domingo, 16 de junho de 2024

Aldo Natele Terrin Antropologia e Horizontes do Sagrado

 




Sintese: Paolo Cugini 

Primeira Parte

Antropologia e Abertura Simbólico-Religiosa

 

Em primeiro lugar, confirma-se a solidariedade existente entre problemas epistemológicos e a compreensão do homo religiosus. Nesse sentido, mostrei como a antropologia cultural, passando por várias fases históricas sujeitas a preconceitos racionalistas, cientificistas ou funcionalistas, escondeu o homem religioso ou por vezes o transformou num fantasma, mago, feiticeiro ou aproveitador, obliterando o sentido e a intencionalidade antes de quem age simbolicamente e simbolicamente exprime o seu mundo e exterioriza a sua alma.

A segunda tese deriva e está construída sobre os resultados da primeira: se uma sociedade e uma cultura devem ser respeitadas no seu mundo e na sua “particularidade” para que se chegue a apreender as finalidades intrínsecas, a antropologia interpretativa – livre de suspeitas relativas – será a antropologia com melhores condições de captar essas finalidades, com respeito ao mundo cultural enquanto “mundo da vida” de um povo, sabendo que toda interpretação de uma cultura se configura em última instância como “interpretação de segunda, terceira ou quarta ordem” e que uma fenomenologia de caráter epistemológico cria sempre as premissas mais profícuas no contexto da interpretação de culturas, enquanto em torno dela se procura reunir todo o horizonte de significado contextualmente, ampliando justamente aquele “diálogo com a humanidade” em que se comprovam mestres autores como C. Geertz e V. Turner. Esta tese fenomenológica não pode ser outra coisa, portanto, senão a verdadeira alma de que nasce a possibilidade de conjugar antropologia e experiência religiosa, sem ultrapassar limites e sem prevaricações de uma ou de outra disciplina, porque nessa visão esconde-se aquele horizonte “holístico” dos significados que respeita acima de tudo e principalmente o mundo da experiência.

Apropriando-me ainda de uma imagem de Geertz: Chartres é feita de pedra e de vidro, mas não é só pedra e vidro; é uma catedral, e não só uma catedral, mas uma catedral especial que é estudada do ponto de vista histórico e admirada do ponto de vista artístico. Para compreender o que ela significa é preciso conhecer algo além das propriedades genéricas da pedra e do vidro e algo mais do que é comum a todas as catedrais. É preciso compreender também os conceitos específicos das relações entre Deus, homem e arquitetura; conceitos que ela encarna.

O mesmo acontece e deve acontecer com a “cultura”: é preciso compreender conceitos particulares e ao mesmo tempo abrir-se a um horizonte global de significados, retornando hoje em última instância a uma certa concepção “holística” do mundo e das culturas. Só assim, talvez, possamos fazer de modo menos impróprio “antropologia cultural” e descobrir os significados e/ou também especificamente os significados “religiosos” [1]. (pág.72 e 73)

2. A Relação entre Culturas e o Diálogo entre Religiões

 

1. A função globalizante e crítica da cultura

 

A primeira atitude, portanto, que pretendo induzir é um senso de “perplexidade” com relação ao mundo cultural que criamos para nós e que acreditamos ser o modelo único, do qual, aliás, não podemos prescindir. (pág.76)

Mas também a nossa cultura, observada de longe e em contraluz, revela-se um misto de provincialismo, etnocentrismo, auto-suficiência e falta de reflexão, quando não beira os limites da arrogância e da prepotência. Não percebemos de fato o quanto somos tiranizados pela cultura de pertença, o quanto estamos nela imersos. Somos como peixes imersos na água e não percebemos, mancomunamo-nos com um mundo que acreditamos controlar livremente através da linguagem, através do coeficiente de liberdade que possuímos, através da força do nosso pensamento, da maturidade adquirida, mas na verdade trata-se de um mundo que nos submete a ponto de não passarmos de muitos pintainhos debaixo das asas da choca. Na realidade, se é tão difícil o mundo da cultura em antropologia, isso acontece porque é quase impossível “transcendê-lo”: estamos demasiadamente imersos nele, não tendo nenhuma possibilidade de evitá-lo. (pág.76 e 77)

 

2. A cultura deslocada e a globalização

 

2.1. Crise das representações

 

A cultura deslocada de que fala Featherstone não é senão a crise das representações de uma cultura, como a vivemos hoje no pós-modernismo. Esse deslocamento ou descentramento cultural é fruto da própria cultura, que se torna cada vez mais plural, flutuante, incoerente, sai do seu centro, é “ex-cêntrica”[2], já que o homem contemporâneo é cada vez menos capaz de “olhar-se no espelho”, pois quebra todos os espelhos antes mesmo que estes possam oferecer-lhe a sua imagem. (pág.79)

 

4. A coerência das culturas e o princípio de caridade de D. Davidson

 

Poder-se-iam resumir todas essas tentativas de compreender uma cultura diferente da própria com o princípio epistemológico de D. Davidson, o assim chamado princípio de caridade, frisando porém que não se trata de um princípio ético ou de pura benevolência, mas de caráter eminentemente epistemológico. Na concepção de Davidson, o princípio de caridade leva a assumir um ponto de vista “intrinsecamente intencional”. Em outras palavras, se tenho realmente intenção de compreender outra cultura, devo imergir nessa cultura e participar das suas crenças específicas. Para isso é preciso partir de uma idéia de crença que é fundamental e que é o equivalente da verdade como noção básica ou primitiva, lembrando que a interpretação radical inicia sem os significados, mas termina com uma compreensão significativa. Crer naquilo que o outro crê, compreender as “causas” das suas crenças, comportar-se como se comporta o outro parece ser a única saída para a compreensão: é definitivamente o único modo de aprender outro jogo lingüístico. Mesmo que esse procedimento possa tornar-se problemático por outros motivos, não sendo o último o fato de que ele corre o risco de substituir completamente a própria cultura pela do outro. (pág.84)

 

6. Autonomia da experiência religiosa e “dependência” das religiões das respectivas culturas

 

Portanto, se uma religião, no seu espaço institucional, é como uma cultura – ou segundo a perspectiva hoje mais aceita -, um sistema subcultural com uma rede de signos e uma fronteira, com textos e normas como uma cultura, então poderíamos aplicar os mesmos modelos de comportamento de uma mesma cultura.

A dificuldade de sair da própria religião será igual ao grau da sua organização e estruturação interna e será proporcional à continuidade dos espaços. Uma vez que possui uma doutrina e um credo claro e uma hierarquia de valores e de instituições consolidada, a relação entre IN e EX numa religião será rígida, e por isso – como nas culturas – será difícil, se não impossível, qualquer “identificação” com a crença do outro. O outro será considerado sempre “infiel”, não cristão, pagão. Ora, parece que as religiões, como as culturas, não podem mais manter aquela rigidez clássica que lhes permitia uma maior identidade. Em termos éticos, elas podem se tornar atrativos excepcionais da humanidade a partir de um lento mas profundo deslocamento dos limites, sem que seja afetado o núcleo das respectivas doutrinas. Nesse sentido, acontece que nos nossos dias as periferias são mais importantes que o centro. (pág.86)

 

Segunda Parte

Horizontes do Sagrado em Perspectiva Antropológica

 

1. Mediações para o Sagrado

Antropologia e história comparada das religiões

 

1. Estrutura do sagrado e encaminhamento da problemática

 

 O sagrado escapa a toda apreensão, a todo encapsulamento. Na concepção de R. Otto, que por primeiro analisou a idéia do sagrado com relação à experiência religiosa, o sagrado é o “senso do Nume” e nasce no sujeito como “Sentimento de criaturalidade” (Kreaturgefühl)[3]. Agora deve-se observar que tanto no momento de objetificação como no de subjetivização e apropriação (no primeiro caso, o “senso do Nume”; no segundo, o sentimento de criaturalidade), R. Otto evita qualquer envolvimento “estrutural”, falando justamente de “senso” e “sentimento”. É definitivamente essa indefinibilidade que possibilita ao sagrado passar da transcendência à imanência e vice-versa, movimentar-se do limite do antropológico para o não-limite do absoluto[4]. (pág.223)

 

2. A diferença e a separação entre sagrado e profano e a instituição das mediações religiosas

 

É fácil compreender que o verdadeiro eidos, a verdadeira essência da mediação sacramental – como de toda outra mediação religiosa – passa a ser entendida se conseguimos esclarecer a motivação profunda da separação e do diafragma que se cria nas religiões entre sagrado e profano; de fato, a mediação sacerdotal – e com ela as outras mediações – poderia ser compreendida em primeiro lugar como a tentativa e o meio de levar o profano ao âmbito do sagrado, ou vice-versa, de levar o sagrado ao nível mais baixo, isto é, ao profano, criando uma homologia entre dois planos. Não haveria necessidade de mediação sacerdotal se sagrado e profano coincidissem. (pág.225 e 226)

 

2.1. As instâncias antropológicas que apontam e remetem à distinção entre sagrado e profano

 

Momentos quase-originários do espelhar-se do sagrado e do seu distinguir-se do profano manifestam-se assim: o assombro diante dos fenômenos da natureza[5], a crença numa forma estranha e poderosa[6], práticas simbólicas com relação à obtenção de alguma coisa intensamente desejada[7], a adoração e o sacrifício do animal totêmico[8], a diferença primordial entre puro e impuro que remonta a noções mais primitivas de “mancha”, “sangue”, “sujeira” (categoria por sua vez ligada ao tabu)[9], a experiência de viver o momento exemplar das origens numa aistoricidade sagrada[10].(pág.227 e 228)

Agora, se dessa relação eu fosse forçado a privilegiar algum elemento em condições de conter in toto ou em parte os outros, eu não hesitaria em falar dos sentimentos do “medo”, do “poder” e do “desejo”. Quer parecer-me que essas são as três coordenadas propedêuticas ao religioso e condensados daquele sagrado em que a humanidade de todos os tempos se encontra.

Entendo o medo não somente como um sentimento “que nos afasta de”, que põe numa situação de desvantagem, mas também como um sentimento quase positivo à R. Otto: como religiöse Scheu, como um pôr-se de joelhos do mistério incognoscível que provoca que provoca “arrepios”[11]. O medo tem relação com o assombro e o assombro se transforma numa afirmação do “mistério” (mysterium-tremendum).

Creio que o poder sobrenatural que o primitivo descobre no mundo – e que por certos aspectos não é diferente do medo-assombro – seja o momento mais determinante da nossa experiência do sagrado na medida em que ele se distingue do profano. O profano é o que é “normal”, “cotidiano”, que não causa sobressaltos, não provoca situações inexplicáveis; o sagrado, ao contrário, reveste-se de “potência”, “força”, “mana”, um poder que quebra os esquemas habituais e deixa entrever o religioso; um poder que, quanto mais inexplicável é, tanto mais e prepotentemente se identifica com as “pegadas do sagrado”. O chefe tribal, por exemplo, é poderoso, e por isso gera e é portador de tabu. O poder – esta categoria posta como fundamento de toda a análise fenomenológica do sagrado de Van der Leeuw – será essencial para o próprio rito e para o sentido profundo da mediação sacerdotal[12]

Por fim, o desejo. E aqui sou levado a crer que esta categoria está antropologicamente mais arraigada e que, na sua culminância, é a expressão da própria “necessidade de salvação”, onde exatamente “salvação” denota a necessidade de “recuperar a própria totalidade” segundo as etimologias de holon, salvus, Heil, whole, swa-astha[13]. O desejo portanto não é somente um desejo limitado, particular, mas é entendido como um conjunto de impulsos em direção à própria “completude” estendendo-se numa escala muito ampla de “preenchimentos”, que vão da necessidade de resolver pequenos problemas pessoais ou coletivos e comunitários até a necessidade em geral urgente e dramática de enfrentar situações “desastrosas”, apocalípticas, em que uma pessoa pode ver morrer todas as sua possibilidades e esperanças, desespera-se, não consegue mais controlar a situação[14]. Esta breve descrição fenomenológica da “necessidade-desejo” poderia explicar o excepcional alcance que ela tem com relação à compreensão do sagrado. O sagrado neste caso é o momento da crise, da necessidade urgente, do dilema, do mistério da vida que poderia tomar uma direção que não é a desejada e em que vemos abrir-se diante de nós o precipício e o abismo da nossa impotência[15].

Uma estreita ligação do desejo-necessidade se explica com relação ao passado e ao futuro com aquela palavra histórico-religiosa semanticamente indefinível e posta a meio caminho entre a experiência religiosa e o seu aspecto profano. Refiro-me ao fatum, à moira, ao destino[16]. (pág.229 e 230)

 

2.2. As variáveis segundo as quais se modificam as instâncias antropológicas que distinguem o sagrado do profano

 

Para conseguir enxergar também onde parece haver apenas sombras, tenho a impressão de vislumbrar três variáveis fundamentais referentes à relação sagrado/profano capazes por sua vez de influenciar diretamente as mediações sacerdotais e religiosas: a diferente concepção do divino, a dimensão comunitária e social e o modo de vida quase todo moderno induzido pela ciência[17]. (pág.230 e 231)

 

Conclusão

 

Nestas últimas considerações, tendo aberto mais uma vez o discurso sobre a concepção de Deus e portanto sobre o valor da experiência religiosa comunitária em todo o seu leque, com os numerosos problemas afins, e tudo presente, por outro lado, a tese inicial segundo a qual a concepção do sagrado não é indiferente à experiência do sagrado, eu gostaria de concluir com uma espécie de redução ad unum de todas as temáticas que emergiram, em que possam encontrar espaço os tipos que aqui foram aos poucos postos em evidência. Fazei isso em uma tese final que se apóia em algumas considerações de Gordon Tylor, Pryluski e Turner.

Todas as religiões devem a sua mediação sacerdotal – mais ou menos forte a ponto de institucionalizá-la juridicamente ou de fazê-la desaparecer como algo supérfluo e inútil – conforme essas religiões se identifiquem como “religiões do pai” ou então como “religiões da mãe”.

Sei evidentemente que essa é uma tese redutiva, mas creio que pode ser útil para uma visão tipológica.

Com Gordon Tylor, entendo por religião do pai a que tem as seguintes conotações: uma imagem de Deus masculina, uma ética rígida, um relevo às diferenças entre os dois sexos, um forte senso de autoridade, o medo da espontaneidade, uma iconofobia fundamental e uma estrutura social básica muito acentuada; por religião da mãe entendo a religião que tem uma concepção de Deus mais de tipo materno, com uma conseqüente atitude menos rígida no que se refere à moral, uma redução da diferença entre os sexos, uma maior liberdade, uma avaliação positiva e uma valorização do cosmo e da natureza; entendo além disso uma religião que tem menos mandamentos e um menor número de relações de autoridade. Essa religião incluiria também – segundo Turner – uma iconofilia profunda em que assume importância o significante e não apenas o significado[18].

Como se pode perceber, a tipologia se refere fundamentalmente à mesma relação já vista em ação nas religiões, na distinção entre “religiões da diferença” (que corresponderiam à religião do pai) e “religiões da identidade” (que corresponderiam à religião da mãe).

Ora, este esquema poderia traduzir muito bem todas as variáveis no seio das mediações que ocorrem nas religiões, considerando de modo especial a dimensão social, que está sempre em condições de transformar os termos da própria religião. Em outras palavras, penso que muitas religiões nasceram como “religiões da mãe” ou religiões “da identidade” sob a força do divino que as transportava e as guiava, mas depois, com o passar dos decênios e dos séculos, essas mesmas religiões, por razões histórico-políticas, se transformaram em religiões da “diferença”, transformando a própria visão do divino nelas presente e invocando então uma forte mediação institucional.

Quero concluir estas reflexões referindo-me ao cristianismo – naturalmente ainda apenas do ponto de vista fenomenológico-comparativo e não teológico.

O cristianismo parece ter nascido como uma grande religião da identidade (ou da mãe) sob o impulso carismático e antiformalista de Cristo; parece porém que, no curso da história, ele aos poucos se traduziu numa religião que refletia mais a “diferença”, com o conseqüente enrijecimento das estruturas e dos esquemas religiosos. E então um “sacerdócio especial” sobreveio para servir de trait d’union entre sagrado e profano.

Podem-se fazer algumas considerações. Na minha opinião, sob o mesmo estímulo cultural moderno, sente-se hoje a necessidade de uma volta à religião da mãe, da identidade, em que o sacerdócio comum se torne um pressuposto lógico dessa visão de fé. Nisso eu estaria de acordo com os teólogos, que falam hoje de um “sacerdócio comum” dos fiéis. Mas julgo também ser necessário tomar uma certa distância da invocação desse sacerdócio comum e de uma visão cristã baseada simplesmente e sem ulteriores reflexões na “religião da mãe”.

Do ponto de vista fenomenologia e histórico-comparativo, devo observar que a falta de mediação e de aproximação até a homologação de sagrado e profano vive sempre de uma forte carga carismática. Em outras palavras, a religião da mãe com o seu esquema da identidade não pode substituir a do pai somente porque se compreende que se trata de uma operação que resolve o maior número de problemas ou porque se compreende que nas origens era assim.

O problema último é o da experiência religiosa que se vive hic et nunc e na esfera cristã, o problema é o da fé atualmente.

O sagrado está sempre em círculo com a experiência do sagrado e as várias mediações (sacerdotal, xamânica, profética, real) estão sempre vinculadas à respectiva experiência religiosa que se leva em consideração. Portanto, toda a perspectiva aqui apresentada pode fazer-nos compreender um caminho percorrido, mas se trata de um caminho que não se torna hoje prescritivo de uma mudança, se não se faz acompanhar de uma mudança das condições que aquele mesmo caminho indicou. Definitivamente, as modalidades do dar-se da consciência religiosa são em última instância o lugar em que a própria consciência se reconhece. (págs.246 a 249)

 

2. Monoteísmo, Politeísmo, Panenteísmo

As formas de crença no divino na história comparada das religiões

 

4.2. O monoteísmo “aberto” e experiencial no plano histórico-religioso

 

Como conclusão dessas breves notas sobre as religiões monoteístas, resta-nos apenas fazer um apelo ao sentido mesmo da experiência religiosa. Ela constitui uma estrutura de significado não de caráter especulativo, mas de caráter projetivo e imaginativo não de caráter especulativo, mas de caráter projetivo e imaginativo em que Deus não pode somente ser pensado, mas deve também ser “experienciado”, e a experiência tem necessidade de imagens, de símbolos, de mediações. Vem à mente o que escreveu sabiamente Heidegger em Identidade e Diferença: “Não podemos pôr-nos de joelhos diante da Causa sui. Diante desse Deus o homem não pode rezar nem oferecer sacrifícios”[19]. Portanto, todo monoteísmo se movimenta num contexto mais amplo em que as imagens de Deus podem ultrapassar os limites em direção a formas diferentes de visão de Deus e por sua vez aproximar-se daquilo a que irrefletidamente se deu o nome de “politeísmo”. (pág.274)

 

Conclusão

 

A experiência religiosa é um primum irredutível, imenso, significativo per se, que tem necessidade de ser tratado mais além das nossas especulações e teorizações para revelar a sua força de simbolização e a sua capacidade de transportar todos os sentimentos do humano a uma zona franca de liberdade onde eles se sublimam à luz de algo ou de alguém que se faz fiador do nosso viver no mundo em sentido incondicionado e total. E isto constitui um critério último de sinceridade e de autenticação da consciência religiosa em si. (pág.280)

 

3. Os Ritos “Se Falam”

Para uma antropologia histórico-comparativa da ritualidade

 

2. Rito/sacramento. Para uma delimitação dos termos e uma primeira ampliação de horizontes

 

Se o sacramento é um rito, é também alguma coisa mais. A qualificação que assume com relação ao rito fala em nome de uma maior força performativa, de uma capacidade de transformar o crente, enquanto possui uma força todo particular de realizar, através dos signos, um novo modo de ser. Prefiro evitar a expressão de Isambert, “eficácia simbólica”[20], porque o simbólico, pelos motivos já enunciados, poderia não ser de pertinência do rito/sacramento. Parece-me porém que não se pode excluir uma capacidade performativa induzida por verbos, por gestos e por expressões que “fazem alguma coisa com as palavras” a que acompanha o consenso comunitário que permite criar as condições de “felicidade” do próprio performativo (S.J. Tambiah, etc.) no âmbito de um forte reconhecimento social. (pág.290)

 

3. Ritos/sacramentos em nível etnográfico

O rito é uma performance, consiste num conjunto de códigos que se unem a todos os níveis para formar uma Gestalt, uma vivência particular organizada em nível comunitário. Desse ponto de vista, um rito é inapreensível; é vivido, é experimentado e participado, não é narrado; é um “hipertexto”, e não somente um texto linear capaz de ser transcrito relatado. A pobreza das descrições dos rituais em todos os âmbitos, etnográficos e não, mostrará imediatamente o gap existente entre evento ritual e momento descritivo. (pág.290 e 291)

 

3.1. Ritos/sacramentos de nascimento e de iniciação

 

Os ritos de iniciação são verdadeiros “sacramentos prolongados no tempo” (uma semana ou mais) e constituem um aspecto sociocultural e religioso entre os mais importantes do mundo dos povos em termos etnográficos. Tudo gira em torno da passagem de um membro do clã da infância à idade adulta para que participe de todos os direitos e deveres que lhe competem como homem já maduro. Do nosso ponto de vista ocidental e cristão, o problema mais relevante está em estabelecer se esses ritos/sacramentos têm também relevância religiosa específica. A relevância social não está em discussão. Tampouco está em discussão o processo ritual, que contempla diferentemente ritos de submissão, de afastamento, de mutilação (entre os quais freqüentemente também o rito da circuncisão, etc.), os quais enfim, depois de um período de provação e de separação, consideram por sua vez a reinserção social e a imissão com plenos direitos de fazer parte dos direitos/deveres de todo membro adulto do clã. Ora, em todo este procedimento ritual há uma dialética entre vida e morte que assume sem dúvida significados religiosos, como entre outras coisas pôs bem em evidência M. Eliade. (pág.291 e 292)

 

5. A Tolerância nas Religiões do Passado e do Presente

 

3. O sagrado não é monopolizável

 

Segundo Blanquart[21], as religiões constituídas se apresentam como construções “fechadas” em três planos muito distantes entre si. No nível inferior está o simbólico que dá sentido. No nível superior, os aparatos e as instituições. Entre ambos interpõem-se as racionalizações, as dogmáticas e as teologias.

Para reavaliar o sentido da tolerância e da liberdade religiosa é preciso destacar o fato de que o pensamento e a vida religiosa apóiam-se sobre um pedestal simbólico e que uma religião vive fundamentalmente porque e enquanto se reporta ao simbólico. Em outras palavras, poderíamos dizer que é preciso reporta-se constantemente ao dado e à superação do dado, ao sentido e ao mistério do sentido, definitivamente à idéia do sagrado do dado, ao sentido e ao mistério do sentido, definitivamente à idéia do sagrado que serve de fundamento ao mundo das religiões para encontrar o verdadeiro ponto de partida da tolerância e do diálogo entre as religiões.

O pensamento religioso surge como pensamento do divino, e o divino como “experiência do Numinoso” não é monopolizável. Não se pode fazer um discurso sobre Deus sem que esse discurso seja precedido pelo “temor e tremor diante de Deus”. A impossibilidade de dizer tudo sobre Deus é co-extensiva ao mundo do sagrado. O discurso simbólico é por essência um discurso dos índices, dos reenvios, das mediações e das esperas. Ele não pode pretender fechar-se como que numa prisão e não pode pretender ser completo ou realizado. Ao bloquear a experiência do sagrado, o discurso simbólico bloqueia também a si mesmo, fecha-se à função religiosa em si.

O que é realmente o sagrado? Qual é a sua força intrínseca? O sagrado é a experiência do divino que fazemos neste mundo. Uma experiência difícil, ambígua, feita de uma mistura de imanência e de alguma pretensão de transcendência, de impulsos religiosos e de restrições éticas. O sagrado vive e convive com uma certa ambigüidade de expressão e de reconhecimento na nossa vida e isso se projeta como um jogo de luzes e de sombras também na realidade que nos envolve. Não temos condições de apanhá-lo e todavia sentimos que somos apanhados, somos incapazes de exprimi-lo e no entanto lhe sentimos a força intrínseca e o valor, não podemos reconhecê-lo definitivamente a apesar disso aceitamos os seus sinais e manifestações. O sagrado é a sua própria escatologia, como dizia P. Ricoeur, e não pode ser submetido a critérios humanos, à razão ou a algo como o bom senso.

Justamente por essa característica, o sagrado continua sendo o que não pode ser possuído, o que não é meu, nem teu, nem nosso: continua o outro, continua o que deve ainda ser compreendido e que, se pode ser experimentado em algum contexto ou em algum momento privilegiado, mantém-se sempre inacessível.

Se o sagrado – segundo R. Otto[22] - se define a partir do “sentimento criatural”, do sentir-se “pó e cinzas” diante d’Aquele que é tudo, se ao sagrado acompanham os momentos do tremendum e do fascinans, é preciso manter a verdade do sagrado nesse quadro experiencial e ter diante dele uma atitude de “respeito reverencial”, de Ehrfurcht, porque, como fez Moisés, é preciso sempre tirar o calçado antes de aproximar-se da sarça ardente. Mesmo se o nosso tempo, definido como o tempo da “dessacralização”, costuma profanar o sagrado, o homem religioso mantém inalterada a sua atitude porque sabe que o mistério de Deus se relaciona com o mistério do homem e um outro são insondáveis. Por isso sabe que vive uma experiência que não é comunicável e principalmente percebe que se trate de uma experiência que não é definível de uma vez por todas. É uma realidade que se subtrai a toda tentativa de posse. Nesse sentido, o sagrado não pode ser uma carta vitoriosa no mundo sociocultural do mesmo modo que não pode pertencer como propriedade aos “gestores” do sagrado.

Por isso, quando as religiões fazem de um discurso de determinação dos limites e quando estabelecem regras de pertença social e religiosa ditadas por doutrinas, realizam um trabalho de “domesticação” do sagrado que implica certo perigo. Postas entre o mundo futuro e o mundo presente estruturado de maneira culturalmente orgânica, as religiões devem conhecer a sua pertença extracultural e supermundana e devem constantemente remeter os fiéis a essa visão eminentemente “tolerante”, porque a essência mesma da religião exige isso. A tolerância é nesse sentido um ato de clarividência que uma religião deve ter como patrimônio e como verdadeira reserva escatológica. (págs.340 a 342)

 

4. As religiões são consangüíneas e dependem umas das outras, pois a experiência religiosa é universal

 

Se nós, por exemplo, seguindo Van der Leeuw[23] e F. Heiler[24], distinguimos entre o mundo objetivo da religião que está sempre ligado também a fatos culturais particulares, e o mundo da experiência religiosa, chegamos a resultados que nos revelam a proximidade entre as religiões. A experiência religiosa é vista como o eco ou a ressonância que a profissão de fé tem naquele que crê. Ora, não há dúvida de que essa ressonância interior tem pontos em comum, soa como uma música que todos os adeptos de uma fé religiosa têm condições de reconhecer. Sem cair num “pseudo-religionismo” de mau gosto, é preciso reconhecer que, quando falamos de Deus, da oração, das obras de caridade, da confiança, da esperança e do amor, estamos diante de valores religiosos que são compartilhados pelo mundo das religiões. São dominant drives que não são diferentes de uma religião para outra, a não ser no componente cultural e secundário que as qualifica. A inspiração essencial é a mesma, idênticos o fervor, o impulso, a idéia religiosa como totalidade que inspira, por exemplo, uma vida consagrada.

Existe portanto uma dependência mútua entre as religiões, existe uma “consangüinidade” que é reconhecida porque a experiência religiosa não pode ser “alótria”, estranha, sufragânea de outro; ou é ela mesma na sua plenitude e portanto em relação a um referente metempírico ou não é realmente experiência religiosa. Precisamos, portanto, ser menos céticos quando queremos medir a experiência religiosa dos aspectos de uma religião, porque essa experiência é sempre um ponto excepcional de encontro entre a experiência humana autêntica e o desejo de encontrar o divino, de fazer experiência do divino, sem equívocos, sem estratégias ocultas e sem empregos de pseudo-experiências secundárias. (pág.343 e 344)

 

6. O Sacrifício: Alimentar Deus, Comer Deus

A refeição sagrada na história comparada das religiões

 

1. Alimento é vida e vida é alimento

    Sacralização da função alimentar

 

Comer significa viver e a vida é um tema simbólico-religioso por excelência. Por diferentes que sejam as religiões, um dos motivos nelas recorrentes é o “desejo de viver” ligado ao valor insubstituível do alimento, tanto que se poderia afirmar que a relação alimento-vida tem um caráter coercivo e imemorial, que do terreno biológico e institucional passou depois a fazer parte dos códigos das religiões. (pág.356)

Essa primeira sacralização do alimento com relação à sua função vital associa-se nos Vedas a uma segunda: o alimento tem uma função, é expressão, de um lado, de comunidade entre os homens e, de outro, entre homens e deuses. (pág.357)

“Quem come sozinho é pecador”, diz a passagem dos Vedas, e “os que preparam o alimento só para sim mesmos são pecadores: eles comem pecados”, sublinha o Bhagavad-gita. (pág.357)

 

2. O alimento e o rito. A refeição ritual como linha divisória entre natureza e cultura

 

Projetando num quadro de referência mais amplo, o fogo parece o operador e o símbolo dessa passagem do mito ao rito. Preparar os alimentos com fogo significa realizar uma atividade de mediação entre céu e terra, vida e morte, natureza e sociedade: o fogo realmente salva o alimento da putrefação e se movimenta de baixo para o alto, dos homens para os deuses. “Todo o universo, o consciente ou inconsciente, não é senão fogo e oblação”, diz o Mahabharata. O fogo é o símbolo universal do sacrifício, da destruição ao estado puro. Ele representa uma espécie de limite entre dois estados de ser: o da criatura e o dos deuses que, não por acaso, estão além do fogo e se alimentam do fundo das oblações. (pág.358 e 359)

 

3. O alimento como oferenda de alimentação aos deuses

 

No plano histórico-religioso, o primeiro grande deslocamento do pensamento sacrificial e da refeição sagrada acontece quando a universalidade do alimento e a sua dinâmica cósmica e cíclica se concretizava numa função fundamental: a de manter os deuses vivos. Trata-se de um deslocamento porque é um primeiro modo de “justificar” o sacrifício, de precisar-lhe o significado com um discurso que elabora o mito originário de fora. (pág.359)

O alimento como oferenda ao deus para alimentá-lo é uma forma muito antiga de aproximar-se da divindade. É preciso alimentar a divindade como o sacrifício para obter favores. Ninguém pode se apresentar a Deus de mãos vazias. Quando se vai a quem é poderoso e soberano, é preciso oferecer alguma coisa de si mesmo para ser recebido no seu mundo. (pág.359)

Na diacronia histótico-religiosa, a questão mais importante se torna, portanto, a de distinguir adequadamente entre a refeição sacrificial para sustentar os deuses e a simples oferenda de alimento. Limito-me a frisar que, a partir de uma primeira e inicial conotação do alimento como “alimento para os deuses”, observamos transferências de significado, metaforizações crescentes tanto com relação às vítimas a sacrificar quanto com relação aos propósitos. Ou seja, a oferenda sacrificial se “espiritualiza” e se torna “oferenda de agradecimento” à divindade.

O sacrifício das primícias destaca este aspecto. O sacrifício expiatório, de importância crucial no mundo grego e judaico, não pode porém ser considerado somente uma variável da oferenda à divindade e em especial do alimento oferecido para sustento dos deuses. Por sua peculiaridade, ele permanece à margem dos parâmetros que seguimos até aqui na abordagem da refeição sagrada. (pág.362)

 

4. A refeição como rito de comunhão com o deus

 

O segundo grande deslocamento do mito primigênio para um modo diferente de compreender o sacrifício parece ser aquele em que do “alimento para os deuses” se passa à “refeição como comunicação com o deus”. (pág.363)

É preciso todavia distinguir adequadamente entre o ato de comer diante de deus e junto ao deus, que se poderia chamar de “convívio”, e o ato de comer o próprio deus, onde o momento de comunhão é elevado a nível de identificação mística e misteriosa. Para os judeus parece importante principalmente a primeira forma de comunhão, sendo desconhecida a segunda, que todavia seria paradigmática no mundo grego e em especial no culto a Dionísio.

Isso não exclui que o momento comunitário se revista de uma importância fundamental também no mundo grego, onde a própria polis se constitui como ato de comunhão – e ao mesmo tempo de separação – com os deuses. (pág.363)

Comer na companhia do deus significa na verdade união íntima, indissolúvel entre todos os comensais, significa um ato de comunhão irreversível entre todos os que estão sentados à mesma mesa e comem a refeição sagrada em união com o deus. Sabe-se que também entre os judeus existiam essas formas de comunhão entre grupos de fiéis que se sentavam à mesma mesa na presença de deus. A consumação do cordeiro pascal, por exemplo, representa uma comensalidade com o deus, com o hóspede divino, não contendo nenhum sinal de participação mística na própria divindade. (pág.364)

Infelizmente a nossa secularização nos torna obscura a dimensão salvífica e comunitária do alimento, não consegue construir uma teologia do comer e do beber. E no entanto é a vida nas suas funções originárias que aqui se manifesta, e portanto é uma dessacralização da própria vida que introduzimos no nosso modo de considerar o alimento. (pág.365)

 

5. Comer deus. A refeição como identificação mística com o deus

 

A expressão “comer os deuses”, cujo significado cruel é de origem mexicana, é tomada ao pé da letra: o fiel crê verdadeiramente que come deus. Naturalmente, o deus se encarna em substitutos: um seu humano, um animal, vegetais. Tão grande é a extensão e a difusão desse tipo de refeição sagrada quando difícil é ter clareza sobre ela e conhecer a simbologia. (pág.365)

 

Conclusão

 

O antigo provérbio mors tua vita meã adquire aqui novamente o seu significado num grande contexto de “metabolismo cósmico” em que o alimento é necessário e a morte inevitável. Nesses elementos biológicos do viver estão talvez ocultas em nível ancestral as raízes mesmas do pensar religiosamente, mas desta “primeira natureza” nos restam apenas vestígios, que a “cultura” – se oposto – hoje não consegue mais reconhecer e, muito pelo contrário, se empenha em suprir. A religião, neste caso, com a sua visão primitiva ancorada no seu imemorial perfil biológico, parece não querer ceder inteiramente à cultura, ligada inevitavelmente a produtos efêmeros do tempo. (pág.369)

 

7. A Peregrinação como Fenômeno Religioso

 

1. Quem poderia ser tão insano a ponto de ignorar a Deus quando Ele está apenas alguns passos à frente? (W. Sax)

 

Podemos perguntar: por que está sempre presente no mundo das religiões aquele fenômeno estranho e fascinante, aventuroso e perturbador, que é a assim chamada peregrinação? Por que as pessoas se põem a percorrer um caminho, se dirigem a outro lugar? Se nos inserimos na dialética que eu quis expor logo em primeiro lugar como critério interpretativo da experiência religiosa, podemos compreender alguma coisa do mundo da peregrinação.

Deus está um pouco mais adiante, parecem sugerir as religiões. Se o espaço é uma das nossas mais originárias formas de percepção de nós mesmos e do mundo que nos circunda, se somos continuamente levados a traduzir a nossa própria linguagem em termos espaciais, pois o espaço faz parte do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico como faz parte da nossa antropologia epistemológica[25], se realmente é um primum inalterável em toda nossa experiência e constitui uma “experiência primária”, é evidente que essa dimensão originária que nos permite habitar o mundo e exprimir a nós mesmos orienta também as nossas experiências religiosas. (pág.370 e 371)

Deus, o sagrado é o que está em outro lugar, distante, é outro e o alhures, é aquela realidade que, se num nível de linguagem religiosa só pode ser expressa por meio de metáfora, símbolos, alegorias – lembremos P. Tillich, que afirma que “Deus é sempre uma alegoria para Deus” -, em nível espacial tem o seu lugar no que está distante, dificilmente acessível, é o sagrado que tem o seu recinto que não pode ser violado, é o Deus que habita no alto da montanha, é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó que convida Moisés a tirar as sandálias: “Moisés, tire as sandálias dos pés!”. (pág.371)

Mas, se a distância é símbolo da transcendência, essa distância e inacessibilidade podem de algum modo ser superadas. O símbolo é o que diz, mas na pobreza da linguagem: diz e não diz, diz e reenvia. Alude, indica. Não será possível tirar o véu e agir de modo que esse reenvio se torne uma presença? Se a ausência não é total, por que não pode se tornar uma presença plena, concreta, tangível? Aqui está a convicção íntima do peregrino e do crente. (pág.371 e 372)

 

2. Sem um pólo no mundo, a polaridade da alma não poderia manter-se (Klages)

 

O homem religioso é um homem irremediavelmente doente de uma grande idéia que o assuste. Essa idéia é que existe um centro, existe um pólo, um ponto de referência de toda a realidade. O homem religioso é portanto aquele que é constantemente levado para dentro de si à procura de um pólo que seja o verdadeiro referente em torno do qual deve dispor-se ordenadamente toda a realidade. É o homem que tem sede de um centro, como tem necessidade de uma casa. Que esse centro seja o axis mundi de que fala Eliade e de que dão testemunho todas as religiões e/ou seja um lugar de nascimento das grandes religiões, como Benares, Jerusalém ou Roma, é irrelevante. A experiência religiosa é uma experiência de organização da realidade com base em um centro. Também aqui a experiência interior é o reflexo, é a interface daquela exterior numa unidade às vezes inconfessada, inconsciente, mas profunda e real.

A experiência religiosa organiza o real, uma vez que confere sentido, batiza toda a realidade, dando significado a tudo o que existe. Van Der Leeuw afirmava que o sentido religioso é o maior sentido que pode existir porque é constituído da experiência de que todo o mundo tem um sentido amplo global, totalizante. Mas toda ordem e todo reconhecimento de um sentido amplo global, totalizante. Mas toda ordem e todo reconhecimento de um sentido deve partir de um centro, de uma polaridade incontroversa. Trata-se de reconhecer aqui o pólo da alma, é a polaridade para a qual tende a mente religiosa que institui o significado do todo. (pág.372 e 373)

Nesse sentido, a peregrinação é também uma forma de criar experiência de convergências, de condensação de significados, e no seu âmago – tem também uma forte caracterização “iconófila”: ama as imagens do divino, ou, antes, constrói imagens do divino, mesmo que depois as reconheça como simulacros no caminho para a realização suprema. (pág.374)

3. Se o misticismo é uma peregrinação interior, a peregrinação é um misticismo exteriorizado (V. e E. Turner)

 

Esses peregrinos parecem sugerir-nos que é necessário compreender Deus de modo diferente. Ele não é um objeto deste mundo, está distante e próximo, está nos céus como está dentro de nós. Pôr-se a caminho, procurá-lo em outro lugar, sofrer na busca é o melhor modo de sentir a sua falta e de ter d’Ele uma imensa e insaciável nostalgia. (pág.376)

 

8. Passar a Porta

Símbolo cultural e espacial de mudança e de transformação na história comparada das religiões

 

1. Espaço e rito: um binômio originário da relação microcosmo/macrocosmo

 

O rito e o culto são assim um espelho desse experiencial originário que transforma o caos em ordem e que, somando-se a outras experiências semelhantes, cria um primeiro e importante modo de ser no mundo. (pág.379)

O espaço é sagrado então através da sua própria ordem e organização e a criação é sagrada porque é o primeiro ato de organização e de estruturação do universo num todo ordenado e harmônico em que as partes convergem no todo e o todo integra as partes individuais. Se quiséssemos, encontraríamos nesse ponto os grandes mitos e os grandes esquemas religiosos tradicionais que por sua vez parecem clarificar a relação criação/rito. (pág.380)

 

3. A “porta” e o “limiar” preservam o sagrado da profanidade do profano

 

A porta, portanto, representa o lugar onde acontece a passagem de um estado a outro, a dobradiça entre dois mundos, entre o sagrado e o profano, e a porta protege o sagrado, esconde o mistério. Participa desse modo da própria ambigüidade do sagrado: tem o seu momento “fascinante”, mas comporta também um tremendum. (pág.384)

No plano mais histórico-religioso e mitológico, pois tem uma tarefa “protetora” e distintiva, poder-se-ia observar que a porta tem necessidade de auxílios “apotropaicos”. Por isso, ela precisa ser rodeada de estátuas, infissi, sinais, guardiães mais ou menos ferozes. Se a porta delimita a fronteira, o confim, o limite, então essa sua função dever ser “marcada”. (pág.384)

 

4. “Passar a porta”, “cruzar o limiar”.

      A dinâmica do rito de passagem

 

Em termos dinâmicos, a porta representa a passagem e gera portanto o momento da separação, da ruptura, da morte, necessário para introduzir num outro estado de vida e de realidade. Os grandes temas das religiões no plano ritual de novo se condensam e tomam a forma deste símbolo elementar de que fazemos uma experiência “primária”.

A iniciação, a morte iniciática, o catecumenato, a fase de marginalidade e outros temas paralelos vieram aos poços assinalando o momento mais especifico de muitos ritos a partir da passagem do “limiar”, da “porta”, a partir da separação que implica o estar “aquém” ou o “passar além” e aceitar o risco. (pág.385)

 

5. Considerações intermediárias. “Além da porta”: o sagrado como incógnito e o futuro como risco

 

Mas que significado pode assumir hoje essa ritualidade de separação, esse momento de pausa e de reavaliação? O símbolo da porta, da marginalidade, da prova iniciática ainda tem significado?

Em quase todas as culturas, ele representa a passagem e o aspecto morte/vida[26] que faz parte de toda passagem. (pág.387)

Tanto no aspecto do conteúdo quanto no da etimologia, o sagrado deve conduzir também ao que é “desconhecido” e que portanto é inacessível e causa medo na história das religiões. O ágios – como observam muitos antropólogos e historiadores – é também de certo modo o agnos, o incógnito, o que não se conhece e que se teme: é a preocupação com o que está “além da porta”. O sagrado tem sempre também um espaço não esclarecido, é um lugar ainda não explorado. O sagrado se constrói também através da “porta fechada”, através do véu que impede a visão, é o lugar da inacessibilidade, comporta o veto de se aproximar da “sarça ardente”[27]. Não é por acaso que a etimologia do termo sagrado me hebraico denota separação; o sagrado na verdade é o qadosh, é o símbolo da porta “fechada”, a porta a que não há acesso. “O homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo”, diz a Bíblia.

As dimensões espaciais são metáforas para as temporais e vice-versa. Por isso, não pode faltar aqui uma reflexão que olha para o que está, “além da porta” como para aquele futuro incerto, precário, indecifrável, para o qual todos estamos nos encaminhando com certa inquietude. (pág.388)

 

6. Reconhecer o limite, passar a porta, fazer uma peregrinação de esperança

 

6.1 O sagrado dessacralizado

 

O símbolo da porta e o significado dos “ritos de passagem” vêem lembrar-nos que é necessário criar limites no espaço para dar ordem ao mundo, mas é igualmente necessário “reconhecer” os limites do humano para saber onde está o centro e onde está a periferia. O homem de hoje, é verdade, não é mais movido pela concepção nietzschiana da “vontade de potência” e do “super-homem”, mas nutre ainda, secretamente, uma visão “relativista” que não lhe permite mais invocar um centro, um axis mundi de caráter religioso e, respectivamente, uma periferia. E também essa visão relativizadora empobrece o sagrado até exauri-lo de todo conteúdo. (pág.390)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Com essa conclusão, venho mais uma vez enfatizar a visão holística e interpretativa que tende a prevalecer na concepção cultural hodierna. Basta citar a última página de Voget, onde ela afirma: “Aceita-se cada vez mais o fato de que não se pode reduzir a realidade humana a uma dicotomia, mas que se deve tratá-la como um processo unitário... O novo interesse pelo homem como ser irracional-racional permite à antropologia perseguir o seu objetivo científico inerente às relações e aos processos, e também pesquisar o homem de modo humanista com base na relação consciente que ele faz dos valores e dos estilos de vida”, cf. F.W. VOGET, Storia dell’etnologia contemporânea, Laterza, Bari 1984, 355, mas venho também – e isto me interessa particularmente – desmentir aquela antropologia cultural ligada ao folclore e às expressões de religiosidade popular conterrânea que não sabe ver a experiência religiosa de nenhum outro lugar (e aqui posso mencionar De Martino, Di Nola, LAnternari e outros). De modo especial, pretendo fazer D. Sabbatucci compreender que o fato de ele evitar falar de homo religiosus não depõe tanto contra a história ou a antropologia, mas contra a sua própria falta de ouvido musical pela música que é o mundo religioso. Ver a crítica ao homo religiosus de Sabbatucci, La prospettiva storico-religiosa, SEAM, Milano 1990.

[2] Cf. para esse tema M. FEATHERSTONE, La cultura dislocata, SEAM, Roma 1998. Ver também, para a “crise da representação”: G.E. MACUS, M.M.J. FISCHER, antropologia come critica culturale, Meltemi, Roma 1998, 47ss.

[3] Cf. R. OTTO, Il sacro, Feltrinelli, Milano 1962, p. 19ss.:”Il sentimento’creaturale’ come riflesso del senso del numioso nella consapevolezza di sé”.

[4] Para uma tematização deste momento oscilatório e desta insserção no “Seelengrund”, cf.

[5] Cf. E.E. EVANS – PRITCHARD, Theories of Primitive Religions, Univ. Press, Oxford 1966, pp. 21ss.

[6] Ver a fenomenologia de Van der Leeuw: G. VAN DER LEEUV, Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1970. A concepção do “mana” e a teoria animista de Marrett estão na origem dessa visão. Cf. R.R. MARRETT, The Threshold of REligion,  Nethuen and Côo., London 1909.

[7] Esses outros fatores foram expostos especialmente em HUBERT e MAUSS, “Esquisse d’une théorie générale de la magie”, L’année sociologique, 1902.

[8] Ver J.G. FRAZER, Totemismo, Newton Compton, Roma 1971. Para o sacrifício do animal totêmico: E. DURKHEIM, Lê forme elementari della vita religiosa, e antes dele, com relação à realigião judaica, W. ROBERTSON Smith, The REligion of the Semites, London 1927.

[9] Cf. P. RICOEUR, Finitudine e colpa, Il Mulino, Bologna 1970, em que se encontram algumas bela páginas em nível fenomenológico sobre a mancha como primeira tomada de consciência de uma “culpabilidade”. Cf. também L. MOULINIER, Le pur et l’impur dans la pensée e la sensibilité des Grecs jusqu’à la fin du IV siècle avant J.C., Klincksieck, Paris 1952; J.P. VERNANT, “Il puro e l’impuro”, in J.P. VERNANT, Mito e società nell’antica Grecia. Religione greca, religioni antiche, Einaudi, Tortino 1981, pp. 115-134.

[10] Cf. M. ELIADE, Il mito dell’eterno ritorno, Rusconi, Milano 1975.

[11] Ver em especial R. OTTO, Il sacro, pp. 27ss., onde o autor cita as expressões de Tersteegen: “Deus está presente; tudo cala em nós e se prostra temeroso diante dele”.

[12] Ver a tese fundamental de van dee Leeuw em G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione; cf. também M. ELIADE, Trattato..., pp. 24ss.

[13] Cf. F. HEILER, Le religioni dell’umanità. Volume de introdução geral, p. 514.

[14] Cf. em nível antropológico e quase fenomenológico o estudo de C. GEERTZ, “La religione come sistema culturale”, in C. GEERTZ, Interpretazione di culture, Il MUlino, Bologna 1987.

[15] O momento da crise ligado à concepção do sagrado está bem presente também na religiosidade popular, embora seja necessário delimitar-se o significado e não concluir com uma tese totalmente historicista ou funcionalista na esteira da visão de De Martino. Para esse discurso, cf. A.N. TERRIN, Religioni, esperienza, verità. Saggi di fenomenologia della religione, Quattrovento, Urbino 1986, segunda parte, Fenomenologia dell’esperienza religiosa popolare, pp. 95-162.

[16] Observe-se como na história das religiões o destino está ligado ao “tempo” entendido como divindade, como a Kala, a Zurvan e a Kronos. Relevo especial tem o destino na concepção iraniana. Cf. U. BIANCHI, Zaman i Ohmazd. Lo zoroastrismo nelle sue origini e nella sua esenza, SEI, Torino 1958.

[17] Naturalmente, escolhi aqui três paradigmas que me parecem particularmente importantes para ver a relação entre sagrado e profano também em fase histórica, mas não posso dizer que não haja outros importantes nem que estes acabem realmente sendo os mais importantes.

[18] Para a distinção entre religião do pai e religião da mãe, ver J. PRZYLUSKI, La grande déesse, Paris 1950; G.R. TAYLOR, Sex in History, London 1959; G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1970; G.J. BLEEKER, De moedergodin in de Oudheid, Den Haag 1960; Th. SCHPPLINGER, “Der fraulichmütterliche Aspekt im Göttlichen”, Kairòs, 9 (1967), pp. 277-295.

[19] Ver M. HEIDEGGER, Identität und Diffrenz, Pfullingen 1957, 70: “Zu diesem Gott Kann der Mensch weder beten, noch kann er ihm opfen. Vor der Causa sui kan der Mensch weder aus Scheu ins knie fallen, noch kann er vor diesem Gott musizieren un danzen”.

[20] Ver todo o capítulo De la magie à l’efficacité symbolique, in ibid., 64ss.

[21] Cf. P. BLANQUART, “Il religioso: uma nuova posta in gioco strategica”, in M. CLEVENOT (org.), Rapporto sulle religioni. Analisi dei fenomeni religiosi del mondo d’oggi, Sansoni, Firenze 1999, p. 15s.

[22] Cf. R. OTTO, Il sacro. L’irrazionale nell’idea del divino e la sua relazione al razionale, Feltrinelli, Milano 1994.

[23] Cf. G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1960.

[24] Cf. F. HEILER, Lê religioni dell’umanità. Introduzione generale, Jaca Book, Milano 1985, especialmente p. 26s.

[25] Com relação e esse tema, ver meu livro A.N. TERRIN, Il rito. Antropologia e fenomenologia della ritualità, Morcelliana, Brescia 1999, especialmente o cap. “Spazio e rito”.

[26] Sobre essa temática, vez espacialmente G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1960, 22

[27] Significativamente para esta temática, cf. G. BATESON, Dove gli angeli esitano. Per uma epistemologia del sacro, Adelphi, Milano 19952.

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