Sintese: Paolo Cugini
Primeira
Parte
Antropologia
e Abertura Simbólico-Religiosa
Em primeiro lugar, confirma-se a solidariedade existente
entre problemas epistemológicos e a compreensão do homo religiosus. Nesse
sentido, mostrei como a antropologia cultural, passando por várias fases
históricas sujeitas a preconceitos racionalistas, cientificistas ou
funcionalistas, escondeu o homem religioso ou por vezes o transformou num
fantasma, mago, feiticeiro ou aproveitador, obliterando o sentido e a
intencionalidade antes de quem age simbolicamente e simbolicamente exprime o
seu mundo e exterioriza a sua alma.
A segunda tese deriva e está construída sobre os
resultados da primeira: se uma sociedade e uma cultura devem ser respeitadas no
seu mundo e na sua “particularidade” para que se chegue a apreender as
finalidades intrínsecas, a antropologia interpretativa – livre de suspeitas
relativas – será a antropologia com melhores condições de captar essas
finalidades, com respeito ao mundo cultural enquanto “mundo da vida” de um
povo, sabendo que toda interpretação de uma cultura se configura em última
instância como “interpretação de segunda, terceira ou quarta ordem” e que uma
fenomenologia de caráter epistemológico cria sempre as premissas mais profícuas
no contexto da interpretação de culturas, enquanto em torno dela se procura
reunir todo o horizonte de significado contextualmente, ampliando justamente
aquele “diálogo com a humanidade” em que se comprovam mestres autores como C.
Geertz e V. Turner. Esta tese fenomenológica não pode ser outra coisa,
portanto, senão a verdadeira alma de que nasce a possibilidade de conjugar
antropologia e experiência religiosa, sem ultrapassar limites e sem
prevaricações de uma ou de outra disciplina, porque nessa visão esconde-se
aquele horizonte “holístico” dos significados que respeita acima de tudo e
principalmente o mundo da experiência.
Apropriando-me ainda de uma imagem de Geertz: Chartres é
feita de pedra e de vidro, mas não é só pedra e vidro; é uma catedral, e não só
uma catedral, mas uma catedral especial que é estudada do ponto de vista
histórico e admirada do ponto de vista artístico. Para compreender o que ela
significa é preciso conhecer algo além das propriedades genéricas da pedra e do
vidro e algo mais do que é comum a todas as catedrais. É preciso compreender
também os conceitos específicos das relações entre Deus, homem e arquitetura;
conceitos que ela encarna.
O mesmo acontece e deve acontecer com a “cultura”: é
preciso compreender conceitos particulares e ao mesmo tempo abrir-se a um
horizonte global de significados, retornando hoje em última instância a uma
certa concepção “holística” do mundo e das culturas. Só assim, talvez, possamos
fazer de modo menos impróprio “antropologia cultural” e descobrir os
significados e/ou também especificamente os significados “religiosos” [1].
(pág.72 e 73)
2. A
Relação entre Culturas e o Diálogo entre Religiões
1. A função
globalizante e crítica da cultura
A primeira atitude, portanto, que pretendo induzir é um
senso de “perplexidade” com relação ao mundo cultural que criamos para nós e
que acreditamos ser o modelo único, do qual, aliás, não podemos prescindir.
(pág.76)
Mas também a nossa cultura, observada de longe e em
contraluz, revela-se um misto de provincialismo, etnocentrismo,
auto-suficiência e falta de reflexão, quando não beira os limites da arrogância
e da prepotência. Não percebemos de fato o quanto somos tiranizados pela
cultura de pertença, o quanto estamos nela imersos. Somos como peixes imersos
na água e não percebemos, mancomunamo-nos com um mundo que acreditamos
controlar livremente através da linguagem, através do coeficiente de liberdade
que possuímos, através da força do nosso pensamento, da maturidade adquirida,
mas na verdade trata-se de um mundo que nos submete a ponto de não passarmos de
muitos pintainhos debaixo das asas da choca. Na realidade, se é tão difícil o
mundo da cultura em antropologia, isso acontece porque é quase impossível
“transcendê-lo”: estamos demasiadamente imersos nele, não tendo nenhuma
possibilidade de evitá-lo. (pág.76 e 77)
2. A cultura deslocada
e a globalização
2.1. Crise das
representações
A cultura deslocada de que fala Featherstone não é senão
a crise das representações de uma cultura, como a vivemos hoje no
pós-modernismo. Esse deslocamento ou descentramento cultural é fruto da própria
cultura, que se torna cada vez mais plural, flutuante, incoerente, sai do seu
centro, é “ex-cêntrica”[2],
já que o homem contemporâneo é cada vez menos capaz de “olhar-se no espelho”,
pois quebra todos os espelhos antes mesmo que estes possam oferecer-lhe a sua
imagem. (pág.79)
4. A coerência das
culturas e o princípio de caridade de D. Davidson
Poder-se-iam resumir todas essas tentativas de
compreender uma cultura diferente da própria com o princípio epistemológico de
D. Davidson, o assim chamado princípio de caridade, frisando porém que não se
trata de um princípio ético ou de pura benevolência, mas de caráter
eminentemente epistemológico. Na concepção de Davidson, o princípio de caridade
leva a assumir um ponto de vista “intrinsecamente intencional”. Em outras
palavras, se tenho realmente intenção de compreender outra cultura, devo
imergir nessa cultura e participar das suas crenças específicas. Para isso é
preciso partir de uma idéia de crença que é fundamental e que é o equivalente
da verdade como noção básica ou primitiva, lembrando que a interpretação
radical inicia sem os significados, mas termina com uma compreensão
significativa. Crer naquilo que o outro crê, compreender as “causas” das suas
crenças, comportar-se como se comporta o outro parece ser a única saída para a
compreensão: é definitivamente o único modo de aprender outro jogo lingüístico.
Mesmo que esse procedimento possa tornar-se problemático por outros motivos,
não sendo o último o fato de que ele corre o risco de substituir completamente
a própria cultura pela do outro. (pág.84)
6. Autonomia da
experiência religiosa e “dependência” das religiões das respectivas culturas
Portanto, se uma religião, no seu espaço institucional,
é como uma cultura – ou segundo a perspectiva hoje mais aceita -, um sistema
subcultural com uma rede de signos e uma fronteira, com textos e normas como
uma cultura, então poderíamos aplicar os mesmos modelos de comportamento de uma
mesma cultura.
A dificuldade de sair da própria religião será igual ao
grau da sua organização e estruturação interna e será proporcional à
continuidade dos espaços. Uma vez que possui uma doutrina e um credo claro e
uma hierarquia de valores e de instituições consolidada, a relação entre IN e
EX numa religião será rígida, e por isso – como nas culturas – será difícil, se
não impossível, qualquer “identificação” com a crença do outro. O outro será
considerado sempre “infiel”, não cristão, pagão. Ora, parece que as religiões,
como as culturas, não podem mais manter aquela rigidez clássica que lhes
permitia uma maior identidade. Em termos éticos, elas podem se tornar atrativos
excepcionais da humanidade a partir de um lento mas profundo deslocamento dos
limites, sem que seja afetado o núcleo das respectivas doutrinas. Nesse
sentido, acontece que nos nossos dias as periferias são mais importantes que o
centro. (pág.86)
Segunda
Parte
Horizontes
do Sagrado em Perspectiva Antropológica
1.
Mediações para o Sagrado
Antropologia e história comparada das
religiões
1. Estrutura do sagrado
e encaminhamento da problemática
O sagrado escapa
a toda apreensão, a todo encapsulamento. Na concepção de R. Otto, que por
primeiro analisou a idéia do sagrado com relação à experiência religiosa, o
sagrado é o “senso do Nume” e nasce no sujeito como “Sentimento de
criaturalidade” (Kreaturgefühl)[3].
Agora deve-se observar que tanto no momento de objetificação como no de
subjetivização e apropriação (no primeiro caso, o “senso do Nume”; no segundo,
o sentimento de criaturalidade), R. Otto evita qualquer envolvimento
“estrutural”, falando justamente de “senso” e “sentimento”. É definitivamente
essa indefinibilidade que possibilita ao sagrado passar da transcendência à
imanência e vice-versa, movimentar-se do limite do antropológico para o
não-limite do absoluto[4].
(pág.223)
2. A diferença e a
separação entre sagrado e profano e a instituição das mediações religiosas
É fácil compreender que o verdadeiro eidos, a verdadeira
essência da mediação sacramental – como de toda outra mediação religiosa –
passa a ser entendida se conseguimos esclarecer a motivação profunda da
separação e do diafragma que se cria nas religiões entre sagrado e profano; de
fato, a mediação sacerdotal – e com ela as outras mediações – poderia ser
compreendida em primeiro lugar como a tentativa e o meio de levar o profano ao
âmbito do sagrado, ou vice-versa, de levar o sagrado ao nível mais baixo, isto
é, ao profano, criando uma homologia entre dois planos. Não haveria necessidade
de mediação sacerdotal se sagrado e profano coincidissem. (pág.225 e 226)
2.1. As
instâncias antropológicas que apontam e remetem à distinção entre sagrado e
profano
Momentos quase-originários do espelhar-se do sagrado e
do seu distinguir-se do profano manifestam-se assim: o assombro diante dos
fenômenos da natureza[5],
a crença numa forma estranha e poderosa[6],
práticas simbólicas com relação à obtenção de alguma coisa intensamente
desejada[7],
a adoração e o sacrifício do animal totêmico[8],
a diferença primordial entre puro e impuro que remonta a noções mais primitivas
de “mancha”, “sangue”, “sujeira” (categoria por sua vez ligada ao tabu)[9],
a experiência de viver o momento exemplar das origens numa aistoricidade
sagrada[10].(pág.227
e 228)
Agora, se dessa relação eu fosse forçado a privilegiar
algum elemento em condições de conter in toto ou em parte os outros, eu não
hesitaria em falar dos sentimentos do “medo”, do “poder” e do “desejo”. Quer
parecer-me que essas são as três coordenadas propedêuticas ao religioso e
condensados daquele sagrado em que a humanidade de todos os tempos se encontra.
Entendo o medo não somente como um sentimento “que nos
afasta de”, que põe numa situação de desvantagem, mas também como um sentimento
quase positivo à R. Otto: como religiöse Scheu, como um pôr-se de joelhos do
mistério incognoscível que provoca que provoca “arrepios”[11].
O medo tem relação com o assombro e o assombro se transforma numa afirmação do
“mistério” (mysterium-tremendum).
Creio que o poder sobrenatural que o primitivo descobre
no mundo – e que por certos aspectos não é diferente do medo-assombro – seja o
momento mais determinante da nossa experiência do sagrado na medida em que ele
se distingue do profano. O profano é o que é “normal”, “cotidiano”, que não
causa sobressaltos, não provoca situações inexplicáveis; o sagrado, ao
contrário, reveste-se de “potência”, “força”, “mana”, um poder que quebra os
esquemas habituais e deixa entrever o religioso; um poder que, quanto mais
inexplicável é, tanto mais e prepotentemente se identifica com as “pegadas do
sagrado”. O chefe tribal, por exemplo, é poderoso, e por isso gera e é portador
de tabu. O poder – esta categoria posta como fundamento de toda a análise
fenomenológica do sagrado de Van der Leeuw – será essencial para o próprio rito
e para o sentido profundo da mediação sacerdotal[12].
Por fim, o desejo. E aqui sou levado a crer que esta
categoria está antropologicamente mais arraigada e que, na sua culminância, é a
expressão da própria “necessidade de salvação”, onde exatamente “salvação”
denota a necessidade de “recuperar a própria totalidade” segundo as etimologias
de holon, salvus, Heil, whole, swa-astha[13].
O desejo portanto não é somente um desejo limitado, particular, mas é entendido
como um conjunto de impulsos em direção à própria “completude” estendendo-se
numa escala muito ampla de “preenchimentos”, que vão da necessidade de resolver
pequenos problemas pessoais ou coletivos e comunitários até a necessidade em
geral urgente e dramática de enfrentar situações “desastrosas”, apocalípticas,
em que uma pessoa pode ver morrer todas as sua possibilidades e esperanças, desespera-se,
não consegue mais controlar a situação[14].
Esta breve descrição fenomenológica da “necessidade-desejo” poderia explicar o
excepcional alcance que ela tem com relação à compreensão do sagrado. O sagrado
neste caso é o momento da crise, da necessidade urgente, do dilema, do mistério
da vida que poderia tomar uma direção que não é a desejada e em que vemos
abrir-se diante de nós o precipício e o abismo da nossa impotência[15].
Uma estreita ligação do desejo-necessidade se explica
com relação ao passado e ao futuro com aquela palavra histórico-religiosa
semanticamente indefinível e posta a meio caminho entre a experiência religiosa
e o seu aspecto profano. Refiro-me ao fatum, à moira, ao destino[16].
(pág.229 e 230)
2.2. As variáveis
segundo as quais se modificam as instâncias antropológicas que distinguem o
sagrado do profano
Para conseguir enxergar também onde parece haver apenas
sombras, tenho a impressão de vislumbrar três variáveis fundamentais referentes
à relação sagrado/profano capazes por sua vez de influenciar diretamente as
mediações sacerdotais e religiosas: a diferente concepção do divino, a dimensão
comunitária e social e o modo de vida quase todo moderno induzido pela ciência[17].
(pág.230 e 231)
Conclusão
Nestas últimas considerações, tendo aberto mais uma vez
o discurso sobre a concepção de Deus e portanto sobre o valor da experiência
religiosa comunitária em todo o seu leque, com os numerosos problemas afins, e
tudo presente, por outro lado, a tese inicial segundo a qual a concepção do
sagrado não é indiferente à experiência do sagrado, eu gostaria de concluir com
uma espécie de redução ad unum de todas as temáticas que emergiram, em que
possam encontrar espaço os tipos que aqui foram aos poucos postos em evidência.
Fazei isso em uma tese final que se apóia em algumas considerações de Gordon Tylor,
Pryluski e Turner.
Todas as religiões devem a sua mediação sacerdotal –
mais ou menos forte a ponto de institucionalizá-la juridicamente ou de fazê-la
desaparecer como algo supérfluo e inútil – conforme essas religiões se
identifiquem como “religiões do pai” ou então como “religiões da mãe”.
Sei evidentemente que essa é uma tese redutiva, mas
creio que pode ser útil para uma visão tipológica.
Com Gordon Tylor, entendo por religião do pai a que tem
as seguintes conotações: uma imagem de Deus masculina, uma ética rígida, um
relevo às diferenças entre os dois sexos, um forte senso de autoridade, o medo
da espontaneidade, uma iconofobia fundamental e uma estrutura social básica
muito acentuada; por religião da mãe entendo a religião que tem uma concepção
de Deus mais de tipo materno, com uma conseqüente atitude menos rígida no que
se refere à moral, uma redução da diferença entre os sexos, uma maior
liberdade, uma avaliação positiva e uma valorização do cosmo e da natureza;
entendo além disso uma religião que tem menos mandamentos e um menor número de
relações de autoridade. Essa religião incluiria também – segundo Turner – uma
iconofilia profunda em que assume importância o significante e não apenas o
significado[18].
Como se pode perceber, a tipologia se refere
fundamentalmente à mesma relação já vista em ação nas religiões, na distinção
entre “religiões da diferença” (que corresponderiam à religião do pai) e
“religiões da identidade” (que corresponderiam à religião da mãe).
Ora, este esquema poderia traduzir muito bem todas as
variáveis no seio das mediações que ocorrem nas religiões, considerando de modo
especial a dimensão social, que está sempre em condições de transformar os
termos da própria religião. Em outras palavras, penso que muitas religiões
nasceram como “religiões da mãe” ou religiões “da identidade” sob a força do
divino que as transportava e as guiava, mas depois, com o passar dos decênios e
dos séculos, essas mesmas religiões, por razões histórico-políticas, se
transformaram em religiões da “diferença”, transformando a própria visão do
divino nelas presente e invocando então uma forte mediação institucional.
Quero concluir estas reflexões referindo-me ao
cristianismo – naturalmente ainda apenas do ponto de vista
fenomenológico-comparativo e não teológico.
O cristianismo parece ter nascido como uma grande
religião da identidade (ou da mãe) sob o impulso carismático e antiformalista
de Cristo; parece porém que, no curso da história, ele aos poucos se traduziu
numa religião que refletia mais a “diferença”, com o conseqüente enrijecimento
das estruturas e dos esquemas religiosos. E então um “sacerdócio especial”
sobreveio para servir de trait d’union entre sagrado e profano.
Podem-se fazer algumas considerações. Na minha opinião,
sob o mesmo estímulo cultural moderno, sente-se hoje a necessidade de uma volta
à religião da mãe, da identidade, em que o sacerdócio comum se torne um
pressuposto lógico dessa visão de fé. Nisso eu estaria de acordo com os
teólogos, que falam hoje de um “sacerdócio comum” dos fiéis. Mas julgo também
ser necessário tomar uma certa distância da invocação desse sacerdócio comum e
de uma visão cristã baseada simplesmente e sem ulteriores reflexões na “religião
da mãe”.
Do ponto de vista fenomenologia e histórico-comparativo,
devo observar que a falta de mediação e de aproximação até a homologação de
sagrado e profano vive sempre de uma forte carga carismática. Em outras
palavras, a religião da mãe com o seu esquema da identidade não pode substituir
a do pai somente porque se compreende que se trata de uma operação que resolve
o maior número de problemas ou porque se compreende que nas origens era assim.
O problema último é o da experiência religiosa que se
vive hic et nunc e na esfera cristã, o problema é o da fé atualmente.
O sagrado está sempre em círculo com a experiência do
sagrado e as várias mediações (sacerdotal, xamânica, profética, real) estão
sempre vinculadas à respectiva experiência religiosa que se leva em
consideração. Portanto, toda a perspectiva aqui apresentada pode fazer-nos
compreender um caminho percorrido, mas se trata de um caminho que não se torna
hoje prescritivo de uma mudança, se não se faz acompanhar de uma mudança das
condições que aquele mesmo caminho indicou. Definitivamente, as modalidades do dar-se
da consciência religiosa são em última instância o lugar em que a própria
consciência se reconhece. (págs.246 a 249)
2.
Monoteísmo, Politeísmo, Panenteísmo
As formas de crença no divino na história
comparada das religiões
4.2. O monoteísmo
“aberto” e experiencial no plano histórico-religioso
Como conclusão dessas breves notas sobre as religiões
monoteístas, resta-nos apenas fazer um apelo ao sentido mesmo da experiência
religiosa. Ela constitui uma estrutura de significado não de caráter
especulativo, mas de caráter projetivo e imaginativo não de caráter
especulativo, mas de caráter projetivo e imaginativo em que Deus não pode
somente ser pensado, mas deve também ser “experienciado”, e a experiência tem
necessidade de imagens, de símbolos, de mediações. Vem à mente o que escreveu
sabiamente Heidegger em Identidade e Diferença: “Não podemos pôr-nos de joelhos
diante da Causa sui. Diante desse Deus o homem não pode rezar nem oferecer
sacrifícios”[19].
Portanto, todo monoteísmo se movimenta num contexto mais amplo em que as
imagens de Deus podem ultrapassar os limites em direção a formas diferentes de
visão de Deus e por sua vez aproximar-se daquilo a que irrefletidamente se deu
o nome de “politeísmo”. (pág.274)
Conclusão
A experiência religiosa é um primum irredutível, imenso,
significativo per se, que tem necessidade de ser tratado mais além das nossas
especulações e teorizações para revelar a sua força de simbolização e a sua
capacidade de transportar todos os sentimentos do humano a uma zona franca de
liberdade onde eles se sublimam à luz de algo ou de alguém que se faz fiador do
nosso viver no mundo em sentido incondicionado e total. E isto constitui um
critério último de sinceridade e de autenticação da consciência religiosa em
si. (pág.280)
3. Os
Ritos “Se Falam”
Para uma antropologia histórico-comparativa
da ritualidade
2.
Rito/sacramento. Para uma delimitação dos termos e uma primeira ampliação de
horizontes
Se o sacramento é um rito, é também alguma coisa mais. A
qualificação que assume com relação ao rito fala em nome de uma maior força
performativa, de uma capacidade de transformar o crente, enquanto possui uma
força todo particular de realizar, através dos signos, um novo modo de ser.
Prefiro evitar a expressão de Isambert, “eficácia simbólica”[20],
porque o simbólico, pelos motivos já enunciados, poderia não ser de pertinência
do rito/sacramento. Parece-me porém que não se pode excluir uma capacidade
performativa induzida por verbos, por gestos e por expressões que “fazem alguma
coisa com as palavras” a que acompanha o consenso comunitário que permite criar
as condições de “felicidade” do próprio performativo (S.J. Tambiah, etc.) no
âmbito de um forte reconhecimento social. (pág.290)
3.
Ritos/sacramentos em nível etnográfico
O rito é uma performance, consiste num conjunto de
códigos que se unem a todos os níveis para formar uma Gestalt, uma vivência
particular organizada em nível comunitário. Desse ponto de vista, um rito é
inapreensível; é vivido, é experimentado e participado, não é narrado; é um
“hipertexto”, e não somente um texto linear capaz de ser transcrito relatado. A
pobreza das descrições dos rituais em todos os âmbitos, etnográficos e não,
mostrará imediatamente o gap existente entre evento ritual e momento descritivo.
(pág.290 e 291)
3.1.
Ritos/sacramentos de nascimento e de iniciação
Os ritos de iniciação são verdadeiros “sacramentos
prolongados no tempo” (uma semana ou mais) e constituem um aspecto
sociocultural e religioso entre os mais importantes do mundo dos povos em
termos etnográficos. Tudo gira em torno da passagem de um membro do clã da
infância à idade adulta para que participe de todos os direitos e deveres que
lhe competem como homem já maduro. Do nosso ponto de vista ocidental e cristão,
o problema mais relevante está em estabelecer se esses ritos/sacramentos têm
também relevância religiosa específica. A relevância social não está em
discussão. Tampouco está em discussão o processo ritual, que contempla
diferentemente ritos de submissão, de afastamento, de mutilação (entre os quais
freqüentemente também o rito da circuncisão, etc.), os quais enfim, depois de
um período de provação e de separação, consideram por sua vez a reinserção
social e a imissão com plenos direitos de fazer parte dos direitos/deveres de
todo membro adulto do clã. Ora, em todo este procedimento ritual há uma
dialética entre vida e morte que assume sem dúvida significados religiosos,
como entre outras coisas pôs bem em evidência M. Eliade. (pág.291 e 292)
5. A
Tolerância nas Religiões do Passado e do Presente
3. O sagrado
não é monopolizável
Segundo Blanquart[21],
as religiões constituídas se apresentam como construções “fechadas” em três
planos muito distantes entre si. No nível inferior está o simbólico que dá
sentido. No nível superior, os aparatos e as instituições. Entre ambos
interpõem-se as racionalizações, as dogmáticas e as teologias.
Para reavaliar o sentido da tolerância e da liberdade
religiosa é preciso destacar o fato de que o pensamento e a vida religiosa
apóiam-se sobre um pedestal simbólico e que uma religião vive fundamentalmente
porque e enquanto se reporta ao simbólico. Em outras palavras, poderíamos dizer
que é preciso reporta-se constantemente ao dado e à superação do dado, ao
sentido e ao mistério do sentido, definitivamente à idéia do sagrado do dado,
ao sentido e ao mistério do sentido, definitivamente à idéia do sagrado que
serve de fundamento ao mundo das religiões para encontrar o verdadeiro ponto de
partida da tolerância e do diálogo entre as religiões.
O pensamento religioso surge como pensamento do divino,
e o divino como “experiência do Numinoso” não é monopolizável. Não se pode
fazer um discurso sobre Deus sem que esse discurso seja precedido pelo “temor e
tremor diante de Deus”. A impossibilidade de dizer tudo sobre Deus é
co-extensiva ao mundo do sagrado. O discurso simbólico é por essência um
discurso dos índices, dos reenvios, das mediações e das esperas. Ele não pode
pretender fechar-se como que numa prisão e não pode pretender ser completo ou
realizado. Ao bloquear a experiência do sagrado, o discurso simbólico bloqueia
também a si mesmo, fecha-se à função religiosa em si.
O que é realmente o sagrado? Qual é a sua força
intrínseca? O sagrado é a experiência do divino que fazemos neste mundo. Uma
experiência difícil, ambígua, feita de uma mistura de imanência e de alguma
pretensão de transcendência, de impulsos religiosos e de restrições éticas. O
sagrado vive e convive com uma certa ambigüidade de expressão e de
reconhecimento na nossa vida e isso se projeta como um jogo de luzes e de
sombras também na realidade que nos envolve. Não temos condições de apanhá-lo e
todavia sentimos que somos apanhados, somos incapazes de exprimi-lo e no
entanto lhe sentimos a força intrínseca e o valor, não podemos reconhecê-lo
definitivamente a apesar disso aceitamos os seus sinais e manifestações. O
sagrado é a sua própria escatologia, como dizia P. Ricoeur, e não pode ser
submetido a critérios humanos, à razão ou a algo como o bom senso.
Justamente por essa característica, o sagrado continua
sendo o que não pode ser possuído, o que não é meu, nem teu, nem nosso:
continua o outro, continua o que deve ainda ser compreendido e que, se pode ser
experimentado em algum contexto ou em algum momento privilegiado, mantém-se
sempre inacessível.
Se o sagrado – segundo R. Otto[22]
- se define a partir do “sentimento criatural”, do sentir-se “pó e cinzas”
diante d’Aquele que é tudo, se ao sagrado acompanham os momentos do tremendum e
do fascinans, é preciso manter a verdade do sagrado nesse quadro experiencial e
ter diante dele uma atitude de “respeito reverencial”, de Ehrfurcht, porque,
como fez Moisés, é preciso sempre tirar o calçado antes de aproximar-se da
sarça ardente. Mesmo se o nosso tempo, definido como o tempo da
“dessacralização”, costuma profanar o sagrado, o homem religioso mantém
inalterada a sua atitude porque sabe que o mistério de Deus se relaciona com o
mistério do homem e um outro são insondáveis. Por isso sabe que vive uma
experiência que não é comunicável e principalmente percebe que se trate de uma
experiência que não é definível de uma vez por todas. É uma realidade que se
subtrai a toda tentativa de posse. Nesse sentido, o sagrado não pode ser uma
carta vitoriosa no mundo sociocultural do mesmo modo que não pode pertencer
como propriedade aos “gestores” do sagrado.
Por isso, quando as religiões fazem de um discurso de
determinação dos limites e quando estabelecem regras de pertença social e
religiosa ditadas por doutrinas, realizam um trabalho de “domesticação” do
sagrado que implica certo perigo. Postas entre o mundo futuro e o mundo
presente estruturado de maneira culturalmente orgânica, as religiões devem
conhecer a sua pertença extracultural e supermundana e devem constantemente
remeter os fiéis a essa visão eminentemente “tolerante”, porque a essência
mesma da religião exige isso. A tolerância é nesse sentido um ato de
clarividência que uma religião deve ter como patrimônio e como verdadeira
reserva escatológica. (págs.340 a 342)
4. As
religiões são consangüíneas e dependem umas das outras, pois a experiência
religiosa é universal
Se nós, por exemplo, seguindo Van der Leeuw[23]
e F. Heiler[24],
distinguimos entre o mundo objetivo da religião que está sempre ligado também a
fatos culturais particulares, e o mundo da experiência religiosa, chegamos a
resultados que nos revelam a proximidade entre as religiões. A experiência
religiosa é vista como o eco ou a ressonância que a profissão de fé tem naquele
que crê. Ora, não há dúvida de que essa ressonância interior tem pontos em
comum, soa como uma música que todos os adeptos de uma fé religiosa têm
condições de reconhecer. Sem cair num “pseudo-religionismo” de mau gosto, é
preciso reconhecer que, quando falamos de Deus, da oração, das obras de
caridade, da confiança, da esperança e do amor, estamos diante de valores
religiosos que são compartilhados pelo mundo das religiões. São dominant drives
que não são diferentes de uma religião para outra, a não ser no componente
cultural e secundário que as qualifica. A inspiração essencial é a mesma,
idênticos o fervor, o impulso, a idéia religiosa como totalidade que inspira,
por exemplo, uma vida consagrada.
Existe portanto uma dependência mútua entre as
religiões, existe uma “consangüinidade” que é reconhecida porque a experiência
religiosa não pode ser “alótria”, estranha, sufragânea de outro; ou é ela mesma
na sua plenitude e portanto em relação a um referente metempírico ou não é
realmente experiência religiosa. Precisamos, portanto, ser menos céticos quando
queremos medir a experiência religiosa dos aspectos de uma religião, porque
essa experiência é sempre um ponto excepcional de encontro entre a experiência
humana autêntica e o desejo de encontrar o divino, de fazer experiência do
divino, sem equívocos, sem estratégias ocultas e sem empregos de
pseudo-experiências secundárias. (pág.343 e 344)
6. O
Sacrifício: Alimentar Deus, Comer Deus
A refeição sagrada na história comparada das
religiões
1. Alimento é
vida e vida é alimento
Sacralização da função alimentar
Comer significa viver e a vida é um tema
simbólico-religioso por excelência. Por diferentes que sejam as religiões, um
dos motivos nelas recorrentes é o “desejo de viver” ligado ao valor
insubstituível do alimento, tanto que se poderia afirmar que a relação
alimento-vida tem um caráter coercivo e imemorial, que do terreno biológico e
institucional passou depois a fazer parte dos códigos das religiões. (pág.356)
Essa primeira sacralização do alimento com relação à sua
função vital associa-se nos Vedas a uma segunda: o alimento tem uma função, é
expressão, de um lado, de comunidade entre os homens e, de outro, entre homens
e deuses. (pág.357)
“Quem come sozinho é pecador”, diz a passagem dos Vedas,
e “os que preparam o alimento só para sim mesmos são pecadores: eles comem
pecados”, sublinha o Bhagavad-gita. (pág.357)
2. O alimento
e o rito. A refeição ritual como linha divisória entre natureza e cultura
Projetando num quadro de referência mais amplo, o fogo
parece o operador e o símbolo dessa passagem do mito ao rito. Preparar os
alimentos com fogo significa realizar uma atividade de mediação entre céu e
terra, vida e morte, natureza e sociedade: o fogo realmente salva o alimento da
putrefação e se movimenta de baixo para o alto, dos homens para os deuses.
“Todo o universo, o consciente ou inconsciente, não é senão fogo e oblação”,
diz o Mahabharata. O fogo é o símbolo universal do sacrifício, da destruição ao
estado puro. Ele representa uma espécie de limite entre dois estados de ser: o
da criatura e o dos deuses que, não por acaso, estão além do fogo e se
alimentam do fundo das oblações. (pág.358 e 359)
3. O alimento
como oferenda de alimentação aos deuses
No plano histórico-religioso, o primeiro grande
deslocamento do pensamento sacrificial e da refeição sagrada acontece quando a
universalidade do alimento e a sua dinâmica cósmica e cíclica se concretizava
numa função fundamental: a de manter os deuses vivos. Trata-se de um
deslocamento porque é um primeiro modo de “justificar” o sacrifício, de
precisar-lhe o significado com um discurso que elabora o mito originário de
fora. (pág.359)
O alimento como oferenda ao deus para alimentá-lo é uma
forma muito antiga de aproximar-se da divindade. É preciso alimentar a
divindade como o sacrifício para obter favores. Ninguém pode se apresentar a
Deus de mãos vazias. Quando se vai a quem é poderoso e soberano, é preciso
oferecer alguma coisa de si mesmo para ser recebido no seu mundo. (pág.359)
Na diacronia histótico-religiosa, a questão mais
importante se torna, portanto, a de distinguir adequadamente entre a refeição
sacrificial para sustentar os deuses e a simples oferenda de alimento.
Limito-me a frisar que, a partir de uma primeira e inicial conotação do
alimento como “alimento para os deuses”, observamos transferências de
significado, metaforizações crescentes tanto com relação às vítimas a
sacrificar quanto com relação aos propósitos. Ou seja, a oferenda sacrificial
se “espiritualiza” e se torna “oferenda de agradecimento” à divindade.
O sacrifício das primícias destaca este aspecto. O
sacrifício expiatório, de importância crucial no mundo grego e judaico, não
pode porém ser considerado somente uma variável da oferenda à divindade e em
especial do alimento oferecido para sustento dos deuses. Por sua peculiaridade,
ele permanece à margem dos parâmetros que seguimos até aqui na abordagem da
refeição sagrada. (pág.362)
4. A refeição
como rito de comunhão com o deus
O segundo grande deslocamento do mito primigênio para um
modo diferente de compreender o sacrifício parece ser aquele em que do
“alimento para os deuses” se passa à “refeição como comunicação com o deus”.
(pág.363)
É preciso todavia distinguir adequadamente entre o ato
de comer diante de deus e junto ao deus, que se poderia chamar de “convívio”, e
o ato de comer o próprio deus, onde o momento de comunhão é elevado a nível de
identificação mística e misteriosa. Para os judeus parece importante
principalmente a primeira forma de comunhão, sendo desconhecida a segunda, que
todavia seria paradigmática no mundo grego e em especial no culto a Dionísio.
Isso não exclui que o momento comunitário se revista de
uma importância fundamental também no mundo grego, onde a própria polis se
constitui como ato de comunhão – e ao mesmo tempo de separação – com os deuses.
(pág.363)
Comer na companhia do deus significa na verdade união
íntima, indissolúvel entre todos os comensais, significa um ato de comunhão
irreversível entre todos os que estão sentados à mesma mesa e comem a refeição
sagrada em união com o deus. Sabe-se que também entre os judeus existiam essas
formas de comunhão entre grupos de fiéis que se sentavam à mesma mesa na
presença de deus. A consumação do cordeiro pascal, por exemplo, representa uma
comensalidade com o deus, com o hóspede divino, não contendo nenhum sinal de
participação mística na própria divindade. (pág.364)
Infelizmente a nossa secularização nos torna obscura a
dimensão salvífica e comunitária do alimento, não consegue construir uma
teologia do comer e do beber. E no entanto é a vida nas suas funções
originárias que aqui se manifesta, e portanto é uma dessacralização da própria
vida que introduzimos no nosso modo de considerar o alimento. (pág.365)
5. Comer deus.
A refeição como identificação mística com o deus
A expressão “comer os deuses”, cujo significado cruel é
de origem mexicana, é tomada ao pé da letra: o fiel crê verdadeiramente que
come deus. Naturalmente, o deus se encarna em substitutos: um seu humano, um
animal, vegetais. Tão grande é a extensão e a difusão desse tipo de refeição sagrada
quando difícil é ter clareza sobre ela e conhecer a simbologia. (pág.365)
Conclusão
O antigo provérbio mors tua vita meã adquire aqui
novamente o seu significado num grande contexto de “metabolismo cósmico” em que
o alimento é necessário e a morte inevitável. Nesses elementos biológicos do
viver estão talvez ocultas em nível ancestral as raízes mesmas do pensar
religiosamente, mas desta “primeira natureza” nos restam apenas vestígios, que
a “cultura” – se oposto – hoje não consegue mais reconhecer e, muito pelo
contrário, se empenha em suprir. A religião, neste caso, com a sua visão primitiva
ancorada no seu imemorial perfil biológico, parece não querer ceder
inteiramente à cultura, ligada inevitavelmente a produtos efêmeros do tempo.
(pág.369)
7. A
Peregrinação como Fenômeno Religioso
1. Quem
poderia ser tão insano a ponto de ignorar a Deus quando Ele está apenas alguns
passos à frente? (W. Sax)
Podemos perguntar: por que está sempre presente no mundo
das religiões aquele fenômeno estranho e fascinante, aventuroso e perturbador,
que é a assim chamada peregrinação? Por que as pessoas se põem a percorrer um
caminho, se dirigem a outro lugar? Se nos inserimos na dialética que eu quis
expor logo em primeiro lugar como critério interpretativo da experiência
religiosa, podemos compreender alguma coisa do mundo da peregrinação.
Deus está um pouco mais adiante, parecem sugerir as
religiões. Se o espaço é uma das nossas mais originárias formas de percepção de
nós mesmos e do mundo que nos circunda, se somos continuamente levados a
traduzir a nossa própria linguagem em termos espaciais, pois o espaço faz parte
do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico como faz parte da nossa
antropologia epistemológica[25],
se realmente é um primum inalterável em toda nossa experiência e constitui uma
“experiência primária”, é evidente que essa dimensão originária que nos permite
habitar o mundo e exprimir a nós mesmos orienta também as nossas experiências
religiosas. (pág.370 e 371)
Deus, o sagrado é o que está em outro lugar, distante, é
outro e o alhures, é aquela realidade que, se num nível de linguagem religiosa
só pode ser expressa por meio de metáfora, símbolos, alegorias – lembremos P.
Tillich, que afirma que “Deus é sempre uma alegoria para Deus” -, em nível
espacial tem o seu lugar no que está distante, dificilmente acessível, é o
sagrado que tem o seu recinto que não pode ser violado, é o Deus que habita no
alto da montanha, é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó que convida Moisés a
tirar as sandálias: “Moisés, tire as sandálias dos pés!”. (pág.371)
Mas, se a distância é símbolo da transcendência, essa
distância e inacessibilidade podem de algum modo ser superadas. O símbolo é o
que diz, mas na pobreza da linguagem: diz e não diz, diz e reenvia. Alude,
indica. Não será possível tirar o véu e agir de modo que esse reenvio se torne
uma presença? Se a ausência não é total, por que não pode se tornar uma
presença plena, concreta, tangível? Aqui está a convicção íntima do peregrino e
do crente. (pág.371 e 372)
2. Sem um pólo
no mundo, a polaridade da alma não poderia manter-se (Klages)
O homem religioso é um homem irremediavelmente doente de
uma grande idéia que o assuste. Essa idéia é que existe um centro, existe um
pólo, um ponto de referência de toda a realidade. O homem religioso é portanto
aquele que é constantemente levado para dentro de si à procura de um pólo que
seja o verdadeiro referente em torno do qual deve dispor-se ordenadamente toda
a realidade. É o homem que tem sede de um centro, como tem necessidade de uma
casa. Que esse centro seja o axis mundi de que fala Eliade e de que dão
testemunho todas as religiões e/ou seja um lugar de nascimento das grandes
religiões, como Benares, Jerusalém ou Roma, é irrelevante. A experiência
religiosa é uma experiência de organização da realidade com base em um centro.
Também aqui a experiência interior é o reflexo, é a interface daquela exterior
numa unidade às vezes inconfessada, inconsciente, mas profunda e real.
A experiência religiosa organiza o real, uma vez que
confere sentido, batiza toda a realidade, dando significado a tudo o que
existe. Van Der Leeuw afirmava que o sentido religioso é o maior sentido que
pode existir porque é constituído da experiência de que todo o mundo tem um
sentido amplo global, totalizante. Mas toda ordem e todo reconhecimento de um
sentido amplo global, totalizante. Mas toda ordem e todo reconhecimento de um
sentido deve partir de um centro, de uma polaridade incontroversa. Trata-se de
reconhecer aqui o pólo da alma, é a polaridade para a qual tende a mente
religiosa que institui o significado do todo. (pág.372 e 373)
Nesse sentido, a peregrinação é também uma forma de
criar experiência de convergências, de condensação de significados, e no seu
âmago – tem também uma forte caracterização “iconófila”: ama as imagens do
divino, ou, antes, constrói imagens do divino, mesmo que depois as reconheça
como simulacros no caminho para a realização suprema. (pág.374)
3. Se o
misticismo é uma peregrinação interior, a peregrinação é um misticismo
exteriorizado (V. e E. Turner)
Esses peregrinos parecem sugerir-nos que é necessário
compreender Deus de modo diferente. Ele não é um objeto deste mundo, está
distante e próximo, está nos céus como está dentro de nós. Pôr-se a caminho,
procurá-lo em outro lugar, sofrer na busca é o melhor modo de sentir a sua
falta e de ter d’Ele uma imensa e insaciável nostalgia. (pág.376)
8. Passar a Porta
Símbolo cultural e espacial de mudança e de
transformação na história comparada das religiões
1. Espaço e
rito: um binômio originário da relação microcosmo/macrocosmo
O rito e o culto são assim um espelho desse experiencial
originário que transforma o caos em ordem e que, somando-se a outras
experiências semelhantes, cria um primeiro e importante modo de ser no mundo.
(pág.379)
O espaço é sagrado então através da sua própria ordem e
organização e a criação é sagrada porque é o primeiro ato de organização e de
estruturação do universo num todo ordenado e harmônico em que as partes
convergem no todo e o todo integra as partes individuais. Se quiséssemos,
encontraríamos nesse ponto os grandes mitos e os grandes esquemas religiosos
tradicionais que por sua vez parecem clarificar a relação criação/rito. (pág.380)
3. A “porta” e
o “limiar” preservam o sagrado da profanidade do profano
A porta, portanto, representa o lugar onde acontece a
passagem de um estado a outro, a dobradiça entre dois mundos, entre o sagrado e
o profano, e a porta protege o sagrado, esconde o mistério. Participa desse
modo da própria ambigüidade do sagrado: tem o seu momento “fascinante”, mas
comporta também um tremendum. (pág.384)
No plano mais histórico-religioso e mitológico, pois tem
uma tarefa “protetora” e distintiva, poder-se-ia observar que a porta tem
necessidade de auxílios “apotropaicos”. Por isso, ela precisa ser rodeada de
estátuas, infissi, sinais, guardiães mais ou menos ferozes. Se a porta delimita
a fronteira, o confim, o limite, então essa sua função dever ser “marcada”.
(pág.384)
4. “Passar a
porta”, “cruzar o limiar”.
A dinâmica do rito de passagem
Em termos dinâmicos, a porta representa a passagem e
gera portanto o momento da separação, da ruptura, da morte, necessário para
introduzir num outro estado de vida e de realidade. Os grandes temas das
religiões no plano ritual de novo se condensam e tomam a forma deste símbolo
elementar de que fazemos uma experiência “primária”.
A iniciação, a morte iniciática, o catecumenato, a fase
de marginalidade e outros temas paralelos vieram aos poços assinalando o
momento mais especifico de muitos ritos a partir da passagem do “limiar”, da
“porta”, a partir da separação que implica o estar “aquém” ou o “passar além” e
aceitar o risco. (pág.385)
5.
Considerações intermediárias. “Além da porta”: o sagrado como incógnito e o
futuro como risco
Mas que significado pode assumir hoje essa ritualidade
de separação, esse momento de pausa e de reavaliação? O símbolo da porta, da
marginalidade, da prova iniciática ainda tem significado?
Em quase todas as culturas, ele representa a passagem e
o aspecto morte/vida[26]
que faz parte de toda passagem. (pág.387)
Tanto no aspecto do conteúdo quanto no da etimologia, o
sagrado deve conduzir também ao que é “desconhecido” e que portanto é
inacessível e causa medo na história das religiões. O ágios – como observam
muitos antropólogos e historiadores – é também de certo modo o agnos, o
incógnito, o que não se conhece e que se teme: é a preocupação com o que está
“além da porta”. O sagrado tem sempre também um espaço não esclarecido, é um
lugar ainda não explorado. O sagrado se constrói também através da “porta fechada”,
através do véu que impede a visão, é o lugar da inacessibilidade, comporta o
veto de se aproximar da “sarça ardente”[27].
Não é por acaso que a etimologia do termo sagrado me hebraico denota separação;
o sagrado na verdade é o qadosh, é o símbolo da porta “fechada”, a porta a que
não há acesso. “O homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo”, diz a
Bíblia.
As dimensões espaciais são metáforas para as temporais e
vice-versa. Por isso, não pode faltar aqui uma reflexão que olha para o que
está, “além da porta” como para aquele futuro incerto, precário, indecifrável,
para o qual todos estamos nos encaminhando com certa inquietude. (pág.388)
6. Reconhecer
o limite, passar a porta, fazer uma peregrinação de esperança
6.1 O sagrado
dessacralizado
O símbolo da porta e o significado dos “ritos de
passagem” vêem lembrar-nos que é necessário criar limites no espaço para dar
ordem ao mundo, mas é igualmente necessário “reconhecer” os limites do humano
para saber onde está o centro e onde está a periferia. O homem de hoje, é
verdade, não é mais movido pela concepção nietzschiana da “vontade de potência”
e do “super-homem”, mas nutre ainda, secretamente, uma visão “relativista” que
não lhe permite mais invocar um centro, um axis mundi de caráter religioso e,
respectivamente, uma periferia. E também essa visão relativizadora empobrece o
sagrado até exauri-lo de todo conteúdo. (pág.390)
[1] Com essa conclusão, venho mais uma vez enfatizar a visão holística
e interpretativa que tende a prevalecer na concepção cultural hodierna. Basta
citar a última página de Voget, onde ela afirma: “Aceita-se cada vez mais o
fato de que não se pode reduzir a realidade humana a uma dicotomia, mas que se
deve tratá-la como um processo unitário... O novo interesse pelo homem como ser
irracional-racional permite à antropologia perseguir o seu objetivo científico
inerente às relações e aos processos, e também pesquisar o homem de modo
humanista com base na relação consciente que ele faz dos valores e dos estilos
de vida”, cf. F.W. VOGET, Storia dell’etnologia contemporânea, Laterza, Bari 1984, 355, mas
venho também – e isto me interessa particularmente – desmentir aquela
antropologia cultural ligada ao folclore e às expressões de religiosidade
popular conterrânea que não sabe ver a experiência religiosa de nenhum outro
lugar (e aqui posso mencionar De Martino, Di Nola, LAnternari e outros). De
modo especial, pretendo fazer D. Sabbatucci compreender que o fato de ele
evitar falar de homo religiosus não depõe tanto contra a história ou a
antropologia, mas contra a sua própria falta de ouvido musical pela música que
é o mundo religioso. Ver a crítica ao homo religiosus de Sabbatucci, La
prospettiva storico-religiosa, SEAM, Milano 1990.
[2] Cf. para esse tema M. FEATHERSTONE, La cultura dislocata, SEAM, Roma
1998. Ver também, para a “crise da representação”: G.E. MACUS, M.M.J. FISCHER, antropologia
come critica culturale, Meltemi, Roma 1998, 47ss.
[3] Cf. R. OTTO, Il sacro, Feltrinelli, Milano 1962, p. 19ss.:”Il
sentimento’creaturale’ come riflesso del senso del numioso nella consapevolezza
di sé”.
[4] Para uma tematização deste momento oscilatório e desta insserção no
“Seelengrund”, cf.
[5] Cf. E.E. EVANS – PRITCHARD, Theories of Primitive Religions, Univ. Press, Oxford 1966, pp. 21ss.
[6] Ver a fenomenologia de Van der Leeuw: G. VAN DER LEEUV,
Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1970. A concepção do “mana”
e a teoria animista de Marrett estão na origem dessa visão. Cf. R.R. MARRETT, The Threshold of
REligion, Nethuen and Côo., London 1909.
[7] Esses outros fatores foram expostos especialmente em HUBERT e
MAUSS, “Esquisse d’une théorie générale de la magie”, L’année sociologique,
1902.
[8] Ver J.G. FRAZER, Totemismo, Newton Compton, Roma 1971. Para o
sacrifício do animal totêmico: E. DURKHEIM, Lê forme elementari della vita
religiosa, e antes dele, com relação à realigião judaica, W. ROBERTSON Smith,
The REligion of the Semites, London 1927.
[9] Cf. P. RICOEUR, Finitudine e colpa, Il Mulino, Bologna 1970, em que
se encontram algumas bela páginas em nível fenomenológico sobre a mancha como
primeira tomada de consciência de uma “culpabilidade”. Cf. também L. MOULINIER,
Le pur et l’impur dans la pensée e la sensibilité des Grecs jusqu’à la fin du
IV siècle avant J.C., Klincksieck, Paris 1952; J.P. VERNANT, “Il puro e
l’impuro”, in J.P. VERNANT, Mito e società nell’antica Grecia. Religione greca,
religioni antiche, Einaudi, Tortino 1981, pp. 115-134.
[10] Cf. M. ELIADE, Il mito dell’eterno ritorno, Rusconi, Milano 1975.
[11] Ver em especial R. OTTO, Il sacro, pp. 27ss., onde o autor cita as
expressões de Tersteegen: “Deus está presente; tudo cala em nós e se prostra
temeroso diante dele”.
[12] Ver a tese fundamental de van dee Leeuw em G. VAN DER LEEUW,
Fenomenologia della religione; cf. também M. ELIADE, Trattato..., pp. 24ss.
[13] Cf. F. HEILER, Le religioni dell’umanità. Volume de introdução
geral, p. 514.
[14] Cf. em nível antropológico e quase fenomenológico o estudo de C.
GEERTZ, “La religione come sistema culturale”, in C. GEERTZ, Interpretazione di
culture, Il MUlino, Bologna 1987.
[15] O momento da crise ligado à concepção do sagrado está bem presente
também na religiosidade popular, embora seja necessário delimitar-se o
significado e não concluir com uma tese totalmente historicista ou
funcionalista na esteira da visão de De Martino. Para esse discurso, cf. A.N.
TERRIN, Religioni, esperienza, verità. Saggi di fenomenologia della religione,
Quattrovento, Urbino 1986, segunda parte, Fenomenologia dell’esperienza
religiosa popolare, pp. 95-162.
[16] Observe-se como na história das religiões o destino está ligado ao
“tempo” entendido como divindade, como a Kala, a Zurvan e a Kronos. Relevo
especial tem o destino na concepção iraniana. Cf. U. BIANCHI, Zaman i Ohmazd.
Lo zoroastrismo nelle sue origini e nella sua esenza, SEI, Torino 1958.
[17] Naturalmente, escolhi aqui três paradigmas que me parecem
particularmente importantes para ver a relação entre sagrado e profano também
em fase histórica, mas não posso dizer que não haja outros importantes nem que
estes acabem realmente sendo os mais importantes.
[18] Para a distinção entre religião do pai e religião da mãe, ver J.
PRZYLUSKI, La grande déesse, Paris 1950; G.R. TAYLOR, Sex in History, London
1959; G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino
1970; G.J. BLEEKER, De moedergodin in de Oudheid, Den Haag 1960; Th.
SCHPPLINGER, “Der fraulichmütterliche Aspekt im Göttlichen”, Kairòs, 9 (1967),
pp. 277-295.
[19] Ver M. HEIDEGGER, Identität und
Diffrenz, Pfullingen 1957, 70: “Zu diesem Gott Kann der Mensch weder beten,
noch kann er ihm opfen. Vor der Causa sui kan der Mensch weder aus Scheu ins
knie fallen, noch kann er vor diesem Gott musizieren un danzen”.
[20] Ver todo o capítulo De la magie à l’efficacité symbolique, in
ibid., 64ss.
[21] Cf. P. BLANQUART, “Il religioso: uma nuova posta in gioco
strategica”, in M. CLEVENOT (org.), Rapporto sulle religioni. Analisi dei
fenomeni religiosi del mondo d’oggi, Sansoni, Firenze 1999, p. 15s.
[22] Cf. R. OTTO, Il sacro. L’irrazionale nell’idea del divino e la sua relazione al razionale,
Feltrinelli, Milano 1994.
[23] Cf. G. VAN DER LEEUW, Fenomenologia della religione, Boringhieiri,
Torino 1960.
[24] Cf. F. HEILER, Lê religioni dell’umanità. Introduzione generale,
Jaca Book, Milano 1985, especialmente p. 26s.
[25] Com relação e esse tema, ver meu livro A.N. TERRIN, Il rito.
Antropologia e fenomenologia della ritualità, Morcelliana, Brescia 1999,
especialmente o cap. “Spazio e rito”.
[26] Sobre essa temática, vez espacialmente G. VAN DER LEEUW,
Fenomenologia della religione, Boringhieiri, Torino 1960, 22
[27] Significativamente para esta temática, cf. G. BATESON, Dove gli
angeli esitano. Per uma epistemologia del sacro, Adelphi, Milano 19952.
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