Smile, Comparação, Metáfora, Analogia
Síntese: Paolo Cugini
Xenofontes foi o primeiro a expressar a relatividade das qualidades: “se Deus não houvesse criado o louro mel, os figos pareceriam muito mais doces” (fr. 38); mais tarde, isso levara ao cepticismo em relação à percepção sensível (cf. infra, pp. 238 e ss.). Daí surgem também outros problemas, como o paradoxo do “monte” (= grande quantidade de): dois grãos já são “muitos”? Ou três? Ou então quatro?
Uma certa ordem e uma certa possibilidade de orientação no domínio das qualidades são-nos dadas, antes de mais nada, na ordem natural das nossas percepções sensíveis: a vista distingue o claro e o escuro e as cores do vermelho ao violeta, e os outros sentidos fixam respectivamente os graus da escola correspondente. O espaço e o tempo tornaram-se acessíveis à nossa mente mediante os conceitos de “grande” e “pequeno”, e conseqüentemente, estabelecendo-se um sólido suporte sobre o qual podemos construir.
No domínio dos verbos, a dificuldade é maior. Entre as infinitas atividades possíveis, caracterizamos com verbos especiais somente algumas, típicas a amiúde recorrentes, e as inúmeras outras são, bem ou mal, indicadas com esses verbos. As múltiplas possibilidades de movimentos, ações, atitudes e estados, são colocados à força no esquema de uma classificação mais violenta e arbitrária do que aquela que estão sujeitas as qualidades ou as coisas.
Assim exalta Safo (98. 6 e ss.) a amiga distante: “Arignota resplandece entre as mulheres lídias como a luz entre as estrelas” (cf., supra pp. 75-76). Em Homero já encontramos imagens como: Aquiles “resplandece” como o sol, o elmo como uma estrela, o escudo de Aquiles como a lua ou como o fogo do pastor, uma coisa é bela como uma estrela, e assim por diante. A comparação de safo distingue-se das outras porque não estabelece apenas um confronto entre a esplendida mulher e o astro, mas também entre ela e as outras mulheres no meio das quais vive.
Mais importante ainda é observar o valor originário e o caráter de necessidade que tem as metáforas em tudo o que diz respeito ao mundo do espírito. No grego, é diante dos nossos olhos que vemos formar-se a concepção “abstrata” de todas as coisas relativas ao espírito e à alma, de tal modo que podemos com exatidão seguir o desenvolvimento dessas denominações metafóricas. Originariamente, o espírito é concebido por analogia com os órgãos do corpo e suas funções: a vuxn (psykhe) é a respiração, o alento que mantém o homem vivo; o ovlros (thymos) é o órgão dos “movimentos” espirituais e o vous (nous), o espírito, na medida em que “vê” e “cria imagens”. O “saber” (eioevai) é um ter visto; o “conhecer” (yiywqkeiv) está em relação com o ver; o “compreender” (quvievai) com o sentir; o entender de alguma coisa (eriktaoqoai) está em relação com o conhecimento pratico. O processo, o método, o progresso do pensamento são representados pela imagem do “caminho”; mesmo antes essa imagem se ocultava em expressões como o “desenvolvimento” do discurso, “o andamento” do poema. Encontraremos com freqüência essas denominações metafóricas dos fenômenos espirituais nos estudos históricos que se seguem, pois nem mesmo o pensamento “abstrato” consegue libertar-se das metáforas e continua a mover-se apoiando nas muletas da analogia. Será interessante não só do lado em quando, o pensamento elege na tentativa de chegar a um conhecimento racional do mundo.
O pensamento racional procura representar um caráter, decompondo-o em propriedades e força diversas que também podem apresentar-se alhures; e já que distingue entre objeto e qualidade, entre matéria e força, nada lhe impede que atribua a homens diferentes uma “mesma” qualidade ou mesma força. A mente primitiva, que ainda desconhece essa distinção, recorre necessariamente às unidades intuitivas para salientar, através dos confrontos, dentro dos confins de uma figura característica, objetivando o conhecimento; não é apenas um confronto, mas pretende também designar, pelo menos na origem. Uma relação real, de tal modo que o homem encontra nessa ralação comum animal um suporte não só para seu próprio conhecimento mas também para sua própria existência.
Função semelhante à dos animais desempenham também, nos símiles homéricos, as forças elementares como a tempestade, a onda, bem em tais símiles o homem interpreta a si mesmo, baseando-se nas formas naturais fora dele. As descrições naturais, como as representações de animais, não são quadros paisagísticos; vento e intempérie, mar e rios, noite e nevoa, fogo e arvores não despertam o interesse do poeta pela vida deles em si. Mesmo eles são considerados como expoentes de forças elementares, que também podem agir no homem e que o homem experimenta, empenhando contra elas suas próprias forças. Já que a Ilíada fala da luta entre gregos e troianos e, portanto, de fatos que se desenvolvem entre homens e homens, não é de estranhar que a natureza apareça quase que exclusivamente nos símiles e raramente na narração, limitando-se a compor o pano de fundo para a ação épica.
Um grupo de símiles destaca-se decisivamente dos que até agora consideramos; são os chamados “exemplos míticos” é que encontramos nos discursos, ao passo que os símiles se encontram na narração. Enquanto os símiles, quando se referem a homens, servem para esclarecer o comportamento de terceiros, os exemplos míticos, ao contrario, servem para o auto conhecimento, seja quando se quer orientar a si mesmo ou a outro para o esclarecimento da própria situação. Quando, por exemplo, o velho Fênix narra a Aquiles a historia de Meleagro (Il., IX, 527-99), que tanto mal causara com sua ira e que por tanto tempo perseverara em sua indignação a ponto de perder todos os presentes que lhe foram oferecidos, isso é para que Aquiles nele se reconheça a si mesmo. Se nessas comparações são particularmente enfatizados o “valor” e a “norma”, isso não nos deve fazer crer o elemento moral neles ganha particular realce é porque os homens, em Homero, não se abandonam à contemplação mas são imediatamente ativos, e da reflexão sobre si mesmos, passam facilmente à defesa, à desculpa, à atitude de modéstia ou a expressão de uma exigência; e assim, do incitamento à reflexão passam à admoestação, ao encorajamento ou à consolação. Todavia, quando Penélope confronta sua dor com a de Aédone, apenas reconhece apropria situação a confronta com a situação semelhante da filha de Pandáreo, sem que isso nada tenha a ver com moral. Os símiles nascem das metáforas e, por isso, servem num primeiro momento, para esclarecer as atividades isoladas; porem, pelo menos aqueles que assumem como modelo o animal, pôr em evidencia as atitudes típicas de um herói. Os “exemplos míticos” vão ainda alem, na medida em que podem dar uma representação mais completa da atitude humana nas suas causas e conseqüências. Há, de fato, símiles que desempenham essa função mais ampla, como o símile em que o pranto de Penélope, comovida porque Odisseu, ainda por ela não reconhecido, lhe fala de seu marido, comparado à neve que derrete (Od., XIV, 205) ou quando a morte de Euforbo é comparada a sorte de uma oliveira, que, apesar de cuidadosamente protegida, é derrubada pela tempestade. Todavia, os exemplos míticos prestam-se, de modo mais simples e natural, a pôr em foco o destino humano e tornalo compreensível.
Esses exemplos míticos nascem da tendência a “situar” o próprio ou mediante uma comparação, para assim alcançar solidez e certeza; tendência que também esta na base das comparações com animais e que tampoucos a nós é estranha, embora busquemos orientar-nos baseado não mais no mito mas no fatos da experiência e por meio de paralelos históricos.
Como a comparação com animais, assim também a comparação mítica não é de inicio usada apenas com o objetivo de conhecimento, pois o homem sente estar ligado às personagens mítica\s também por laços reais. Não só os heróis constituem uma fase intermédia entre deuses e homens, fazendo com que as estirpes e as famílias nobres neles reconheçam seus ancestrais: também muitas instituições se fazem remontar a eles, de modo que o homem se sente, ele próprio, parte viva desse mundo superior. Os mitos etiológicos renovam continuamente essa lembrança (cf. supra, p. 98), particularmente nas solenidades.
Como na alta poesia, assim também na tragédia Ática e através do mito que o homem atinge o autoconhecimento. Se quisermos captar ao vivo o tipo particular de interação que se desenvolve entre o mito e o gradual descoberta que o homem faz do próprio eu, sem nos limitarmos a considera-lo como um processo grandioso de tempos remotos, será bom servimo-nos de um exemplo extraídos de épocas mais recentes. Pelas representações que Rembrandt nos da o antigo testamento, conseguimos entender sua vida, pois as velhas historias são revividas através de sua experiências individual e ele, por sua vez, adquire consciência de sua posição nas figuras do passado. Do mesmo modo os gregos descobriram o espírito, vendo-o projetado nos mitos. Assim esquilo, através do destino de Orestes, descobre o que é “ação” no verdadeiro sentido da palavra, e assim também é o primeiro a introduzi-lo no velho mito. Quanto mais humano se torna o eco, através do qual o homem compreende a si mesmo, tanto mais o homem se humaniza; quanto mais racional se torna o pensamento do homem, tanto mais decisivamente, o mito se solta dos laços do oculto. Sob dois aspectos particularmente , os símiles míticos de Homero preludiam a interpretação racional do mito. A reflexão sobre o próprio eu, para qual servem os mitos, é também, o mais das vezes, limitação do eu: a maioria das comparações ensinam o homem a reconhecer sua própria humanidade e sua própria limitação. Elas exortam ao conhecimento do eu, no sentido do mote delfico “conhece-te a ti mesmo”, e, portanto à medida, à ordem, à reflexão. A outra característica é que as figuras que servem de exemplo não são potencias demoníacas ou figuras fabulosas, e sim, personagens de claros contornos, que tem nome definido e são, por vezes, deuses mas, mais frequentemente, heróis do mito. Ligadas a um determinado ambiente e ordenadas numa certa genealogia, essas figuras aproximam-se (é exatamente essa a diferença característica entre o mito e a fabula) da historia e do mundo da experiência. A mitologia grega caracteriza-se pelo fato de temas fabulisticos tornaram-se parte de integrantes de tema. O mito distingue-se do que é empiricamente dado, na medida em que não oferece puros fatos, mas também revela o sentido e o valor dos acontecimentos, e o que é “projeto” w, portanto, “lido” nas coisas não parece como o resultado de uma interpretação humana (como tal será desmascarado pela idade iluminista subseqüente), mas apresenta-se como uma realidade em si valida e divina. É também por esse motivo que o mito, e não somente o mito dos “exemplos” homéricos, representa um caminho intermédio entre as “idéias fixas” da primitiva interpretação mágica do mundo e a problematicidade e a incerteza de interpretação histórico-empirica mais tardia.
Os destinos típicos dos mitos gregos foram mantidos vivos pelos poetas, e não só pelos poetas gregos, através de sempre novas transformações. A narrativa histórica de Tucidides, livre de todo elemento mítico, conta com um valor duradouro na medida em que “casos do gênero ou semelhantes” àqueles por ela descritos continuarem sempre também a ocorrer no futuro (1, 22).
Enquanto nas comparações de Simonides com animais revela-se a tendência par a sistematicidade, as imagens ora apontadas por nos possuem tendência contraria mais igualmente característica e importante: isto é, tentam captar o elemento individual. As qualidades opostas já não são subdivididas entre diversos portadores: pelo contrario, acham-se reunidas no individuo. Essa segunda tendência exaure-se depois que a tragédia revelou, alem do dissídio do sentimento, também o da ação, isto é, um aspecto mais profundo da problemática do mundo e do individuo; e exaure-se no sentido de que doravante se tenta captar o homem como individuo na contraditoriedade de todo o seu ser.
Foi necessário percorrer um longo e complicado caminho, com a ajuda de comparações, para encontrar resposta à pergunta: Quem é Sócrates? Se é relativamente simples estabelecermos uma comparação quando se trata de coisa designada com nome comum (quando nos perguntam, por exemplo, o que é um leão?), visto que aí, confrontando, não fazemos mais do que estabelecer puras e simples identidades, já o confronto que brota de uma questão relativa a um nome próprio acolhe, em si, temas que provem da esfera do verbo e do adjetivo: através da determinação comparativa das atividades isoladas (em que nos valemos necessariamente de metáforas de origem verbal) e de típicos modos de ser, chega-se, gradativamente, por meio de comparações e oposições expressas com adjetivos, à caracterização individual.
Um outro desdobramento tem origem na tendência em sublinhar mais acentuadamente a ação e a situação do que aquele que age, seja para pôr em relevo o efeito do acontecimento no homem seja para salientar a concatenação dos fatos.
Para o desenvolvimento do pensamento racional tem mais importância a outra serie de comparações, iniciada por Sólon.
Um período pode, portanto apresentar uma relação lógica, mesmo sem que ela seja expressa e sem que aquele que fala a tenha claramente compreendido: pode existir uma lógica no discurso sem uma forma particular que a exprima. Visto que os meios que a língua oferece ao “pensamento lógico” desenvolveram-se relativamente tarde, há um estado primitivo no qual a lógica só aparece de forma “implícita”. A capacidade de falar com sentido e coerência não nasceu apenas com o chamado “pensamento lógico”, como também não apenas com o pensamento racional nasceu a necessidade de buscar a causa e efeito. Também o pensamento “mítico” se preocupou com relação etiológica; a busca da origem das coisas está de fato no centro do mito: a busca da origem do mundo, por exemplo, dos fenômenos da natureza, dos homens, das suas intuições, usos, instrumentos, e assim por diante.
Entre os filósofos pré-socrático, Empédocles é aquele que, mais que os outros, deixa nas comparações transparecer sua dependência dos símiles homéricos, e visto que suas comparações preludiam os métodos usados mais tarde nas ciências naturais, nelas se patenteiam bastante claramente a passagem da poesia para a filosofia.
Empédocles não procura captar esse elemento vivo que se manifesta num dado momento, mas sim todas as suas comparações tendem a por em evidencia um processo físico (ou químico), referindo-se, portanto, a algo de duradouro. “Tornar evidente” significa aqui não apenas esclarecer, apresentar de forma mais ou menos eficaz diante dos olhos: no modelo técnico, dá-se ênfase ao mesmo processo físico que se desenvolve naquilo que Empédocles quer explicar. O fato de que através da lamina, córnea da lanterna, penetre a luz não o ar, baseia-se nas mesmas propriedades físicas, isto é, nos poros finos pelos quais o olho deixa passar a luz, mas não a água. Quando confronta um procedimento com o outro e os apresenta como iguais, Empédocles suscita aquela exigência de identidade que fazemos valer ao dizer de dois animais que cada um deles “é” um leão. Empédocles inicia sua comparação falando do homem que sai pela noite invernal, mas esse é apenas o invólucro poético do seu símile, na verdade, sua meta vai alem do homem isolado, do objeto ou de um determinado ponto do tempo: visa a algo que possa valer sempre e em todo lugar.
Ele procura chegar exatamente e um tertium comparationis, e o valor de seu símile está exatamente nessa procura do preciso e estável elemento comum. O símile perde, assim, em linha de principio, o seu conteúdo poético, embora Empédocles o envolva no esplendor da forma bem construída e do embelezamento literário. Para Homero, o pormenor artisticamente cuidado é parte integrante do símile, ainda que isso possa parecer absurdo a uma interpretação racionalista, visto que a fundação particular da metáfora, da imagem, do símile, que é a de transmitir como que num espelho a concreta realidade das coisas, permite que certos pormenores, mesmo sem nada terem a ver com o verdadeiro confronto, possam também assumir importância a servir para ilustrar o fato.
O interesse de Empédocles jamais se volta para o processo vital; as forças que operam na natureza, da qual, de resto, ele tem uma concepção muito precisa, são desprezadas nas suas comparações e, ao que parece, deliberadamente. Compare ele a combinação dos quatro elementos no mundo às misturas que faz o pintor com suas tintas, ou a outras matérias que habitualmente apareçam combinadas. Diz ele: assim como o coalho condensa o leite (reporta-se ele aqui ao símile de Homero já citado), assim também uma matéria liquida, acrescentada a outra, pode produzir uma sólida; assim como o padeiro mistura farinha e água permanece num recipiente que é posto a girar em alta velocidade, assim também se formam as fontes quentes, quando escorrem através de zona em fogo do interior da terra; assim também da mistura dos tenros germes do cavalo e do asno, nasce um animal de forte resistência. A respiração da pele é comparada ao movimento do sifão o tímpano da orelha a um sino soante. Mesmo que muitos pormenores desses confrontos possam parecer incertos, jamais aqui se procura ilustrar a “ação” do homem ou do animal, como na maioria dos símiles homéricos, e nem mesmo a “vida” orgânica, como no símile das folhas; na base dessas comparações está uma terceira representação, que, embora também ela pertença à esfera do verbo, deve ser distinguida das outras duas: a representação do “movimento”. Também no campo do verbo existem, portanto, três categorias, como temos, no do substantivo, o nome comum, o nome próprio e o nome abstrato (cf. infra, p 231) . Nos seus símiles, Empédocles recorre àquele, segundo o qual, a natureza é concebida como matéria morta, o menos antropomorficamente possível. Busca a interpretação mecânica da natureza, a pura mutação no espaço e no tempo, aquele aspecto,, e somente aquele aspecto, pelo qual dois processos são idênticos entre si. Assim pode, no campo verbal, obtemperar àquela severa exigência do símile, que, no campo do substantivo, é satisfeita pelo nome comum, sobretudo na denominação dos seres vivos. Essa consciente exigência da filosofia, de tratar o “ser” com severidade e precisão, foi levantada por parâmetros e, a partir de então, não podemos pensá-la separada da filosofia e da ciência.
A partir desse momento, a redução de um processo a puros dados físicos assume o valor de “explicação”. Também os símiles homéricos revelam algo que está oculto, que não pode ser entendido de forma imediata; Empédocles ainda se vale, na explicação, do método da evidencia, na medida em que ilustra o que é oculto e impenetrável por meio de coisas que o próprio homem construiu, ou por meio de atividades que ele próprio desempenha: é o procedimento que também nos seguimos quando explicamos a função do olho comparando-o a uma maquina fotográfica; o que é construído pelo homem parece-nos mais compreensível do que o que é criado pela natureza.
Como Empédocles, também Heráclito esta voltado para algo que não é visível, que deve ser revelado; mas os símiles de Empédocles tendem, de certo modo, a superar a linguagem baseada em imagens, já que processo idêntico ao que se desenvolve na imagem, que serve para esclarecer o fato, e no fato, que deve ser esclarecido, pode ser apreendido com maior precisão na lei física (coisa que os gregos apenas tentaram); ao passo que o homem o que Heráclito quer exprimir só se deixa representar em linha de principio mediante de imagens. Em Heráclito compreendemos em que sentido se pode falar de metáforas “originarias”; e vemos que elas pertencem a uma zona mais profunda que não é da atividade humana ou animal; à zona da vida universal. Impossível de captar por meio do conceito ou do principio do “terceiro excluído”, esse elemento apresenta-se das mais diferentes formas, mas em cada uma delas está completo, e só através delas pode “falar” ao homem e, portanto, só através delas pode ser representado. A mente primitiva serve-se instintivamente desse meio; aplica espontaneamente sua interpretação antropomórfica da natureza e exprime-se ingenuamente em metáforas. Heráclito procura captar na sua essência particular esse universal liberto das aparências sensíveis.
Alem de tais imagens, que buscam captar a vida em seus misteriosos contrastes, Heráclito emprega uma forma de comparação inteiramente diversa. Diz (83): “O homem mais sábio não é, diante de Deus, se não o macaco em sabedoria e em todo o resto”. Essa comparação não se baseia no verbo, mas num adjetivo. Os diferentes graus de beleza e sabedoria são cotejados como os termos de uma proporção: a beleza do macaco está para a beleza do homem assim como a do homem está para a de Deus. Em Heráclito também encontramos outras “proporções” do gênero, algumas expressa de forma completa, outras apenas esboçadas nas quais em lugar do macaco temos, ocasionalmente, o menino (70, 79), o homem que dorme (73), o bêbado (117), a pomba (34), o boi (4), o porco (13). Heráclito vale-se dessas “proporções”, para fazer ao homem compreender que não pensa na distancia que o separa da perfeição.
A teoria da proporção foi desenvolvida na matemática sobre tudo pelos pitagoricos: Platão vale-se dela pela suas deduções analógicas mesmo fora do campo matemático; mas aqui surge um outro problema: isto é a de saber se esse método conserva a sua força demonstrativa mesmo quando transferido para um outro campo, pois, se o confronto se transforma em demonstração, a formula de igualdade deve necessariamente ser entendida em sentido rigoroso, o que vem vastos campos da língua não pode, de modo algum, acontecer, como já nos foi demonstrado por numerosos exemplos.
Platão estabelece, no Gorgias, essa proporção: A retórica está para a filosofia como a arte culinária para a medicina.
O contraste entre imagem mítica e pensamento lógico delineia-se claro e preciso na interpretação causal da natureza. Nesse campo, também a passagem do pensamento mito para o lógico adquire uma evidencia imediata: aquilo que, nos primeiros tempos, era interpretado como obra de deuses, de demônios e de heróis será mais tarde interpretado em sentido racional. A causalidade mítica não se limita, porem, aos fatos naturais, passiveis de serem explicadas pela lei de causalidade cientifica: ela diz respeito sobre tudo a origem das coisas e a vida, fenômenos cujas causas não se podem determinar exatamente. Estende-se alem do âmbito da natureza, pois também no surgir do pensamento, do sentimentos, dos desejos e das decisões, e assim por diante, é atribuído a uma intervenção dos deuses e, por tanto, a causalidade mítica também domina naquele campo em que, após a descoberta da alma, serão acolhidos os motivos psíquicos. Mas, visto que pensamento mítico não se limita a explicar as causas, e também serve, por exemplo, para o entendimento do ser humano, é evidente que o pensamento mítico e o pensamento lógico não cobre um único a mesmo campo. Assim como muitas coisas do mundo mítico e o pensamento lógico, assim também muitas coisas novas, descobertas no campo da lógica, não podem ser substituídos por nenhum elemento mítico. Fala-se impropriamente de um contraste entre mitos e logos fora do âmbito da interpretação causal da natureza, na medida em que o mito diz respeito ao conteúdo do pensamento e a lógica, à forma. Valer-nos-emos, porem, desses conceitos uma vez que eles representam com evidencia dois degraus históricos do pensamento humano, tendo presente, porem, que não exclui rigorosamente o outro; pelo contrario, no pensamento expresso de forma mítica podem ser incorporados elementos lógicos e vice-versa, e a passagem de um para o outro realiza-se lenta e gradativamente; pode-se mesmo dizer que esse processo jamais chega ao fim.
O pensamento mítico está em estreita relação como o pensamento que se exprime por imagem e similitudes. Ambos distinguem-se psicologicamente do pensamento lógico porque este se ocupa exaustivamente com a investigação, ao passo que as imagens do mito e dos símiles impõem-se à imaginação. Isso acarreta uma diferença de fato: para o pensamento lógico a verdade é algo que deve ser pesquisado, indagado e sonhado, é a incógnita de um problema do qual se busca a solução com método e precisão, com rigoroso respeito ao principio de contradição, e cujo resultado se apresenta um caráter de obrigatoriedade universal. As figuras míticas, ao contrario, apresentam-se de per si absolutamente dotadas de sentido e de valo, tanto quanto as imagens dos símiles, que falam uma língua viva imediatamente compreensível: para o ouvinte, tem elas aquela mesma evidencia imediata que para o poeta, que as recebe como um dom da Musa, isto é, por intuição, ou como quer que se diga. O pensamento mítico exige receptividade, o pensamento lógico, atividade; este se desenvolve, de fato, de pois que o homem chega à consciência de si, ao passo que o pensamento mítico é vizinho do estado de sonho, no qual imagens e pensamentos vagam sem controle por parte da vontade.
Para a mente racional, o mito surge como “inatural”, e isso quer dizer, em primeiro lugar, que ele não está isento de contradições. Já Homero busca uma motivação direta, continuada, e evita o que não é natural; o divino jamais se manifesta arbitrariamente. A dissolução do mito começa com o repudio explicito de analogias dúbias. Assim Xenófanes separa nitidamente o divino do humano e não admite que aos deuses se atribuam qualidades e, menos ainda, defeitos humanos. Consequentemente, também se tende a atribuir ao homem, e ao que é formado à imagem do homem, apenas qualidades humanas, daí por que Hecateu julgara inaturais os antigos mitos em contraste com a experiência comum e controlável, corrigindo de acordo os fatos transmitidos pela tradição. Teria tido Dânaos 50 filhas? Na realidade, não podia ele ter mais de 20. Teria Heracles trazido para a terra o cao infernal? Na verdade, devia tratar-se de uma serpente que habitava debaixo da terra e cuja mordida era mortal. Só se aceitam analogias no quadro da experiência natural que nada devera contradizer.
A era arcaica tem uma extraordinária sede de experiência. Com “incansáveis” olhos, como diz certa vez Empédocles (fr. 86), olham os gregos ao seu redor, naqueles tempos. De múltiplos modos entrelaçam-se ainda as novas descobertas aos mitos que viçosamente florescem, até que se estabeleça aquela distinção pela qual o mito oferece matéria para a poesia -, e a experiência, para a ciência nascente. Mas como na tragédia Ática o gosto de múltiplo e do vario cede diante do interesse pelas múltiplas experiências. Para os filósofos da época clássica, adquire cada vez maior importância aquele setor da experiência que se possa dominar com o pensamento, que satisfaça às severas exigências da repetibilidade, da identidade e da não contradição. Mas são assim postas de lado muitas coisas, ou seja, o fator vital propriamente dito; e não só o significado mas também o valor de cada acontecimento escapa ao controle do pensamento, como já fica evidente no fato de um confronto severo só ser possível em limitadas categorias da língua. Dentro desse campo limitado, os gregos elaboraram um severo método de pensamento; aqui as formas; aqui as formas iniciais da língua foram coerentemente desenvolvidas em relação a um fim determinado. Construíram eles, assim, a base sólida não só da ciência natural de seu tempo, mas também da dos tempos modernos. Ao revelar-se à possibilidade de um uso o mais absolutamente seguro da conclusão analógica e de um progresso cientifico conseqüente, essa forma de pensamento foi tomada como modelo de tentativa de se alcançar precisão semelhante também em outros campos (por Platão, por exemplo). Dedicando-se um acurado estudo aqueles categorias da língua que se desenvolveram no pensamento das ciências naturais, talvez se possa contribuir para abrir caminho em direção a uma nova lógica (ou talvez a duas) que também responde às exigências do que não se inclui no campo das ciências naturais.
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