoas que foram formadas nesses ensinamentos no campo religioso. Devemos primeiro nos perguntar quem é razoável seguir quando fala de autoridade. Agostinho fala da necessidade de confiar em homens e mulheres cujo exemplo nos estimula a amar o que eles amam.

O pensamento cristão está inseparavelmente ligado ao testemunho daqueles que nos precederam. Aprendemos a usar a linguagem de uma maneira particular. Para acolher a conexão entre aspectos aparentemente separados do ensino cristão.  Dos que nos precederam aprendemos a usar palavras como espírito Deus esperança, obrigado, pecado, perdão e habituando-nos a usá-las nos aproximamos no modo de viver e de pensar daqueles que nos precederam.

A memória é essencial para o pensamento cristão. A memória cristã é uma memória particular que privilegia certos momentos e acontecimentos do passado, certos livros e certas ideias, certas palavras e sobretudo certas pessoas. A memória começa a partir do que foi recebido. Um dos traços inconfundíveis da vida intelectual cristã é uma espécie de confiança silenciosa na autoridade e integridade dos antecessores. Somos apoiados pelos santos e nossos pensamentos podem prosseguir pelos caminhos que eles traçaram. Para Agostinho a autoridade não impõe nem força, mas ilumina, atua na inteligência e não na vontade. Na época medieval Tomás de Aquino se expressou assim: se o mestre fecha a questão, simplesmente apelando à sua própria autoridade, o aluno ficará convencido de que as coisas são de uma certa maneira, mas não terá adquirido conhecimento ou inteligência e sairá com a mente vazia.

Agostinho pensa de uma maneira particular sobre o caráter da revelação cristã e do Deus revelado por escrito. Na Bíblia existem situações em que Deus se revela diretamente a um indivíduo, por exemplo, a Jacó num sonho e a Moisés no Sinai, mas são exceções que envolvem apenas Deus e aqueles a quem ele se revelou. Na maioria das vezes Deus se dá a conhecer através de acontecimentos históricos e através do testemunho de quem viu e ouviu o que aconteceu, por isso, segundo Agostinho, cabe a nós considerar em quais homens ou livros devemos acreditar para adorar a Deus da maneira certa.

Para o cristão, o conhecimento histórico não é o objeto principal da fé. Acredito em Deus Pai todo-poderoso, proclama o credo. A fé vive por seu objeto, o Deus conhecido em Jesus Cristo. Como Pedro e Tiago nos Atos dos Apóstolos, São João testemunha sobre o que ele viu e ouviu o que viu, ouviu e tocou: um ser humano, Jesus de Nazaré, que pôde ver com os olhos, ouvindo enquanto falava, abraçando. Quando João diz o que viu, ouviu e tocou, o objeto dos verbos não é algo que possa ser visto, ouvido ou tocado. Na verdade, ele diz que o que viu é vida.  João vê a eterna palavra de Deus, vê Jesus com os olhos, mas o que ele vê não é tudo o que há para ver, porque o que a eterna palavra de Deus é não pode ser visto com os olhos.

Em seu comentário à primeira carta de João, Agostinho mostra que percebeu o estranho texto desta passagem. Quando São João diz que, o que não pode ser visto com os olhos foi tocado, ele naturalmente se refere à encarnação de Cristo, mas Agostinho observa que não começou naquele momento ser Verbo. O mesmo diz o Evangelho que recita: No princípio era o verbo o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. Portanto a expressão: verbo da vida nas epistolas de João refere-se a Cristo e não ao corpo de Cristo, que foi tocada com as mãos. Tornando-se carne aquela vida que antes só era vista pelos anjos agora pode ser vista, ouvida e tocada pelos homens. Isso significa, diz Agostinho, que só o coração pode ver e agora também pode ser visto pelos olhos e por isso os corações têm que curar.

 Quanta inteligência da parte de Agostinho em alcançar a palavra coração. Só porque o olho vê o verbo feito carne é possível aos olhos ver o que o olho não pode ver e ao coração amar o que é invisível. Diante de Cristo, diz Agostinho, tivemos a possibilidade de ver a carne, ou seja, Cristo como homem, mas não tendo a possibilidade de ver a Palavra. Testemunhando o que havia acontecido, os apóstolos não se limitaram a contar algo extraordinário que tinham testemunhado, o que tinham visto e comunicado aos outros. Era a palavra da vida que estava ao lado de Deus no início, mesmo que a palavra existisse antes da encarnação, somente depois que ele assumiu a nossa natureza foi possível vê-lo e ser testemunhas de sua glória. No léxico da igreja o termo para esta forma de ver o conhecimento é Fé, sem Fé não há visão e, portanto, não há conhecimento autêntico de Deus.

Não pode haver conhecimento de Deus sem fé porque a fé é precisamente a forma como conhecemos a Deus. Na verdade, a fé no sentido próprio e segundo o batismo, isto é, aquele de quem aceita com toda a alma aquilo em que se acredita, mesmo depois da ressurreição dos mortos haverá Fé. Na verdade, só então haverá Fé perfeita, porque nesta vida a fé é sempre incompleta. Portanto podemos dizer sobre a fé o que Paulo diz sobre o conhecimento: agora temos uma fé imperfeita. Quando a perfeição da fé vem, a imperfeição desaparecerá porque então a fé será completada pela visão.

Segundo Origenes, a fé em Deus é uma disposição da alma com a qual se entra na vida de Deus. Quando estamos diante de Deus face a face ainda não poderemos prescindir da fé porque o que a distingue não é tanto o caminho. em que se conhece, Mas quem se conhece O Deus vivo o conhecimento de Deus se nutre do seu objeto.

A verdade que os cristãos professam é transmitida por outras pessoas através da comunidade de crentes, a igreja. Nenhum caminho leva a Cristo se não passar pelos mártires.

 No léxico cristão uma testemunha não é um simples repórter. No século II, Celso declarou-se cético quanto à realidade da ressurreição de Jesus devido ao fato de que as únicas testemunhas eram seus discípulos. Respondeu Origenes, que Jesus apareceu apenas para aqueles que eram capazes de compreender o que viam. Não são enviados especiais que descrevem um acontecimento extraordinário que aconteceu numa manhã em Jerusalém. Os mártires sempre falam na primeira pessoa. Quando Policarpo foi apresentado as autoridades ele disse que:  eu o servi durante 86 anos e ele nunca me fez mal. Como posso blasfemar contra o meu rei que me salvou. Todos os testemunhos cristãos estão na primeira pessoa. Para Santo Agostinho, como para São Paulo e São João obediência e amor estão intimamente ligados à fé. No livro: A verdadeira religião, Agostinho afirma que a vida racional não deve sua excelência a si mesma, mas à verdade à qual obedece voluntariamente.

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