domingo, 28 de julho de 2024

Cristologia e escatologia: a chamada desescatologização do querigma

 




 

Raniero Cantalamessa, Do Kerigma ao Dogma. Estudos sobre a Cristologia dos Padres. Milão: Vita e Pensiero, 2006.

Resumo: Paolo Cugini

O que significa a tendência de mudar o foco da cristologia da ressurreição para a encarnação em relação ao Novo Testamento? A resposta está na palavra: deescatologização. Um exemplo bastante significativo é a transformação muito rápida do título Filho do homem que dá um título de majestade originalmente ligado à ação escatológica do messias após a sua morte e ressurreição, já com Inácio de Antióquia a significar, em oposição ao Filho de Deus, a humanidade de Cristo, seu nascimento de Maria.

Outro título em cujo uso patrístico é fácil encontrar o fenômeno da desescatologização é Novo Adão. É conhecido o conteúdo escatológico desta expressão de 1 Cor 15,45-49 e a sua ligação com a ressurreição, na qual Cristo se torna Espírito vivificante, primícias da nova humanidade. Pois bem, passando à teologia de Irineu, percebemos que o novo Adão não designa mais o Cristo escatológico, mas o Cristo encarnado. Ele é o segundo Adão, pois resume em si toda a humanidade, começando pelo próprio Adão. Mas ele recapitula a humanidade sobretudo no momento da sua encarnação. Da antítese paulina primeiro homem e segundo homem, o que mais se destaca é o elemento de paralelismo, ou seja, o homem. Tal como o título Filho do Homem, também o Novo Adão muitas vezes significa que Cristo é verdadeiro homem, da raça de Adão, nascido da Virgem Maria como o primeiro nasceu da terra virgem.

 Tertuliano, ligado neste ponto a Irineu pela polêmica comum anti-Marcionita, teoriza esta leitura da tipologia Adão-Cristo, escrevendo:

 “Que título é chamado Cristo pelo apóstolo Adão, se não teve uma humanidade de origem terrena, isto é, se não nasceu de Maria? Por que Cristo é chamado de segundo homem se não é homem como o primeiro? Se o Evangelho apresenta Cristo como filho do homem, Marcião não poderá mais negar que ele é homem e como homem Adão”.

Como essa evolução impacta as relações entre cristologia e escatologia? A escatologia, agora entendida cada vez mais tecnicamente como a ressurreição final da carne, passa da ressurreição de Cristo para se basear na encarnação. É a assunção da carne humana pelo Verbo que estabelece a certeza cristã na ressurreição da carne. Tertuliano escreve o tratado Sobre a Carne de Cristo como prefácio ao tratado Sobre a Ressurreição dos Mortos e na introdução diz:

 “aqueles que questionam a ressurreição consistentemente começam negando a carne de Cristo. Nós, portanto, defenderemos as esperanças da carne a partir do que derivam da razão para negá-la. Examinemos a substância da carne do Senhor, visto que a do Espírito está fora de questão. Sua demonstração será a garantia de nossa ressurreição”.

Para Tertuliano aqueles que negam a ressurreição da carne devem negar a assunção da carne pelo Verbo, isto é, a encarnação. Para Paulo, aqueles que negam a ressurreição dos mortos devem negar a ressurreição de Cristo. Para um, a ressurreição dos mortos é garantida pela fé na encarnação, para o outro pela fé na ressurreição: “se é anunciado que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns de vós dizer que não há ressurreição de o morto? " (1Cor 15,12). A ligação entre a ressurreição dos mortos e a ressurreição de Cristo repousa agora na identidade da carne com a qual Cristo ressuscitou com a carne humana, graças à encarnação real.

Em que sentido estes processos inovam no que diz respeito à escatologia bíblica? De duas maneiras.

a.        Em primeiro lugar, pela queda, ou pelo menos pela perda de interesse, do ponto de ancoragem da escatológica, ou seja, o Cristo ressuscitado e exaltado como espírito, o Cristo que deve retornar. Para a cristologia patrística, Cristo é muito mais aquele que veio, e não aquele que há de vir.

 

b. Em segundo lugar, porque esta concepção tende a acentuar excessivamente um conteúdo de escatologia, a ressurreição final dos mortos, atenuando o dinamismo e o domínio da escatologia sobre a vida atual do cristão e da Igreja.

Deve ser dito que o fundamento da escatologia está atrasado. Já não está fechado ou tenso entre a ressurreição e a parusia, como nos primeiros tempos, mas entre a encarnação e a parusia. Daí o tema das duas vindas de Cristo, a vinda na humildade da carne e a vinda final na glória, tema que teve um grande desenvolvimento a partir do século II e foi o argumento apologético por excelência contra os judeus, contra o Pagãos e contra os gnósticos.

Ao fazê-lo, os autores eclesiásticos não negam a escatologia bíblica, mas desenvolvem um aspecto particular dela, tendência que já estava em curso no Novo Testamento e que se manifesta na aplicação do título de filho do homem à obra terrena de Jesus, inicialmente reservado para seu trabalho escatológico. Toda a história de Jesus constitui a ação escatológica, a intervenção suprema e definitiva de Deus na história. A encarnação ocorrida na plenitude dos tempos (Gal 4.4) inaugura ela mesma o tempo do fim (Hb 1.2). Por isso Irineu considera Cristo o novo Adão a partir da encarnação.

Um facto, talvez o mais notável na teologia do século II, teve um papel decisivo nesta evolução: a valorização plena e definitiva de João por autores eclesiásticos, sobretudo por Irineu. Com isso, ao lado de Paulo e de sua escatologia dramática (R. Bultmann), João ocupa seu lugar na teologia católica com sua escatologia do já realizado inteiramente dominada pelo fato da encarnação.

A evolução envolveu toda uma reorganização entre os vários setores da escatologia. Existem valores da escatologia que estão atenuados ou mesmo atrofiados como o aspecto temporal, a iminência do fim. Mesmo o sentimento de estranheza em relação ao mundo, o sentimento de peregrinos e estrangeiros que caracterizou a atitude dos primeiros dias da Igreja (cf. 1 Pd 2,11) sofre um declínio notável, especialmente no auge da paz Constantiniana, enquanto o sentido de responsabilidade dos cristãos para com este mundo que se alimenta da fé na encarnação. As celebrações do Natal e da Epifania nascem neste clima neste período.

Em outros aspectos, porém, a escatologia se afina, por exemplo, com a superação da tentação milenarista que a Igreja vem arrastando desde o limiar do Novo Testamento e se desenvolve, por exemplo, com a nova visão do tempo e da história escatologicamente orientada para a parusia e novamente à cristologia.

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