sábado, 29 de junho de 2024

Friedrich Nietzsche, Aurora

 




Sintese  Paolo Cugini

 

Neste livro se acha um “ser subterrâneo” a trabalhar, um ser que perfura que escrava, que solapa. Ele é visto-pressupondo que se tenha vista para esse trabalho na profundeza-lentamente avançando, cauteloso, suavemente implacável, sem muito revelar da aflição causada pela demorada privação de luz e ar; até se poderia dizer que está contente com o seu obscuro lavor. Não parece que alguma fé ou guia, algum consolo o compensa? Que talvez queira sua própria demorada treva, seu elemento incompreensível, oculto, enigmático, porque sabe que também terá: sua própria manhã, sua reversão, sua aurora?... Certamente ele retornara: não lhe perguntem o que busca la em baixo, ele mesmo logo lhes dirá esse aparente Trofônio e ser subterrâneo, quando novamente estiver se “tornado homem”. Um individuo desaprende totalmente o silenciar, quando, como ele, foi por tão longo período, toupeira, solitário, - -.

 

Na realidade, meus pacientes amigos, já lhes direi o que buscava eu lá em baixo, aqui neste prólogo tardio, que bem poderia ter sido um ultimo adeus, uma oração fúnebre: pois eu retornarei e - escapei. Não creio que eu venha exortá-los às mesmas audácias! Ou a mesma solidão! “Pois quem perfaz esses caminhos próprios não encontra ninguém: é o que sucede-nos caminhos próprios”. Ninguém aparece para ajuda-lo; Tem de lidar sozinho com tudo que lhe depara de perigo, de acaso, de maldade e mal tempo. “Pois ele tem seu caminho para si – e, como é justo, seu amargo, seu ocasional dissabor com “para si”: o qual incluiu, por exemplo, saber que nem seus amigos poderiam imaginar onde ele estar e para onde ele vai que às vezes perguntaram a si mesmos:” o quê? Ele prossegue?Ainda tem- um caminho?. – Naquele tempo empreendi algo que podia não ser para qualquer um: desci à profundeza penetrei no alicerce, comecei a investigar e escavar uma velha confiança, sobre a qual nós filósofos, a alguns milênios construíamos como se fora o mais seguro fundamento-e sempre de novo, embora todo edifício desmoronasse até hoje: eu me pos a solatar nossa confiança na moral. Estamos me compreendendo?

 

Até agora, foi sobre o bem e o mal que me refletiu da pior maneira, sempre foi um tema demasiado perigoso. A consciência, a boa reputação, o inferno, às vezes até a policia não permitiam e não permitem a imparcialidade; na presença da moral, como diante de toda autoridade, não si deve pensar, menos ainda falar: aí – se obedece! Desde que o mundo é mundo, a autoridade nenhuma se dispor a ser alvo de critica; E criticar a moral, toma-la como problema, como problemática: o que? Isso não era- não é- imoral? – Mais a moral não dispõe osomente de toda espécie de meios de apavoramento para conservar longe de si as mãos criticas e os instrumentos de tortura: sua segurança repousa mais ainda em certa arte do encanto, na qual é entendida-ela sabe “entusiasmar”. Frequentemente consegue paralisar a vontade critica com um único olhar e até atraí-la para o seu lado, havendo ocasiões em que sabe fazer-la voltar-se contra si mesma: de modo que, tal como escorpião, ela traga o ferrão no próprio corpo. A muito tempo a moral conhece todas as artes diabólicas da persuasão: não existe orador, hoje ainda, não recorra à sua ajuda (ouça-se, por exemplo, os nossos anarquistas: como falam moralmente, a fim de convencer! Chegam a dominar-se “o justus e os bons”). Desde sempre, desde que se usa palavra e persuasão nessa terra, a moral revelou-se a grande mestra da sedução – e no tocante a nós, filósofos autentica Circe dos filósofos. A que se deve que, a partir de Platão, todos os arquitetos filosóficos da Europa tenham construído em vão? Que tudo o que eles próprio tinham séria e honestamente por aere perennius [mais duradouro que o bronze] ameace desabar ou já se encontre em ruínas? Ah, como é falsa a resposta que ainda hoje se tem para esta pergunta, “porque todos eles negligenciaram o pressuposto, um exame do fundamento, uma critica da razão inteira” – a fatídica resposta de Kant, que verdadeiramente nos atraiu, a nós, filósofos modernos, para um terreno mais sólido e mesmo traiçoeiro!(-E, perguntando agora, não era algo estranho exige que um instrumento critique a sua própria adequação e competência? Que o próprio intelecto “conhecesse” seu valor, sua força, seus limites? Não era isso até mesmo um pouco absurdo? -).  A resposta correta seria isto sim, que todos os filósofos construíram sob a sedução da moral, inclusive Kant - que aparentemente seu propósito dirigia-se à certeza, a “verdade”, mas, na realidade, a “majestosos edifícios morais”: para nos servirmos uma vez mais da inocente linguagem de Kant, que caracteriza sua tarefa “de pouco brilho”, mas não sem algum mérito”, como sendo a de “aplainar e preparar o solo para esses majestosos edifícios morais” (Critica da razão pura, II, p.257). oh, ele não conseguiu fazer isso, pelo contrário! - é o que hoje devemos dizer. Com essa entusiasmada intenção, Kant foi um verdadeiro filho do seu século, que pode ser chamado, mas do que qualquer outro, o século do Entusiasmo: tal como, felizmente, ele também o foi no tocante aos aspectos mais valiosos dele (por exemplo, na boa parcela de sensualismo que levou para sua teoria do conhecimento). Também a ele mordeu a tarântula moral que foi Rousseau, também sua alma obrigava a idéia do fanatismo moral, de que um outro discípulo de Rousseau sentia-se e confessava executor, ou seja, Robeespierre, ”de fonder sur la terre l’empire de la sagesse, de la jsutice et de la vertu” [de fundar na terra o império da sabedoria, da justiça e da virtude] (discurso de 7 de junho de 1794). Por outro lado, com tal fanatismo francês no coração não era possível agir de modo menos francês, mais profundo, mais radical, mais alemão – se o termo “alemão” ainda pode ter esse sentido atualmente – do que Kant: a fim de criar espaço para seu “reino moral”, ele viu-se obrigado a estabelecer um mundo indemonstrável, um “Além” lógico – para isso necessitava e sua criticada da razão pura! Em outras palavras: não teria necessitado dela, se para ele uma coisa não fosse mais importante que tudo, tornar o “mundo moral” inatacável ou, melhor ainda, inapreensível pela razão – ele percebia muito bem como uma ordem moral do mundo é vulnerável á razão! Pois ante a natureza e a historia, ante a radical moralidade da natureza e da. historia, Kant era pessimista, como todo bom alemão desde sempre: ele acreditava na moral não por ela ser demonstrada pela natureza e a historia, mas apesar de ser continuamente contrariada por elas. Talvez possamos, a fim de compreender esse “apesar de”, lembrar de algo semelhante em Lutero, esse outro grande pessimista, que, com toda a sua luterana audácia, indagou certa vez aos amigos: “se pudéssemos apreender pela razão como pode ser justo e misericordioso o Deus que mostra tanta ira e maldade, parra que necessitaríamos da fé? Até hoje nada causou mais funda impressão na alma alemã, nada a “tentou” mais do que essa perigosíssima conclusão, que para todo verdadeiro romano é um pecado contra o espírito: credo quia absurdum est [creio porque é absurdo] - com ela, a lógica alemã surge pela primeira vez na historia do dogma cristão; mas ainda hoje, um milênio depois, nós, alemães atuais, alemães tardios em todo sentido, aventamos um quê de verdade, de possibilidade de verdade, por trás do famoso principio dialetico-real com que Hegel, em seu tempo, ajudou o espírito alemão a conquistar a Europa – “a contradição move o mundo, todas as coisas contradizem a si mesmas”-: somos precisamente, até dentro da lógica, pessimistas.

 

Mas os juízos de valor lógicos não são os mais profundos e mais fundamentais a que pode descer a ousadia de nossa suspeita: a confiança na razão, com que se sustenta ou cai à validez desse juízos, é, sendo confiança, um fenômeno moral... Talvez o pessimismo alemão tenha ainda um ultimo passo a dar? Talvez deva ainda justapor, de maneira terrível, seu credo e seu absurdum? E se este livro é pessimista até dentro da moral, até além da confiança na moral. – não seria justamente por isso um livro alemão? Pois representa, de fato, uma contradição, e não tem receio dela: nele é retirada a confiança na moral – e por quê? Por moralidade! Ou como deveríamos chamar o que nele – em nós – sucede? Pois, conforme nosso gosto preferíamos palavras mais modestas. Mas não há duvida também a nós se dirige um “tu deves”, também nós obedecemos ainda a uma severa lei acima de nós – e esta é a ultima moral que ainda se nos faz ouvir, que também nós ainda sabemos viver, nisto, se em alguma coisa, ainda somos criaturas da consciência: no fato de que não desejamos voltar ao que consideramos superado e caduco, a algo” indigno de fé”, chama-se ele Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao próximo; de que não nos permitimos fazer pontes de mentiras em direção a velhos ideais; de que somos fundamentalmente hostis a tudo o que em nós gostaria de mediar e mesclar; hostis a toda espécie atual de fé e cristianismo; hostis ao mais ou menos de todo romantismo e patriotismo; também hostis ao deli te e falta de consciência dos artistas, que quer nos persuadir a adorar aquilo em que já não cremos – pois nós somos artistas -; hostis, em suma, a todo o feminismo (ou idealismo, se preferem) europeu, que eternamente “atrai para cima” e, com isso, eternamente “arrasta para baixo”: - apenas como criaturas dessa consciência sentimo-nos parentes da retidão e piedade alemãs de milênios, embora como seus rebentos mais discutíveis e derradeiros, nós, imoralistas, nós, ateus de hoje, a até mesmo, em determinado sentido, como seus herdeiros, como executores de sua mais intima vontade, de uma vontade pessimista, como dissemos, que não teme negar a si mesma, porque nega com prazer! Em nós se realiza, supondo que desejem uma formula – a auto-supressão da moral.

 

-E finalmente: por que deveríamos dizer tão alto e com tal favor aquilo que somos, que queremos ou não queremos? Vamos observá-los de modo mais frio, mais distante, com mais prudência, de uma maior altura; vamos dizê-lo, como pode ser dito entre nós, tão discretamente que o mundo não o ouça que o mundo não nos ouça! Sobretudo, digamo-lo lentamente... Este prólogo chega tarde, mas não tarde demais; que importam no fundo, cinco ou seis anos? Um tal livro, um tal problema não tem pressa: além do que, ambos somos amigos do lento, tanto eu como meu livro. Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor da lenta leitura: - afinal, também escrevemos lentamente. Agora não faz parte apenas de meus hábitos, é também de meu gosto – um gosto maldoso, talvez? – nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de gente que “tem pressa”. Pois filologia é a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento – como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por isso ela é hoje mais necessária do que nunca, justamente por isso ela nos atrai e encanta mais, em meio a uma época de “trabalho”, isto é, de pressa, de indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo “terminar”, também todo livro antigo ou novo: - ela própria não termina facilmente como algo, ela ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados... Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filósofos perfeitos: aprendam a ler-me bem!

 

LIVRO 1

 

Conceito da moralidade do costume. – Em relação ao modo de vida de milênios inteiros da humanidade, nós, homens de hoje, vivemos numa época muito pouco moral: o poder do costume está espantosamente enfraquecido, e o sentimento da moralidade, tão refinado e posto nas alturas, que podemos dizer que se volatilizou. Por isso vêm a ser difíceis para nós que nascemos tardiamente, as percepções fundamentais sobre a gênese da moral; se apesar disso as alcançamos, elas nos ficam presas à garganta e não querem sair: porque soam grosseiras! Ou porque parecem caluniar a moralidade! Assim, por exemplo, este axitoma: a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existir moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto no menor e no circulo da moralidade!. O homem livre é não-moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, “mau” significa o mesmo que “individual”, “livre”, “arbtrário”, “inusitado”, “imprevisível”. Sempre conforme o padrão desses estados originais: se uma ação é realizada não porque a tradição ordena, mas por outros motivos “a utilidade individual, por exemplo), mesmo por aqueles que então fundaram a tradição, ela é considerada imoral e assim tida mesmo por seu ator: pois não foi realizada em obediência a tradição. O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas porque ordena – O que distingue esse sentimento ente a tradição do sentimento do medo? El é o medo ante um intelecto superior que manda, ente um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal – há superstição nesse modo.- originalmente fazia parte do domínio da moralidade toda a educação e os cuidados da saúde, o casamento, as artes da cura, a guerra, a agricultura, a fala e o silêncio, o relacionamento de uns com os outros e com os deuses: ela exigia que alguém observasse os preceitos sem pensar em si como individuo. Originalmente, portanto, tudo era costume, e quem quisesse erguer-se acima dele tinha que se tornar legislador e curandeiro, e uma espécie de semideus: isto é, tinha de criar costumes – algo terrível, mortalmente perigoso ! Quem é o mais moral? Primeiro, aquele que observa mais frequentemente a lei: que, tal como o brâmane, a toda parte e em cada instante carrega a consciência da lei, de modo que é sempre inventivo em oportunidades de observá-las. Depois, aquele que a observa também nos casos mais difíceis. O mais moral é aquele que mais sacrifica ao costume: mas quais são os maiores sacrifícios? De acordo com a reposta a essa pergunta, varias morais diferentes se desenvolvem; a mais importante diferença, no entanto, continua a ser aquela entre a moralidade de mais freqüente obediência e a da mais difícil obediência. Não nos enganemos quanto ao motivo da moral que requer, como indicio da moralidade, a mais difícil ibediencia do costume! A autosuperação é exigida não por suas conseqüências úteis para o individuo, mas a fim de que o costume, a tradição apareça vigorando, não obstante toda vantagem e desejo individual: o individuo deve sacrificar-se – assim reza a moralidade do costume. – Já os moralistas que, como os seguidores da pegadas de Sócrates, encarecem no individuo a moral do autodomínio e da abstinência como a vantagem mais sua, como a sua chave pessoal para a felicidade, constituem a exceção –e, se nos parece diferente, porque fomos educados sob sua influencia: todos elas e andam por um novo caminho, sob a total desaprovação dos representantes da moralidade do costume - afastam-se da comunidade, como imorais, e são maus na mais profunda acepção. Para um virtuoso romano da velha cepa, todo cristão, que ‘antes de tudo cuidava de sua própria salvação”, - parecia mal. – Em toda parte onde existe uma comunidade e, portanto, uma moralidade do costume, vigora também o pensamento de que o castigo para a ofensa ao costume cabe sobretudo à comunidade: esse castigo sobrenatural, cuja manifestação e cujo limite são tão difíceis de apreender e sã investigados com tão supersticioso medo. A comunidade pode instalar o individuo a repassar o dano imediato que sua ação acarretou, em relação a outro individuo e a comunidade: pode igualmente cobrar uma espécie de vingança pelo fato de, graças ao individuo, como suposta conseqüência de seu ato, as nuvens e trovoadas da ira divina terem se abatido sobre a comunidade – mas ela sente a culpa do individuo sobretudo como sua culpa, e toma castigo dele como seu castigo-; “os costumes relaxaram”, lamentam-se cada um no interior de sua alma, “se atos assim são agra possíveis”. Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da historia devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por perceberem a si próprios assim. Sob o domínio da moralidade do costume, toda espécie de originalidade adquiriu má consciência; até o momento de hoje. O horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ser.

 

A moral do sofrimento voluntário – Qual o maio dos prazeres para homens em estado de guerra, numa comunidade pequena  e sempre ameaçada, onde reina a mais severa moralidade? Para almas vigorosas,vingativas, hostis, insidiosas, desconfiadas, prontas para as coisas mais terríveis, endurecidas na privação e na moralidade? O prazer na crueldade: assim como é tido por virtude de uma alma dessas, em tais consdiderações, ser inventiva e insaciável na crueldade. A comunidade se reanima com os atos o do homem cruel e afasta de si o negrume temor e cautela costume. A crueldade está entre as mais velgas alegrias festivas da humanidade. Pensa-se, então, que também os deuses ficam animados e de humor festivo quando se lhes oferece o espetáculo da crueldade – e dessa maneira insinua-se no mundo a idéia de que o sofrimento voluntário, o martírio deliberado tem sentido e valor. Gradualmente, o costume estabelece na comunidade conforme esta idéia: desconfia-se mais de todo bem –estar exuberante e confia-se mais em todo estado difícil e doloroso; as pessoas dizem a si mesmas: pode ser que os deuses nos tratem desfavoravelmente por nossa felicidade e benevolamente por nosso sofrer – não compassivamente! Pois a compaixão passa por desprezível e indigna de uma alma forte, terrível; mas benevolamente, porque se distraem e ficam bem-dispostos: pois o ser cruel desfruta o supremo gozo do sentimento de poder. É assim que entra, na noção do “homem mais moral” da comunidade,s a virtude do freqüente sofrer, do duro viver, da privação, da cruel mortificação – não, mais uma vez repetindo, como meio de disciplina, de autodomínio, de anseio de felicidade individual, mas como virtude que faz a comunidade ter bom aroma junto aos deuses maus, subindo até eles como os fumos de um permanente sacrifício no altar. Todos os guias espirituais dos povos, que conseguiram mover algo na lama inerte e fecunda dos seus costumes, necessitaram, além da loucura, do martírio voluntário, a fim de conquistar fé – quase sempre, e sobretudo, fé em si mesmos! Quanto mais seu espírito andava por novas trilhas e, portanto, era atormentado por remorsos e angústias, tanto mais cruelmente enfureciam-se eles com a sua própria carne, os próprios apetites e a própria saúde - como que para oferecer a divindade uma compensação de prazer, caso ela se aborrecesse devido aos usos negligenciados e combatidos e aos novos objetivos. Não se creia que hoje tenhamos por libertado inteiramente de uma tal lógica do sentimento! As mais heróicas almas podem questionar a si mesmas quanto a isso! Cada pequeno passo no âmbito do livre pensar, da vida pessoalmente configurada, sempre foi pelejado com martírios físicos e espirituais: não apenas o passo a frente! Mas sobretudo o andar, o movimento, a mudança precisou de seus incontáveis mártires, por longos milênios de busca de caminhos e fundação de alicerces, nos quais não se costuma pensar quando se fala de “historia mundial”, dessa parte ridiculamente pequena da existência humana, é apenas ruído acerca das ultimas novidades, não há tema mais importante do que a antiqüíssima tragédia dos mártires que buscaram mover o pântano. Nada foi comprado tão caro como o pouco de razão humana e de sentimento de liberdade que agora constitui nosso orgulho. É este orgulho, porém, que nos torna hoje quase impossível sentir como os imensos períodos de “moralidade do costume”, que precederam a “historia universal” como a verdadeira e decisiva historia que determinou o caráter da humanidade: em que o sofrimento era virtude, a crueldade era virtude, a dissimulação era virtude, a vingança era virtude, a negação da razão era virtude, enquanto o bem-estar esta perigo, a sede de saber era perigo, a paz era perigo, a compaixão era perigo, ser objeto de compaixão era ofensa, o trabalho era ofensa, a loucura era cosia divina, a mudança era imoral e prenhe de ruína! – Vocês acham que tudo isso mudou e que, portanto, a humanidade trocou de caráter? O conhecedores dos homens, atendam a conhecer-se melhor!

 

Obras e fé. Os doutores protestantes continuam a propagar o certo fundamental de que importa somente a fé e que da fé resultam necessariamente as obras. Isto simplesmente não é verdadeiro, mas é tão sedutor que já iludiu ouras inteligências além de Lutero (ou seja, Sócrates e Platão); embora a evidencie de toda experiência a cada dia prove o contrario. O mais confiante saber ou fé não pode proporcionar a energia para o ato nem a destreza para o ato, não pode substituir a exercitarão do mecanismo sutil e múltiplo, que deve ocorrer para que tudo e primeiramente as obras! Ou seja, exercício, exercício, exercício! A “fé” correspondente logo aparecerá – estejam certos disso!

 

O valor da crença em paixões sobre-humanas. – A instituição do matrimonio sustenta obstinadamente a crença de que o amor, embora uma paixão, é capaz de duração, e mesmo de que o amor duradouro, vitalício, pode ser erigido em regra. Com essa pertinácia de uma crença nobre, ainda que esta seja muitas vezes, quase normalmente recuada, e portanto seja uma piafraus [mentira piedosa], ela conferiu ao amor uma superior nobreza. Todas as instituições que outorgam a uma paixão fé na sua duração e responsabilidade pela duração, contrariamente à natureza da paixão. Dão-lhe uma nova categoria: e aquele que é tomado por tal paixão já não se crê rebaixado ou ameaçado por ela, como antes,mas elevado perante se e seus iguais. Lembremos as instituições e costumes que transformaram a ardosa entrega do momento em fidelidade eterna, a ânsia da ira em vingança eterna, o desespero em luto perene, a palavra única e súbita em perene compromisso. A cada vez, muita hipocrisia e mentira veio assim ao mundo: a cada vez também, e a esse preço, uma nova noção, sobre-humana, e enaltecedora do homem.

 

Os comediantes da virtude e do pecado. – Entre os homens da Antiguidade que se tornaram famoso por sua virtude, havia, ao que parece, um número extraordinário daqueles que atuavam diante de si mesmos: em especial os gregos, sendo atores natos, o teriam feito de modo completamente involuntário e o teriam julgado bom. E cada um achava-se, com sua virtude, em competição com a virtude de outro ou de todos os outros: como não teria utilizado todas as artes para pôr a mostra sua virtude, sobretudo ante si próprio, por exercício que fosse ! De que adiantava uma virtude que não se podia mostrar ou que não sabia mostra-se? – O cristianismo deu fim a esse comediante da virtude: para isso inventou a repulsiva exibição e alardeio do pecado, trouxe ao mundo a pecaminosidade fingida (até hoje considerada “de bom-tom” entre os bons cristãos).   

 

A fé na embriaguez. – Os seres de instantes sublimes e arrebatados, que habitualmente, por contraste e devido à própria dissipação de suas forças nervosas, sentem-se miseráveis e inconsoláveis, vêem aqueles instantes como o autêntico “Eu”, como “si”, e a miséria e o desconsolo como efeito do “fora-de-se”;e por isso pensam no seu ambiente, sua época, todo o ser mundo, com sentimentos de vingança. A embriaguez é a verdadeira vida para eles, o genuíno Eu: em todo o resto vêem adversários e estorvadores da embriaguez, seja esta de natureza moral, intelectual, religiosa ou artística. A esses entusiásticos ébrios a humanidade deve muita coisa ruim: eles são infatigáveis semeadores da insatisfação consigo e com o próximo , do desprezo pela época e o mundo e, sobretudo, do cansaço do mundo. Todo um inferno de criminoso talvez não produzisse este inquietante e prolongado efeito agressivo, corruptor de ar e terra, como faz essa pequena e nobre comunidade de desenfreados, fantasistas e semidoidos, de gênios que não podem controlar-se, e que experimentam prazer consigo apenas quando se perdem totalmente: enquanto o criminoso, com freqüência, da prova da excelente alumínio, de abnegação e prudência, e sabe manter esses atributos naqueles que o temem. O céu acima da vida talvez se torne perigoso e sombrio por causa dele, mas o ar permanece robusto e severo. – além de tudo, esses entusiastas propagam a fé na vida: uma crença terrível! Tal como agora os selvagens são rapidamente corrompidos e arruinados pela “água ardente”, a humanidade como um todo foi corrompida, lenta e radicalmente, pelas aguardentes espirituais dos sentimentos inebriantes, e pro aqueles que mantiveram vivo o anseio por eles: talvez ela ainda venha a se arruinar com isso.

 

onde estão os novos médicos da alma? - Foi através dos meios de consolo que a vida recebeu o fundamental acarater sofredor em que hoje se crê; a maior doença dos homens surgiu do combate a suas doenças, e os aparentes remédios produziram, a longo prazo, algo pior do que aquilo que deveriam eliminar. Por desconhecimento, só recursos momentaneamente eficazes, anestesiantes e inebriantes, chamados de “consolações”, foram tidos como os verdadeiros remédios, e nem mesmo se notou que o preço por esse alívios imediatos era frequentemente uma piora geral e profunda do mal-estar, que os doentes iriam sofrer as conseqüências da embriaguez e, depois, a privação da embriaguez, e, depois ainda, uma oprimente sensação geral da inquietude, agitação nervosa e indisposição. Atingido um certo grau de doença, não havia mais recuperação – disso cuidavam os médicos da alma, por todos reconhecidos e adorados. – Diz-se de Schopenhauer, com razão, que ele enfim levou novamente a sério os sofrimentos da humanidade: onde está aquele que enfim também levará a sério os antídotos para tais sofrimentos e porá no pelourinho o inacreditável charlatanismo com que, sob os mais belos nomes, a humanidade habituou-se a tratar suas doenças da alma?

 

O cristianismo e os afetos. – No cristianismo ouve-se também um grande protesto popular contra filosofia: a razão dos antigas sábios desancoselhara os afetos, o cristianismo quer restituí-los aos homens. Para esse fim, nega à virtude, tal como era concebida pelos filósofos – como triunfo da razão sobre o afeto – todo valor moral, condena racionalidade em geral e convida os afetos a manisfestar-se na sua força e esplendor extremos, como amor a Deus, temor a Deus, como fanática fé em deus, como cega esperança em Deus.

 

Da origem das religiões. – Como pode alguém perceber a própria opinião sobre as coisas como uma revelação? Este é o problema da origem das religiões: a cada vez havia um homem no qual esse fato foi possível. O pressuposto é que ele já acreditasse em revelações. Um dia ele tem, subitamente, o seu novo pensamento, e o regozijo de uma grande hipótese pessoal, que abrange o mundo e a existência, surge tão fortemente em sua consciência, que ele não ousa sentir-se criado de uma tal felicidade e atribui a seus Deus a causa dela, e também a causa da causa desse novo pensamento: como revelação desse deus. Como poderia um homem ser autor de uma tal beatitude? – é o que reza a sua duvida pessimista. E há outras alavancas agindo ocultamente: o individuo reforça uma opinião para si mesmo, por exemplo, ao considerá-la uma revelação; ele apaga o hipotético, ele a subtrai a critica, mesmo a duvida, e torna-a sagrada. Assim nos rebaixamos e não mais do que órgão, é certo, mas nosso pensamento acaba por triunfar, como pensamento de Deus – esta sensação, de com isso permanece enfim vitorioso, sobrepuja a sensação de rebaixamento. Também um outro sentimento atua nos bastidores: quando alguém eleva seu produto acima de si mesmo, aparentemente desconsiderando seu próprio valor, há nisso um jubilo de amor paterno e orgulho paterno, que tudo compensa e mais que compensa.

 

Ódio ao próximo. – Supondo que sentíssemos o outro tal como ele sente a si próprio – o que schopenhauer denomina compaixão, e que seria mais correto chamar de “uni paixão”, “unidade na paixão” – teríamos que odiá-lo, se ele, como Pasca, considera-se odiavel. E provavelmente é o que sentia Pascal em relação à humanidade como um todo, e também o antigo cristianismo, que foi “convicto”, sob Nero, de odium generis humani [ódio ao gênero humano], como informa Tácito.

 

 Os desesperados. – O cristianismo tem o instinto do caçador para todos aqueles que, de algum modo, possam ser levados ao desespero – somente uma parte da humanidade é capaz disso. Ele sempre se acha atrás deles, esta a sua espreita. Pascal experimentou ver se cada pessoal, com o auxilio do conhecimento mais incisivo, não poderia ser levada ao desespero; - a experiência fracassou, para seu renovado desespero.

 

Bramanismo e cristianismo. – á receitas para o sentimento do poder: primeiro, para os que conseguem dominar-se e, por isso, já estão familiarizados com um sentimento de poder; depois, para aqueles a que falta precisamente isso. O bramanismo cuidou de homens da primeira espécie; o cristianismo, de homens da segunda espécie.

 

O primeiro cristão. – O mundo inteiro continua crendo nos espíritos do “Espírito Santo”, ou se acha sob as conseqüências dessas fé: quando alguém abre a Bíblia, faz isso para “edificar-se”, para achar, em sua grande ou pequena miséria pessoal, um quê de consolo – em suma, perde e encontra-se na leitura. O fato de que nela se acha também a historia de uma fadas mais ambiciosas e insistentes almas, de um espírito supersticioso e astuto no mesmo grau, a historia do apostolo Paulo – quem sabe isso, a exceção de alguns eruditos? Mas sem essa notável historia, sem os desconcertos e arrebatamentos de um tal espírito, de uma alma tal, não haveria cristianismo; mal saberíamos de um pequena seita judia cujo mestre morreu na cruz. É verdade que, se tivéssemos compreendido a tempo essa historia, se tivéssemos lido os textos de Paulo não como revelações do “espírito santo”, mas com livre e honesto espírito próprio, e sem pensar em nossa própria miséria pessoal, se os tivéssemos realmente lido – por mil e quinhentos anos não houve tal leitor-, há muito o cristianismo já teria acabado: de tal modo essas paginas de Pascal judeu expõem a origem do cristianismo, assim como as paginas do Pascal francês desnudam seu destino e aquilo que o fará sucumbir. Se o barco do cristianismo arremessou ao mar uma boa parte do lastro judeu, se andou e pôde andar entre os pagãos – isto se liga a historia desse único homem, um homem muito atormentado, bem digno de compaixão, bastante desagradável, e desagradável para si mesmo. Ele sofreu de uma idéia fixa, ou, mais exatamente, de uma questão fixa, sempre presente, e que nunca descansou: qual a situação da Lei judaica? E, em particular, do cumprimento dessa Lei?  Na sua juventude, procurara ele mesmo satisfaze-la, ávido da suprema distinção que os judeus podiam conceber – esse povo que levou a imaginação da grandeza moral a um nível mais alto que qualquer outro, o único que chegou a criação de um Deus sagrado, justamente com a idéia de que o pecado é uma ofensa a esta divindade. Paulo tornara-se o fanático defensor e guarda de honra desse Deus e da sua Lei, continuamente a espreita e em luta contra os que a infringiram e questionavam, duro e mau para com eles, e inclinando a extremos de castigo. E então se deu conta de que ele próprio – impetuoso, sensual, melancólico, maldoso no ódio, como era- não podia cumprir a Lei, e, o que lhe pareceu mais estranho: que sua desenfreada ânsia de domínio era continuamente incitada a infringi-la, e que ele tinha de ceder a esse aguilhão. É realmente a “carnalidade” que sempre torna a fazê-lo um transgressor? E não, como posteriormente suspeito, a Lei mesma por trás dela, que sempre tem de provar ser inobservável e, com irresistível magia, convida a transgressão? Mas naquele tempo ele não tinha essa escapatória. Muitas coisas carregava na consciência – alude à inimizade, assassinato, feitiçaria, idolatria, luxuria, embriaguez e gosto por desenfreadas orgias –e, por mais que também procurasse desafogar essa consciência, e ainda mais sua ânsia de domínio, com o extremo fanatismo da veneração e defesa da fé, houve momentos em que disse a si próprio: “è tudo em vão! O tormento do não-cumpriemnto da Lei não pode ser superado”. Lutero pode ter sentido algo semelhante, quando quis torna-se, em seu monastério, o homem perfeito do idéia eclesiástico: e, de modo semelhante a Lutero, que um dai começou a odiar o ideal eclesiástico, o papa, os santos e toda a clericalha, como ódio verdadeiramente mortal, tanto maior quanto menor podia reconhecê-lo – de modo semelhante sucedeu com Paulo. A lei era a cruz a que se sentia pregado: como a odiava! Como lhe guardava rancor! Como olha em torno, a buscar um meio de destruí-la- não mais de cumpri-la em sua pessoa! E enfim surgiu-lhe o pensamento salvador, acompanhado de uma visão, como teria de ser com esse epilético: a ele, o furibundo zelador da Lei , totalmente cansado dela no seu intimo, apareceu-lhe em estrada solitária o Cristo, o rosto brilhando com a luz divina, e Paulo ouviu as palavras: “Por que me persegues?”. O que ali se deu, no essencial, foi isto: sua mente ficou clara; “é irracional”, falou consigo,”perseguir justamente esse Cristo! Eis a escapatória, eis a vingança perfeita, eis aqui, somente aqui, o destruidor da Lei” . Doente da mais atormentada soberba, de repente sente-se restabelecido, o desespero murasse foi, pois a moral se foi, foi destruída – isto é, cumprida, lá na cruz! Até atenção, vira aquela morte vergonhosa como o principal argumento contra a “messianidade” de que falavam os seguidores da nova doutrina: e se ela fosse necessária ipara abolir a Lei? – As enormes conseqüências dessa idéia, dessa solução do enigma, ante o seu olhar, ele se torna o mais feliz dos homens – o destino dos judeus, não, de todos os homens, parece-lhe atado a essa idéia, a esse instante da repentina iluminação, ele tem a idéia das idéias, a chave das caves, a luz das luzes; em torno dele gira doravante a história! Pois ele é, a partir de então, aquele que ensina a destruição da Lei!Morrer para o mal- significa também morrer para a Lei; viver na carne – significa também viver na Lei! Haver-se tornado um com Cristo- significa haver-se tornado com ele o destruidor da Lei; ter morrido com ele- significa ter morrido para a Lei! Mesmo que ainda fosse possível pecar, não seria mais contra a Lei, “estou fora dela”. Se eu agora abraçasse de novo a Lei e me submetesse a ela, tornaria Cristo cúmplice do pecado”; pois a Lei existia para que se pecasse, ela produzia sempre o pecado, como humores corrosivos geram a doença; deus jamais teria decidido à morte de Cristo, se o cumprimento da Lei fosse possível sem esta morte; agora não apenas toda culpa foi levada como a culpa em si foi destruída se acha morta –ou, pelo menos, em continuo morrer, como que se decompondo. Ainda um breve tempo no meio dessa composição! – eis a sina do cristão, antes de, tornado um com Cristo, ressuscita com Cristo, partilhar com Cristo a gloria divina e torna-se “filho de Deus” como Cristo. – assim a embriaguez de Paulo atinge seu cume, e também a impertinência de sua alma – com a idéia do “tornar-se um”, todo pudor, toda subordinação, todo limite lhe foi tirado, e a indômita vontade da ânsia de domínio mostra-se como antecipado regalar-se em glórias divinas. – Este é o primeiro cristão, o inventor da cristandade! Até então havia apenas alguns sectários judeus.

 

A vingança cristã sobre Roma. – Talvez nada seja tão cansativo quanto à visão de um perpétuo vencedor – por duzentos anos viu-se Roma sujeitar um povo atrás do outro, o circulo estava fechado, todo o futuro parecia no fim, todas as coisas arranjadas para um esta eterno – sim, quando o império construía, contruia-se com o pensamento do “aaere perennius” [mais duradouro que o bronze];- nós, que conhecemos apenas a “melancolia das ruians”, mal podemos compreender essa em outra melancolia das construções eternas, da qual era preciso tentar salvar-se como se podia- por exemplo, com a frivolidade de Horácio. Outros buscavam outros consolos para a fadiga que roçava o desespero, para a consciência mortal de que todos os movimentos do intelecto e do coração estavam sem esperança, de que em toda parte se achava a grande aranha, de que implacavelmente ela beberia todo o sangue, não importando onde ainda houvesse. – Esse mudo ódio de séculos a Roma, sentido por espectadores cansados, onde quer que Roma domine, desafogou-se afinal no cristianismo, na medida em que este juntou Roma, “mundo” e “pecado” numa só percepção: vingavam-se dela, pondo novamente um futuro diante de si – Roma soubera transformar tudo em sua pré-história e seu presente -, um futuro em relação ao qual Roma já não parecia à coisa mais importante, vingavam-se dela, sonhando com o Juízo Final – e o judeu crucificado como símbolo da salvação era a suprema dos vistosos pretores romanos da província, pois eles pareceram, então, símbolos da perdição e do “mundo” maduro para o fim.-

 

O “após-a-morte. – O cristianismo encontrou a noção de castios infernais em todo o império romano: os numerosos cultos secretos e vinham chocando com particular deleite, como o ovo mais fértil do seu poder. Epicuro acreditou nada fazer de mais relevante para seus iguais do que arrancar essa fé pela raiz: seu triunfo, que teve a expressão mais bela na voz do sombrio porém iluminado seguidor de sua doutrina, o romano Lucrecio, chegou cedo demais – o cristianismo tomou sob sua particular proteção a fé nos horrores subterrâneos, que já fenecia, e agiu habilmente ao fazê-lo!Como poderia, sem este ousado recurso ao pleno paganismo, vencer a popularidade dos cultos de Mitras e Ísis? Assim atraiu os temerosos para seu lado – os mais fortes aderentes de uma nova fé!Os judeus, sendo um povo que tinha e tem apego à vida, como os gregos e mais que os gregos, pouco haviam cultivado tais idéias: a morte definitiva como punição de pecador e a impossibilidade de ressurreição como ameaça extrema – isto já impressionava o bastante esses homens singulares, que não queriam desfazer-se do seu corpo, tendo a esperança, com seu refinado egipcismo, de salvá-lo por toda a eternidade. (Um mártir judeu, do qual se fala no segundo livro dos Macabeus, não pretende renunciar as vísceras arrancadas: quer tê-las quando ressuscitar – isto é algo judeu!) . A idéia de suplícios eternos era vem remota para os primeiros cristãos, eles pensavam estar redimidos “da morte” e a cada dia esperavam uma transformação, não mais uma morte. (Que estranho efeito deve ter produzido o primeiro falecimento nessa gente que esperava! Como se mesclaram, ali, admiração, júbilo, duvida, vergonha, fervor!- um tema para grandes artistas, realmente!). Paulo não teve elogio maior para seu Salvador do que dizer que ele abriu a todos o acesso a imortalidade – ele ainda não crê na ressurreição dos não-redimidos, e inclusive suspeita, conforme sua doutrina do impossível cumprimento da Lei e da morte como conseqüência do peado, que até então ninguém (ou muito poucos, e por graça, sem mérito) tornou-se imortal; apenas então a imortalidade começaria a abrir suas portas –e, afinal, também muitos poucos seriam para ela escolhidos: como a soberba do escolhido não deixa de acrescentar. – Por outro lado, quando o impulso a vida não era tão grande como entre os judeus e judeu-cristãos, e a perspectiva da unimortalidade não parecia claramente mais valiosa que a perspectiva de uma morte definitiva, o acréscimo pagão do inferno, que tampouco era inteiramente não-judeu, tornou-se um instrumento bem-vindo nas mãos dos missionários: surgiu a nova doutrina de que também o pecador e não-redimido é imoral, a doutrina da danação eterna, e ela foi mais poderosa que o pensamento da morte definitiva, já inteiramente debilitado. Apenas a ciência reconquistou-o para si, ao rejeitas qualquer outra concepção da morte e qualquer vida no além. Ficamos mais pobres de um interesse: o “após-a-morte” já não nos diz respeito! – um beneficio indescritível, apenas ainda muito recente para em toda parte ser visto como tal. – E Epicuro triunfo novamente!

 

A favor da “verdade”! – “a favor da verdade do cristianismo depõe a virtuosa conduta dos cristãos, sua fortaleza no sofrimento, sua fé firme e, principalmente, sua difusão e crescimento, apesar das tribulações”, - assim falam vocês ainda hoje! É de fazer pena! Pois aprendam que nada disso depõe contra a verdade, que a verdade é demonstrada de forma diferente da veracidade, e que esta não é, de modo nenhum, argumento a favor daquela!

 

Pensamento oculto cristão. – Teria sido este o mais comum pensamento oculto dos cristão do primeiro século: “É melhor convencer-se da própria culpa do que da própria inocência, pois não se sabe exatamente qual a inclinação de um juiz tão poderoso – mas deve-se temer que ele só espere encontrar pessoas conscientes da culpa!Com seu grande poder, será mais fácil ele perdoar um culpado do que admitir que alguém tem razão na sua presença”. – É o que sentia a pobre gente da província diante do pretor romano:”Ele é muito orgulhoso para que pudéssemos ser inocentes” – como não reapareceria este sentimento na representação cristã do juiz supremo?

 

Dos tormentos da alma. – Por qualquer tormento que alguém inflige a um corpo alheio, todos gritam atualmente; há indignação imediata contra um homem capaz disso; trememos já com a idéia de um tormento que poderia ser imposto a um homem ou animal, e sofremos de modo insuportável, ao ouvir um ato comprovado desse gênero. Mas ainda estamos longe de sentir da mesma forma geral e determinada, em relação aos martírios da alma e o horror que é infligi-los. O cristianismo utilizou-os numa escala inaudita e ainda prega constantemente essa espécie de tortura; chega a queixar-se, com total inocência, de deserção e tibieza, quando se verifica um estado sem esses tormentos. – De tudo isso resulta que a humanidade ainda se comporta, perante a morte na fogueira, as torturas e instrumentos de tortura espirituais, com a mesma angustiada paciência e indecisão de outrora, ante as crueldades infligidas nos corpos de homens e animais. O inferno, verdadeiramente, não permaneceu palavra morta: e aos novos medos infernais criados correspondeu também uma nova espécie de compaixão, uma atroz e esmagado piedade, desconhecida em outros tempos, para com os “irremissivelmente condenados ao inferno”, que o convidado de pedra mostra em relação a Don Juan, por exemplo, e que, nos séculos cristãos, deve ter levado até mesmo as pedras ao lamento.Plutarco apresenta a imagem sombria de um supersticioso dentro do paganismo: esta imagem torna-se inofensiva quando comparada ao cristão da Idade Média, que presume não mais poder escapar ao “martírio eterno”. Terríveis augúrios lhe aparecem: talvez uma cegonha que carrega uma serpente no bico e hesita em devorá-la. Ou a natureza empalidece repentinamente, ou cores inflamadas passam voando sobre o chão. Ou aproximam-se formas de parentes falecidos, com rostos que têm traços de horríveis sofrimentos. Ou as paredes escuras do quarto do homem que dorme se iluminam, e nessas se mostram, em fumaça amarela, instrumento de tortura e uma profusão de serpentes e demônios. Sim, em que horrenda morada o cristianismo soube transformar a terra, apenas por erguer em toda parte o crucifixo e assim designá-la como lugar “onde o justo é suplicado até a morte”!E, quando a veemência dos grandes pregadores levou a publico o secreto sofrimento dos indivíduos, as torturas da “pequena câmara”, quando, por exemplo, um Whitefield pregou “como um moribundo aos moribundos”, ora afundando em lagrimas, ora batendo os pés com força e paixão, em tons de voz incisivos e bruscos, e sem pejo de lançar todo o peso de um ataque a uma única pessoa, segregando-a terrivelmente da comunidade – como parecia a terra querer realmente tornar-se, a cada vez, o “campo do infortúnio”! Via-se então afluírem massas inteiras, como que sob o ataque de uma só loucura; muitas pessoas em espasmos de medo; outras a jazer imóveis, sem consciência; algumas tremiam fortemente, ou enchiam o ar de gritos penetrantes que duravam horas. Em toda parte um sonoro de ar. “E, na verdade”, diz uma testemunha dessas pregações, “quase todos os sons ouvidos eram de pessoas que morrem num amargo tormento”. – Não esqueçamos que apenas o cristianismo tornou o leito de morte um leito de silícios, e que, com as cenas que desde então foram vistas sobre ele, com os horrorosos sons que pela primeira vez ali pareceram possíveis, foram envenenados os sentidos e sangue de incontáveis testemunhas, por toda a sua vida e a de seus descendentes!Imaginemos uma pessoa inofensiva, que não consegue refazer-se de ter escutado as seguintes palavras: “Oh, eternidade!Oh, antes são tivesse eu alma! Oh, antes não tivesse jamais nascido!Estou condenado, condenado, perdido para sempre. Seis dias atrás vocês poderiam ter me ajudado. Mas agora acabou. Hoje pertenço ao Diabo, com ele vou para o inferno. Partam-se, pobres corações de pedra! Não querem partir-se? Que mais pode suceder a corações de pedra? Estou condenado para vocês se salvem! Aí está ele! Venha, bom Diabo! Venha!”.

 

O cristão compassivo. – O reverso da compaixão cristã pelo sofrimento do próximo é a profunda suspeita de toda alegria do próximo, de sua alegria em tudo o que quer e pode.

 

Humanidade do santo.- Um santo apareceu no meio dos crentes, senão podia mais agüentar o seu ódio incessante ao pecado. Afinal disse: “Deus criou todas as coisas, exceto o pecado: surpreende que seja maldisposto em relação a este? – Mas o homem criou o pecado – e deveria rejeitar este seu único filho, apenas porque desagrada a Deus, o avô do pecado? Isto é humano? Honra a quem ela é devida!- mas o coração e a obrigação devem falar primeiro a favor de filho – e apenas depois em honra do avô!”.

 

O ataque eclesiástico. – “Isso você deve resolver consigo mesmo, pois trata-se de sua vida”, com essa exclamação Lutero nos interpela, acreditando que sentimos a faca no pescoço.Mas nós o rechaçamos com as palavras de alguém mais elevado e mais ponderado: “Está em nossas mãos não formar opinião sobre isso ou aquilo, poupando o desassossego à nossa alma. Pois as coisas mesmas não podem, de sua própria natureza, forçar-nos a um julgamento”.

 

obre humanidade!- Uma gota de sangue a mais ou a menos, em nosso cérebro, pode tornar extremamente miserável e dura a nossa vida, de tal modo que sofreremos mais com essa gota do que Prometeu com seu abutre. O mais terrível, porém, acontece quando não se sabe que essa gota é a causa. É sim “o Diabo”! Ou “o pecado”!-

 

A filologia do cristianismo. –Pode-se muito bem calcular quão pouco o cristianismo educa o sentido de honestidade e justiça pelo caráter dos escritores de seus eruditos: eles apresentam suas conjecturas ousadamente, como se fossem dogmas, e é raro que se vejam em honesto embaraço quanto à interpretação de uma passagem bíblica. Frequentemente dizem: “Eu estou certo, pois assim está escrito”- e segue-se uma interpretação de despudorado arbítrio, de maneira que um filólogo hesita entre a cólera e o riso ao escutá-la, e varias vezes perguntam a si mesmo: é possível? É respeitável? É ao menos decente? – quanta desonestidade, nesse aspecto ainda é cometida nos púlpitos protestantes, como o pregador explora grosseiramente a vantagem de ninguém aí lhe cortar a palavra, como a Bíblia é empurrada e espremida, e a arte da má leitura é formalmente ensinada ao povo: isso é subestimado apenas por quem nunca - ou sempre- vai à igreja. Mas, por fim, que devemos esperar das conseqüências de uma religião que, nos séculos de sua fundação, representou aquela inaudita farsa filológica em torno do Antigo Testamento:falo de tentativa de arrebatar aos judeus o Antigo Testamento, afirmando que não contem senão doutrinas cristãs e que pertencem aos cristãos, como o verdadeiro povo de Israel: enquanto os judeus o teriam apenas usurpado. E então se deu um furo de interpretação e atribuição, que não podia estar ligado à boa consciência: por mais que protestassem os eruditos judeus, supunha-se que o Antigo testamento falasse de Cristo e apenas de Cristo, em particular de sua cruz, e onde quer que fosse mencionada uma madeira, uma vara, uma escada, um ramo, uma revire, uma haste, um bastão, isto significa uma profecia de madeira da cruz: mesmo a instituição do Unicórnio e da serpente de bronze, mesmo Moises, ao estender os braços em oração, até os espetos em que é assado o cordeiro da Páscoa – tudo é alusão e como que prelúdio à cruz! Teráia acreditado nisso alguém que o afirmou? Considere-se que a Igreja não hesitou em aumentar o texto da Septuaginta (p. Ex., no salmo 96, versículo 10), para depois usar no sentido da profecia cristã o trecho contrabandeado. Estava-se numa batalha, pensava-se nos inimigos, não na honestidade.

 

Os interpretes cristãos do corpo.­- O que quer que provenha do estomago, dos intestinos, da batida o coração, dos nervos, das bílis – todas as indisposições, fraquezas, irritações, todos os acasos de uma maquina que conhecemos tão pouco! – tudo isso um cristão como pascal tende considerar um fenômeno moral e religioso, perguntando se ali se acha deus ou o Diabo, o bem ou o mal, a salvação ou a danação. Oh, interprete infeliz!Como precisa revirar e torturar seu sistema!Como el próprio necessita revirar-se e torturar-se para ter razão!

 

A honestidade de Deus. – um Deus que é onisciente e onipotente e que não cuida em que sua intenção seja compreendida por suas criaturas – sei esse um Deus da bondade? Que deixa enumeráveis duvidas e apreensões continuarem existindo por milênios, como se fossem irrelevantes para a salvação da humanidade, e que, no entanto, deixa entrever as mais terríveis consequências de um equívoco em relação à verdade? Não seria este um Deus cruel, se tivesse a verdade e pudesse acompanhar como a humanidade se aflige lamentavelmente por ela?- Mas talvez seja realmente um deus da bondade – e apenas não conseguiu expressar-se mais claramente!Faltou-lhe talvez espírito para isso?Ou eloqüência? Tanto pior! Então talvez se engane também no que chama de sua “verdade”, e ele próprio não seria muito diferente do “pobre Diabo iludido”! Não deve suportar tormentos quase infernais ao ver suas criaturas sofrerem tanto por seu conhecimento, e continuarem sofrendo ainda mais em toda a eternidade, e não poder aconselhar e ajudar, senão como um surdo-mudo que faz todo tipo de sinais quando o mais terrível perigo espreita seu filho ou seu cão?- Seria verdadeiramente perdoável, num crente em aflição e que assim concluísse, que tivesse antes compaixão pelo Deus sofredor do que pelos “próximos”- pois não são mais os seus próximos, se o mais solitário e primordial dos seres é também o mais sofredor e carente de consolo. – Todas as religiões trazem uma marca de que de que devem sua origem uma intelecto novo e imaturo da humanidade- são todas espantosamente levianas com a obrigação, por partede Deus, de ser veraz e claro na comunicação com a humanidade.-Acerca do “deus oculto” e das razões para manter-se oculto e manifestar-se apenas com meias-palavras ninguém formais eloqüente do que Pascal, um indicio de que ele nunca esteve tranqüilo quando a isso: mas sua voz soa bem confiante, como se ele tivesse penetrado nos bastidores. Teve o pressentimento de uma imoralidade no “deus absconditus” [deus oculto], e um enorme pudor e temor de admiti-lo para si mesmo: e assim, como alguém que tem medo, falou o mais alto que podia.

 

No leito de morte do cristianismo. – Os homens realmente ativos estão agora interiormente sem cristianismo, e os mais moderados e pensativos da classe media intelectual tem apenas um cristianismo adaptado, ou seja, admiravelmente simplificado. Um deus que, em seu amor, tudo dispõe para que venha a ser o melhor para nós, um deus que dá e toma tanto a nossa virtude como a nossa felicidade, de modo que as coisas, em geral, vão sempre bem, não há razão para ver tristemente a vida ou até mesmo denunciá-la, em suma, a resignação e a modéstia tornadas divindades – isso é o que de melhor e mais vivo ainda resta do cristianismo. Mas deve-se notar que assim o cristianismo converteu-se num brando moralismo: o que resta não é tanto “Deus, liberdade e imortalidade” como benevolência e atitude decorosa, e a crença de que em todo o universo predominarão a benevolência e atitude decorosa: é a eutanásia do cristianismo.

 

Que é a verdade? – Quem não admitirá a dedução que os fieis gostam de fazer: “A ciência não pode ser verdadeira, pois nega a Deus, Portanto, não procede de Deus;portanto, não é verdadeira- pois Deus é a verdade”. Não a dedução, mas o pressuposto contém um erro: e se deus não fosse à verdade, e justamente isso fosse provado? Se ele fosse à vaidade, o apetite de poder, a impaciência, o terror, a entusiasmada e horrorizada loucura dos homens?

 

LIVRO II

 

Fins? Vontade?- Habituamo-nos a pensar em dois reinos, no reino dos fins e da vontade e no reino dos acasos; nesse ultimo as coisas ocorrem sem sentido, vem e vão sem que alguém possa dizer: Por quê? Para quê?- Nós tememos esse poderoso reino da imensa estupidez cósmica, pois geralmente o conhecemos quando cai aquele outro mundo, o dos fins e intenções como uma telha cai do telhado, matando-nos uma bela finalidade. Essa crença nos dois reinos é um romantismo e uma fabula antiqüíssimos: nós, inteligentes anões, com nossa vontade e nosso fins, somos irritados, atropelados, muitas vezes pisoteados até a morte pelo gigantes estúpidos, mais que estúpidos, que são os acasos –e, apesar disso tudo, não gostáramos de ficar sem a pavorosa poesia dessa vizinhança na teia de aranha dos fins tornou-se muito enfadonha ou ambigüidade para nós, e nos proporcionaram uma sublime diversão, ao destruir toda a teia com a mão – não que o quisessem fazer, esses insensatos!Não que o notassem sequer! Mas suas mãos grosseiras rompem a nossa teia como se fosse ar. – Os gregos chamavam de Moira esse reino de incalculável e da sublime e terna parvoíce, e colocavam-no em torno de seus deuses como um horizonte, além do qual não podiam ver nem agir: com a secreta teimosia ante os deuses que há em muitos povos, de forma que o individuo os adora, mas guarda nas mãos um último trunfo contra eles, por exemplo, quando o hindu ou a persa os vê como dependentes do sacrifício dos moertasis, de modo que estes, no piro dos casos , podem deixá-los famintos e moribundos; ou quando o escandinavo duro e melancólico inventa para si, com a noção de um crepúsculo dos deuses, o deleite de uma vingança tranqüila, para compensar o medo continuo que lhe infundem seus deuses maus. Diverso foi o cristianismo, cujos sentimentos fundamentais não sendo hindus nem persas, nem gregos, nem escandinavos, impunham adorar o espírito do poder no pó e ainda beijar o próprio: o que deu a entender que o todo-poderoso “reino da estupidez” não é tão estúpido como parece, que somos nós os estúpidos, que não percebemos que por trás dele se acha o bom Deus, que, é verdade, ama os caminhos escuros, tortos e prodigiosos, mas enfim tudo “conduz a gloria”. Essa nova fabula do bom Deus, até então confundido com uma raça de gigantes ou com Moira,e tecendo ele próprio fins e teias mais refinados que os de nossa compreensão- de modo que a ela tinham de parecer incompreensíveis, até mesmo irrazoaveis- essas fabula era um tão ousada inversão e um paradoxo tão arriscado, que o mundo antigo, já refinado em demasia, não pode resistir, por mais insano e contraditório que soasse aquilo: - pois, seja dito entre nós, havia ali uma contradição: se nosso entendimento não pode apreender o entendimento e os fins de Deus, como apreender ele essa natureza do seu entendimento? E essa natureza do entendimento de Deus?- Em épocas mais recentes aumentou a desconfiança de que a telha que cai do telhado seja realmente lançada pelo “amor divino” – e os homens começam a retomar a velha trilha do já é tempo: em nosso suposto reino especial de fins e da razão governam também os gigantes!E nossos fins e nossa razão não são anões, mas gigantes! E nossas teias são rasgadas tão freqüentemente tão grosseiramente por nós mesmos como por uma telha!E nem tudo o que se chama finalidade é finalidade, tampouco é vontade o que se denomina vontade!E, se quiserem concluir: “Então há apénas um reino, modos acasos e da estupidez?”- devemos acrescentar: sim, talvez haja somente um reino, talvez não exista vontade nem finalidade, e nós apenas as imaginamos. As mãos férreas da necessidade, que agitam o copo de dados do acaso, prosseguem jogando por um tempo infinito: têm de surgir lances que semelham inteiramente à adequação aos fins e a racionalidade. Talvez nossos atos de vontade e nossos fins não sejam outra coisa que tais lances-e nós somos apenas muito limitados e vaidosos para apreender nossa extrema limitação: a saber, que nós mesmos agitamos o copo de dados com mãos férreas, que nós mesmos, em nossas ações mais intencionais, nada fazemos senão jogar o jogo da necessita . Talvez!-Para ultrapassar esse talvez, seria preciso já haver estado no mundo inferior e além de toda superfície, e haver jogado e apostado com Perséfone em sua própria mesa.

 

Ultimas ressonâncias do cristianismo na moral. – “On n’est bon que par la pitié: il faut donc qu’il y ait quelque pitié dans tous nos sentiments” [Somos bons apenas mediante a piedade: é preciso, então, que haja alguma piedade em todos os nossos sentimentos]- é o que diz a moral de hoje! E de onde vem isso?-Que o individuo de ações simpáticas, desinteressadas, sociais, de utilidade geral, seja visto agora como o homem moral - é talvez o efeito e a mudança mais amplos que o cristianismo produziu na Europa: embora não tenham constituído sua intenção nem sua doutrina. Mas foram o resíduo de disposições de espírito cristãs, quando gradualmente retrocedia a crença fundamental, bastante oposta, estritamente egoísta, no “uma só coisa é necessária”, na absoluta importância da eterna salvação pessoal, juntamente com os dogmas em que se baseava, e assim foi empurrada para primeiro plano a crença secundária no “amor”, no “amor ao próximo”, em sintonia com a enorme pratica da misericórdia eclesiástica. Quanto mais o individuo se desprendia dos dogmas, tanto mais buscava como que a justificação desse desprendimento em um culto do amor aos homens: e nisso não ficar atrás do ideal cristão, mas sobrepujá-lo, quando possível foi um secreto aguilhão para todos os livres-pensadores franceses, de Voltaire e Auguste Comte; esse ultimo, com sua celebre formula moral vive pour autrui[ viver para o outro], superou os cristãos em cristianismo. Schopenhauer, em terras alemãs,e John Stuart Mill, em terras inglesas, deram a maior celebridade a doutrina das afecções simpáticas e da compaixão, ou da tilidade para os outros como principio da ação: mas eles próprios foram apenas um eco – essas doutrinas brotaram com ímpeto poderoso em toda parte simultaneamente nas mais finas e mais grosseiras formas, aproximadamente a partir da época da Revolução Francesa, e todos os sistemas socialistas puseram-se, como que automaticamente, no solo comum dessas doutrinas. Talvez não haja, nos dias de hoje, preconceito em que se acredite mais do que este: de que se sabe o que realmente constitui a coisa moral. Agora parece que faz bem a todos ouvir dizer que a sociedade está em vias de adequar  o individuo as necessidades gerais e que a felicidade e ao mesmo tempo o sacrifício do individuo está em sentir-se um membro útil e um instrumento do todo: mas ocorre que no presente hesita-se muito em relação a onde buscar esse todo, se num estado existente ou a ser fundado, na nação, numa fraternidade de povos ou em novas e pequenas comunidades econômicas. Acerca disso há agora muitas reflexões, duvidas, lutas, muita paixão e agitação; surpreendente e bem soante, porém, é a concordância em exigir que o ego negue a si mesmo, até adquirir novamente, na forma da adequação ao todo, seu sólido circulo de direitos e deveres – até haver se tornado algo inteiramente novo e diverso.Pretende-se nada menos – seja ou não admito – que uma radical transformação, uma debilitação e anulação do individuo: não se para de enumerar e denunciar tudo de mau e hostil, de esbanjador, dispendioso, luxuoso, na forma da existência individua até o momento; espera-se uma administração mais econômica, mais segura, mais equilibrada, mais uniforme, se houver apenas corpos grandes e seus membros.É visto como bom tudo o que, de algum modo, corresponde a esse impulso formador de corpo e membros, e a seus impulsos auxiliares, esta é a corrente moral fundamental de nosso tempo; empatia individual e sentimento social aí se conjugam. (Kant ainda está fora desse movimento: ele ensina expressamente que devemos ser insensíveis ao sofrimento alheio, apara que a nossa beneficência tenha valor moral – o que Schopenhauer, muito irritado, como se pode compreender, chama de a insipidez kantiana).

 

Também por sobre o próximo.- Como? A natureza do que é verdadeiramente moral estaria em divisar as conseqüências próximas e imediatas de nossas ações pra o outro, e nos decidirmos em conformidade com elas? Esta é uma moral escrita e pequena-burguesia, ainda que seja uma moral: um pensamento mais elevado e livre parace-me olhai também por sobre essas conseqüências imediatas para o outro e, em determinadas circunstancias, promover fins mais distantes, também com o sofrimento do outro-por exemplo, promover o conhecimento, apesar da compreensão do que o nosso livre-pensar logo lançará o outro em duvidas, preocupações e coisas piores. Não nos é permitido tratar o próximo como a nós mesmos, pelo menos? E se, em nosso caso, não pensamos nas conseqüências e dores imediatas, de modo tão estreito e pequeno-burguês: por que teríamos de faze-lo no caso dele? Supondo que tivéssemos o sentido do sacrifício em relação a nós, o que nos proibiria de sacrificar conosco o próximo?- como até agora fizeram o Estado e os príncipes, sacrificando u cidadão aos outros “pelo interesse geral” como se dizia. Mas também nós temos interesses gerais talvez mais que gerais: por que não deveriam alguns indivíduos das gerações que seu desgosto, seu desassossego, seu desespero, seus equívocos e passos angustiados fossem vistos como necessários, porque uma nova relha de arado deve rasgar o solo e faze-lo fecundo para todos? – Enfim: nós comunicamos ao próximo, ao mesmo tempo, o espírito em que pode sentir-se sacrificado, nós o conquistamos para a tarefa  para a qual o utilizamos. Então não temos compáixão? Mas, se queremos alcançar a vitória de nós mesmo também por sobre a nossa compaixão, não é essa uma postura e disposição mais alta e mais livre do que aquele em que nos sentimos seguros ao descobrir se uma ação faz bem ou mal ao próximo? Enquanto nós, através do sacrifício – no qual estão incluídos nó e os próximos – fortaleceríamos e elevaríamos mais alto o sentimento geral do poder humano, supondo que não conseguíssemos mais.Mas isto já seria um positivo incremento da felicidade.-Por ultimo, se mesmo isto—nem uma palavra mais, porém! Um olhar basta, vocês me compreenderam.

 

Causas do “altruísmo”.- de modo geral, as pessoas falaram do amor com tanta enfase e adoração porque tiveram pouco dele, nunca puderam saciar-se desse manjar: então ele se tornou “manjar dos deuses” para elas. Se um poeta mostrar, numa utopia, a existência dolorosa e ridícula, de que não se viu igual neste mundo.-Todo individuo cortejado, importunado e desejado, não por um só amante, como sucede hoje, mas por milhares, sim, por todos , em virtudes de um impulso unirreprimivel que será injuriado e amaldiçoado, como a antiga humanidade faz com o egoísmo; e os poetas dessa nova situação, se lhes for dado sossego para poetar, sonharão apenas com o feliz passado sem amor, o divino egoísmo, a solidão, a paz, ausência de amor, malevolência e desprezo que antes foram possíveis na Terra, e como quer que se chame toda a vilania do caro mundo animal em que vivemos.

 

Perspectiva distante.-se apenas forem morais, como se definiu, as ações que fazemos pelo próximo e somente pelo próximos,e então não existem ações morais! Se apenas forem morais- segundo outra definição- as ações que fazemos com livre-arbítrio, então não existem ações morais!-O que, então, é isso que tem esse nome, que de todo modo existe e pede explicação?São os efeitos de alguns erros intelectuais.-Supondo que nos libertássemos desses erros, quês era das “ações morais”?- Em virtude desses erros, até hoje atribuímos a algumas ações um valor maior alto do que o que tem: nós as distinguimos das ações “egoísta” e das ‘não-livres”. Se agora tiramos e junta-las a estas, como temos de fazer, diminuímos certamente o seu valor ( o sentimento de seu valor), e isso abaixo da medida razoável, pois as ações “egoístas” e “não-livres” tiveram avaliação muito baixa até o momento devido à suposta diferença intrínseca e profunda.-Então porque passarão a ser menos valorizadas?-Inevitavelmente! Ao menos por um  tempo, enquanto a balança do sentimento de valor estiver sob a reação de erros passados!Mas nossa contrapartida é que restitui os aos homens a boa coragem para as ações difamadas como egoísta e restauramos o valor das mesmas – roubando delas a má consciência!E, como até hoje foram as mais freqüentes, e em todo o futuro continuarão a sê-lo, retiramos a todo o quadro das ações e da vida a sua má experiência!Não mais se considerando mal, o homem deixa de sê-lo!

 

 

LIVRO IV

 

O engano na humilhação. Com sua insensatez, você infligiu ao próximo m grande sofrimento e destruiu-lhe inapelavelmente a felicidade – e agora você vence a própria vaidade a ponto de procura-lo, humilhar-se perante ele e entregar sua insensatez ao desprezo, acreditando que após esta cena dura, bastante penosa para você, tudo voltou a ficar em ordem- que sua voluntária perda de honra compensa a involuntária perda de felicidade por parte do outro: com este sentimento você se afasta, de cabeça erguida e virtude reabilitada. Mas o outro continua com o sofrimento, para ele não há consolo no fato de você ser insensato e te-lo admitido, ele se lembra também da dolorosa visão que você lhe proporcionou, desprezando a si mesmo diante dele, como uma nova ferida que de a você – mas não pensa em vingança e não entende como algo pode ser compensado entre você e ele. No fundo, você representou aquela cena diante de si mesmo e para si mesmo: chamou uma testemunha, mas novamente por sua casa, não dela- não se engane!

 

Indicação para moralistas.- Nossos compositores fizeram uma grande descoberta: a feiúra interessante é igualmente possível em sua arte!E deste modo se atiram a esse franqueado oceano do feio, como que inebriados, e nunca foi tão fácil fazer musica. Agora conquistou-se o escuro pano de fundo geral em que um raio de musica bela, mesmo pequenino, ganha um brilho de ouro e de esmeralda; agora se ousar lançar o ouvinte do tumulto e na revolta e tirar-lhe o fôlego, para depois oferecer-lhe, num instante de abandono no repouso, um sentimento de felicidade que favorece a avaliação das música.Descobriu-se o contraste: somente agora os efeitos mais poderoso são possíveis – e baratos: ninguém mais pede boa música. Mas vocês devem apressar-se!Para toda arte resta apenas um curto espaço de tempo, depois que chega a essa descoberta.-Oh, se nossos pensadores tivessem ouvidos para escutar dentro da alma e nossos compositores, mediante sua música!Quanto tempo será preciso esperar, até que se tenha novamente uma oportunidade como esta de flagrar o homem interior numa má ação e na inocência desta ação!Pois os nossos compositores não suspeitam minimamente que colocam em música a sua própria história, a história do enfezamento da alma.Antes o bom compositor era quase obrigado a tornar-se um bom homem por causa de sua arte-. E agora!

 

Da moralidade do palco.-Engana-se quem pensa que o teatro de Shakespeare tem efeito moral e que a visão de Macbeth afasta do mal da ambição: e engana-se de novo se acha  que o próprio Shakespeare sentiu como ele. Quem realmente está possuído de furiosa ambição vê esta sua imagem com prazer, e, se o herói sucumbe por sua paixão, este é justamente o tempero mais forte na quente bebida desse prazer. Então o poeta sentiu de outra maneira?Com que realeza, sem nenhum traço de velhacaria, seu ambicioso protagonista segue sua trilha após o grande malfeito!Só a partir desse momento ele exerce atração “demoníaca”, e incita naturezas semelhantes a imitarem-no; -“demoníaco” significando aqui: a despeito da vantagem e da vida, em favor de um impulso e pensamento. Vocês acham que Tristão e Isolda dão um ensinamento contra adultério, ao sucumbir em virtude dele? Isto significaria pôr os poetas de cabeça para baixo: os quais, especialmente Shakespeare, são namorasos das paixões em si, e não de suas disposições mórbidas- em que  coração não se atém à vida com mais firmeza do que uma gota ao vidro. Não é a culpa e se horrível desfecho que lhes importa, a Shakespeare e a Sófocles (em Ajax, Édipo, Filoctetes):teria sido fácil, nesses caos, fazer da culpa a alavanca do drama, mas certamente isso foi evitado. O autor de tragédias também não deseja, com suas imagens da vida, predispor contra a vida!Ele exclama, isto sim: “É o encanto supremo, essa existência estimulante, cambiante, perigosa, sombria e às vezes banhada de sol!É uma aventura viver – tomem aí o partido que quiserem, ela sempre terá esse caráter!”.-Assim fala ele, do interior de uma época intranqüila e plena de força, meio ébria e entorpecida por sua profusão em sangue e energia – do interior de uma época mais malvada que a nossa: motivo pelo qual temos antes necessidade de preparar e adaptar para nós o objetivo de um drama shakespeariano , ou seja, de não compreendê-lo.

 

A contradição em corpo e alma.- No assim chamado gênio há uma contradição fisiológica: ele tem, por um lado, muito movimento selvagem, desordenado e involuntário,e, por outro, muita finalidade superior nesse movimento – como que possuindo um espelho que mostra os dois movimentos lado a lado e entremeados, mas também opostos um ao outro, com freqüência. Devido a essa visão e frequentemente infeliz, e, quando se sente o melhor possível, ao criar, é porque esquece que faz precisamente – tem de fazer – algo fantástico e irracional (assim é toda arte), com finalidade suprema.

 

Os caluniadores da alegria.- Pessoas profundamente magoadas pela vida suspeitam de toda alegria, como se esta sempre fosse ingênua e pueril e demonstrasse irracionalidade, em vista da qual poderíamos sentir apenas comiseração e enternecimento, como sentiríamos ante uma criança prestes a morrer, que na cama ainda mima seus brinquedos. Tais pessoas enxergam, por baixo de todas as rosas, túmulos ocultos e dissimulados; divertimento, agitação, música festiva lhes parece o resoluto engano de si mesmo de um doente grave, que por um minuto ainda quer saborear a embriaguez da vida.Mas esse julgamento sobre a alegria não é outra coisa que a refração dela no futuro escuro do cansaço da doença: é ele mesmo algo tocante, irracional, que leva à compaixão, é inclusive algo ingênuo e pueril, mais vindo daquela segunda infância que segue a velhice e antecede a morte.

 

LIVRO V

 

Para quem existe a verdade.- Até o momento, os erros foram os poderes consoladores: agora espera-se o mesmo efeito das verdades reconhecidas, e espera-se já há algum tempo. E se as verdades não fossem capazes justamente disso – consolar?Seria isto uma objeção às verdades? Que têm elas em comum com os estados de homens sofredores, fenecidos, doentes, para que tenham de lhes ser úteis?Pois não constitui prova contra a verdade de uma planta se é verificado que ela em nada contribui para a cura de homens doentes. Mas outrora havia tal convicção de que o ser humano era a finalidade da natureza que se supunha, sem hesitação, que também o conhecimento não poderia descobrir que não fosse uti e saudável para o homem, sim, não poderia haver, não era lícito que houvesse outras coisas. – Talvez disso resulte a tese de que a verdade como um todo coerente, existe apenas para as almas simultaneamente poderosas e inofensivas, jubilosas e pacíficas (como foi a de Aristóteles), e de que apenas estas serão capazes de buscá-la: pois as outras buscam remédios para si, ainda que pensem muito orgulhosamente do seu intelecto e a liberdade deste – elas não buscam a verdade. Daí essas outras terem tão pouca alegria verdadeira com a ciência e recriminarem sua frieza, secura e desumanidade: assim julgam os doentes acerca dos jogos dos sãos.-Também os deuses gregos não sabiam consolar; quando, enfim, também os homens gregos se tornaram todos doentes, esta foi uma razão para o declínio de tais deuses.

 

Nós, deuses no exílio!- Devido a erros quanto a sua origem, seu caráter único, seu destino, e a exigências estabelecidas com base nesses erros, a humanidade ergueu-se alto e sempre “superou a si própria”: mas devido aos mesmos  erros apareceu no mundo uma indizível quantidade de sofrimento, perseguição mútua, suspeita, incompreensão e ainda maior miséria do indivíduo consigo e em si. Os homens tornaram-se criaturas sofredoras em conseqüência de suas morais: o que obtiveram com isso foi, tudo somado, o sentimento de que  no fundo seriam bons e significativos demais para a Terra e nela se achariam apenas temporariamente. “ativo sofredor” ainda é, por enquanto, o mais elevado tipo humano.

 

Cegueira para nos pensadores. –Como viam os gregos de forma diferente à natureza, se, como temos que admitir, seus olhos eram cegos para o azul e o verde, enxergando no lugar deste ( quando, por exemplo, designavam com a mesma palavra a cor do cabelo escuro, da centúria e do mar meridional, e também com a mesma palavra a cor das plantas mais verdes e da pele humana, do mel e da resina amarela: de modo os seus pintores máximos, comprovadamente, reproduziram o mundo apenas em preto, branco, vermelho e amarelo) – como devia lhes parecer diferente e bem mais próxima dos homens a natureza, pois a seus olhos as cores humanas predominavam também na natureza, e esta como que nadava no éter de cores da humanidade! (Verde e azul desumanizam a natureza mais do que todas as outras.) Sobre esta deficiência cresceu a brincalhona facilidade que os distingue, vendo os processos naturais como deuses e semideus, isto é, sob formas humanas.- Mas isso é apenas uma imagem para outra suposição. Cada pensador pinta seu mundo e cada coisa utilizando menos cores  do que existem, e é cego para determinadas cores. Isso não é apenas um deficiência. Em virtude dessa aproximação e simplificação, ele enxerga nas coisas harmoniosas de cores que têm enorme encanto e podem constituir um enriquecimento da natureza. Talvez mesmo por essa via é que a humanidade tenha aprendido a fruir a visão da existência: por essa existência lhe ter sido mostrada inicialmente em uma ou duas cores, e assim harmonizada; ela como que se exercitou nesses poucos tons, antes de poder passar e outros mais. E ainda hoje vários indivíduos partem de uma cegueira parcial às cores para alcançar uma visão e diferenciação mais rica: no que não apenas acham novas fruições, mas também têm de abandonar e perder alguma das anteriores.

 

A nova paixão. – Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são? Ah, não!Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos!-Mas nosso impulso ao conhecimentos demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso para nós!a inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado da indiferença;- sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!O conhecimento, em nós formal em paixão que não vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão a sua própria extinção; nós acreditamos honestamente que, sob o impero e o sofrimento dessa paixão, toda a humanidade tenha de acreditar-se mais sublime e consolada do que antes, quando ainda não havia superado a inveja do bem-estar grosseiro que acompanha a barbárie. E talvez até que a humanidade pareça devido a essa paixão do conhecimento!- mas nem este pensamento influi sobre nós!O cristianismo se atemorizou alguma vez ante um pensamento assim?Não sãos irmãos o amor e a morte!Sim, odiamos a barbárie – preferimos todos o fim à humanidade ao retrocesso do conhecimento!E, afinal: se a humanidade não perecer de uma paixão, parecerá de uma fraqueza: o que é preferível? Eis a questão principal. Queremos para ela um final em luz e fogo ou em areia?-

 

Ver com novos olhos. – Supondo que por beleza na arte sempre se entenda a imitação do que é feliz- e é o que tenho como verdade-, conforme a idéia que um tempo, um povo, um grande indivíduo legislador de si mesmo faz do que é feliz: que dá a entender sobre a felicidade de nosso tempo o assim chamado realismo dos artista de hoje?É, está fora de dúvida, chamado realismo dos artistas de hoje?É, está fora de dúvida, a sua espécie de beleza que agora podemos apreender e fruir com mais facilidade. Portanto, deve-se acreditar que a felicidade que hoje nos é própria está no realismo, em sentidos o mais agudos possível e apreensão a mais fiel possível o real, ou seja, não na realidade, mas no saber acerca da realidade?A influência do saber já alcançou tal extensão e profundidade que os artistas do século, sem o querer, tornaram-se já glorificadores das “bem-aventuranças” da ciência”

 

Não faz da paixão um argumento em prol da verdade! –Ó vocês, bons e mesmo nobres entusiastas, eu o conheço!Vocês querem ter razão diante de nós, mas também perante vocês, sobretudo perante vocês mesmos!- e uma suscetível e refinada má consciência os aguilhosa e os impele frequentemente contra seu entusiasmo!Como tornam-se então engenhos em malograr e amortecer esta consciência!Como odiamos os honestos, simples, puros, como vejam os seus olhos inocentes! Aquele saber melhor, cujos representantes são eles e cuja voz ouvem alto demais entro de si mesmos, quando ela duvida de sua crença-como procuram torná-lo suspeito, como mau hábito, como enfermidade do tempo, como negligência e infecção de sua própria saúde espiritual!A ponto de odiar a crítica, a ciência, a razão!Têm de falsificar a história, para que ela testemunhe a seu favor, têm de negar virtudes, para que elas não façam sombra aos seus ídolos e idéias!Imagens coloridas, onde são necessários motivos racionais!Ardor e poder das  expressões!Névoa de prata!Noites de ambrósia!Vocês sabem iluminar o escurecer, e obscurecer com luz!E realmente, quando sua paixão entra em fúria, chega um instante em que dizem a si mesmos: agora e conquistei a boa consciência, agora sou magnânimo, corajoso, abnegado, grandioso, agora sou honesto!Como anseiam  por esses instante, em que sua paixão lhe dá inteira, incondicional razão e como que inocência perante si mesmos, em que estão fora de si e além de toda dúvida no combate, na embriague, ira, raiva, esperança, em que decretam “quem não está fora de si, como nós, não pode saber o que é e onde está a verdade!”.Como anseiam por encontrar homens de sua fé nesse estado – o da viciosidade do intelecto- e acender suas chamas no fogo deles!Ai de seu martírio!De seu triunfo da santificada mentira!Vocês têm de infligir tanto sofrimento a si mesmos?-Têm?-

 

Como agora se faz filosofia.-eu bem observo: nossos jovens, mulheres e artistas que filosofam pedem agora justamente o oposto do que os gregos recebiam da filosofia!Quem não ouve o constante júbilo que permeia todo discurso e toda réplica em um diálogo platônico, o júbilo pela nova invenção do pensamento racional, que entende essa pessoa de Platão, da filosofia antiga?Naquele tempo as almas se inebriavam, quando se praticava o sóbrio e severo jogo dos conceitos, da generalização, refutação, restrição- com aquela embriaguez que também os velhos, grandes, severos e sóbrios contrapontistas da música talvez tenham conhecido. Naquele tempo, na Grécia, ainda se tinha na boca o outro gosto mais antigo, outrora todo-poderoso; e o novo distinguia-se dele tão encantadoramente que a dialética, a “arte divina”, era cantada e balbuciada como num delírio de amor. Mas aquele pensamento antigo estava sob o domínio da moralidade, para a qual havia causas estabelecidas, juízos estabelecidos, e nenhum outro fundamento senão os dados pela autoridade: de modo que pensar era repetir,e  todo o prazer da fala e da conversa tinha de estar na forma. (sempre que o conteúdo é visto como eterno e universalmente válido, há apenas um grande encanto: o da forma cambiante, ou seja, da moda.Os gregos fluíram também nos poetas, desde os tempos de Homero, e depois nos escultores, não a originalidade, mas o seu contrario.)Foi Sócrates quem descobriu o encanto oposto, o da causa e efeito do fundamento e das conseqüência: e nós, homens modernos, fomos tão habituados e educados na necessidade da lógica, que ela é o gosto normal para a nossa boca, e deve ser repugnante para os ávidos e presunçosos. O que se distingue dele os deleita: sua refinada ambição bem gostaria de crer que suas almas constituem exceções, não seres dialéticos e racionais, porém- “seres intuitivos”, por exemplo, dotados de “senso interior” ou de “intuição intelectual”. Mas querem ser, antes de tudo, “naturezas artísticas”, com um gênio na cabeça e um demônio no corpo,e , portanto, também com privilégios neste e naquele mundo, especificamente com o divino privilégio de ser incompreensível. – É isso que agora também faz filosofia!Um dia notarão, receio, que se equivocaram – o que querem é religião!

 

A vitória sobre a força.- Considerando-se tudo o que até agora foi venerado como “espírito sobre-humano”, como “gênio”, chega-se à triste conclusão de que, n conjunto, a intelectualidade humana deve ter sido algo muito vulgar e mesquinho: tão pouco espírito foi até agora necessário, para sentir-se logo bem acima dela!Ah, a glória barata do “gênio”! Como foi rapidamente erguido seu trono, e sua adoração tornada costume!Anda nos achamos de joelhos ante a força- segundo velho habito de escravos –e, no entanto, se devemos estabelecer o grau de venerabilidade, apenas o grau de razão que há na força é decisivo: temos que medir até que ponto  justamente a força  foi superada por algo mais elevado e se acha doravante a ser serviço, como instrumento e meio!Mas para um tal medição há ainda muito poucos olhos, e em geral vê-se ainda como um sacrilégio medir o gênio. E , assim talvez o mais belo continue a se dar na escuridão, afundando, apenas nascido, na noite eterna- ou seja, o espetáculo daquela força que um gênio não emprega em obras, mas em si como obra, isto é, na sua própria domação, na depuração de sua a fantasia, na escolha e ordenação do afluxo de tarefas e idéias. O grande ser humano é ainda, justamente na maior coisa a exigir veneração, invisível como um astro demasiado distante: sua vitória sobre a força continua sem olhos que a vejam, e, portanto, sem canções e cantores. A hierarquia da grandeza ainda não foi estabelecida para toda a humanidade passada.

 

“Fuga de si.”-Esses homens dados a convulsões intelectuais, impacientes e sombrios consigo mesmo, como Byron ou Alfred de Musset, que em tudo o que fazem semelham cavalos desembestados, e que obtêm de sua própria criação apenas um breve ardor e prazer que quase lhes rebenta as veias e, em seguida, um vazio e amargor tanto mais invernais, como devem suportar isto em si?Es anseiam pela dissolução num “fora de si”; se, com tal sede, o individuo é cristão, ele objetiva dissolver-se em Deus, “torna-se um com Ele”; se é Shakespeare, satisfaz-se apenas ao consumir-se em imagens da  vida mais plena de paixão; se é Byron anseia por atos, pois estes nos subtraem de nós mais ainda que pensamentos, sentimentos e obras. Então o ímpeto à ação seria, no fundo, fuga de si?- perguntaria Pascal. De fato! Nos mais altos exemplos do ímpeto à ação pode-se demonstrar essa tese: consideremos, com o saber e a experiência de um alienista, como deve ser – que quatro dos homens mais sequiosos de ação de todos os tempos foram epilépticos (Alexandre, César, Maomé e Napoleão): e que também Byron sofria desse mal.

 

Das virtudes futuras.- Como se explica que, quanto mais compreensível tornou se o mundo, tanto mais decaiu toda espécie de solenidade? Será porque o temor era o elemento básico dessa reverência que de nós se apoderava ante tudo desconhecido, misterioso, e nos ensinava a prostrar-nos e pedir mercê diante do incompreensível?E não teria o mundo perdido algo de seu encanto para nós, pelo fato de nos termos tornado menos temerosos?Justamente com nossa temerosidade não haveria decrescido também nossa própria dignidade e solenidade, nossa própria temibilidade?Teríamos menos respeito pelo mundo e por nós mesmos, desde que pensamos mais corajosamente acerca dele e de nós?Haverá um futuro em que essa coragem do pensar terá crescido de tal forma qu, como suprema arrogância, sentir-se-à acima dos homens e das coisas- em que o sábio, como o mais corajoso, será aquele que mais verá a si mesmo e a existência abaixo de si?-Essa espécie de coragem, que não está longe de ser uma extravagante generosidade, faltou à humanidade até agora.-Oh,  se os poetas voltassem a ser o que devem ter sido outro a:-videntes que nos dizem algo do que é possível!Agora, em que o real e o passado da vez mais são e têm de ser-lhes retirados das mãos – pois acabou o tempo da inocente falsificação de moeda!Se nos fizessem perceber antecipadamente agora das virtudes futuras!Ou de virtudes que jamais existirão na Terra, embora já pudesse haver em algum lugar do mundo- de constelações purpúreas e grandes Vias Lácteas do belo!Onde  estão vocês, astrônomos do ideal?

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