Raniero Cantalamessa, Do
Kerigma ao Dogma. Estudos sobre a Cristologia dos Padres. Milão: Vita e
Pensiero, 2006.
Resumo: Paolo Cugini
O que significa a tendência de
mudar o foco da cristologia da ressurreição para a encarnação em relação ao
Novo Testamento? A resposta está na palavra: deescatologização. Um exemplo
bastante significativo é a transformação muito rápida do título Filho do
homem que dá um título de majestade originalmente ligado à ação
escatológica do messias após a sua morte e ressurreição, já com Inácio de
Antióquia a significar, em oposição ao Filho de Deus, a humanidade de
Cristo, seu nascimento de Maria.
Outro título em cujo uso
patrístico é fácil encontrar o fenômeno da desescatologização é Novo Adão.
É conhecido o conteúdo escatológico desta expressão de 1 Cor 15,45-49 e a sua
ligação com a ressurreição, na qual Cristo se torna Espírito vivificante,
primícias da nova humanidade. Pois bem, passando à teologia de Irineu,
percebemos que o novo Adão não designa mais o Cristo escatológico, mas o Cristo
encarnado. Ele é o segundo Adão, pois resume em si toda a humanidade, começando
pelo próprio Adão. Mas ele recapitula a humanidade sobretudo no momento da sua
encarnação. Da antítese paulina primeiro homem e segundo homem, o que
mais se destaca é o elemento de paralelismo, ou seja, o homem. Tal como o
título Filho do Homem, também o Novo Adão muitas vezes significa que Cristo é
verdadeiro homem, da raça de Adão, nascido da Virgem Maria como o primeiro
nasceu da terra virgem.
Tertuliano, ligado neste ponto a Irineu pela
polêmica comum anti-Marcionita, teoriza esta leitura da tipologia Adão-Cristo,
escrevendo:
“Que título é chamado Cristo pelo apóstolo
Adão, se não teve uma humanidade de origem terrena, isto é, se não nasceu de
Maria? Por que Cristo é chamado de segundo homem se não é homem como o
primeiro? Se o Evangelho apresenta Cristo como filho do homem, Marcião não
poderá mais negar que ele é homem e como homem Adão”.
Como essa evolução
impacta as relações entre cristologia e escatologia? A escatologia, agora entendida cada vez mais
tecnicamente como a ressurreição final da carne, passa da ressurreição de
Cristo para se basear na encarnação. É a assunção da carne humana pelo Verbo
que estabelece a certeza cristã na ressurreição da carne. Tertuliano escreve o
tratado Sobre a Carne de Cristo como prefácio ao tratado Sobre a Ressurreição
dos Mortos e na introdução diz:
“aqueles que questionam a ressurreição
consistentemente começam negando a carne de Cristo. Nós, portanto, defenderemos
as esperanças da carne a partir do que derivam da razão para negá-la.
Examinemos a substância da carne do Senhor, visto que a do Espírito está fora
de questão. Sua demonstração será a garantia de nossa ressurreição”.
Para Tertuliano aqueles que
negam a ressurreição da carne devem negar a assunção da carne pelo Verbo, isto
é, a encarnação. Para Paulo, aqueles que negam a ressurreição dos mortos devem
negar a ressurreição de Cristo. Para um, a ressurreição dos mortos é garantida
pela fé na encarnação, para o outro pela fé na ressurreição: “se é anunciado
que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns de vós dizer que não há
ressurreição de o morto? " (1Cor 15,12). A ligação entre a ressurreição
dos mortos e a ressurreição de Cristo repousa agora na identidade da carne com
a qual Cristo ressuscitou com a carne humana, graças à encarnação real.
Em que sentido estes processos
inovam no que diz respeito à escatologia bíblica? De duas maneiras.
a.
Em primeiro lugar, pela queda, ou pelo menos
pela perda de interesse, do ponto de ancoragem da escatológica, ou seja, o
Cristo ressuscitado e exaltado como espírito, o Cristo que deve retornar. Para
a cristologia patrística, Cristo é muito mais aquele que veio, e não aquele que
há de vir.
b. Em segundo lugar, porque
esta concepção tende a acentuar excessivamente um conteúdo de escatologia, a
ressurreição final dos mortos, atenuando o dinamismo e o domínio da escatologia
sobre a vida atual do cristão e da Igreja.
Deve ser dito que o fundamento
da escatologia está atrasado. Já não está fechado ou tenso entre a ressurreição
e a parusia, como nos primeiros tempos, mas entre a encarnação e a parusia. Daí
o tema das duas vindas de Cristo, a vinda na humildade da carne e a vinda final
na glória, tema que teve um grande desenvolvimento a partir do século II e foi
o argumento apologético por excelência contra os judeus, contra o Pagãos e
contra os gnósticos.
Ao fazê-lo, os autores
eclesiásticos não negam a escatologia bíblica, mas desenvolvem um aspecto
particular dela, tendência que já estava em curso no Novo Testamento e que se
manifesta na aplicação do título de filho do homem à obra terrena de Jesus, inicialmente
reservado para seu trabalho escatológico. Toda a história de Jesus constitui a
ação escatológica, a intervenção suprema e definitiva de Deus na história. A
encarnação ocorrida na plenitude dos tempos (Gal 4.4) inaugura ela mesma o
tempo do fim (Hb 1.2). Por isso Irineu considera Cristo o novo Adão a partir da
encarnação.
Um facto, talvez o mais
notável na teologia do século II, teve um papel decisivo nesta evolução: a valorização
plena e definitiva de João por autores eclesiásticos, sobretudo por
Irineu. Com isso, ao lado de Paulo e de sua escatologia dramática (R.
Bultmann), João ocupa seu lugar na teologia católica com sua escatologia do já
realizado inteiramente dominada pelo fato da encarnação.
A evolução envolveu toda uma
reorganização entre os vários setores da escatologia. Existem valores da
escatologia que estão atenuados ou mesmo atrofiados como o aspecto temporal, a
iminência do fim. Mesmo o sentimento de estranheza em relação ao mundo, o
sentimento de peregrinos e estrangeiros que caracterizou a atitude dos
primeiros dias da Igreja (cf. 1 Pd 2,11) sofre um declínio notável,
especialmente no auge da paz Constantiniana, enquanto o sentido de
responsabilidade dos cristãos para com este mundo que se alimenta da fé na
encarnação. As celebrações do Natal e da Epifania nascem neste clima neste
período.
Em outros aspectos, porém, a
escatologia se afina, por exemplo, com a superação da tentação milenarista que
a Igreja vem arrastando desde o limiar do Novo Testamento e se desenvolve, por
exemplo, com a nova visão do tempo e da história escatologicamente orientada
para a parusia e novamente à cristologia.
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