sábado, 28 de dezembro de 2024

O PENSAMENTO DE ARISTÓTELES




Aulas completas com referência ao texto de Giovanni Reale, História da filosofia antiga

Síntese: Paolo Cugini



Tangências entre Platão e Aristóteles: A verificação da “segunda navegação”

Aristóteles criticou arduamente a doutrina dos Princípios e a teoria das Idéias, e negou a existência do Princípio do Uno-Bem e de todas as Idéias ou Formas transcendentes. Todavia –e é indispensável compreender muito bem este ponto capital -, com isso ele não pretendeu absolutamente negar que existiam algumas realidades supra-sensíveis. Ele quis demonstrar, ao invés, que a realidade supra-sensível não é como Platão pensava que fosse (ou, pelo menos, o é só parte e numa ótica diversa).

As diferenças entre Aristóteles e Platão 

Platão, além de filósofo, é também um místico (e um poeta); Aristóteles, ao invés, além de filósofo, é também um cientista.

A ironia e a maiêutica socráticas, fundindo-se com uma força poética excepcional, deram origem, em Platão, a um discurso sempre aberto, a um filosofar como busca sem repouso. O oposto espírito cientifico de Aristóteles devia necessariamente levar a uma sistematização orgânica das várias aquisições, a uma distinção dos temas e dos problemas segundo a sua natureza e, também, a uma diferenciação dos métodos com os quais afrontar e resolver os diversos tipos de problemas. E assim á mobilíssima espiral platônica, que tendia a envolver e a juntar sempre todos os problemas, sucederia uma sistematização estável e definitivamente fixada dos quadros da problemática do saber filosófico. Que levam o discípulo a uma superação do mestre, que é uma verificação da sua conquista de fundo. Um completamento que leva á sistematização do saber filosófico á qual já acenamos a especulação ocidental por séculos inteiros.

Conceito e características da metafísica 

Aristóteles distinguiu as ciências em três grandes ramos: a) ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmo, b) ciências praticas, que buscam o saber para alcançar, através dele, a perfeição moral e c) ciências poéticas ou produtivas, que buscam o saber em vista do fazer, isto é, com a finalidade de produzir determinados objetos. As mais elevadas por dignidade e valor são as primeiras, constituídas pela metafísica, pela física (na qual está incluída a psicologia) e pela matemática.

Aristóteles usava, normalmente, a expressão filosófica primeira ou também teologia em posição á filosofia segunda ou física. A metafísica aristotélica é, a ciência que se ocupa das realidades que estão acima das físicas, e, como tal, opõe-se á física. E metafísica foi denominada definitivamente e de maneira constante, na trilha do pensamento aristotélico, toda tentativa do pensamento humano de ultrapassar o mundo empírico para alcançar uma realidade meta-empírica.

As definições dadas pelo filosofo são pelo menos quatro: a) a metafísica indaga as causas e os princípios ou supremos, b) a metafísica indaga o ser enquanto ser, c) a metafísica indaga a substância, d) a metafísica indaga Deus e a substancia supra-sensível.

A pesquisa sobre Deus não é só um momento da pesquisa metafísica, mas é o momento essencial e definidor. O Estagirita, de resto, diz com toda clareza que se não existisse uma substância supra-sensível nem sequer existiria a metafísica.

E compreende-se bem a razão: se não existisse o supra-sensível, as causas e os princípios seriam só os sensíveis, ou seja, os físicos; se não existisse uma realidade supra-sensível, não restariam senão a natureza e as causas naturais, e a ciência mais elevada seria a da natureza e das causas naturais, a física.

Da “segunda navegação” platônica nasceu, fundamentalmente, a nova ciência, que, querendo alcançar a substância ou o ser suprafísico, de fato e de direito merece o apelativo de meta-fisica. A metafísica não é uma ciência dirigida a fins práticos ou empíricos. A metafísica é a ciência que vale em si e para si, porque tem em si mesma o seu fim e, neste sentido, é ciência “livre” por excelência.

A metafísica, nasce da admiração e do estupor que o homem experimenta diante das coisas: nasce, por isso, de um puro amor ao saber, da necessidade, radicada na natureza humana, de conhecer o porquê último;. A metafísica é, pois, ciência que tende exclusivamente a apaziguar essa exigência humana do puro conhecimento.

O homem que faz metafísica aproximar-se de Deus, e nisso Aristóteles indicou a máxima felicidade do homem. Deus é feliz conhecendo e contemplando a si próprio; o homem é feliz conhecendo e contemplando os princípios supremos das coisas, portanto, Deus in primis et ante omnia.

As quatro causas

A metafísica é, pesquisa das causas primeiras. Quatro causas 1) causa formal, 2) causa material, 3) causa eficiente, 4) causa final.

As duas primeiras são a forma ou essência e a matéria, que constituem todas as coisas, (Recorde-se que “causa” e “principio”, para Aristóteles, significam o que funda, o que condiciona, o que estrutura), matéria e forma, se considerarmos o ser das coisas estaticamente, bastam para explicá-lo; não bastam, ao invés, se o considerarmos dinamicamente, isto é, no seu desenvolvimento, no seu devir, no seu produzir-se e no seu corromper-se. De fato, é evidente que se considerarmos, por exemplo, determinando homem estaticamente, ele se reproduz á sua matéria (carne e ossos) e á sua forma (alma); mas se o consideramos dinamicamente e perguntarmos: “Como nasceu?”, “quem o gerou?”, “por que se desenvolve e cresce?”, impõem-se duas outras razões ou causas: a causa eficiente ou motora, isto é, os que o geraram, e a causa final, ou seja, o telos ou o fim ao qual tende o devir do homem.

1) A causa e, a forma ou essência das coisas: a alma para os animais, as relações formais determinadas para as diferentes figuras geométricas, determinadas estrutura para os diferentes objetos de arte, e assim por diante.

2) A causa material ou matéria é “aquilo de que” é feita uma coisa:

3) A causa eficiente ou motora é aquilo de que provem a mudança e o movimento das coisas:

4) A causa final constitui o fim ou o escopo das coisas e das ações:

O ser o devir das coisas exigem em geral essas quatro causas.

O ser e os seus significados e o sentido da fórmula “ser enquanto ser”

O ser não tem sentido unívoco, mas polívoco.

Eis como, exatamente, Aristóteles caracteriza o ser:

a) o ser não pode ser entendido univocamente ao modo dos eleatas, nem como gênero transcendente ou universal substancial ao modo dos platônicos.

b) O ser exprime originariamente uma “multiplicidade” de significados. Não por isso, porém, é mero “homônimo”, isto é, um “equivoco”. Entre univocidade e equivocidade pura há uma via de meio, e o caso do ser está, justamente, nessa vida intermediária.

Assim, portanto, também o ser em muitos sentidos, mas todos em referencia a um único principio.

c) O ser, em conseqüência do que se estabeleceu, não poderá ser um “gênero” e muito menos uma “espécie”. Trata-se, pois, de um conceito trans-genérico, além de trans-específico, vale dizer, mais amplo e mais extenso do que o gênero e a espécie.

d) Se a unidade do ser não é unidade nem de espécie nem de gênero, que tipo de unidade é? O ser exprime significados diversos, mas todos eles tendo uma precisa relação com um idêntico princípio ou uma idêntica realidade. Portanto, as várias coisas que são ditas “ser” exprimem sentidos diferentes de ser, mas ao mesmo tempo todas implicam uma referência a algo que é uno.

e) Que é esse algo uno? É a substância.

O centro unificador dos significados de ser é a ousía, a substancia. A unidade dos vários significados de ser deriva do fato de serem ditos em relação á substancia.

Disso tudo se deduz claramente que a ontologia aristotélica deverá distinguir e estabelecer quais os vários significados de ser; mas ela não poderá reduzir-se absolutamente a mera fenomenologia ou descrição fenomenológica dos diversos significados de ser, porque todos os diferentes significados que o ser pode assumir implicam uma referência fundamental á substância: excluída a substância, seriam excluídos todos os significados de ser. Então, é claro que a ontologia aristotélica deverá, fundamentalmente, centrar-se na substância, que é o princípio em relação ao qual todos os outros significados subsistem. E, nesse sentido, podemos dizer que ontologia aristotélica é, fundamentalmente, uma usiologia.

O “ser enquanto ser” significará a substância e tudo o que, de múltiplos modos, se refere á substância.

A tábua aristotélica dos significados do ser e a sua estrutura

Eis o elenco e a elucidação dos significados de ser.

a) O ser se diz, por um lado, no sentido acidental.

b) Oposto ao ser acidental, é o ser por si. Este indica, não o que é por outro, como o ser acidental, mas o que é pior si, isto é, essencialmente.

c) Em terceiro lugar, vem o significado de ser como verdadeiro, contraposto ao significado do não-ser como falso. Este é o ser que podemos chamar “lógico”.

d) O último elencado é o significado de ser como potência e como ato.

O ser segundo a potência e segundo o ato, esclarece Aristóteles, estende-se a todos os significados de ser acima descritos.

Para reduzir a esquema o que foi dito e para concluir, diremos que os significados de ser são os quatro seguintes, ordenados do significado mais forte ao mais fraco:

a) ser segundo as diferentes figuras de categorias;

b) ser segundo o ato e a potência;

c) ser como verdadeiro e falso;

d) ser como acidente ou ser fortuito.

Os significados do não-ser são, ao invés, somente três:

a) não-ser segundo as diferentes figuras de categorias;

b) não-ser como potência (= não-ser-em-ato);

c) não ser como falso.

Especificações sobre os significados de ser

a) Em primeiro lugar, as diferentes figuras de categorias não oferecem significados idênticos ou unívocos de ser; noutros termos, o ser transmitido por cada uma das “figuras de categorias” constitui um significado diferente do significado de cada uma das outras.

Aristóteles diz expressamente que o ser pertence ás diversas categorias, não do mesmo modo, nem no mesmo grau:

Qual é o laço especifico que une as diversas “figuras de categorias” num único grupo, que é, justamente, o das categorias? As figuras das categorias oferecem os significados primeiros e fundamentais de ser: são a distinção originaria sobre a qual, necessariamente, se apóia a distinção a dos ulteriores significados.

Eis a tábua das categorias:

[1] Substância ou essência

[2] Qualidade

[3] Quantidade

[4] Relação

[5] Ação ou agir

[6] Paixão ou padecer

[7] Onde ou lugar

[8] Quando ou tempo

[9] Ter

[10] Jazer

b) Também o ser segundo a potência e o ato não tem só um significado. A experiência diz, com efeito, que além do modo ser em ato, há o modo de ser em potência: isto é, o modo de ser que não é ato, mas capacidade de ser ato: quem nega a existência de ouro modo de ser além daquele em ato, acaba fixando a realidade num imobilismo atualístico que exclui qualquer forma de devir ou de movimento.

Porém o ser potencial e o ser atual, mesmo tomado singularmente, não têm um único significado, mas, de novo, revestem muitos significados. Efetivamente, o ato e a potência estendem-se a todas as categorias e assumem tantos significados diferentes quantas são as categorias. Isso quer dizer que a uma forma de ser em ato e uma de ser em potência segundo substância, uma forma de ser em ato e uma de ser em potência segundo a qualidade, outra forma ainda diferente de atoe de potência segundo a quantidade, e assim por diante.

O ser como potência e o ser como ato não existem fora ou além das categorias, mas são modo de ser que se apóiam no ser das categorias, mas são modos de ser que se apóiam no ser das categorias, são modos de ser que se estendem segundo toda a tábua das categorias, e são diversos segundo se apóiem nas diferentes figuras de categorias.

c) Também o terceiro significado de ser, o ser como verdadeiro e como falso, entende se em diferentes modos, e ele também se apóia no ser das categorias.

d) Por último, resta falar do ser acidental. Quando o Estagirita fala de ser acidental, entende sempre o ser fortuito ou casual, vale dizer, um ser que depende de outro ser, ao qual, porém, não é ligado por nenhum vínculo essencial.

O ser acidental é o que não pode ser, é o que não é sempre nem na maioria das vezes. O ser (ao menos o ser sensível) é impensável sem as categorias; o que significa que, enquanto tal, elas são necessárias. Um exemplo servirá para esclarecer o pensamento e concluir. Não é absolutamente necessário que um seja pálido ou irado: que o homem tenha estas qualidades é acidental, fortuito, causal, no sentido de que elas poderiam, indiferentemente, ser ou não ser; porém é necessário que o homem tenha qualidades (não importa se estas ou outras). O acidente, em sentido próprio, e o ser acidental só podem fundar-se sobre as categorias, mas distinguem-se totalmente delas, enquanto a categoria é necessária, e o acidente é afecção ou acontecimento meramente fortuito, que tem lugar segundo cada uma das categorias. Todos os significados do ser pressupõem o ser das categorias; mas as varias categorias, por sua vez, não estão todas no mesmo plano: entre a substância e as outras categorias há uma diferença radical, uma diferença de algum modo compatível á que existe entre as categorias em geral e os outros significados do ser. Todos os significados de ser pressupõem o ser das categorias; por sua vez, o ser das categorias depende inteiramente do ser da primeira categoria, ou seja, da substância.

A questão da substância

Os predecessores de Aristóteles deram á questão da substância soluções antitéticas: alguns viram na matéria sensível a única substância: Platão, ao invés, indicou nos entes supra-sensíveis a verdadeira substância, enquanto o senso comum parecia indicá-la nas coisas concretas.

Aristóteles afronta ex novo a questão, estruturando-a de maneira exemplar. O ponto de chegada consistirá em determinar que substância existem: se somente as sensíveis ou também as supra-sensíveis. Trata-se, em último analise, de decidir da validade ou não dos resultados da “segunda navegação” de Platão.

Par poder resolver esse problema específico, Aristóteles quer primeiro resolver o problema do que é substância em geral. Que é a substância em geral? É a matéria? É a forma? É o símbolo? Poder-se-a, dizer se existe só o sensível ou também o supra-sensível, se for estabelecido, primeiro, que é a ousía em geral.

E em que se baseará Aristóteles para tratar da substancia em geral? Obviamente as substâncias não contestadas por ninguém: as substâncias sensíveis.

Em conclusão, dos dois problemas da usiologia aristotélica, o primeiro, “que é a substância em geral”, é preliminar ao segundo, “que substâncias existem” (problema teológico); além disso o primeiro (preliminar) não se pode resolver senão com base na substância sensível, a única que se conhece, antes de aceitar se existe ou não também uma substância supra-sensível.

A questão da “ousía” em geral: a forma, a matéria, o sínolo e as notas definidoras do conceito de substância

O Estagirita diz que por ousía podem-se entender, a título diverso, seja 1) a forma, seja 2) a matéria, seja 3) o símbolo de matéria e forma.

1) Substância é, num sentido, a forma. “Forma”, segundo Aristóteles, não é obviamente a forma extrínseca ou a figura exterior das coisas, mas é a natureza interior das coisas, que é ou essência íntima das mesmas. A forma ou essência do homem, por exemplo, é a sua alma, ou seja, o que faz dele um ser vivo racional; Quando definimos as coisas, referimo-nos á sua essência.  

2) Se não se realizasse na madeira a essência ou forma da mesa, ela não teria nenhum concretude, e o mesmo deve-se dizer de todos os outros casos. Neste sentido, também a matéria resulta fundamental para a constituição das coisas e, portanto, poderá ser dita substância das coisas. É claro, ademais, que esses limites são bem definíveis: de fato, se não existisse a forma, a matéria seria indeterminada e não bastaria absolutamente para construir as coisas.

3) Sínolo. Composto é a concreta união de forma e matéria. Todas as coisas concretas não são mais que sínolos de forma e matéria. 

Portanto, todas as coisas sensíveis, sem distinção, podem ser consideradas na sua forma, na sua matéria, no seu todo; substância (ousía) são, a titulo diverso (no sentido em que vimos), tanto a forma como a matéria e o sínolo.

1) só se pode chamar substância o que não inere a outra e não se predica de outro, é substância de inerência e de predicação de todos os outros modos de ser.

2) Substância só pode ser um ente que pode substituir por si ou separadamente do resto, dotado de uma forma de subsistência autônoma.

3) Pode-se chamar substancia só o que é um algo determinado: não pode, portanto, ser substância um atributo geral, nem algo universal e abstrato.

4) Substância deve ser algo intrinsecamente unitário e não um mero agregado de partes ou uma multiplicidade qualquer não-organizada.

5) Só é substância o que é ato ou em ato.

1) A matéria 

Que a matéria só é substância em sentido muito fraco e impróprio, a matéria ela só possui a primeira característica da substancialidade e não as outras.

Ao invés, a forma e o sínolo, embora não de maneira idêntica, têm todas as características da substancialidade.

1) A forma

2) E o sínolo?

A forma pode ser chamada substância por excelência:

O ser no seu significado mais forte é a substância; e a substância num sentido (impróprio) é matéria, num segundo sentido (mais próprio) é o sínolo, e num terceiro sentido (e por excelência) é a forma: ser é, pois, a matéria; ser, em grau mais elevado, é o sínolo; e ser é, no sentido mais forte, a forma. 

A “forma” aristotélica não é o universal

Aristóteles, demonstra que matéria, forma e sínolo podem ser considerados ousía, enquanto o universal, elevado pelos platônicos ao posto de substancia por excelência, não pode absolutamente considerado substancia, porque não possui nenhuma das características que vimos serem próprias da substancialidade.

O eidos aristotélico não é um universal? A resposta é inequivocamente negativa. Muitas vezes Aristóteles qualifica o seu eidos como Ti expressão que indica o determinado que se opõe ao universal abstrato; e, de resto, vimos que todas as características da substancialidade competem ao eidos. O eidos aristotélico é um principio metafísico, uma condição ontológica: uma estrutura ontológica.

Como se vê, a ousía-eidos de Aristóteles, como estrutura ontológica imanente da coisa, não pode absolutamente confundir-se com o universal abstrato. O universal é, ao invés, o gênero (  ), que não tem uma realidade ontológica separada. A alma do homem, como eidos, é um principio que informa um corpo e faz dele um homem, e tem a sua realidade ontológica; ao contrario, animal, entendido como gênero, só é um termo comum abstrato, que não tem realidade em si e não existe senão no homem ou em outra forma de animal.

O eidos aristotélico tem dois aspectos: um deles é o ontológico, o outro é o que poderemos chamar de lógico.

O eidos não só é  um universal, mas é mais ser que a matéria e mais ser que o sínolo, enquanto é principio que, estruturando a matérias,  faz subsistir o próprio sínolo.

O ato e a potência

A matéria não é potência, potencialidade, é capacidade de assumir ou receber a forma. A forma configura-se, ao invés, como ato ou atuação da capacidade. O sínolo de matéria e forma será, se o consideramos como tal, predominantemente ato; se o considerarmos na sua forma, será sem dúvida ato ou enteléquia, e, se o considerarmos na sua materialidade, será, ao invés, misto de potencia e ato. Todas as coisas que possuem matéria têm sempre, como tais, maior ou menor potencialidade. Se, como veremos, existem seres imateriais, isto é, puras formas, eles serão atos puros, privados de potencialidade.

O ato, é chamado por Aristóteles também de enteléquia:. Portanto, ato e enteléquia referem-se á realização, perfeição atualmente e atuada. A alma, enquanto essência e forma do corpo, é ato e enteléquia do corpo; e, em geral, todas as formas das substâncias sensíveis são ato e enteléquia. Deus, como veremos será enteléquia pura.

O ato, diz ainda Aristóteles, tem absoluta “prioridade” e superioridade sobre a potência: de fato, não podemos conhecer a potência como tal, senão reportando-a ao ato do qual é potência. Ademais, o ato (que é forma) é condição, regra e fim da potencialidade. O ato é superior á potência, porque é o modo de ser das substâncias eternas.

A doutrina da potência e do ato é, do ponto de vista metafísico, de grandíssima importância. Com ela Aristóteles pôde resolver as aporias eleáticas do devir e do movimento: devir e movimento correm no álveo do ser, porque não assinalam uma passagem do não-ser absoluto ao ser, mas do ser em potência ao ser em ato, isto é, do ser ao ser. Com ela Aristóteles resolveu perfeitamente o problema da unidade da matéria e da forma:. O Estagirita serviu-se dela, pelo menos em parte, para demonstrar a existência de Deus e para compreender a sua natureza.

Demonstração de existência da substância supra-sensível

Existem substâncias supra-sensíveis, ou existem apenas substâncias sensíveis?

Existem três gêneros de substâncias hierarquicamente ordenadas; duas são de natureza sensível: 1) o primeiro é constituído pelas substâncias sensíveis que nascem e perecem, 2) o segundo é constituído pelas substâncias sensíveis, porém incorruptíveis. Os céus, as estrelas, que, Aristóteles, são incorruptíveis porque constituídos de matéria incorruptível (o éter, quintessência), capazes apenas de movimento ou mudanças local, não-possíveis de alteração, nem de aumento ou diminuição, muito menos de geração e corrupção. A substância sensível corruptível, está submetida a todos os tipos de mudança. Acima destas existem 3) as substâncias imóveis, eternas e transcendentes ao sensível, são Deus ou Motor imóvel e as outras substâncias motoras das várias esferas que constituem o céu, como veremos.

Os dois primeiros gêneros de substâncias são constituídos de matéria e forma: as sensíveis corruptíveis são constituídas pelos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), as incorruptíveis como já dissemos, por éter puro. A substância supra-sensível é, ao invés, forma pura absolutamente privada de matéria. Dos dois primeiros gêneros de substâncias ocupam-se a física e a astronomia; o terceiro gênero de substância constitui o objeto peculiar da metafísica, como sabemos. 

As substâncias são as realidades primeiras, no sentido de que todos os outros modos de ser dependem, como vimos amplamente, da substância. Se, pois, todas as substâncias fossem corruptíveis, não existiria absolutamente nada de incorruptível. Mas diz Aristóteles o tempo e o movimento são certamente incorruptíveis. O tempo não se gerou nem se corromperá: de fato, anteriormente á geração do tempo, deveria ter havido um “antes”, e, posteriormente á destruição do tempo deveria haver um “depois”. Ora, “antes” e “depois” são tempo. Em outros termos: pelas razões aduzidas, há sempre tempo antes ou depois de qualquer suposto início ou término do tempo; o tempo é eterno. O mesmo raciocínio vale para o movimento, porque, segundo Aristóteles, o tempo não é mais que determinação do movimento; não há tempo sem movimento e, assim, a eternidade do primeiro postula a eternidade do segundo.

Mas sob que condição pode subsistir um movimento (e um tempo) eterno? O Estagirita responde (com base nos princípios por ele estabelecidos ao estudar as condições do movimento na Física): só se subsistir um Princípio que seja sua causa.

E como deve ser este princípio para ser causa dele?

Em primeiro lugar, diz Aristóteles, o Princípio deve ser eterno: se eterno é o movimento, eterna deve ser a sua causa. Em outros termos: para ser idônea a explicar um movimento eterno, a causa só pode ser eterna.

Em segundo lugar, o Princípio deve ser imóvel: só o imóvel, de fato, é causa absoluta do móvel. Na Física, Aristóteles demonstrou este pontocom rigor. Tudo o que se move é movido por outro; este outro, se é, movido, é movido por outro. Para explicar todo o movimento é preciso admitir um princípio por não si não ulteriormente movido, pelo menos com relação àquilo que move. Se é assim, não só devem existir princípios ou motores relativamente móveis, dos quais dependem os movimentos particulares, mas deve haver um Princípio absolutamente primeiro e absolutamente imóvel, do qual depende o movimento de todo o universo.

Em terceiro lugar, o princípio deve ser totalmente privado de potencialidade, isto é, ato puro. Se, de fato, tivesse potencialidade, poderia também não mover em ato; mas isso é absurdo, porque nesse caso não existiria o movimento eterno dos céus, isto é, um movimento sempre em ato.

Mas de que modo o Primeiro Motor pode mover, permanecendo absolutamente imóvel? Existe, no âmbito das coisas que conhecemos, algo que saiba mover sem mover-se a si mesmo?

Aristóteles responde indicando como exemplo de tais coisas o desejo e a inteligência. O objeto do desejo é o que é belo e bom; ora, o belo e bom atraem a vontade do homem sem se mover; assim também o inteligível move a inteligência sem mover-se a si mesmo. E desse tipo é também a causalidade exercida pelo Primeiro Motor, isto é, a substância primeira: o Primeiro Motor move como objetivo de amor e atrai o amante (       ), e, como tal, permanece absolutamente imóvel.

Deus, contudo, atrai; e atrai como objeto de amor, vale dizer, á guisa de fim; a causalidade do Motor imóvel é, pois, propriamente, uma causalidade de tipo final.

O mundo, embora totalmente influenciado por Deus, pela atração que Ele exerce como supremo fim, pelo desejo do perfeito, não teve começo. Não houve um momento no qual havia o caos, justamente porque, se assim fosse, contradir-se-ia o teorema da prioridade do ato sobre a potência: primeiro haveria o caos, que é potência, depois haveria o mundo, que é ato. Mas isso é tanto mais absurdo pelo fato de Deus ser eterno: sendo eterno, Deus, como objeto de amor, sempre atraiu o universo, o qual, portanto, desde sempre deve ter sido como é.

Natureza do Motor Imóvel

Esse Princípio, do qual “dependem o céu e a natureza”, é Vida. Que vida? Aquele que, mais do que todas as outras, é excelente e perfeita: a vida que só nos é possível por um breve tempo: a vida do puro pensamento, da atividade contemplativa.

Mas, que pensa Deus? Deus pensa o que há de mais excelente. Mas o que há de mais excelente é Deus mesmo. Deus pensa a si mesmo: é atividade contemplativa de si mesmo: é pensamento de pensamento.

Deus é eterno, imóvel, ato puro privado de potencialidade e de matéria, vida espiritual e pensamento de pensamento. Sendo tal, obviamente, “não pode nenhuma grandeza”, mas deve ser “sem partes e indivisível”. E deve também ser “impassível e inalterável”. 

Unidade e multiplicidade do Divino

Aristóteles, porém, acreditou que Deus não bastava, sozinho, para explicar o movimento de todas as esferas das quais ele pensava serem os céus constituídos. Deus move diretamente o primeiro móvel o céu das esferas fixas; mas entre essa esfera e a Terra existem muitas outras esferas concêntricas, graduadas e encerradas umas nas outras. Quem move todas essas esferas? São movidas por outras substâncias supra-sensíveis, imóveis e eternas, que movem de modo analógico ao Primeiro Motor. Com base nos cálculos do astrônomo do seu tempo, Calipo, e operando algumas correções que pessoalmente considerava necessárias, Aristóteles estabeleceu o número de cinqüenta e cinco para as esferas celestes, admitindo, ademais, uma possível diminuição para quarenta e sete. Deus ou Primeiro Motor move diretamente a primeira esfera, e só indiretamente as outras; outras cinqüenta e cinco substâncias supra-sensíveis movem as outras cinqüenta e cinco esferas. O grego não percebeu a antítese unidade-multiplicidade do divino.

É claro, então, que Aristóteles só poderia ter concebido as outras substâncias imóveis, que movem as esferas celestes individuais, como hierarquicamente inferiores ao Primeiro Motor Imóvel.

O deus aristotélico não é criador das cinqüenta e cinco inteligências motoras: a daqui nascem todas as dificuldades sobre as quais refletimos. O Estagirita, ademais, deixou completamente inexplicada a exata relação subsistente entre Deus e essas substancias, e, também, entre essas substancias e as esferas que elas movem. A Idade Média transformará essas substâncias nas célebres “inteligência angélicas” motoras, mas poderá operara esta transformação justamente em virtude do conceito de criação. 

Deus e o mundo

Deus (e, falando de Deus, aludimos ao Primeiro Motor), como vimos, pensa e contempla a si mesmo. Pensa também o mundo e os homens no mundo?

É certo, que os indivíduos enquanto tais, ou seja, nas suas limitações, deficiência e carência, não as conhecidos por Deus: esse conhecimento do imperfeito, aos olhos de Aristóteles, representaria uma diminutio para Deus.

Os indivíduos empíricos, segundo Aristóteles, são indignos do pensamento divino, justamente na sua empiricidade e particularidade.

Outra limitação do Deus aristotélico consiste em que ele é objeto de amor, mas não ama (ou, no Maximo, só ama a si mesmo). Os indivíduos, enquanto tais, não são objeto do amor divino: Deus não se volta para os homens e muito menos para o homem individual. Cada um dos homens, como cada coisa, tende de vários modos para Deus, mas Deus, como não pode conhecer, também não pode amar nenhum dos homens individuais.

Era necessário, para que se fosse adiante, conquistar o teorema da criação: mas a especulação grega não chegará a tal conquista, nem mesmo com o neoplatonismo.


A FÍSICA

Caracterização da física aristotélica

A segunda ciência teorética para Aristóteles é a física ou “filosofia segunda”, que tem por objetivo de pesquisa a realidade sensível, intrinsecamente caracterizada pelo movimento, assim como a metafísica tinha por objetivo a realidade supra-sensível, intrinsecamente caracterizada pela falta absoluta de movimento.

A distinção de uma problemática metafísica e de uma problemática física, depois das aquisições da “segunda navegação” platônica, impunha-se estruturalmente: se são dois os planos da realidade ou, para nos exprimir em termos mais aristotélicos, se existem dois gênero diferentes de substâncias estruturalmente distintos, o gênero supra-sensível e o gênero sensível, estão necessariamente diferentes, deverão ser as ciências que têm essas duas realidades por objeto de pesquisa. A distinção entre metafísica e física comportará a definitiva superação do horizonte da filosofia dos pré-socráticos e também uma radical mudança do antigo sentido de physis, que, em vez de significar a totalidade do ser, passará agora a significar o ser sensível, e, natureza quererá dizer, predominantemente, natureza sensível (mas um sensível no qual a forma permanece como princípio dominante). Comparada á física moderna, a de Aristóteles resulta, mais que uma ciência, uma ontologia ou metafísica do sensível.

Não é de admirar que se encontrem nos livros de Metafísica amplas considerações físicas (no sentido precisado) e, vice-versa, nos livros de Física abundantes considerações de caráter metafísico, pois os âmbitos das duas ciências são estruturalmente intercomunicastes: o supra-sensível é causa e razão do sensível, e no supra-sensível termina tanto a pesquisa metafísica como (embora em sentido diferente) a própria pesquisa física; e, além disso, também o método de estudo aplicado nas duas ciências é idêntico.

A mudança e o movimento

O movimento tornou-se problema filosófico só depois de ter sido negado como aparência ilusória pelos eleatas.

O movimento é um dado de fato originário, que não pode ser posto em dúvida. Mas como se justifica? Sabemos (pela metafísica) que o ser tem muitos significados e quem um grupo desses significados é dado pelo par ser como potência e ser como ato. Com relação ao ser-em-ato, o ser-em-potência pode ser dito não-ser, precisamente não-ser-em-ato; mas é claro que se trata de um não-ser-relativo, pois a potência é real, porque é real a capacidade e efetiva possibilidade de chegar ao ato. Ora, vindo ao ponto que nos interessa, o movimento ou mudança em geral é, precisamente, a passagem do ser em potência ao ser em ato. Portanto, o movimento não supõe absolutamente o não-ser parmenidiano, porque se desenvolve no álveo do ser e é passagem de ser (potencial) a ser (atual):

Restam as categorias 1) da substância, 2) da qualidade, 3) da quantidade, 4) do lugar, e é justamente segundo essas categorias que ocorre a mudança. A mudança segundo a substância é a geração e a corrupção; segundo a qualidade é a alteração; segundo a quantidade é o aumento e a diminuição, e, segundo o lugar é a translação. Mudança é termo genérico que corresponde a essas quatro formas, movimento, ao invés, é termo que designa as últimas três, particularmente, a última.

Em todas as suas formas, o devir supõe um substrato (que é o ser potencial), que passa de um oposto a outro: na primeira forma, de um contraditório a outro contraditório, e, nas outras três formas, de um contrário a outro contrário. A geração consiste na assunção da forma pela matéria, a corrupção em perder a forma; a alteração é uma mudança da qualidade, enquanto o aumento e a diminuição são uma passagem do pequeno ao grande e vice-versa; o movimento local é passagem de um ponto a outro. Só os sínolos de matéria e forma podem mudar, porque só a matéria implica potencialidade: a estrutura hilemórfica da realidade sensível, que implica necessariamente matéria e potencialidade é, pois, a raiz de todo movimento. 

Essas considerações remetem-nos ao problema das quatro causas, que já conhecemos. Matéria e forma são causas intrínsecas do devir. Causa externa é, ao invés, o agente ou causa eficiente: nenhuma mudança tem lugar sem essa causa, porque não pode haver passagem da potencia ao ato sem que haja um motor já em ato. Enfim, é preciso a causa final, que é o escopo e a razão do devir. A causa final indica, substancialmente, o sentido positivo de todo devir que, aos olhos de Aristóteles, é fundamentalmente um progredir para a forma e uma realização da forma. Longe de ser entrada no nada, o devir aparece a Aristóteles como a via que leva á plenitude do ser, isto é, a via que as coisas percorrem para atuar-se, para ser plenamente o que são, para realizar a sua essência ou forma (e, nesse sentido, compreende-se bem por que a physis aristotélica é, em ultima análise, essa forma).

O espaço e o vazio

Os conceitos de espaço, vazio e tempo ligam-se ao conceito de movimento. Os objetos não estão no não-ser, que não existe, mas estão em um onde, em um lugar.

Ademais, a experiência mostra que existe um “lugar natural” ao qual cada um dos elementos tende, quando não encontra obstáculo: fogo e ar tendem para cima, terra e água para baixo. O em cima e o embaixo não são algo relativo a nós, mas algo objetivo, são determinações naturais: 

O lugar, por uma parte, é aquele comum no qual estão todos os corpos, por outra, é aquele particular no qual imediatamente está um corpo [...] e se o lugar é aquilo é aquilo que imediatamente contém cada corpo, ele será, então, um certo limite [...].

O lugar é o limite do corpo continente, enquanto este é contíguo ao conteúdo. 

Aristóteles esclarece ainda que o lugar não deve ser confundido com o recipiente: o primeiro é imóvel, enquanto o segundo é móvel; o lugar é o recipiente imóvel, enquanto o recipiente é um lugar móvel: 

E dessa definição do lugar segue não é pensável um lugar fora do universo nem um lugar no qual esteja o universo:. Mas se prescindimos de todo o universo, não há qualquer coisa fora do todo, e por isso todas as coisas estão no céu: pois o céu, entende-se, é o todo!

E assim o movimento do céu como totalidade só será possível no sentido da circularidade sobre si mesmo, não havendo lugar para uma translação. Da definição de lugar segue também a impossibilidade do vazio. O vazio fora entendido como “lugar no qual não há nada” ou “lugar no qual não há nenhum corpo”.

O tempo 

Dado que o tempo implica ta estreitamente o movimento, pode ser considerado uma afecção ou propriedade dele. O movimento, que é sempre movimento através de um espaço contínuo, é, também ele, por conseqüência, contínuo ser o tempo, porque a quantidade de tempo transcorrida é sempre proporcional ao movimento. E no continuo distinguem-se o antes e o depois, que, conseqüentemente, têm um correlativo no movimento e, portanto, no tempo:

Tempo é a mediada do movimento segundo o antes e o depois. Ora, a percepção do antes e do depois, e, portanto, da medida do movimento, necessariamente supõe a alma. Se é verdade que, na natureza das coisas, só a alma ou o intelecto que está na alma têm a capacidade de numerar, torna-se impossível a existência do tempo sem a da alma.

Esse pensamento é fortemente antecipador da perspectiva agostostiniana e das concepções espiritualistas do tempo.

Aristóteles, posteriormente, esclareceu que, para medir o tempo necessita-se uma unidade de medida, assim como necessita-se uma unidade de medida para medir qualquer coisa. Esta deve ser buscada no movimento uniforme e perfeito; e dado que o movimento uniforme e perfeito só é o movimento circular, decorre, por conseqüência, que a unidade de medida é o movimento das esferas e dos corpos celestes. Deus e as inteligências motoras, assim como estão fora do espaço, enquanto imóveis, estão também fora do tempo.

O infinito

Aristóteles nega a existência de um infinito em ato. O infinito só existe como potência ou em potência. Infinito em potência é, por exemplo, o número, porque sempre é possível acrescentar a qualquer número um número ulterior. Infinito em potência é também o espaço, porque é divisível ao infinito, infinito potencial, enfim, é também o tempo, que não pode existir todo atualmente, mas transcorre e cresce sem fim.

E Aristóteles nem de longe entreviu a idéia de que o imaterial pudesse ser infinito, justamente porque ligava o infinito é categoria da quantidade, que só vale para o sensível.

A “quintessência” e a divisão do mundo sublunar e celeste

Aristóteles distinguiu a realidade sensível em duas esferas entre si nitidamente diferenciadas: de um lado, o mundo chamado sublunar e, de outro, o mundo supralunar ou celeste.

O mundo sublunar é caracterizado por todas as formas de mudança, entre as quais predominam a geração e a corrupção. Os céus, ao invés, são caracterizados só pelo movimento local e, precisamente, pelo movimento circular. Nas esferas celestes e nos astros, não pode haver geração nem corrupção, nem alteração, nem aumento, nem diminuição. A diferença entre o mundo supralunar, os quais, contudo, são igualmente sensíveis, esta na matéria da qual são constituídos:

E essa matéria, que é potência dos contrários, é dada pelos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), considerados por Aristóteles, transformáveis um no outro, justamente para dar razão, da geração e da corrupção. Ao invés, a outra matéria, que só possui a potência de passar de um ponto a outro e, portanto, só é suscetível de receber o movimento local, é o éter, chamado assim porque ocorre sempre. Ele foi também denominado “quintessência”, porque se acrescentam ás quatro essências dos outros elementos. E enquanto o movimento característico dos quatro elementos é retilíneo, o movimento do éter é, ao invés, circular. O éter é ingênito, incorruptível, não sujeito a crescimento nem alteração, nem a qualquer outra afecção que implique essas mudanças e, por esse motivo, também são incorruptíveis os céus constituídos pelo éter.

A física aristotélica é, na verdade, uma metafísica do sensível e, portanto, não se admirará o leitor de que a Física seja repleta de considerações metafísica e, até mesmo, que culmine com a demonstração da existência de um primeiro Motor imóvel: convencido radicalmente de que “se não existisse o eterno, não existiria tampouco o devir”, o Estagirita coroou as suas pesquisas físicas demonstrando exatamente a existência desse princípio. Mais uma vez manifesta-se como absolutamente determinante o êxito da “segunda navegação” platônica.

O conceito aristotélico de alma

Os seres animados diferenciam-se dos seres inanimados porque possuem um princípio que lhes dá a vida, e esse princípio é a lama.

Para responder a esta pergunta, Aristóteles remete-se á sua concepção metafísica hilemórfica da realidade. Todas as coisas em geral são compostas de matéria e forma, sendo a matéria, potência, e a forma, enteléquia ou ato. Isso vale, naturalmente, também para os seres vivos. Ora, observa o Estagirita, os corpos vivos têm vida, mas não são vida e, portanto, são como o substrato material e potencial do qual a alma é forma e ato.


A PSICOLOGIA

1. O CONCEITO ARISTOTELICO DE ALMA

Os seres animados diferenciam-se dos seres inanimados porque possuem um principio que lhes dá a vida, e esse principio é a alma.

Mas que é a alma?

Para responder essa pergunta, Aristóteles remete-se á sua concepção metafísica hilemórfica da realidade. Todas as coisas em geral são compostas de matéria e forma, sendo a matéria, potência, e a forma, enteléquia ou ato. Isso vale, naturalmente, também para os seres vivos. Ora, observa o estragirita, os corpos vivos têm vida, mas não são vida e, portanto, são como o substrato material e potencial do qual a alma é forma e ato.

É claro, a partir dessa definição, que a psyché aristotélica distinguem-se da psyché dos pré-socráticos, porque esta era identificada em geral com o princípio físico ou, menos, reduzida a um aspecto deste, e também relativamente à psyvhé platônica, dualisticamente contraposta ao corpo, a ponto de ser vista como totalmente diferente do corpo e incapaz de conciliação harmônica com ele, uma vez que o corpo era visto como cárcere e lugar da expiação da lama.

Aristóteles toma uma posição intermediária, unificando os dois pontos de vista anteriores e tentando uma síntese mediadora, como sempre tenta fazer na solução de todos os problemas especulativos. Têm razão os pré-socráticos ao ver a alma como algo intrinsecamente unido ao corpo, mas tem razão Platão ao ver nela uma natureza ideal: não se trata, porém, de uma realidade separada e inconciliável com o corpo, mas trata-se da forma, do ato ou da enteléquia do corpo: trata-se daquele princípio inteligível que, estruturando o corpo, o faz ser aquilo que deve ser. Com isso salva-se a unidade do ser vivo.

Mas a substancial descoberta platônica da transcendência, assim como se salva na metafísica com a doutrina do motor imóvel, também não se perde na psicologia, pois Aristóteles não considera a alma como absolutamente imanente. O pensar puro, a especulação que leva a conhecer o imaterial e o eterno, que leva o homem, embora por breves momentos, quase a uma tangênica com o divino, só pode, evidentemente, ser a prerrogativa de algo em nós que é congênere ou afim ao conhecido, como Platão demonstrou definitivamente no Fédon. E assim Aristóteles, embora a preço de aporias deixadas sem solução, não hesita em afirmar a necessidade de que uma parte da alma seja “separável” do corpo.

2. A TRIPARTIÇAO DA ALMA

Porque os fenômenos da vida supõem determinadas operações constantes, nitidamente diferenciadas, a alma, que é princípio de vida, deve também Ter capacidade ou funções ou partes que presidem e regulam essas operações. E dado que os fenômenos e as funções fundamentais da vida são: a) de caráter vegetativo, como nascimento, nutrição, crescimento, b) de caráter sensitivo-motor, como sensação e movimento, c) de caráter intelectivo, como conhecimento, deliberação e escolha; então pelas razões acima esclarecidas, Aristóteles introduziu a distinção de a) alma vegetativa, b) alma sensitiva, e c) alma intelectiva ou racional.

Ora, as plantas possuem só a alma vegetativa, os animais a vegetativa e a sensitiva, os homens a vegetativa, a sensitiva e a racional. Para possuir a alma racional o homem deve possuir as outras duas e, assim, para possuir a alma sensitiva o animal deve possuir a vegetativa; ao invés, é possível possuir a alma vegetativa sem as outras.

3. A ALMA VEGETATIVA

A alma vegetativa é o principio mais elementar da vida. Dado que os fenômenos mais elementares da vida são a geração, a nutrição e o crescimento, a alma vegetativa é princípio que governa a geração, a nutrição e o crescimento.

4. A ALMA SENSITIVA

Os animais, além das funções examinadas no parágrafo precedente, possuem sensações, apetites e movimento. Será preciso admitir um princípio ulterior que presida a estas funções, e este é, justamente, a alma sensitiva.

1. A ALMA RACIONAL

Assim como a sensibilidade não é redutível à simples vida vegetativa e ao princípio da nutrição, mas contém um mais, que não se pode explicar se não se introduzir o principio ulterior da alma sensitiva, o pensamento e as operações a ele ligados, como a escolha racional, são irredutíveis à vida sensitiva e a sensibilidade, mas contêm um mais, que não se explica senão pela introdução de um princípio ulterior: a alma racional.

Esse intelecto ativo está “na alma”. “Caem, pois, as interpretações sustentadas pelos antigos, segundo as quais o intelecto agente é Deus. E é verdade que Aristóteles afirma que o “intelecto vem de fora e só ele é divino”, é igualmente verdade que, mesmo vindo “de fora”, ele permanece na alma por toda a vida do homem. A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual. E isso é o divino em nós.

Do mesmo modo que a metafísica, uma vez conquistado o conceito de Deus com as características que vimos, Aristóteles não pôde resolver as numerosas aporias que aquela conquista comportava, também aqui, tendo adquirido o conceito do espírito que está em nós, não pôde resolver as numerosas aporias que se lhe seguiam.

Esse intelecto é individual? Como pode “vir de fora? E que relação com a nossa individualidade e com o nosso eu? E que relação tem com o nosso comportamento moral? Está completamente subtraído a qualquer destino escatológico? E que sentido tem a sua sobrevivência ao corpo?

Os problemas escatológicos, como vimos, Aristóteles dedicou a sua atenção nas obras juvenis. Nas obras esotéricas, ao invés, ele deixou de lado o componente místico-religioso, e, junto com essa, também aqueles problemas. Trata-se, com efeito, de problemas que a razão sozinha não sabe resolver e aos quais só uma fé religiosa pode responder plenamente.

Que são, então, os números e os entes matemático-geométricos, e não são entes inteligíveis dotados de subsistência própria?


A ÉTICA

1. O BEM SUPREMO DO HOMEM: A FELICIDADE

Nas suas varias ações, o homem tende sempre a preciosos fins, que se configuram como bens. Devemos pensar que todos os fins e os bens aos quais tende o homem estão em função de um fim último e de um bem supremo.

Qual é esse bem supremo? Aristóteles não tem duvidas: todos os homens, sem distinção, consideram que tal bem é eudaimonia, ou seja, a felicidade.

Portanto, a felicidade é o fim ao qual conscientemente tendem todos os homens. Mas que é a felicidade?

A multidão dos homens considera que a felicidade consiste no prazer no e gozo. Mas uma vida dedicada aos prazeres torna “semelhantes aos escravos” e é uma “existência digna dos animais”.

As pessoas mais evoluídas e mais cultas põem o bem supremo e a felicidade na honra.

Mas o bem supremo do homem não pode ser nem mesmo o que Platão e os platônicos indicaram como tal, vale dizer, a Idéia do Bem, ou seja, o transcendente Bem-em-si:

Não se trata de um Bem transcendente, mas de um Bem imanente, não de um bem definitivamente realizado, mas de um bem realizável e atuável pelo homem e para o homem.

Mas é o bem supremo realizável pelo homem?

O bem do homem só poderá consistir na obra que é peculiar, isto é, na obra que ele e só ele pode realizar, assim como, em geral, o bem de cada coisa na obra que é peculiar a cada coisa. A obra peculiar do homem seja a razão e a atividade da alma segundo a razão. O verdadeiro bem do homem consiste nessa obra ou atividade de razão, e, assim precisamente, no perfeito desenvolvimento e atuação dessa atividade. Esta é, pois, a “virtude” do homem e aqui deve ser buscada a felicidade.

Os autênticos valores, não poderão ser nem os exteriores (como a riqueza), que tocam apenas tangencialmente o homem, nem os corporais (como os prazeres), que não dizem respeito ao eu verdadeiro do homem, mas só os da alma, já que na alma consiste o verdadeiro homem.

Em conclusão, pode-se dizer que os verdadeiros bens do homem são os bens espirituais, que consistem na virtude de sua alma, e é neles que está a felicidade. A socrática “cura da alma” permanece, pois, também para Aristóteles, a única via que conduz à felicidade. Todavia, à diferença de Sócrates e, sobretudo de Platão, Aristóteles considera indispensável ser suficientemente dotado também de bens exteriores e de meios de fortuna. De fato, se estes, com a sua presença, não podem dar a felicidade, todavia podem arruiná-la ou comprometê-la com a sua ausência.

2. DEDUÇAO DAS “VIRTUDES” A PARTIR DAS “PARTES DA ALMA”

A felicidade consiste numa atividade da alma segundo a virtude.

É claro que qualquer ulterior aprofundamento no conceito de “virtude” depende de um aprofundamento no conceito de alma. Ora vimos que a alma se divide, segundo Aristóteles, em três partes, duas irracionais, isto é, a alma vegetativa e a alma sensitiva, e uma racional, a alma intelectiva. E dado que cada uma dessas partes tem a sua atividade peculiar, cada uma peculiar virtude ou excelência. Todavia, a virtude humana só é aquela na qual entra a atividade da razão. De fato, a alma vegetativa é comum a todos os viventes:

Diferente é a questão no que concerne à alma sensitiva e concupiscível, a qual, embora sendo por si irracional, participa de certo modo da razão:

Fica claro que existe uma virtude dessa parte da alma especificamente humana, que consiste em dominar, por assim dizer, essas tendências e impulsos que são por si desmedidos, e a esta o estagirita chama de “virtude ética”.

Enfim, dado que existe em nós uma alma puramente racional, então deverá haver também uma virtude peculiar dessa parte da alma, e esta será a “virtude dianoética”, ou seja, a virtude racional.

3. AS VIRTUDES ÉTICAS

As virtudes éticas derivam em nós do hábito: pela natureza, somos potencialmente capazes de formá-los e, mediante o exercício, traduzimos essa potencialidade em atualidade. Realizando atos justos, tornamo-nos justos, adquirimos a virtude da justiça, que depois, permanece em nós de maneira estável como um hábitus, o qual, em seguida, nos fará realizar mais facilmente ulteriores atos de justiça. Realizando atos de coragem, tornamo-nos corajosos, isto é adquirimos o hábitus da coragem, em seguida nos levará a realizar facilmente atos corajosos. E assim por diante. Em suma, para  Aristóteles, as virtudes éticas são aprendidas á semelhança do aprendizado das diferentes artes, que também são hábitus.

Qual é a natureza comum a todas as virtudes éticas?

Nunca há virtude quando há excesso ou falta, ou seja, quando há demais ou de menos; virtude implica, ao invés, a justa proporção, que é a via de meio entre dois excessos.

A virtude ética é, precisamente, mediania entre dois vícios, dos quais um por falta, o outro por excesso. É óbvio que a mediania não só não é mediocridade, mas a sua antítese: o “justo meio”, de fato, está nitidamente acima dos extremos, representando, por assim dizer, a sua superação e, portanto, como bem diz Aristóteles, um “cume”, isto é, o ponto mais elevado do ponto de vista do valor, enquanto assinala a afirmação da razão sobre o irracional.

Na Ética Eudêmica, Aristóteles fornece o seguinte elenco de virtudes e vícios:

I. A mansidão é a via média entre a iracúndia e a impassibilidade;

II. A coragem é a via média entre a temeridade e a covardia;

III. A verecúndia é a via média entre a impudência e a timidez;

IV. A temperança é a via média entre a intemperança e a insensibilidade;

V. A indignação é a via entre média entre a inveja e o excesso oposto que não tem nome;

VI. A justiça é a via média entre o ganho e a perda;

VII. A liberdade é a via média entre a prodigalidade e a avareza.

VIII. A veracidade é a via entre a pretensão e o auto desprezo;

IX. A amabilidade é a via média entre a hostilidade e a adulação;

X. A seriedade é a via média entre a complacência e a soberba;

XI. A magnanimidade é a via média entre a vaidade e a estreiteza da alma;

XII. A magnificência é a via média entre a suntuosidade e a mesquinharia.

Em todas essas manifestações a virtude ética é a justa medida que a razão impõe a sentimentos, ações ou atitudes que, sem controle da razão, tenderiam para um ou outro excesso.

4. AS VIRTUDES “DIANÓETICAS”

Acima das virtudes éticas, segundo Aristóteles, estão as virtudes da parte mais elevada da alma, isto é, da alma racional, chamadas virtudes diaoéticas ou virtude da razão. É dados que duas são partes ou funções da alma racional, uma que conhece as coisas contingentes e variáveis, a outra que conhece as coisas necessária e imutáveis, então existirão, logicamente, uma perfeição ou virtude da primeira função, e uma perfeição ou virtude da segunda função da alma racional. Essas duas partes da alma racional são, em substância, a razão pratica e a razão teorética, e as respectivas virtudes serão as formas perfeitas com as quais se colhem a verdade prática e a verdade teorética. A típica virtude da razão prática é a “sabedoria” phrónesis, enquanto a típica virtude da razão teorética é a “sapiência” (Sophia). 

A sabedoria consiste em saber dirigir corretamente a vida do homem isto é, em saber deliberar sobre o que é bem ou mal para o homem. (esta, diz Aristóteles, é “uma disposição prática. Acompanhada da razão veraz, em torno do que é bem e mal para o homem”). Deve-se notar, para uma exata compreensão da doutrina aristotélica, que a phoronesis ou sabedoria ajuda a deliberar corretamente sobre os verdadeiros fins do homem, no sentido de indicar os meios idôneos para alcançar os verdadeiros fins. Ela ajuda, portanto, a individuar e alcançar as coisas que conduz àqueles fins; porém, ela não indica nem determina os fins. Os verdadeiros fins são captados pela virtude ética que retifica o querer de modo correto.

É claro, portanto, que as virtudes éticas e a virtude dianóetica da sabedoria são duplamente ligadas entre si.

A outra virtude dianoética, a mais elevada, como se disse, é a aspiência (Sophia). Esta é constituída, seja pela captação intuitiva dos princípios através do intelecto, seja pelo conhecimento discursivo das conseqüências que derivam daqueles princípios. A sapiência é uma virtude mais elevada que a sabedoria, porque, enquanto aquela diz respeito ao homem e, portanto, ao que há de mutável no homem, a sapiência diz respeito ao que está acima do homem: o homem é o melhor dos seres vivos, todavia, diz Aristóteles: a sapiência coincide com as ciências teoréticas e, antes, de modo especial, com a mais elevada delas, vale dizer, a metafísica.

5. A PERFEITA FELICIDADE 

Dado que, como vimos no início, a felicidade é uma atividade conforme a virtude, é claro agora em que ela consistirá. Em primeiro lugar, na atividade do intelecto conforme à sua virtude. Na atividade da contemplação intelectiva, o homem alcança o vértice das suas possibilidades e atualiza o que há de mais elevado nele.

Em segundo lugar, vem a vida segundo as virtudes éticas. Elas dizem respeito à estrutura composta do homem e só podem dar uma felicidade humana.

Ao contrário. A felicidade da vida contemplativa leva, de algum modo, para além do humano, realiza por assim dizer, uma tangência com a divindade, cuja vida só pode ser contemplativa.

Esta é a mais perfeita formulação do ideal que os antigos filósofos da natureza buscaram realizar na sua vida, que Sócrates já começara a explicitar do ponto de vista conceitual, e que Platão teorizara. Mas em Aristóteles há, ademais, a tematização da tangência da vida contemplativa com a vida de Deus, que faltava em Platão, a quem faltava, como vimos, o conceito de Deus como Mente absoluta e Pensamento de pensamento. Assim, o preceito platônica de que o homem deve, quanto possível, “assimilar-se a Deus significa contemplar o verdadeiro tal como Deus o contempla, ou, como explicita a Ética Eudêmica, contemplar o próprio Deus, que é suprema racionalidade.

6. AMIZADE E A FELICIDADE

A amizade é para Aristóteles, estruturalmente ligada à virtude e à felicidade, portanto, aos problemas centrais da ética.

Três são as coisas que o homem ama e pelas quais estabelecem amizades: o útil, o aprazível e o bom. À medida que o homem busque no outro o útil, o aprazível ou o bom, nascem diferentes tipos de amizade.

As duas primeiras formas de amizade são as menos válidas; são, sob certo aspecto, formas extrínsecas e ilusórias de amizade, porque para falar em termos modernos, com ela o homem ama o outro, não por aquilo que ele é, mas pelo que tem; o amigo, em larga medida, é instrumentalizado às vantagens (riqueza, prazer) que oferece. Sá a terceira forma de amizade é autêntica, porque só com ela o homem ama o outro por aquilo que ele é, ou seja, pela sua bondade intrínseca de homem.

Assim sendo, é clara a razão pela qual Aristóteles liga a amizade á virtude: a verdadeira forma de amizade é o laço que o homem virtuoso estabelece com o homem virtuoso por causa da própria virtude. E a virtude é, como vimos, aquilo em que e através do que o homem atua plenamente a sua natureza e o seu valor de homem, de modo que a verdadeira forma de amizade é, justamente, o laço que une os homens segundo o próprio valor do homem.

7. O PRAZER E A FELICIDADE

Para Aristóteles, o prazer não é uma mudança (um preenchimento, uma plenificação, uma integração ou reintegração) nem, em geral, um movimento, mas uma atividade em todo tempo perfeita. 

Fica claro qual é a novidade do pensamento aristotélica. Quando agimos ou conhecemos, seja de modo sensível, seja intelectualmente, traduzimos em ato, ou seja, realizamos determinadas potencialidades, e essas atividades alcançam (atuam) o seu escopo relativamente ao objeto que lhes é próprio. Justamente porque as nossas atividades são essa realização objetiva de potencialidades, constituem algo objetivamente positivo, e o prazer as acompanha como ressonância subjetiva da positividade objetiva. A própria vida, que é, justamente, uma atividade e a realização de algo positivo, é acompanhada, como tal, de um prazer.

Para Aristóteles, a aspiração ao prazer é totalmente natural, porque naturalmente acompanha o viver e toda atividade própria do viver à guisa de “perfeição” daqueles atividades, no sentido que foi precisado acima.

Toda a atividade tem o seu prazer, assim todo prazer, no seu gênero, é verdadeiro prazer. Todavia, como existem atividades convenientes e boas, e atividades inconvenientes e más, assim também existem prazeres convenientes e bons, e prazeres inconvenientes e maus. Para qualificar o prazer, ou seja, para estabelecer um critério discriminante e, portanto, uma hierarquia dos mesmos, Aristóteles remete-se, mais uma vez, á virtude e ao homem virtuoso.

Mas ao homem bom os prazeres aparecem bons ou maus por razoes de fundo bem precisas. De fato, existe um critério ontológico para discriminar os prazeres superiores dos inferiores: os primeiros são os ligados às atividades teorético-contemplativas do homem,  os segundos são, ao invés, os ligados a vidavegetativo-sensível do homem. E, em todo caso, dado que a felicidade está ligada, como vimos, á atividade teorético-ontemplativa, serão considerados verdadeiramente preciosos somente os prazeres ligados a essa atividade.

8. PSICOLOGIA DO ATO MORAL

Aristóteles tenta superar essa interpretação intelectualista do fato moral. Como bom realista que era, deu-se perfeitamente conta de que uma coisa é conhecer o bem, outra coisa é atuá-lo, realizá-lo, e fazer dele, por assim dizer, substancia das próprias ações, e tentou determinar mais profundamente quais eram os complexos processos psíquicos pressuposto pelo ato moral.

Em primeiro lugar, ele esclarece o que se entende por “ações voluntarias” e “ações involuntárias”. Involuntárias são as ações que se cumprem forçosamente, ou por ignorância das circunstâncias; voluntarias, são as ações “cujo principio reside no agente, se ele conhece as circunstâncias particulares nas quais se desenvolve a ação”.


A POLÍTICA

1. CONCEITO DE ESTADO

Segundo o estagirita, porquanto o bem do individuo e o bem do Estado sejam da mesma natureza pelo fato de consistirem, em ambos os casos, na virtude o bem do estado é mais importante, mais belo, mais perfeito e mais divino. A razão disso deve ser buscada na própria natureza do homem, a qual demonstra com clareza que ele é absolutamente incapaz de viver isolado e, para ser si mesmo, tem necessidade de estabelecer relações com os seus semelhantes em todo momento da sua existência.

Em primeiro lugar, a natureza distinguiu os homens em macho e fêmea, que se unem para formar a primeira comunidade, vale dizer, a família, em vista da procriação e da satisfação das necessidades elementares.

Dado que as famílias não bastam cada uma a si mesmas, surge a vila, que é uma comunidade mais ampla, com a finalidade de garantir de modo sistemático a satisfação das necessidades vitais.

Mas se a família e a vila são suficientes para satisfazer as necessidades  da vida em geral, ainda não bastam para garantir as condições da vida perfeita, isto é, da vida moral. Esta forma de vida, que podemos apropriadamente chamar de espiritual, só pode ser garantida pelas leis, pelas magistraturas e, em geral, pela complexa organização de um Estado. É no estado que o indivíduo, por efeito das leis e das instituições políticas, é levado a sair do seu egoísmo, e a viver conforme o que é subjetivamente bom, assim como conforme o que é verdadeira e objetivamente bom.

2 A ADMINISTRAÇÃO DA FAMILIA

A família, núcleo originário do qual se compõe a cidade, é constituída por quatro elementos: a) as relações marido-mulher, b) as relações pais-filhos, c) a relação senhor - escravos, d) a arte de obter as coisas úteis, em particular as riquezas (assim chamada crematística). Aristóteles detém-se especialmente sobre o terceiro e o quarto elementos. 

O artesão é “como um instrumento que precede e condiciona os outros instrumentos” e serve a produção de determinados objetos e de bens de uso. Ao invés, o escravo não serve à produção de coisas, mas, em geral, “é um artesão que serve ao que diz respeito à ação”, é “um instrumento que serve a ação”, isto é, à conduta da vida.

Aqui o filosofo deixa-se condicionar pelos preconceitos e condições do tempo, a ponto de submeter da maneira mais artificiosa os seus próprios princípios para fazê-los corresponder àquelas convicções. Ele parte do pressuposto de que como a lama e o intelecto, por natureza, governam o corpo e o apetite, assim os homens nos quais predominam a alma e o intelecto devem governar aqueles nos quais estes não predominam.

Dado que, então, era convicção geral de que a alma e a razão predominavam mais no homem que a mulher, assim ele conclui que o homem é por natureza melhor, a mulher pior; aquele apto para comandar, esta para obedecer.

Com mais razoes devem ser considerados piores por natureza e, portanto, capazes só de obedecer e, assim, escravos, todos os homens que a natureza dotou de corpos robustos e frágeis intelectos.

A nota que diferencia o homem do animal é a razão, e esta é a diferença essencial e determinante; ora, o fato de alguns homens terem mais ou menos razão não pode mudar a sua essência ou natureza: a natureza do homem permanece tal enquanto a razão, pouco ou muito que seja.

Os escravos provinham, muito amiúde, das conquistas de guerra (eram, portanto, prisioneiros). Mas uma guerra pode ser injusta, o prisioneiro pode ser de alto posto e, em caso de guerra de gregos contra gregos, pode ser um grego, em tudo igual “por natureza” a quem o fez prisioneiro. Em todos esses casos, a escravidão não é justificável “por natureza”. E então? A solução de Aristóteles é a seguinte: por natureza, inferior é o “bárbaro” e, por isso, sustenta com Eurípedes:

Que é natural que os gregos dominem sobre os bárbaros.

No que se refere à crematística, Aristóteles distingue três modos de obter bens e riquezas: a) um modo natural e imediato, que se realiza através da atividade da caça, do pastoreio e do cultivo dos campos; b) um modo intermediário, isto é, mediado, que consiste na troca dos bens com bens equivalentes (escambo) e c) um modo não-natural, que consiste no comércio através do dinheiro, que recorre a todos os artifícios para aumentar sem limites as riquezas. Ora, a terceira forma de crematística é condenada por Aristóteles, porque não existe limite para o acréscimo das riquezas.

A sã economia busca obter, nos primeiros dois modos, o quanto basta para satisfazer as necessidades naturais, que têm um limite fixado pela natureza.

3. O CIDADÃO

Visto que o Estado é feito de cidadãos, trata-se de estabelecer quem é o cidadão.

Para ser cidadão numa Cidade, não basta habitar no território da cidade, nem gozar do direito de empreender uma ação judiciária e, também, não basta ser descendente de cidadãos. Para ser cidadão, impõe-se “a participação nos tribunais ou nas magistraturas”, isto é, tomar parte da administração da justiça e fazer parte da assembléia que legisla e governa a Cidade.

Por conseqüência, nem o colono nem o membro de uma cidade conquistada podiam ser ou sentir-se “cidadãos” no sentido acima visto. Mas nem mesmo os artesãos podiam ser verdadeiros cidadãos, por não terem a sua disposição o tempo necessário para exercer as funções que, aos olhos de Aristóteles, são essenciais. E assim, os “cidadãos” são muitos limitados em número, enquanto todos os outros homens da Cidade acabam por ser, de algum modo, meios que servem para satisfazer ás necessidades dos primeiros.

4. O ESTADO E SUAS FORMAS POSSÍVEIS

Podendo esta autoridade soberana realizar-se de diferentes formas, as constituições serão, fundamentalmente, tantas quantas são estas formas. E o poder soberano pode ser exercido: 1) por um só homem 2) por poucos homens 3) ou pela maior parte dos homens. Mas não só. Cada uma dessas três formas de governo pode ser exercida de modo correto ou de modo incorreto.

Existem três formas de constituições retas: monarquia, aristocracia, e política, às quais correspondem outras tantas formas de constituições degeneradas: tirania, oligarquia e democracia.

Qual dessas três constituições é a melhor?

Se uma cidade existisse um homem que superasse a todos em excelência, a ele caberia o poder monárquico; e se existisse um grupo de indivíduos verdadeiramente excelentes por virtude, impor-se-ai um governo aristocrático,

Portanto, a monarquia seria, abstratamente, a melhor forma de governo, desde que existisse na Cidade um homem excepcional; e a aristrocacia seria, por sua vez, a melhor, desde que houvesse um grupo de homens excepcionais. Mas porque tais condições normalmente não se verificam, Aristóteles, com o seu sentido realista, indica substancialmente a política como a forma de governo mais conveniente para as Cidades gregas do seu tempo.

5. O ESTADO IDEAL

Na ética, que os bens são três gêneros diferentes: bens externos, bens corpóreos e bens espirituais da alma. Também o Estado deve buscar os dois primeiros tipos de bens de modo limitado e exclusivamente em função dos bens espirituais, porque só nestes consiste a felicidade.

Eis as condições ideais que deveriam dar lugar ao Estado feliz.

No que concerne a população, primeira condição da atividade política, esta não deverá ser nem demasiada exígua nem muito numerosa, mas justamente medida.

Também o território deverá apresentar características análogas. Ele deverá ser suficientemente grande para fornecer o que se precisa para a vida, sem produzir o supérfluo. Suas fronteiras deverão ser alcançáveis a olho nu. Devera ser dificilmente atacável e facilmente defensável, em posição favorável.

As qualidades ideais dos cidadãos são-segundo Aristóteles – exatamente aquelas que apresentam os gregos: estas são como uma via de meio e como uma síntese das qualidades dos povos nórdicos e dos povos orientais.

Aristóteles examina em seguida as funções essenciais da Cidade e a sua ideal distribuição. Para subsistir, uma cidade deve ter: 1) cultivadores da terra que forneçam o alimento, 2) artesãos que forneçam instrumentos e manufaturas, 3) guerreiros que a defendam dos rebeldes e dos inimigos, 4) comerciantes que produzam riquezas, 5) homens que estabeleçam o que é útil á comunidade e quais são os direitos recíprocos dos cidadãos, 6) sacerdotes que se ocupem do culto.

Ora, a boa cidade impedirá que todos os cidadãos exerçam todas essas funções. Os verdadeiros cidadãos ocupar-se-ao da guerra, do governo e do culto. Por si, enquanto essas funções exigem virtudes diferentes (o guerreiro deve ter força, o juiz e o legislador a prudência), seria preciso distribuí-las a diferentes pessoas, mas isso dificilmente seria tolerado pelos guerreiros, que, tendo a força militar, querem também o poder político. A solução que Aristóteles propõe é a seguinte, as mesmas pessoas exercerão essas tarefas em diferentes tempos.

Assim os cidadãos serão primeiros guerreiros, depois conselheiros, enfim sacerdotes.

A felicidade da cidade depende da virtude, mas a virtude vive em cada cidadão e, por isso, a Cidade pode torna-se e ser feliz na medida em que cada um dos cidadãos se torne e seja virtuoso. E como cada homem torna-se virtuoso e bom? Em primeiro lugar, deve haver certa disposição natural, depois, sobre esta agem de hábitos e os costumes, em seguida os raciocínios e os discursos. Ora, a educação age sobre o hábito e sobre o raciocínios e é, portanto, um fator de enorme importância no estado.

Mas em particular, dado que é idêntico a virtude do cidadão bom e do homem bom, a educação deverá, substancialmente, tem em mira a formação de homens bons, ou seja, deverá fazer com que se realize o ideal estabelecido na ética, isto é, que o corpo viva em função da alma e as partes inferiores da alma em função das superiores, e, em particular, que se realize o ideal da pura contemplação.

O estado, e não os indivíduos, deverá fornecer a educação que, naturalmente, começara pelo corpo, que se desenvolve antes da razão, e procederá com a educação dos impulsos, dos instintos e dos apetites, e, enfim, concluir-se-à com a educação da alma racional. A tradicional educação atlético-musical grega é assumida no Estado aristotélico, e a sua descrição conclui a política.

É desnecessário que todos os estratos inferiores são excluídos da educação.

Aristóteles situa entre as ações voluntarias também aquelas ditadas pela impetuosidade, pela ira e pelo desejo e, assim, chama voluntarias também as ações das crianças e até mesmo as dos animais. Portanto, é claro que “voluntarias”, neste sentido, são simplesmente ações espontâneas, que têm a sua origem nos sujeitos que as cumprem, e não coincidem com as que nós, modernos, chamamos com o mesmo nome.

Os atos humanos, além de “voluntários” no sentido esclarecido, são determinados por uma “escolha” (proáiresis), e explica que esta parece ser “coisa essencialmente própria da virtude e mais apta que as ações para julgar os costumes”. Com efeito, a escolha não pertence a criança ou ao animal, mas só ao homem que raciocina e reflete. A “escolha” sempre implica, de fato, raciocínio e reflexão e, precisamente, aquele tipo de raciocínio e reflexão relativos as coisas e ações que dependem de nós e estão na ordem do realizável. Esse tipo de raciocínio e reflexão é chamado por Aristóteles “deliberação”. A diferença entre “deliberação” e “escolha” consiste no seguinte: a deliberação estabelece quais e quantas são as ações e os meios necessários para alcançar certos fins: estabelece, assim, toda a serie das coisas a realizar para chegar ao fim, das mais remotas às mais próximas e imediatas; a escolha age sobre estas últimas e as descartas quando são irrealizáveis, põe-nas em ato quando as encontra realizáveis.

O Estagirita nega expressamente que a “escolha” possa identificar-se com a “vontade” (boúlesis), porque a vontade diz respeito só aos fins, enquanto a escolha (assim como a deliberação) diz respeito aos meios. O principio primeiro do qual depende a nossa moralidade está propriamente na volição na volição do fim.

Que é essa volição do fim? De duas, uma: a) ou é tendência infalível do bem, ao que é verdadeiramente bem, b) ou tendência ao que nos parece bem: a) no primeiro caso, é evidente que a escolha não-reta não será voluntaria, mas será, como dizia Sócrates, uma forma de ignorância, um erro, um equívoco: b) no segundo caso, seria preciso concluir que “o que é querido não é querido por natureza, mas segundo o que a cada um parece; e dado que a um parece uma coisa, a outro, outra, se assim fosse, o que é querido seria ao mesmo tempo coisas contrárias”. O que significa que ninguém mais poderia ser chamado bom ou mau ou, o que é mesmo, que todos seriam bons, justamente porque todos fariam o que lhes parece bem.

Aristóteles compreendeu muito bem que somos responsáveis pelas nossas ações, causa dos nossos próprios hábitos morais, causa do próprio modo pelo qual as coisas nos aparecem moralmente, mas não soube dizer porque é assim e o que está na raiz de tudo isso em nós. Não soube determinar corretamente a verdadeira natureza da vontade e do livre-arbítro.

Aristóteles, entreviu que há em nós algo do qual depende o ser bom ou mau, que não é mero desejo irracional, mas não é tão pouco razão pura; porem, em seguida, esse algo fugiu-lhe das mãos sem que ele conseguisse determiná-lo. De resto, devemos objetivamente reconhecer que nenhum grego conseguirá isso e que o homem ocidental só compreenderá o que são a vontade e o livre-arbítrio através do cristianismo.        


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