Sintese Paolo Cugini
Neste
livro se acha um “ser subterrâneo” a trabalhar, um ser que perfura que escrava,
que solapa. Ele é visto-pressupondo que se tenha vista para esse trabalho na
profundeza-lentamente avançando, cauteloso, suavemente implacável, sem muito
revelar da aflição causada pela demorada privação de luz e ar; até se poderia
dizer que está contente com o seu obscuro lavor. Não parece que alguma fé ou
guia, algum consolo o compensa? Que talvez queira sua própria demorada treva,
seu elemento incompreensível, oculto, enigmático, porque sabe que também terá:
sua própria manhã, sua reversão, sua aurora?... Certamente ele
retornara: não lhe perguntem o que busca la em baixo, ele mesmo logo lhes dirá
esse aparente Trofônio e ser subterrâneo, quando novamente estiver se “tornado
homem”. Um individuo desaprende totalmente o silenciar, quando, como ele, foi
por tão longo período, toupeira, solitário, - -.
Na
realidade, meus pacientes amigos, já lhes direi o que buscava eu lá em baixo,
aqui neste prólogo tardio, que bem poderia ter sido um ultimo adeus, uma oração
fúnebre: pois eu retornarei e - escapei. Não creio que eu venha exortá-los às
mesmas audácias! Ou a mesma solidão! “Pois quem perfaz esses caminhos próprios
não encontra ninguém: é o que sucede-nos caminhos próprios”. Ninguém aparece
para ajuda-lo; Tem de lidar sozinho com tudo que lhe depara de perigo, de
acaso, de maldade e mal tempo. “Pois ele tem seu caminho para si – e, como é
justo, seu amargo, seu ocasional dissabor com “para si”: o qual incluiu, por
exemplo, saber que nem seus amigos poderiam imaginar onde ele estar e para onde
ele vai que às vezes perguntaram a si mesmos:” o quê? Ele prossegue?Ainda tem-
um caminho?. – Naquele tempo empreendi algo que podia não ser para qualquer um:
desci à profundeza penetrei no alicerce, comecei a investigar e escavar uma
velha confiança, sobre a qual nós filósofos, a alguns milênios
construíamos como se fora o mais seguro fundamento-e sempre de novo, embora
todo edifício desmoronasse até hoje: eu me pos a solatar nossa confiança na
moral. Estamos me compreendendo?
Até
agora, foi sobre o bem e o mal que me refletiu da pior maneira, sempre foi um
tema demasiado perigoso. A consciência, a boa reputação, o inferno, às vezes
até a policia não permitiam e não permitem a imparcialidade; na presença da
moral, como diante de toda autoridade, não si deve pensar, menos ainda
falar: aí – se obedece! Desde que o mundo é mundo, a autoridade nenhuma
se dispor a ser alvo de critica; E criticar a moral, toma-la como problema,
como problemática: o que? Isso não era- não é- imoral? – Mais a moral não
dispõe osomente de toda espécie de meios de apavoramento para conservar longe
de si as mãos criticas e os instrumentos de tortura: sua segurança repousa mais
ainda em certa arte do encanto, na qual é entendida-ela sabe “entusiasmar”.
Frequentemente consegue paralisar a vontade critica com um único olhar e até
atraí-la para o seu lado, havendo ocasiões em que sabe fazer-la voltar-se
contra si mesma: de modo que, tal como escorpião, ela traga o ferrão no próprio
corpo. A muito tempo a moral conhece todas as artes diabólicas da persuasão:
não existe orador, hoje ainda, não recorra à sua ajuda (ouça-se, por exemplo,
os nossos anarquistas: como falam moralmente, a fim de convencer! Chegam a
dominar-se “o justus e os bons”). Desde sempre, desde que se usa palavra e
persuasão nessa terra, a moral revelou-se a grande mestra da sedução – e no
tocante a nós, filósofos autentica Circe dos filósofos. A que se deve
que, a partir de Platão, todos os arquitetos filosóficos da Europa tenham
construído em vão? Que tudo o que eles próprio tinham séria e honestamente por aere
perennius [mais duradouro que o bronze] ameace desabar ou já se encontre
em ruínas? Ah, como é falsa a resposta que ainda hoje se tem para esta
pergunta, “porque todos eles negligenciaram o pressuposto, um exame do
fundamento, uma critica da razão inteira” – a fatídica resposta de Kant, que
verdadeiramente nos atraiu, a nós, filósofos modernos, para um terreno mais
sólido e mesmo traiçoeiro!(-E, perguntando agora, não era algo estranho exige que
um instrumento critique a sua própria adequação e competência? Que o próprio
intelecto “conhecesse” seu valor, sua força, seus limites? Não era isso até
mesmo um pouco absurdo? -). A resposta
correta seria isto sim, que todos os filósofos construíram sob a sedução da
moral, inclusive Kant - que aparentemente seu propósito dirigia-se à certeza, a
“verdade”, mas, na realidade, a “majestosos edifícios morais”: para nos
servirmos uma vez mais da inocente linguagem de Kant, que caracteriza sua
tarefa “de pouco brilho”, mas não sem algum mérito”, como sendo a de “aplainar
e preparar o solo para esses majestosos edifícios morais” (Critica da razão
pura, II, p.257). oh, ele não conseguiu fazer isso, pelo contrário! - é o
que hoje devemos dizer. Com essa entusiasmada intenção, Kant foi um verdadeiro
filho do seu século, que pode ser chamado, mas do que qualquer outro, o século
do Entusiasmo: tal como, felizmente, ele também o foi no tocante aos aspectos
mais valiosos dele (por exemplo, na boa parcela de sensualismo que levou para
sua teoria do conhecimento). Também a ele mordeu a tarântula moral que foi
Rousseau, também sua alma obrigava a idéia do fanatismo moral, de que um outro
discípulo de Rousseau sentia-se e confessava executor, ou seja, Robeespierre, ”de
fonder sur la terre l’empire de la sagesse, de la jsutice et de la vertu”
[de fundar na terra o império da sabedoria, da justiça e da virtude] (discurso
de 7 de junho de 1794). Por outro lado, com tal fanatismo francês no coração
não era possível agir de modo menos francês, mais profundo, mais radical, mais
alemão – se o termo “alemão” ainda pode ter esse sentido atualmente – do que
Kant: a fim de criar espaço para seu “reino moral”, ele viu-se obrigado a
estabelecer um mundo indemonstrável, um “Além” lógico – para isso necessitava e
sua criticada da razão pura! Em outras palavras: não teria necessitado dela,
se para ele uma coisa não fosse mais importante que tudo, tornar o “mundo
moral” inatacável ou, melhor ainda, inapreensível pela razão – ele percebia muito
bem como uma ordem moral do mundo é vulnerável á razão! Pois ante a natureza e
a historia, ante a radical moralidade da natureza e da. historia, Kant
era pessimista, como todo bom alemão desde sempre: ele acreditava na moral não
por ela ser demonstrada pela natureza e a historia, mas apesar de ser
continuamente contrariada por elas. Talvez possamos, a fim de compreender esse
“apesar de”, lembrar de algo semelhante em Lutero, esse outro grande
pessimista, que, com toda a sua luterana audácia, indagou certa vez aos amigos:
“se pudéssemos apreender pela razão como pode ser justo e misericordioso o Deus
que mostra tanta ira e maldade, parra que necessitaríamos da fé? Até
hoje nada causou mais funda impressão na alma alemã, nada a “tentou” mais do
que essa perigosíssima conclusão, que para todo verdadeiro romano é um pecado
contra o espírito: credo quia absurdum est [creio porque
é absurdo] - com ela, a lógica alemã surge pela primeira vez na historia do
dogma cristão; mas ainda hoje, um milênio depois, nós, alemães atuais, alemães
tardios em todo sentido, aventamos um quê de verdade, de possibilidade de
verdade, por trás do famoso principio dialetico-real com que Hegel, em seu
tempo, ajudou o espírito alemão a conquistar a Europa – “a contradição move o
mundo, todas as coisas contradizem a si mesmas”-: somos precisamente, até
dentro da lógica, pessimistas.
Mas
os juízos de valor lógicos não são os mais profundos e mais fundamentais
a que pode descer a ousadia de nossa suspeita: a confiança na razão, com que se
sustenta ou cai à validez desse juízos, é, sendo confiança, um fenômeno moral...
Talvez o pessimismo alemão tenha ainda um ultimo passo a dar? Talvez deva ainda
justapor, de maneira terrível, seu credo e seu absurdum? E se
este livro é pessimista até dentro da moral, até além da confiança na moral. –
não seria justamente por isso um livro alemão? Pois representa, de fato, uma
contradição, e não tem receio dela: nele é retirada a confiança na moral – e
por quê? Por moralidade! Ou como deveríamos chamar o que nele – em nós – sucede?
Pois, conforme nosso gosto preferíamos palavras mais modestas. Mas não há
duvida também a nós se dirige um “tu deves”, também nós obedecemos ainda a uma
severa lei acima de nós – e esta é a ultima moral que ainda se nos faz ouvir,
que também nós ainda sabemos viver, nisto, se em alguma coisa, ainda
somos criaturas da consciência: no fato de que não desejamos voltar ao
que consideramos superado e caduco, a algo” indigno de fé”, chama-se ele Deus,
virtude, verdade, justiça, amor ao próximo; de que não nos permitimos fazer
pontes de mentiras em direção a velhos ideais; de que somos fundamentalmente
hostis a tudo o que em nós gostaria de mediar e mesclar; hostis a toda espécie
atual de fé e cristianismo; hostis ao mais ou menos de todo romantismo e
patriotismo; também hostis ao deli te e falta de consciência dos artistas, que
quer nos persuadir a adorar aquilo em que já não cremos – pois nós somos
artistas -; hostis, em suma, a todo o feminismo (ou idealismo, se
preferem) europeu, que eternamente “atrai para cima” e, com isso, eternamente
“arrasta para baixo”: - apenas como criaturas dessa consciência
sentimo-nos parentes da retidão e piedade alemãs de milênios, embora como seus
rebentos mais discutíveis e derradeiros, nós, imoralistas, nós, ateus de hoje,
a até mesmo, em determinado sentido, como seus herdeiros, como executores de
sua mais intima vontade, de uma vontade pessimista, como dissemos, que não teme
negar a si mesma, porque nega com prazer! Em nós se realiza, supondo que
desejem uma formula – a auto-supressão da moral.
-E
finalmente: por que deveríamos dizer tão alto e com tal favor aquilo que somos,
que queremos ou não queremos? Vamos observá-los de modo mais frio, mais
distante, com mais prudência, de uma maior altura; vamos dizê-lo, como pode ser
dito entre nós, tão discretamente que o mundo não o ouça que o mundo não nos
ouça! Sobretudo, digamo-lo lentamente... Este prólogo chega tarde,
mas não tarde demais; que importam no fundo, cinco ou seis anos? Um tal livro,
um tal problema não tem pressa: além do que, ambos somos amigos do lento,
tanto eu como meu livro. Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é,
um professor da lenta leitura: - afinal, também escrevemos lentamente. Agora
não faz parte apenas de meus hábitos, é também de meu gosto – um gosto maldoso,
talvez? – nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de gente que
“tem pressa”. Pois filologia é a arte venerável que exige de seus cultores uma
coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar
lento – como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil
e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por
isso ela é hoje mais necessária do que nunca, justamente por isso ela nos atrai
e encanta mais, em meio a uma época de “trabalho”, isto é, de pressa, de
indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo “terminar”, também todo
livro antigo ou novo: - ela própria não termina facilmente como algo, ela
ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e
para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos
delicados... Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e
filósofos perfeitos: aprendam a ler-me bem!
LIVRO 1
Conceito
da moralidade do costume. – Em relação ao modo de vida de
milênios inteiros da humanidade, nós, homens de hoje, vivemos numa época muito
pouco moral: o poder do costume está espantosamente enfraquecido, e o
sentimento da moralidade, tão refinado e posto nas alturas, que podemos dizer
que se volatilizou. Por isso vêm a ser difíceis para nós que nascemos
tardiamente, as percepções fundamentais sobre a gênese da moral; se apesar
disso as alcançamos, elas nos ficam presas à garganta e não querem sair: porque
soam grosseiras! Ou porque parecem caluniar a moralidade! Assim, por exemplo,
este axitoma: a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!)
do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a
maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma
tradição manda não existir moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela
tradição, tanto no menor e no circulo da moralidade!. O homem livre é
não-moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os
estados originais da humanidade, “mau” significa o mesmo que “individual”,
“livre”, “arbtrário”, “inusitado”, “imprevisível”. Sempre conforme o padrão
desses estados originais: se uma ação é realizada não porque a tradição
ordena, mas por outros motivos “a utilidade individual, por exemplo), mesmo por
aqueles que então fundaram a tradição, ela é considerada imoral e assim tida
mesmo por seu ator: pois não foi realizada em obediência a tradição. O que é a
tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos
é útil, mas porque ordena – O que distingue esse sentimento ente a
tradição do sentimento do medo? El é o medo ante um intelecto superior que
manda, ente um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que
pessoal – há superstição nesse modo.- originalmente fazia parte do
domínio da moralidade toda a educação e os cuidados da saúde, o casamento, as
artes da cura, a guerra, a agricultura, a fala e o silêncio, o relacionamento
de uns com os outros e com os deuses: ela exigia que alguém observasse os
preceitos sem pensar em si como individuo. Originalmente,
portanto, tudo era costume, e quem quisesse erguer-se acima dele tinha que se
tornar legislador e curandeiro, e uma espécie de semideus: isto é, tinha de criar
costumes – algo terrível, mortalmente perigoso ! Quem é o mais moral? Primeiro,
aquele que observa mais frequentemente a lei: que, tal como o brâmane, a
toda parte e em cada instante carrega a consciência da lei, de modo que é
sempre inventivo em oportunidades de observá-las. Depois, aquele que a
observa também nos casos mais difíceis. O mais moral é aquele que mais
sacrifica ao costume: mas quais são os maiores sacrifícios? De acordo com a
reposta a essa pergunta, varias morais diferentes se desenvolvem; a mais
importante diferença, no entanto, continua a ser aquela entre a moralidade de mais
freqüente obediência e a da mais difícil obediência. Não nos
enganemos quanto ao motivo da moral que requer, como indicio da moralidade, a
mais difícil ibediencia do costume! A autosuperação é exigida não por
suas conseqüências úteis para o individuo, mas a fim de que o costume, a
tradição apareça vigorando, não obstante toda vantagem e desejo individual: o
individuo deve sacrificar-se – assim reza a moralidade do costume. – Já os
moralistas que, como os seguidores da pegadas de Sócrates, encarecem no
individuo a moral do autodomínio e da abstinência como a vantagem mais
sua, como a sua chave pessoal para a felicidade, constituem a exceção
–e, se nos parece diferente, porque fomos educados sob sua influencia: todos
elas e andam por um novo caminho, sob a total desaprovação dos representantes
da moralidade do costume - afastam-se da comunidade, como imorais, e são maus
na mais profunda acepção. Para um virtuoso romano da velha cepa, todo cristão,
que ‘antes de tudo cuidava de sua própria salvação”, - parecia mal.
– Em toda parte onde existe uma comunidade e, portanto, uma moralidade do
costume, vigora também o pensamento de que o castigo para a ofensa ao costume
cabe sobretudo à comunidade: esse castigo sobrenatural, cuja manifestação e
cujo limite são tão difíceis de apreender e sã investigados com tão
supersticioso medo. A comunidade pode instalar o individuo a repassar o dano
imediato que sua ação acarretou, em relação a outro individuo e a comunidade:
pode igualmente cobrar uma espécie de vingança pelo fato de, graças ao
individuo, como suposta conseqüência de seu ato, as nuvens e trovoadas da ira
divina terem se abatido sobre a comunidade – mas ela sente a culpa do individuo
sobretudo como sua culpa, e toma castigo dele como seu castigo-;
“os costumes relaxaram”, lamentam-se cada um no interior de sua alma, “se atos
assim são agra possíveis”. Cada ação individual, cada modo de pensar individual
provoca horror; é impossível calcular o que justamente os espíritos mais raros,
mais seletos, mais originais da historia devem ter sofrido pelo fato de serem
percebidos como maus e perigosos, por perceberem a si próprios assim.
Sob o domínio da moralidade do costume, toda espécie de originalidade adquiriu
má consciência; até o momento de hoje. O horizonte dos melhores tornou-se ainda
mais sombrio do que deveria ser.
A
moral do sofrimento voluntário – Qual o maio dos prazeres para
homens em estado de guerra, numa comunidade pequena e sempre ameaçada, onde reina a mais severa
moralidade? Para almas vigorosas,vingativas, hostis, insidiosas, desconfiadas,
prontas para as coisas mais terríveis, endurecidas na privação e na moralidade?
O prazer na crueldade: assim como é tido por virtude de uma alma
dessas, em tais consdiderações, ser inventiva e insaciável na crueldade. A
comunidade se reanima com os atos o do homem cruel e afasta de si o negrume
temor e cautela costume. A crueldade está entre as mais velgas alegrias
festivas da humanidade. Pensa-se, então, que também os deuses ficam animados e
de humor festivo quando se lhes oferece o espetáculo da crueldade – e dessa maneira
insinua-se no mundo a idéia de que o sofrimento voluntário, o martírio
deliberado tem sentido e valor. Gradualmente, o costume estabelece na
comunidade conforme esta idéia: desconfia-se mais de todo bem –estar exuberante
e confia-se mais em todo estado difícil e doloroso; as pessoas dizem a si
mesmas: pode ser que os deuses nos tratem desfavoravelmente por nossa
felicidade e benevolamente por nosso sofrer – não compassivamente! Pois a
compaixão passa por desprezível e indigna de uma alma forte, terrível; mas
benevolamente, porque se distraem e ficam bem-dispostos: pois o ser cruel
desfruta o supremo gozo do sentimento de poder. É assim que entra, na noção do
“homem mais moral” da comunidade,s a virtude do freqüente sofrer, do duro
viver, da privação, da cruel mortificação – não, mais uma vez repetindo,
como meio de disciplina, de autodomínio, de anseio de felicidade individual,
mas como virtude que faz a comunidade ter bom aroma junto aos deuses maus,
subindo até eles como os fumos de um permanente sacrifício no altar. Todos os
guias espirituais dos povos, que conseguiram mover algo na lama inerte e
fecunda dos seus costumes, necessitaram, além da loucura, do martírio
voluntário, a fim de conquistar fé – quase sempre, e sobretudo, fé em si
mesmos! Quanto mais seu espírito andava por novas trilhas e, portanto, era
atormentado por remorsos e angústias, tanto mais cruelmente enfureciam-se eles
com a sua própria carne, os próprios apetites e a própria saúde - como que para
oferecer a divindade uma compensação de prazer, caso ela se aborrecesse devido
aos usos negligenciados e combatidos e aos novos objetivos. Não se creia que
hoje tenhamos por libertado inteiramente de uma tal lógica do sentimento! As
mais heróicas almas podem questionar a si mesmas quanto a isso! Cada pequeno
passo no âmbito do livre pensar, da vida pessoalmente configurada, sempre foi
pelejado com martírios físicos e espirituais: não apenas o passo a frente! Mas
sobretudo o andar, o movimento, a mudança precisou de seus incontáveis
mártires, por longos milênios de busca de caminhos e fundação de alicerces, nos
quais não se costuma pensar quando se fala de “historia mundial”, dessa parte
ridiculamente pequena da existência humana, é apenas ruído acerca das ultimas
novidades, não há tema mais importante do que a antiqüíssima tragédia dos
mártires que buscaram mover o pântano. Nada foi comprado tão caro como o
pouco de razão humana e de sentimento de liberdade que agora constitui nosso
orgulho. É este orgulho, porém, que nos torna hoje quase impossível sentir como
os imensos períodos de “moralidade do costume”, que precederam a “historia
universal” como a verdadeira e decisiva historia que determinou o caráter da
humanidade: em que o sofrimento era virtude, a crueldade era virtude, a
dissimulação era virtude, a vingança era virtude, a negação da razão era
virtude, enquanto o bem-estar esta perigo, a sede de saber era perigo, a paz
era perigo, a compaixão era perigo, ser objeto de compaixão era ofensa, o
trabalho era ofensa, a loucura era cosia divina, a mudança era imoral e prenhe
de ruína! – Vocês acham que tudo isso mudou e que, portanto, a humanidade
trocou de caráter? O conhecedores dos homens, atendam a conhecer-se melhor!
Obras
e fé. Os doutores protestantes continuam a propagar o certo
fundamental de que importa somente a fé e que da fé resultam necessariamente as
obras. Isto simplesmente não é verdadeiro, mas é tão sedutor que já iludiu
ouras inteligências além de Lutero (ou seja, Sócrates e Platão); embora a
evidencie de toda experiência a cada dia prove o contrario. O mais confiante
saber ou fé não pode proporcionar a energia para o ato nem a destreza para o
ato, não pode substituir a exercitarão do mecanismo sutil e múltiplo, que deve
ocorrer para que tudo e primeiramente as obras! Ou seja, exercício, exercício,
exercício! A “fé” correspondente logo aparecerá – estejam certos disso!
O
valor da crença em paixões sobre-humanas. – A instituição
do matrimonio sustenta obstinadamente a crença de que o amor, embora uma
paixão, é capaz de duração, e mesmo de que o amor duradouro, vitalício, pode
ser erigido
Os
comediantes da virtude e do pecado. – Entre os homens da
Antiguidade que se tornaram famoso por sua virtude, havia, ao que parece, um
número extraordinário daqueles que atuavam diante de si mesmos: em
especial os gregos, sendo atores natos, o teriam feito de modo completamente
involuntário e o teriam julgado bom. E cada um achava-se, com sua virtude, em
competição com a virtude de outro ou de todos os outros: como não teria
utilizado todas as artes para pôr a mostra sua virtude, sobretudo ante si
próprio, por exercício que fosse ! De que adiantava uma virtude que não se
podia mostrar ou que não sabia mostra-se? – O cristianismo deu fim a esse
comediante da virtude: para isso inventou a repulsiva exibição e alardeio do
pecado, trouxe ao mundo a pecaminosidade fingida (até hoje considerada
“de bom-tom” entre os bons cristãos).
A
fé na embriaguez. – Os seres de instantes sublimes e
arrebatados, que habitualmente, por contraste e devido à própria dissipação de
suas forças nervosas, sentem-se miseráveis e inconsoláveis, vêem aqueles
instantes como o autêntico “Eu”, como “si”, e a miséria e o desconsolo como efeito
do “fora-de-se”;e por isso pensam no seu ambiente, sua época, todo o ser
mundo, com sentimentos de vingança. A embriaguez é a verdadeira vida para eles,
o genuíno Eu: em todo o resto vêem adversários e estorvadores da embriaguez,
seja esta de natureza moral, intelectual, religiosa ou artística. A esses
entusiásticos ébrios a humanidade deve muita coisa ruim: eles são infatigáveis
semeadores da insatisfação consigo e com o próximo , do desprezo pela época e o
mundo e, sobretudo, do cansaço do mundo. Todo um inferno de criminoso
talvez não produzisse este inquietante e prolongado efeito agressivo, corruptor
de ar e terra, como faz essa pequena e nobre comunidade de desenfreados,
fantasistas e semidoidos, de gênios que não podem controlar-se, e que
experimentam prazer consigo apenas quando se perdem totalmente: enquanto o
criminoso, com freqüência, da prova da excelente alumínio, de abnegação e
prudência, e sabe manter esses atributos naqueles que o temem. O céu acima da
vida talvez se torne perigoso e sombrio por causa dele, mas o ar permanece
robusto e severo. – além de tudo, esses entusiastas propagam a fé na vida: uma
crença terrível! Tal como agora os selvagens são rapidamente corrompidos e
arruinados pela “água ardente”, a humanidade como um todo foi corrompida, lenta
e radicalmente, pelas aguardentes espirituais dos sentimentos
inebriantes, e pro aqueles que mantiveram vivo o anseio por eles: talvez ela
ainda venha a se arruinar com isso.
onde
estão os novos médicos da alma? - Foi através dos meios de
consolo que a vida recebeu o fundamental acarater sofredor em que hoje se crê;
a maior doença dos homens surgiu do combate a suas doenças, e os aparentes
remédios produziram, a longo prazo, algo pior do que aquilo que deveriam eliminar.
Por desconhecimento, só recursos momentaneamente eficazes, anestesiantes e
inebriantes, chamados de “consolações”, foram tidos como os verdadeiros
remédios, e nem mesmo se notou que o preço por esse alívios imediatos era
frequentemente uma piora geral e profunda do mal-estar, que os doentes iriam
sofrer as conseqüências da embriaguez e, depois, a privação da embriaguez, e,
depois ainda, uma oprimente sensação geral da inquietude, agitação nervosa e
indisposição. Atingido um certo grau de doença, não havia mais recuperação –
disso cuidavam os médicos da alma, por todos reconhecidos e adorados. – Diz-se
de Schopenhauer, com razão, que ele enfim levou novamente a sério os
sofrimentos da humanidade: onde está aquele que enfim também levará a sério os
antídotos para tais sofrimentos e porá no pelourinho o inacreditável
charlatanismo com que, sob os mais belos nomes, a humanidade habituou-se a
tratar suas doenças da alma?
O
cristianismo e os afetos. – No cristianismo ouve-se também um
grande protesto popular contra filosofia: a razão dos antigas sábios
desancoselhara os afetos, o cristianismo quer restituí-los aos homens.
Para esse fim, nega à virtude, tal como era concebida pelos filósofos – como
triunfo da razão sobre o afeto – todo valor moral, condena racionalidade em
geral e convida os afetos a manisfestar-se na sua força e esplendor extremos,
como amor a Deus, temor a Deus, como fanática fé em deus, como
cega esperança em Deus.
Da
origem das religiões. – Como pode alguém perceber a
própria opinião sobre as coisas como uma revelação? Este é o problema da origem
das religiões: a cada vez havia um homem no qual esse fato foi possível. O
pressuposto é que ele já acreditasse
Ódio
ao próximo. – Supondo que sentíssemos o outro tal como ele
sente a si próprio – o que schopenhauer denomina compaixão, e que seria mais
correto chamar de “uni paixão”, “unidade na paixão” – teríamos que odiá-lo, se
ele, como Pasca, considera-se odiavel. E provavelmente é o que sentia Pascal em
relação à humanidade como um todo, e também o antigo cristianismo, que foi
“convicto”, sob Nero, de odium generis humani [ódio ao gênero humano],
como informa Tácito.
Os desesperados. – O
cristianismo tem o instinto do caçador para todos aqueles que, de algum modo,
possam ser levados ao desespero – somente uma parte da humanidade é capaz
disso. Ele sempre se acha atrás deles, esta a sua espreita. Pascal experimentou
ver se cada pessoal, com o auxilio do conhecimento mais incisivo, não poderia
ser levada ao desespero; - a experiência fracassou, para seu renovado
desespero.
Bramanismo
e cristianismo. – á receitas para o sentimento do poder:
primeiro, para os que conseguem dominar-se e, por isso, já estão familiarizados
com um sentimento de poder; depois, para aqueles a que falta precisamente isso.
O bramanismo cuidou de homens da primeira espécie; o cristianismo, de homens da
segunda espécie.
O
primeiro cristão. – O mundo inteiro continua crendo nos
espíritos do “Espírito Santo”, ou se acha sob as conseqüências dessas fé:
quando alguém abre a Bíblia, faz isso para “edificar-se”, para achar, em sua
grande ou pequena miséria pessoal, um quê de consolo – em suma, perde e
encontra-se na leitura. O fato de que nela se acha também a historia de uma
fadas mais ambiciosas e insistentes almas, de um espírito supersticioso e
astuto no mesmo grau, a historia do apostolo Paulo – quem sabe isso, a exceção
de alguns eruditos? Mas sem essa notável historia, sem os desconcertos e
arrebatamentos de um tal espírito, de uma alma tal, não haveria cristianismo;
mal saberíamos de um pequena seita judia cujo mestre morreu na cruz. É verdade
que, se tivéssemos compreendido a tempo essa historia, se tivéssemos lido os
textos de Paulo não como revelações do “espírito santo”, mas com livre e
honesto espírito próprio, e sem pensar em nossa própria miséria pessoal, se os
tivéssemos realmente lido – por mil e quinhentos anos não houve tal
leitor-, há muito o cristianismo já teria acabado: de tal modo essas paginas de
Pascal judeu expõem a origem do cristianismo, assim como as paginas do Pascal
francês desnudam seu destino e aquilo que o fará sucumbir. Se o barco do
cristianismo arremessou ao mar uma boa parte do lastro judeu, se andou e pôde
andar entre os pagãos – isto se liga a historia desse único homem, um homem
muito atormentado, bem digno de compaixão, bastante desagradável, e
desagradável para si mesmo. Ele sofreu de uma idéia fixa, ou, mais
exatamente, de uma questão fixa, sempre presente, e que nunca descansou:
qual a situação da Lei judaica? E, em particular, do cumprimento
dessa Lei? Na sua juventude,
procurara ele mesmo satisfaze-la, ávido da suprema distinção que os judeus
podiam conceber – esse povo que levou a imaginação da grandeza moral a um nível
mais alto que qualquer outro, o único que chegou a criação de um Deus sagrado,
justamente com a idéia de que o pecado é uma ofensa a esta divindade. Paulo
tornara-se o fanático defensor e guarda de honra desse Deus e da sua Lei,
continuamente a espreita e em luta contra os que a infringiram e questionavam,
duro e mau para com eles, e inclinando a extremos de castigo. E então se deu
conta de que ele próprio – impetuoso, sensual, melancólico, maldoso no ódio,
como era- não podia cumprir a Lei, e, o que lhe pareceu mais estranho:
que sua desenfreada ânsia de domínio era continuamente incitada a infringi-la,
e que ele tinha de ceder a esse aguilhão. É realmente a “carnalidade”
que sempre torna a fazê-lo um transgressor? E não, como posteriormente
suspeito, a Lei mesma por trás dela, que sempre tem de provar ser
inobservável e, com irresistível magia, convida a transgressão? Mas naquele
tempo ele não tinha essa escapatória. Muitas coisas carregava na consciência –
alude à inimizade, assassinato, feitiçaria, idolatria, luxuria, embriaguez e
gosto por desenfreadas orgias –e, por mais que também procurasse desafogar essa
consciência, e ainda mais sua ânsia de domínio, com o extremo fanatismo da
veneração e defesa da fé, houve momentos em que disse a si próprio: “è tudo em
vão! O tormento do não-cumpriemnto da Lei não pode ser superado”. Lutero pode
ter sentido algo semelhante, quando quis torna-se, em seu monastério, o homem
perfeito do idéia eclesiástico: e, de modo semelhante a Lutero, que um dai
começou a odiar o ideal eclesiástico, o papa, os santos e toda a clericalha,
como ódio verdadeiramente mortal, tanto maior quanto menor podia reconhecê-lo –
de modo semelhante sucedeu com Paulo. A lei era a cruz a que se sentia pregado:
como a odiava! Como lhe guardava rancor! Como olha em torno, a buscar um meio
de destruí-la- não mais de cumpri-la em sua pessoa! E enfim surgiu-lhe o
pensamento salvador, acompanhado de uma visão, como teria de ser com esse
epilético: a ele, o furibundo zelador da Lei , totalmente cansado dela no seu
intimo, apareceu-lhe em estrada solitária o Cristo, o rosto brilhando com a luz
divina, e Paulo ouviu as palavras: “Por que me persegues?”. O que ali se deu,
no essencial, foi isto: sua mente ficou clara; “é irracional”,
falou consigo,”perseguir justamente esse Cristo! Eis a escapatória, eis a
vingança perfeita, eis aqui, somente aqui, o destruidor da Lei” . Doente
da mais atormentada soberba, de repente sente-se restabelecido, o desespero
murasse foi, pois a moral se foi, foi destruída – isto é, cumprida, lá
na cruz! Até atenção, vira aquela morte vergonhosa como o principal argumento
contra a “messianidade” de que falavam os seguidores da nova doutrina: e se ela
fosse necessária ipara abolir a Lei? – As enormes conseqüências dessa
idéia, dessa solução do enigma, ante o seu olhar, ele se torna o mais feliz dos
homens – o destino dos judeus, não, de todos os homens, parece-lhe atado a essa
idéia, a esse instante da repentina iluminação, ele tem a idéia das idéias, a
chave das caves, a luz das luzes; em torno dele gira doravante a história! Pois
ele é, a partir de então, aquele que ensina a destruição da Lei!Morrer
para o mal- significa também morrer para a Lei; viver na carne – significa
também viver na Lei! Haver-se tornado um com Cristo- significa haver-se tornado
com ele o destruidor da Lei; ter morrido com ele- significa ter morrido para a
Lei! Mesmo que ainda fosse possível pecar, não seria mais contra a Lei, “estou
fora dela”. Se eu agora abraçasse de novo a Lei e me submetesse a ela, tornaria
Cristo cúmplice do pecado”; pois a Lei existia para que se pecasse, ela
produzia sempre o pecado, como humores corrosivos geram a doença; deus jamais
teria decidido à morte de Cristo, se o cumprimento da Lei fosse possível sem
esta morte; agora não apenas toda culpa foi levada como a culpa em si foi
destruída se acha morta –ou, pelo menos, em continuo morrer, como que se
decompondo. Ainda um breve tempo no meio dessa composição! – eis a sina do
cristão, antes de, tornado um com Cristo, ressuscita com Cristo, partilhar com
Cristo a gloria divina e torna-se “filho de Deus” como Cristo. – assim a
embriaguez de Paulo atinge seu cume, e também a impertinência de sua alma – com
a idéia do “tornar-se um”, todo pudor, toda subordinação, todo limite lhe foi
tirado, e a indômita vontade da ânsia de domínio mostra-se como antecipado
regalar-se em glórias divinas. – Este é o primeiro cristão, o
inventor da cristandade! Até então havia apenas alguns sectários judeus.
A
vingança cristã sobre Roma. – Talvez nada seja tão cansativo
quanto à visão de um perpétuo vencedor – por duzentos anos viu-se Roma sujeitar
um povo atrás do outro, o circulo estava fechado, todo o futuro parecia no fim,
todas as coisas arranjadas para um esta eterno – sim, quando o império construía,
contruia-se com o pensamento do “aaere perennius” [mais duradouro que o
bronze];- nós, que conhecemos apenas a “melancolia das ruians”, mal podemos
compreender essa em outra melancolia das construções eternas, da qual
era preciso tentar salvar-se como se podia- por exemplo, com a frivolidade de
Horácio. Outros buscavam outros consolos para a fadiga que roçava o desespero,
para a consciência mortal de que todos os movimentos do intelecto e do coração
estavam sem esperança, de que em toda parte se achava a grande aranha, de que
implacavelmente ela beberia todo o sangue, não importando onde ainda houvesse.
– Esse mudo ódio de séculos a Roma, sentido por espectadores cansados, onde
quer que Roma domine, desafogou-se afinal no cristianismo, na medida em
que este juntou Roma, “mundo” e “pecado” numa só percepção: vingavam-se dela,
pondo novamente um futuro diante de si – Roma soubera transformar tudo em sua
pré-história e seu presente -, um futuro em relação ao qual Roma já não
parecia à coisa mais importante, vingavam-se dela, sonhando com o Juízo
Final – e o judeu crucificado como símbolo da salvação era a suprema dos
vistosos pretores romanos da província, pois eles pareceram, então, símbolos da
perdição e do “mundo” maduro para o fim.-
O “após-a-morte.
– O cristianismo encontrou a noção de castios infernais em todo o império
romano: os numerosos cultos secretos e vinham chocando com particular deleite,
como o ovo mais fértil do seu poder. Epicuro acreditou nada fazer de mais
relevante para seus iguais do que arrancar essa fé pela raiz: seu triunfo, que
teve a expressão mais bela na voz do sombrio porém iluminado seguidor de sua
doutrina, o romano Lucrecio, chegou cedo demais – o cristianismo tomou sob sua
particular proteção a fé nos horrores subterrâneos, que já fenecia, e agiu
habilmente ao fazê-lo!Como poderia, sem este ousado recurso ao pleno paganismo,
vencer a popularidade dos cultos de Mitras e Ísis? Assim atraiu os temerosos
para seu lado – os mais fortes aderentes de uma nova fé!Os judeus, sendo um
povo que tinha e tem apego à vida, como os gregos e mais que os gregos, pouco
haviam cultivado tais idéias: a morte definitiva como punição de pecador e a
impossibilidade de ressurreição como ameaça extrema – isto já impressionava o bastante
esses homens singulares, que não queriam desfazer-se do seu corpo, tendo a
esperança, com seu refinado egipcismo, de salvá-lo por toda a eternidade. (Um
mártir judeu, do qual se fala no segundo livro dos Macabeus, não pretende
renunciar as vísceras arrancadas: quer tê-las quando ressuscitar – isto é algo
judeu!) . A idéia de suplícios eternos era vem remota para os primeiros
cristãos, eles pensavam estar redimidos “da morte” e a cada dia
esperavam uma transformação, não mais uma morte. (Que estranho efeito deve ter
produzido o primeiro falecimento nessa gente que esperava! Como se mesclaram,
ali, admiração, júbilo, duvida, vergonha, fervor!- um tema para grandes
artistas, realmente!). Paulo não teve elogio maior para seu Salvador do que
dizer que ele abriu a todos o acesso a imortalidade – ele ainda não crê
na ressurreição dos não-redimidos, e inclusive suspeita, conforme sua doutrina
do impossível cumprimento da Lei e da morte como conseqüência do peado, que até
então ninguém (ou muito poucos, e por graça, sem mérito) tornou-se imortal;
apenas então a imortalidade começaria a abrir suas portas –e, afinal,
também muitos poucos seriam para ela escolhidos: como a soberba do escolhido
não deixa de acrescentar. – Por outro lado, quando o impulso a vida não era tão
grande como entre os judeus e judeu-cristãos, e a perspectiva da unimortalidade
não parecia claramente mais valiosa que a perspectiva de uma morte definitiva,
o acréscimo pagão do inferno, que tampouco era inteiramente não-judeu,
tornou-se um instrumento bem-vindo nas mãos dos missionários: surgiu a nova
doutrina de que também o pecador e não-redimido é imoral, a doutrina da danação
eterna, e ela foi mais poderosa que o pensamento da morte definitiva, já
inteiramente debilitado. Apenas a ciência reconquistou-o para si, ao rejeitas
qualquer outra concepção da morte e qualquer vida no além. Ficamos mais pobres
de um interesse: o “após-a-morte” já não nos diz respeito! – um beneficio
indescritível, apenas ainda muito recente para em toda parte ser visto como
tal. – E Epicuro triunfo novamente!
A
favor da “verdade”! – “a favor da verdade do cristianismo
depõe a virtuosa conduta dos cristãos, sua fortaleza no sofrimento, sua fé
firme e, principalmente, sua difusão e crescimento, apesar das tribulações”, -
assim falam vocês ainda hoje! É de fazer pena! Pois aprendam que nada disso
depõe contra a verdade, que a verdade é demonstrada de forma diferente da
veracidade, e que esta não é, de modo nenhum, argumento a favor daquela!
Pensamento
oculto cristão. – Teria sido este o mais comum pensamento
oculto dos cristão do primeiro século: “É melhor convencer-se da própria
culpa do que da própria inocência, pois não se sabe exatamente qual a
inclinação de um juiz tão poderoso – mas deve-se temer que ele só
espere encontrar pessoas conscientes da culpa!Com seu grande poder, será mais
fácil ele perdoar um culpado do que admitir que alguém tem razão na sua
presença”. – É o que sentia a pobre gente da província diante do pretor
romano:”Ele é muito orgulhoso para que pudéssemos ser inocentes” – como não
reapareceria este sentimento na representação cristã do juiz supremo?
Dos
tormentos da alma. – Por qualquer tormento que alguém
inflige a um corpo alheio, todos gritam atualmente; há indignação imediata
contra um homem capaz disso; trememos já com a idéia de um tormento que poderia
ser imposto a um homem ou animal, e sofremos de modo insuportável, ao ouvir um
ato comprovado desse gênero. Mas ainda estamos longe de sentir da mesma forma
geral e determinada, em relação aos martírios da alma e o horror que é
infligi-los. O cristianismo utilizou-os numa escala inaudita e ainda prega
constantemente essa espécie de tortura; chega a queixar-se, com total
inocência, de deserção e tibieza, quando se verifica um estado sem esses
tormentos. – De tudo isso resulta que a humanidade ainda se comporta, perante a
morte na fogueira, as torturas e instrumentos de tortura espirituais, com a
mesma angustiada paciência e indecisão de outrora, ante as crueldades
infligidas nos corpos de homens e animais. O inferno, verdadeiramente, não
permaneceu palavra morta: e aos novos medos infernais criados correspondeu
também uma nova espécie de compaixão, uma atroz e esmagado piedade,
desconhecida em outros tempos, para com os “irremissivelmente condenados ao
inferno”, que o convidado de pedra mostra em relação a Don Juan, por exemplo, e
que, nos séculos cristãos, deve ter levado até mesmo as pedras ao
lamento.Plutarco apresenta a imagem sombria de um supersticioso dentro do
paganismo: esta imagem torna-se inofensiva quando comparada ao cristão da Idade
Média, que presume não mais poder escapar ao “martírio eterno”.
Terríveis augúrios lhe aparecem: talvez uma cegonha que carrega uma serpente no
bico e hesita
O
cristão compassivo. – O reverso da compaixão cristã
pelo sofrimento do próximo é a profunda suspeita de toda alegria do próximo, de
sua alegria em tudo o que quer e pode.
Humanidade
do santo.- Um santo apareceu no meio dos crentes, senão podia
mais agüentar o seu ódio incessante ao pecado. Afinal disse: “Deus criou todas
as coisas, exceto o pecado: surpreende que seja maldisposto em relação a este?
– Mas o homem criou o pecado – e deveria rejeitar este seu único filho, apenas
porque desagrada a Deus, o avô do pecado? Isto é humano? Honra a quem ela é
devida!- mas o coração e a obrigação devem falar primeiro a favor de filho – e
apenas depois em honra do avô!”.
O
ataque eclesiástico. – “Isso você deve resolver consigo
mesmo, pois trata-se de sua vida”, com essa exclamação Lutero nos interpela,
acreditando que sentimos a faca no pescoço.Mas nós o rechaçamos com as palavras
de alguém mais elevado e mais ponderado: “Está em nossas mãos não formar
opinião sobre isso ou aquilo, poupando o desassossego à nossa alma. Pois as
coisas mesmas não podem, de sua própria natureza, forçar-nos a um
julgamento”.
obre
humanidade!- Uma gota de sangue a mais ou a menos, em nosso
cérebro, pode tornar extremamente miserável e dura a nossa vida, de tal modo
que sofreremos mais com essa gota do que Prometeu com seu abutre. O mais
terrível, porém, acontece quando não se sabe que essa gota é a causa. É
sim “o Diabo”! Ou “o pecado”!-
A
filologia do cristianismo. –Pode-se muito bem calcular quão
pouco o cristianismo educa o sentido de honestidade e justiça pelo caráter dos
escritores de seus eruditos: eles apresentam suas conjecturas ousadamente, como
se fossem dogmas, e é raro que se vejam em honesto embaraço quanto à
interpretação de uma passagem bíblica. Frequentemente dizem: “Eu estou certo,
pois assim está escrito”- e segue-se uma interpretação de despudorado arbítrio,
de maneira que um filólogo hesita entre a cólera e o riso ao escutá-la, e
varias vezes perguntam a si mesmo: é possível? É respeitável? É ao menos
decente? – quanta desonestidade, nesse aspecto ainda é cometida nos púlpitos
protestantes, como o pregador explora grosseiramente a vantagem de ninguém aí
lhe cortar a palavra, como a Bíblia é empurrada e espremida, e a arte da má
leitura é formalmente ensinada ao povo: isso é subestimado apenas por quem
nunca - ou sempre- vai à igreja. Mas, por fim, que devemos esperar das
conseqüências de uma religião que, nos séculos de sua fundação, representou
aquela inaudita farsa filológica em torno do Antigo Testamento:falo de
tentativa de arrebatar aos judeus o Antigo Testamento, afirmando que não contem
senão doutrinas cristãs e que pertencem aos cristãos, como o verdadeiro
povo de Israel: enquanto os judeus o teriam apenas usurpado. E então se deu um
furo de interpretação e atribuição, que não podia estar ligado à boa
consciência: por mais que protestassem os eruditos judeus, supunha-se que o
Antigo testamento falasse de Cristo e apenas de Cristo, em particular de sua
cruz, e onde quer que fosse mencionada uma madeira, uma vara, uma escada, um
ramo, uma revire, uma haste, um bastão, isto significa uma profecia de madeira
da cruz: mesmo a instituição do Unicórnio e da serpente de bronze, mesmo
Moises, ao estender os braços em oração, até os espetos em que é assado o
cordeiro da Páscoa – tudo é alusão e como que prelúdio à cruz! Teráia acreditado
nisso alguém que o afirmou? Considere-se que a Igreja não hesitou em aumentar o
texto da Septuaginta (p. Ex., no salmo 96, versículo 10), para depois usar no
sentido da profecia cristã o trecho contrabandeado. Estava-se numa batalha,
pensava-se nos inimigos, não na honestidade.
Os
interpretes cristãos do corpo.- O que quer que provenha do
estomago, dos intestinos, da batida o coração, dos nervos, das bílis – todas as
indisposições, fraquezas, irritações, todos os acasos de uma maquina que
conhecemos tão pouco! – tudo isso um cristão como pascal tende considerar um
fenômeno moral e religioso, perguntando se ali se acha deus ou o Diabo, o bem
ou o mal, a salvação ou a danação. Oh, interprete infeliz!Como precisa revirar
e torturar seu sistema!Como el próprio necessita revirar-se e torturar-se para
ter razão!
A
honestidade de Deus. – um Deus que é onisciente e
onipotente e que não cuida em que sua intenção seja compreendida por suas
criaturas – sei esse um Deus da bondade? Que deixa enumeráveis duvidas e
apreensões continuarem existindo por milênios, como se fossem irrelevantes para
a salvação da humanidade, e que, no entanto, deixa entrever as mais terríveis
consequências de um equívoco em relação à verdade? Não seria este um Deus
cruel, se tivesse a verdade e pudesse acompanhar como a humanidade se aflige
lamentavelmente por ela?- Mas talvez seja realmente um deus da bondade – e
apenas não conseguiu expressar-se mais claramente!Faltou-lhe talvez
espírito para isso?Ou eloqüência? Tanto pior! Então talvez se engane também no
que chama de sua “verdade”, e ele próprio não seria muito diferente do “pobre
Diabo iludido”! Não deve suportar tormentos quase infernais ao ver suas
criaturas sofrerem tanto por seu conhecimento, e continuarem sofrendo ainda
mais em toda a eternidade, e não poder aconselhar e ajudar, senão como
um surdo-mudo que faz todo tipo de sinais quando o mais terrível perigo
espreita seu filho ou seu cão?- Seria verdadeiramente perdoável, num crente em
aflição e que assim concluísse, que tivesse antes compaixão pelo Deus sofredor
do que pelos “próximos”- pois não são mais os seus próximos, se o mais
solitário e primordial dos seres é também o mais sofredor e carente de consolo.
– Todas as religiões trazem uma marca de que de que devem sua origem uma
intelecto novo e imaturo da humanidade- são todas espantosamente levianas
com a obrigação, por partede Deus, de ser veraz e claro na comunicação
com a humanidade.-Acerca do “deus oculto” e das razões para manter-se oculto e
manifestar-se apenas com meias-palavras ninguém formais eloqüente do que
Pascal, um indicio de que ele nunca esteve tranqüilo quando a isso: mas sua voz
soa bem confiante, como se ele tivesse penetrado nos bastidores. Teve o
pressentimento de uma imoralidade no “deus absconditus” [deus oculto], e
um enorme pudor e temor de admiti-lo para si mesmo: e assim, como alguém que
tem medo, falou o mais alto que podia.
No
leito de morte do cristianismo. – Os homens realmente ativos
estão agora interiormente sem cristianismo, e os mais moderados e pensativos da
classe media intelectual tem apenas um cristianismo adaptado, ou seja,
admiravelmente simplificado. Um deus que, em seu amor, tudo dispõe para
que venha a ser o melhor para nós, um deus que dá e toma tanto a nossa virtude
como a nossa felicidade, de modo que as coisas, em geral, vão sempre bem, não
há razão para ver tristemente a vida ou até mesmo denunciá-la, em suma, a
resignação e a modéstia tornadas divindades – isso é o que de melhor e mais
vivo ainda resta do cristianismo. Mas deve-se notar que assim o cristianismo
converteu-se num brando moralismo: o que resta não é tanto “Deus,
liberdade e imortalidade” como benevolência e atitude decorosa, e a crença de
que em todo o universo predominarão a benevolência e atitude decorosa: é a eutanásia
do cristianismo.
Que
é a verdade? – Quem não admitirá a dedução que os fieis
gostam de fazer: “A ciência não pode ser verdadeira, pois nega a Deus,
Portanto, não procede de Deus;portanto, não é verdadeira- pois Deus é a
verdade”. Não a dedução, mas o pressuposto contém um erro: e se deus não
fosse à verdade, e justamente isso fosse provado? Se ele fosse à vaidade, o
apetite de poder, a impaciência, o terror, a entusiasmada e horrorizada loucura
dos homens?
LIVRO II
Fins?
Vontade?- Habituamo-nos a pensar em dois reinos, no reino dos fins
e da vontade e no reino dos acasos; nesse ultimo as coisas
ocorrem sem sentido, vem e vão sem que alguém possa dizer: Por quê? Para quê?-
Nós tememos esse poderoso reino da imensa estupidez cósmica, pois geralmente o
conhecemos quando cai aquele outro mundo, o dos fins e intenções como uma telha
cai do telhado, matando-nos uma bela finalidade. Essa crença nos dois reinos é
um romantismo e uma fabula antiqüíssimos: nós, inteligentes anões, com nossa
vontade e nosso fins, somos irritados, atropelados, muitas vezes pisoteados até
a morte pelo gigantes estúpidos, mais que estúpidos, que são os acasos –e,
apesar disso tudo, não gostáramos de ficar sem a pavorosa poesia dessa
vizinhança na teia de aranha dos fins tornou-se muito enfadonha ou
ambigüidade para nós, e nos proporcionaram uma sublime diversão, ao destruir
toda a teia com a mão – não que o quisessem fazer, esses insensatos!Não que
o notassem sequer! Mas suas mãos grosseiras rompem a nossa teia como se fosse
ar. – Os gregos chamavam de Moira esse reino de incalculável e da sublime e
terna parvoíce, e colocavam-no em torno de seus deuses como um horizonte, além
do qual não podiam ver nem agir: com a secreta teimosia ante os deuses que há
em muitos povos, de forma que o individuo os adora, mas guarda nas mãos um
último trunfo contra eles, por exemplo, quando o hindu ou a persa os vê como
dependentes do sacrifício dos moertasis, de modo que estes, no piro dos
casos , podem deixá-los famintos e moribundos; ou quando o escandinavo duro e
melancólico inventa para si, com a noção de um crepúsculo dos deuses, o deleite
de uma vingança tranqüila, para compensar o medo continuo que lhe infundem seus
deuses maus. Diverso foi o cristianismo, cujos sentimentos fundamentais não
sendo hindus nem persas, nem gregos, nem escandinavos, impunham adorar o espírito
do poder no pó e ainda beijar o próprio: o que deu a entender que o
todo-poderoso “reino da estupidez” não é tão estúpido como parece, que somos nós
os estúpidos, que não percebemos que por trás dele se acha o bom Deus, que, é
verdade, ama os caminhos escuros, tortos e prodigiosos, mas enfim tudo “conduz
a gloria”. Essa nova fabula do bom Deus, até então confundido com uma raça de
gigantes ou com Moira,e tecendo ele próprio fins e teias mais refinados que os
de nossa compreensão- de modo que a ela tinham de parecer
incompreensíveis, até mesmo irrazoaveis- essas fabula era um tão ousada
inversão e um paradoxo tão arriscado, que o mundo antigo, já refinado em
demasia, não pode resistir, por mais insano e contraditório que soasse
aquilo: - pois, seja dito entre nós, havia ali uma contradição: se nosso
entendimento não pode apreender o entendimento e os fins de Deus, como
apreender ele essa natureza do seu entendimento? E essa natureza do
entendimento de Deus?- Em épocas mais recentes aumentou a desconfiança de que a
telha que cai do telhado seja realmente lançada pelo “amor divino” – e os
homens começam a retomar a velha trilha do já é tempo: em nosso suposto reino
especial de fins e da razão governam também os gigantes!E nossos fins e nossa
razão não são anões, mas gigantes! E nossas teias são rasgadas tão
freqüentemente tão grosseiramente por nós mesmos como por uma telha!E
nem tudo o que se chama finalidade é finalidade, tampouco é vontade o que se
denomina vontade!E, se quiserem concluir: “Então há apénas um reino, modos
acasos e da estupidez?”- devemos acrescentar: sim, talvez haja somente um
reino, talvez não exista vontade nem finalidade, e nós apenas as imaginamos. As
mãos férreas da necessidade, que agitam o copo de dados do acaso, prosseguem
jogando por um tempo infinito: têm de surgir lances que semelham
inteiramente à adequação aos fins e a racionalidade. Talvez nossos atos
de vontade e nossos fins não sejam outra coisa que tais lances-e nós somos
apenas muito limitados e vaidosos para apreender nossa extrema limitação: a
saber, que nós mesmos agitamos o copo de dados com mãos férreas, que nós
mesmos, em nossas ações mais intencionais, nada fazemos senão jogar o jogo da
necessita . Talvez!-Para ultrapassar esse talvez, seria preciso já haver
estado no mundo inferior e além de toda superfície, e haver jogado e apostado
com Perséfone em sua própria mesa.
Ultimas
ressonâncias do cristianismo na moral. – “On n’est bon que par la pitié: il
faut donc qu’il y ait quelque pitié dans tous nos sentiments”
[Somos bons apenas mediante a piedade: é preciso, então, que haja alguma
piedade em todos os nossos sentimentos]- é o que diz a moral de hoje! E de onde
vem isso?-Que o individuo de ações simpáticas, desinteressadas, sociais, de
utilidade geral, seja visto agora como o homem moral - é talvez o efeito
e a mudança mais amplos que o cristianismo produziu na Europa: embora não
tenham constituído sua intenção nem sua doutrina. Mas foram o resíduo de
disposições de espírito cristãs, quando gradualmente retrocedia a crença
fundamental, bastante oposta, estritamente egoísta, no “uma só coisa é
necessária”, na absoluta importância da eterna salvação pessoal,
juntamente com os dogmas em que se baseava, e assim foi empurrada para primeiro
plano a crença secundária no “amor”, no “amor ao próximo”, em sintonia com a
enorme pratica da misericórdia eclesiástica. Quanto mais o individuo se
desprendia dos dogmas, tanto mais buscava como que a justificação desse
desprendimento em um culto do amor aos homens: e nisso não ficar atrás do ideal
cristão, mas sobrepujá-lo, quando possível foi um secreto aguilhão para
todos os livres-pensadores franceses, de Voltaire e Auguste Comte; esse ultimo,
com sua celebre formula moral vive pour autrui[ viver para o outro],
superou os cristãos
Também
por sobre o próximo.- Como? A natureza do que é
verdadeiramente moral estaria em divisar as conseqüências próximas e imediatas
de nossas ações pra o outro, e nos decidirmos em conformidade com elas? Esta é
uma moral escrita e pequena-burguesia, ainda que seja uma moral: um pensamento
mais elevado e livre parace-me olhai também por sobre essas conseqüências
imediatas para o outro e, em determinadas circunstancias, promover fins mais
distantes, também com o sofrimento do outro-por exemplo, promover o conhecimento,
apesar da compreensão do que o nosso livre-pensar logo lançará o outro em
duvidas, preocupações e coisas piores. Não nos é permitido tratar o próximo
como a nós mesmos, pelo menos? E se, em nosso caso, não pensamos nas conseqüências
e dores imediatas, de modo tão estreito e pequeno-burguês: por que teríamos
de faze-lo no caso dele? Supondo que tivéssemos o sentido do sacrifício em
relação a nós, o que nos proibiria de sacrificar conosco o próximo?- como até
agora fizeram o Estado e os príncipes, sacrificando u cidadão aos outros “pelo
interesse geral” como se dizia. Mas também nós temos interesses gerais talvez
mais que gerais: por que não deveriam alguns indivíduos das gerações que seu
desgosto, seu desassossego, seu desespero, seus equívocos e passos angustiados
fossem vistos como necessários, porque uma nova relha de arado deve rasgar o
solo e faze-lo fecundo para todos? – Enfim: nós comunicamos ao próximo, ao
mesmo tempo, o espírito em que pode sentir-se sacrificado, nós o
conquistamos para a tarefa para a qual o
utilizamos. Então não temos compáixão? Mas, se queremos alcançar a vitória de
nós mesmo também por sobre a nossa compaixão, não é essa uma postura e
disposição mais alta e mais livre do que aquele em que nos sentimos seguros ao
descobrir se uma ação faz bem ou mal ao próximo? Enquanto nós, através
do sacrifício – no qual estão incluídos nó e os próximos – fortaleceríamos e elevaríamos
mais alto o sentimento geral do poder humano, supondo que não conseguíssemos
mais.Mas isto já seria um positivo incremento da felicidade.-Por ultimo,
se mesmo isto—nem uma palavra mais, porém! Um olhar basta, vocês me
compreenderam.
Causas
do “altruísmo”.- de modo geral, as pessoas falaram do amor com tanta
enfase e adoração porque tiveram pouco dele, nunca puderam saciar-se
desse manjar: então ele se tornou “manjar dos deuses” para elas. Se um poeta
mostrar, numa utopia, a existência dolorosa e ridícula, de que não se viu igual
neste mundo.-Todo individuo cortejado, importunado e desejado, não por um só
amante, como sucede hoje, mas por milhares, sim, por todos , em virtudes de um
impulso unirreprimivel que será injuriado e amaldiçoado, como a antiga
humanidade faz com o egoísmo; e os poetas dessa nova situação, se lhes for dado
sossego para poetar, sonharão apenas com o feliz passado sem amor, o divino
egoísmo, a solidão, a paz, ausência de amor, malevolência e desprezo que antes
foram possíveis na Terra, e como quer que se chame toda a vilania do caro mundo
animal em que vivemos.
Perspectiva
distante.-se apenas forem morais, como se definiu, as ações
que fazemos pelo próximo e somente pelo próximos,e então não existem ações
morais! Se apenas forem morais- segundo outra definição- as ações que fazemos
com livre-arbítrio, então não existem ações morais!-O que, então, é isso que
tem esse nome, que de todo modo existe e pede explicação?São os efeitos de
alguns erros intelectuais.-Supondo que nos libertássemos desses erros, quês era
das “ações morais”?- Em virtude desses erros, até hoje atribuímos a algumas
ações um valor maior alto do que o que tem: nós as distinguimos das ações
“egoísta” e das ‘não-livres”. Se agora tiramos e junta-las a estas, como temos
de fazer, diminuímos certamente o seu valor ( o sentimento de seu
valor), e isso abaixo da medida razoável, pois as ações “egoístas” e
“não-livres” tiveram avaliação muito baixa até o momento devido à suposta
diferença intrínseca e profunda.-Então porque passarão a ser menos
valorizadas?-Inevitavelmente! Ao menos por um
tempo, enquanto a balança do sentimento de valor estiver sob a reação de
erros passados!Mas nossa contrapartida é que restitui os aos homens a boa
coragem para as ações difamadas como egoísta e restauramos o valor das
mesmas – roubando delas a má consciência!E, como até hoje foram as mais
freqüentes, e em todo o futuro continuarão a sê-lo, retiramos a todo o quadro
das ações e da vida a sua má experiência!Não mais se considerando mal, o
homem deixa de sê-lo!
LIVRO IV
O
engano na humilhação. Com sua insensatez, você infligiu ao
próximo m grande sofrimento e destruiu-lhe inapelavelmente a felicidade – e
agora você vence a própria vaidade a ponto de procura-lo, humilhar-se perante
ele e entregar sua insensatez ao desprezo, acreditando que após esta cena dura,
bastante penosa para você, tudo voltou a ficar em ordem- que sua voluntária
perda de honra compensa a involuntária perda de felicidade por parte do outro:
com este sentimento você se afasta, de cabeça erguida e virtude reabilitada. Mas
o outro continua com o sofrimento, para ele não há consolo no fato de você ser
insensato e te-lo admitido, ele se lembra também da dolorosa visão que você lhe
proporcionou, desprezando a si mesmo diante dele, como uma nova ferida que de a
você – mas não pensa em vingança e não entende como algo pode ser compensado
entre você e ele. No fundo, você representou aquela cena diante de si mesmo e
para si mesmo: chamou uma testemunha, mas novamente por sua casa, não dela- não
se engane!
Indicação
para moralistas.- Nossos compositores fizeram uma grande descoberta:
a feiúra interessante é igualmente possível em sua arte!E deste modo se
atiram a esse franqueado oceano do feio, como que inebriados, e nunca foi tão fácil
fazer musica. Agora conquistou-se o escuro pano de fundo geral em que um raio
de musica bela, mesmo pequenino, ganha um brilho de ouro e de esmeralda; agora
se ousar lançar o ouvinte do tumulto e na revolta e tirar-lhe o fôlego, para
depois oferecer-lhe, num instante de abandono no repouso, um sentimento de
felicidade que favorece a avaliação das música.Descobriu-se o contraste:
somente agora os efeitos mais poderoso são possíveis – e baratos:
ninguém mais pede boa música. Mas vocês devem apressar-se!Para toda arte resta
apenas um curto espaço de tempo, depois que chega a essa descoberta.-Oh, se
nossos pensadores tivessem ouvidos para escutar dentro da alma e nossos
compositores, mediante sua música!Quanto tempo será preciso esperar, até que se
tenha novamente uma oportunidade como esta de flagrar o homem interior numa má
ação e na inocência desta ação!Pois os nossos compositores não suspeitam
minimamente que colocam em música a sua própria história, a história do enfezamento
da alma.Antes o bom compositor era quase obrigado a tornar-se um bom homem por
causa de sua arte-. E agora!
Da
moralidade do palco.-Engana-se quem pensa que o teatro
de Shakespeare tem efeito moral e que a visão de Macbeth afasta do mal da
ambição: e engana-se de novo se acha que
o próprio Shakespeare sentiu como ele. Quem realmente está possuído de furiosa
ambição vê esta sua imagem com prazer, e, se o herói sucumbe por sua
paixão, este é justamente o tempero mais forte na quente bebida desse prazer.
Então o poeta sentiu de outra maneira?Com que realeza, sem nenhum traço de
velhacaria, seu ambicioso protagonista segue sua trilha após o grande
malfeito!Só a partir desse momento ele exerce atração “demoníaca”, e incita
naturezas semelhantes a imitarem-no; -“demoníaco” significando aqui: a despeito
da vantagem e da vida, em favor de um impulso e pensamento. Vocês acham que
Tristão e Isolda dão um ensinamento contra adultério, ao sucumbir em
virtude dele? Isto significaria pôr os poetas de cabeça para baixo: os quais,
especialmente Shakespeare, são namorasos das paixões em si, e não de suas
disposições mórbidas- em que
coração não se atém à vida com mais firmeza do que uma gota ao vidro.
Não é a culpa e se horrível desfecho que lhes importa, a Shakespeare e a
Sófocles (em Ajax, Édipo, Filoctetes):teria sido fácil, nesses caos,
fazer da culpa a alavanca do drama, mas certamente isso foi evitado. O autor de
tragédias também não deseja, com suas imagens da vida, predispor contra
a vida!Ele exclama, isto sim: “É o encanto supremo, essa existência
estimulante, cambiante, perigosa, sombria e às vezes banhada de sol!É uma aventura
viver – tomem aí o partido que quiserem, ela sempre terá esse caráter!”.-Assim
fala ele, do interior de uma época intranqüila e plena de força, meio ébria e
entorpecida por sua profusão em sangue e energia – do interior de uma época
mais malvada que a nossa: motivo pelo qual temos antes necessidade de preparar
e adaptar para nós o objetivo de um drama shakespeariano , ou seja, de não
compreendê-lo.
A
contradição em corpo e alma.- No assim chamado gênio há uma
contradição fisiológica: ele tem, por um lado, muito movimento selvagem,
desordenado e involuntário,e, por outro, muita finalidade superior nesse
movimento – como que possuindo um espelho que mostra os dois movimentos lado a
lado e entremeados, mas também opostos um ao outro, com freqüência. Devido a
essa visão e frequentemente infeliz, e, quando se sente o melhor possível, ao
criar, é porque esquece que faz precisamente – tem de fazer – algo fantástico e
irracional (assim é toda arte), com finalidade suprema.
Os
caluniadores da alegria.- Pessoas profundamente magoadas pela
vida suspeitam de toda alegria, como se esta sempre fosse ingênua e pueril e
demonstrasse irracionalidade, em vista da qual poderíamos sentir apenas
comiseração e enternecimento, como sentiríamos ante uma criança prestes a
morrer, que na cama ainda mima seus brinquedos. Tais pessoas enxergam, por
baixo de todas as rosas, túmulos ocultos e dissimulados; divertimento,
agitação, música festiva lhes parece o resoluto engano de si mesmo de um doente
grave, que por um minuto ainda quer saborear a embriaguez da vida.Mas esse
julgamento sobre a alegria não é outra coisa que a refração dela no futuro
escuro do cansaço da doença: é ele mesmo algo tocante, irracional, que leva à
compaixão, é inclusive algo ingênuo e pueril, mais vindo daquela segunda
infância que segue a velhice e antecede a morte.
LIVRO
V
Para
quem existe a verdade.- Até o momento, os erros foram os
poderes consoladores: agora espera-se o mesmo efeito das verdades
reconhecidas, e espera-se já há algum tempo. E se as verdades não fossem
capazes justamente disso – consolar?Seria isto uma objeção às verdades? Que têm
elas em comum com os estados de homens sofredores, fenecidos, doentes, para que
tenham de lhes ser úteis?Pois não constitui prova contra a verdade de uma planta se é verificado que ela em
nada contribui para a cura de homens doentes. Mas outrora havia tal convicção
de que o ser humano era a finalidade da natureza que se supunha, sem hesitação,
que também o conhecimento não poderia descobrir que não fosse uti e saudável
para o homem, sim, não poderia haver, não era lícito que houvesse outras
coisas. – Talvez disso resulte a tese de que a verdade como um todo coerente, existe apenas para as almas
simultaneamente poderosas e inofensivas, jubilosas e pacíficas (como foi a de
Aristóteles), e de que apenas estas serão capazes de buscá-la: pois as outras buscam remédios para si, ainda que pensem muito
orgulhosamente do seu intelecto e a liberdade deste – elas não buscam a verdade. Daí essas outras terem tão pouca alegria verdadeira
com a ciência e recriminarem sua frieza, secura e desumanidade: assim julgam os
doentes acerca dos jogos dos sãos.-Também os deuses gregos não sabiam consolar;
quando, enfim, também os homens gregos se tornaram todos doentes, esta foi uma
razão para o declínio de tais deuses.
Nós, deuses no exílio!- Devido a erros quanto a sua origem, seu caráter
único, seu destino, e a exigências
estabelecidas com base
nesses erros, a humanidade ergueu-se alto e sempre “superou a si própria”: mas
devido aos mesmos erros apareceu no
mundo uma indizível quantidade de sofrimento, perseguição mútua, suspeita,
incompreensão e ainda maior miséria do indivíduo consigo e
Cegueira para nos pensadores. –Como viam os gregos de forma diferente à
natureza, se, como temos que admitir, seus olhos eram cegos para o azul e o
verde, enxergando no lugar deste ( quando, por exemplo, designavam com a mesma
palavra a cor do cabelo escuro, da centúria e do mar meridional, e também com a
mesma palavra a cor das plantas mais verdes e da pele humana, do mel e da
resina amarela: de modo os seus pintores máximos, comprovadamente, reproduziram
o mundo apenas em preto, branco, vermelho e amarelo) – como devia lhes parecer
diferente e bem mais próxima dos homens a natureza, pois a seus olhos as cores
humanas predominavam também na natureza, e esta como que nadava no éter de
cores da humanidade! (Verde e azul desumanizam a natureza mais do que todas as
outras.) Sobre esta deficiência cresceu a brincalhona facilidade que os distingue,
vendo os processos naturais como deuses e semideus, isto é, sob formas
humanas.- Mas isso é apenas uma imagem para outra suposição. Cada pensador
pinta seu mundo e cada coisa utilizando menos cores do
que existem, e é cego para
determinadas cores. Isso não é apenas um deficiência. Em virtude dessa
aproximação e simplificação, ele enxerga
nas coisas harmoniosas de cores que
têm enorme encanto e podem constituir um enriquecimento da natureza. Talvez
mesmo por essa via é que a humanidade tenha aprendido a fruir a visão da existência: por essa existência lhe ter sido mostrada
inicialmente em uma ou duas cores, e assim harmonizada; ela como que se
exercitou nesses poucos tons, antes de poder passar e outros mais. E ainda hoje
vários indivíduos partem de uma cegueira parcial às cores para alcançar uma
visão e diferenciação mais rica: no que não apenas acham novas fruições, mas
também têm de abandonar e
perder alguma das anteriores.
A nova paixão. – Por que tememos e odiamos um possível retorno à
barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são? Ah, não!Em
todos os tempos os bárbaros tiveram mais
felicidade, não nos
enganemos!-Mas nosso impulso
ao conhecimentos demasiado forte para
que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma
forte ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso para nós!a inquietude de
descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o
amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado da
indiferença;- sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!O conhecimento, em nós formal em paixão que não
vacila ante nenhum sacrifício e nada teme, no fundo, senão a sua própria
extinção; nós acreditamos honestamente que, sob o impero e o sofrimento dessa paixão, toda a humanidade tenha de acreditar-se mais sublime e
consolada do que antes, quando ainda não havia superado a inveja do bem-estar
grosseiro que acompanha a barbárie. E talvez até que a humanidade pareça devido
a essa paixão do conhecimento!- mas nem este pensamento influi sobre nós!O
cristianismo se atemorizou alguma vez ante um pensamento assim?Não sãos irmãos
o amor e a morte!Sim, odiamos a barbárie – preferimos todos o fim à humanidade
ao retrocesso do conhecimento!E, afinal: se a humanidade não perecer de uma paixão, parecerá de uma fraqueza: o que é preferível? Eis a questão principal.
Queremos para ela um final em luz e fogo ou em areia?-
Ver com novos olhos. – Supondo que por beleza na arte sempre se
entenda a imitação do
que é feliz- e é o que tenho como
verdade-, conforme a idéia que um tempo, um povo, um grande indivíduo
legislador de si mesmo faz do que é feliz: que dá a entender sobre a felicidade
de nosso tempo o assim chamado realismo dos artista de hoje?É, está fora de dúvida, chamado
realismo dos artistas de hoje?É, está fora de dúvida, a sua espécie de beleza que agora podemos apreender e fruir com mais
facilidade. Portanto, deve-se acreditar que a felicidade que hoje nos é própria
está no realismo, em sentidos o mais agudos possível e apreensão a mais fiel
possível o real, ou seja, não na realidade, mas no saber acerca da realidade?A
influência do saber já alcançou tal extensão e profundidade que os artistas do
século, sem o querer, tornaram-se já glorificadores das “bem-aventuranças” da
ciência”
Não faz da paixão um argumento em
prol da verdade! –Ó vocês,
bons e mesmo nobres entusiastas, eu o conheço!Vocês querem ter razão diante de
nós, mas também perante vocês, sobretudo perante vocês mesmos!- e uma
suscetível e refinada má consciência os aguilhosa e os impele frequentemente contra seu entusiasmo!Como tornam-se então engenhos em malograr e amortecer
esta consciência!Como odiamos os honestos, simples, puros, como vejam os seus
olhos inocentes! Aquele saber melhor, cujos representantes são eles e cuja voz ouvem alto demais entro de si mesmos, quando ela duvida de
sua crença-como procuram torná-lo suspeito, como mau hábito, como enfermidade
do tempo, como negligência e infecção de sua própria saúde espiritual!A ponto
de odiar a crítica, a ciência, a razão!Têm de falsificar a história, para que
ela testemunhe a seu favor, têm de negar virtudes, para que elas não façam
sombra aos seus ídolos e idéias!Imagens coloridas, onde são necessários motivos
racionais!Ardor e poder das
expressões!Névoa de prata!Noites de ambrósia!Vocês sabem iluminar o escurecer,
e obscurecer com luz!E realmente, quando sua paixão entra em fúria,
chega um instante em que dizem a si mesmos: agora e conquistei a boa
consciência, agora sou magnânimo, corajoso, abnegado, grandioso, agora sou
honesto!Como anseiam por esses instante,
em que sua paixão lhe dá inteira, incondicional razão e como que inocência
perante si mesmos, em que estão fora de si e além de toda dúvida no combate, na
embriague, ira, raiva, esperança, em que decretam “quem não está fora de si,
como nós, não pode saber o que é e onde está a verdade!”.Como anseiam por
encontrar homens de sua fé nesse estado – o da viciosidade do intelecto- e
acender suas chamas no fogo deles!Ai de seu martírio!De seu triunfo da
santificada mentira!Vocês têm de infligir tanto sofrimento a si
mesmos?-Têm?-
Como agora se faz filosofia.-eu bem observo: nossos jovens, mulheres e artistas
que filosofam pedem agora justamente o oposto do que os gregos recebiam da
filosofia!Quem não ouve o constante júbilo que permeia todo discurso e toda
réplica em um diálogo platônico, o júbilo pela nova invenção do pensamento racional, que entende essa pessoa de Platão, da filosofia antiga?Naquele tempo
as almas se inebriavam, quando se praticava o sóbrio e severo jogo dos
conceitos, da generalização, refutação, restrição- com aquela embriaguez que
também os velhos, grandes, severos e sóbrios contrapontistas da música talvez
tenham conhecido. Naquele tempo, na Grécia, ainda se tinha na boca o outro
gosto mais antigo, outrora todo-poderoso; e o novo distinguia-se dele tão
encantadoramente que a dialética, a “arte divina”, era cantada e balbuciada
como num delírio de amor. Mas aquele pensamento antigo estava sob o domínio da
moralidade, para a qual havia causas estabelecidas, juízos estabelecidos, e
nenhum outro fundamento senão os dados pela autoridade: de modo que pensar era repetir,e todo o prazer da fala e da
conversa tinha de estar na forma. (sempre que o conteúdo é visto como eterno e
universalmente válido, há apenas um grande encanto: o da forma cambiante, ou
seja, da moda.Os gregos fluíram também nos poetas, desde os tempos de Homero, e
depois nos escultores, não a originalidade, mas o seu contrario.)Foi Sócrates
quem descobriu o encanto oposto, o da causa e efeito do fundamento e das
conseqüência: e nós, homens modernos, fomos tão habituados e educados na
necessidade da lógica, que ela é o gosto normal para a nossa boca, e deve ser
repugnante para os ávidos e presunçosos. O que se distingue dele os deleita:
sua refinada ambição bem gostaria de crer que suas almas constituem exceções,
não seres dialéticos e racionais, porém- “seres intuitivos”, por exemplo,
dotados de “senso interior” ou de “intuição intelectual”. Mas querem ser, antes
de tudo, “naturezas artísticas”, com um gênio na cabeça e um demônio no corpo,e
, portanto, também com privilégios neste e naquele mundo, especificamente com o
divino privilégio de ser incompreensível. – É isso que agora também faz
filosofia!Um dia notarão, receio, que se equivocaram – o que querem é religião!
A vitória sobre a força.- Considerando-se tudo o que até agora foi venerado
como “espírito sobre-humano”, como “gênio”, chega-se à triste conclusão de que,
n conjunto, a intelectualidade humana deve ter sido algo muito vulgar e
mesquinho: tão pouco espírito foi até agora necessário, para sentir-se logo bem
acima dela!Ah, a glória barata do “gênio”! Como foi rapidamente erguido seu
trono, e sua adoração tornada costume!Anda nos achamos de joelhos ante a força-
segundo velho habito de escravos –e, no entanto, se devemos estabelecer o grau
de venerabilidade, apenas o grau de razão que há na força é decisivo: temos que medir até que ponto justamente a força foi superada por algo mais elevado e se acha
doravante a ser serviço, como instrumento e meio!Mas para um tal medição há
ainda muito poucos olhos, e em geral vê-se ainda como um sacrilégio medir o
gênio. E , assim talvez o mais belo continue a se dar na escuridão, afundando,
apenas nascido, na noite eterna- ou seja, o espetáculo daquela força que um
gênio não emprega em
obras, mas em si como obra, isto é, na sua própria domação, na depuração de sua
a fantasia, na escolha e ordenação do afluxo de tarefas e idéias. O grande ser
humano é ainda, justamente na maior coisa a exigir veneração, invisível como um
astro demasiado distante: sua vitória
sobre a força continua sem olhos
que a vejam, e, portanto, sem canções e cantores. A hierarquia da grandeza
ainda não foi estabelecida para toda a humanidade passada.
“Fuga de si.”-Esses homens dados a convulsões intelectuais,
impacientes e sombrios consigo mesmo, como Byron ou Alfred de Musset, que em
tudo o que fazem semelham cavalos desembestados, e que obtêm de sua própria
criação apenas um breve ardor e prazer que quase lhes rebenta as veias e, em
seguida, um vazio e amargor tanto mais invernais, como devem suportar isto em si?Es anseiam pela dissolução num “fora de si”; se, com
tal sede, o individuo é cristão, ele objetiva dissolver-se em Deus, “torna-se
um com Ele”; se é Shakespeare, satisfaz-se apenas ao consumir-se em imagens
da vida mais plena de paixão; se é Byron
anseia por atos, pois estes nos subtraem de nós mais ainda que
pensamentos, sentimentos e obras. Então o ímpeto à ação seria, no fundo, fuga
de si?- perguntaria Pascal. De fato! Nos mais altos exemplos do ímpeto à ação
pode-se demonstrar essa tese: consideremos, com o saber e a experiência de um
alienista, como deve ser – que quatro dos homens mais sequiosos de ação de
todos os tempos foram epilépticos (Alexandre, César, Maomé e Napoleão): e que
também Byron sofria desse mal.
Das virtudes futuras.- Como se explica que, quanto mais compreensível tornou
se o mundo, tanto mais decaiu toda espécie de solenidade? Será porque o temor
era o elemento básico dessa reverência que de nós se apoderava ante tudo
desconhecido, misterioso, e nos ensinava a prostrar-nos e pedir mercê diante do
incompreensível?E não teria o mundo perdido algo de seu encanto para nós, pelo
fato de nos termos tornado menos temerosos?Justamente com nossa temerosidade
não haveria decrescido também nossa própria dignidade e solenidade, nossa própria temibilidade?Teríamos menos respeito pelo mundo e por nós
mesmos, desde que pensamos mais corajosamente acerca dele e de nós?Haverá um
futuro em que essa coragem do pensar terá crescido de tal forma qu, como
suprema arrogância, sentir-se-à acima dos homens e das coisas- em que o sábio, como o
mais corajoso, será aquele que mais verá a si mesmo e a existência abaixo de
si?-Essa espécie de coragem, que não está longe de ser uma extravagante
generosidade, faltou à humanidade até agora.-Oh, se os poetas voltassem a ser o que devem ter
sido outro a:-videntes que nos dizem algo do que é possível!Agora, em que o real e o passado da vez mais são e têm de ser-lhes
retirados das mãos – pois acabou o tempo da inocente falsificação de moeda!Se
nos fizessem perceber antecipadamente agora das virtudes futuras!Ou de virtudes
que jamais existirão na Terra, embora já pudesse haver em algum lugar do mundo-
de constelações purpúreas e grandes Vias Lácteas do belo!Onde estão vocês, astrônomos do ideal?
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