GIOVANNI RALE
Síntese: . Paolo Cugini
OS MITOS TEOGÔNICOS E COSMOGÔNICOS
Já foi há muito tempo observado que o anteceder da cosmologia filosófica é constituído pelas teogonias e cosmogonias mítico-poéticas, das quais é muito rica a literatura grega, e cujo protótipo paradigmático é a Teogonia de Hesídio, a qual, explorando o patrimônio da precedente tradição mitológica, traça uma imponente síntese de todo o material, reelaborando-o organicamente. A Teogonia de Hesídio narra o nascimento de todos os deuses; e, dado que alguns deuses coincidem com partes do universo e com fenômeno do como, além de teogonia ela se torna também cosmogonia, ou seja, explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos.
Hesíodo imagina, no proêmio, ter tido, aos pés do Hélicon, na Beócia, uma visão das Musas, e ter recebido delas a revelação da verdade da qual ele se faz, mediatamente, arauto.
Em primeiro lugar, diz Ele, gerou-se o Caos, em seguida gerou-se Gea ( a Terra), em cujo seio amplo estão todas as coisas, e nas profundidades da Terra gerou-se o Tártaro escuro, e, por fim, Eros (o Amor) que, depois, deu origem a todas as outras coisas. Do Caos nasceram Êrebo e Noite, dos quais se geraram o Éter (o Céu superior) e Êmera (o Dia). E da Terra sozinha se geraram Urano (o Céu estrelado), assim como o mar e os montes; depois, juntando-se com Céu, a Terra gerou Oceano e os rios.
Procedendo no mesmo estilo, Hesíodo narra a origem dos vários deuses e numes divinos. Zeus pertence a ultima geração: de fato, foi gerado de Crono e de Rea (que, por sua vez, tinham sido gerados da Terra e de urano); e, com Zeus, fazem parte da última geração todos os outros deuses do Olimpio homérico, vale dizer, os deuses que o grego então venerava. É indubitável que a Teogonia de Hesíodo e, em geral, as representações teogônico-cosmológicas são o antecedente da cosmologia filosófica; todavia, é igualmente indiscutível que entre essas tentativas e a cosmologia filosófica há uma nítida diferença. Elas procedem com o mito, com a representação fantástica, com a imaginação poética, com intuitivas analogias sugeridas pela experiência sensível; portanto, permanecem aquém do logos, ou seja, aquém da explicação racional.
I. TALES
1. As proposições filosóficas atribuídas a Tales
De Tales, que nada escreveu, é Aristóteles quem nos informa, dizendo-nos dele o que segue.
a) Tales foi o iniciador da filosofia da physis, enquanto por primeiro afirmou a existência de um principio único, causa de todas as coisas que são, e disse que esse princípio é a água.
b) Afirmou que o mundo está cheio de deuses.
c) Disse que o ímã possui uma alma, porque é capaz de mover de todas estas proposições, essencial é a primeira, a proposição é “fundamentalíssima, e é poder-se-ia dizer, a primeira proposição filosófica da que se costuma chamar civilização ocidental”.
2. O significado de “princípio”
O princípio-água, É, como diz Aristóteles, “aquilo de que derivam originariamente e em que se dissolvem por último todos os seres”, uma realidade “que continua a existir intransformada”, mesmo através do processo gerador de tudo. Portanto é a) fonte ou origem das coisas, b) foz ou termo último das coisas, c) permanente sustento das coisas, o “princípio” é aquilo do qual as coisas vêm, aquilo pelo que são aquilo no qual terminam. Tal princípio foi denominado com propriedade por esses primeiros filósofos de physis, palavra que não significa “natureza” no sentido moderno de termo, realidade primeira, originaria e fundamental;
3. A água é princípio
E por que Tales pensou que a água fosse princípio? É ainda Aristóteles quem nos informa com precisão:
Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por isso afirma também que a terra flutua sobre a água) extraindo esta convicção da constatação de que o alimento de todas as coisas é úmido, que até o quente se gera do úmido e vive no úmido. Ora, aquilo de que todas as coisas se geram é, exatamente, o princípio de tudo. Ele tira, pois esta convicção desse fato de que todas as sementes de todas as coisas têm uma natureza úmida, e a água é o principio da natureza das coisas unidas. O princípio é a água, porque tudo vem da água, a própria vida se sustenta com a água, acaba na água. Portanto, não mais representações extraídas da imaginação, não mais figuração fantástico-poéticas: passou-se agora decididamente do mito ao logos. E assim nasceu a filosofia.
II. ANAXIMANDRO
O infinito como princípio e as suas características
Foi Anaximandro quem introduziu o termo arché para designar o primum, a realidade primeira e última das coisas, vale dizer, a physis. Mas, contrariamente a Tales, ele sustenta que tal princípio não era a água, mas o apeíron, o infinito ou limitado.
Mas que é apeíron?
Ápeiron é só imperfeitamente traduzido por infinito e ilimitado. Á-peiron significa o que é privado de peras, isto é, de limites e determinação não só externas, mas também internas. No primeiro sentido, áperion indica o infinito espacial, infinito em grandeza, isto é, o infinito quantitativo; segundo, ao invés, o indefinido quanto á qualidade, portanto, o indeterminado qualitativo, principio, realidade última das coisas, só pode ser o infinito, justamente porque, enquanto tal, ele não tem princípio nem fim, é ingênito e imperecível e, por isso mesmo, pode ser princípio das outras coisas. O infinito envolve ou e ou circunda, e rege ou governa todas as coisas. Ora sobre o significado desse termos não pode haver dúvidas: o envolver (), e o reger() indicam e especificam exatamente a função do princípio, que é a de compreender e reger todas as coisas, porque todas se geram do principio, consistem e são no e pelo princípio. Enfim, a passagem aristotética sublinha o valor caracteristicamente teológico do princípio. Anaximandro considerou o seu princípio como divino, porque imortal e incorruptível, é claro que a água de Tales e o infinito de Anaximandro devem ter sido considerados como Deus, como “o divino”, de fato, assumem em si, como princípio, como arché ou physis de tudo, as características que Homero e a tradição consideravam exatamente prerrogativas essências dos deuses: a imortalidade, o domínio e governo de tudo.
O que caracterizar a concepção do Divino em Anaximandro e nos pré-socráticos é e permanece sempre o naturalismo, no sentido de que, em lugar de ver no Divino o outro do mundo, eles vêem nele a própria essência do mundo, a physis de todas as coisas, e não lhe atribuem nenhuma daquelas características que, com categorias posteriores, chamaremos espirituais; não lhe atribuem nem sequer o que há de mais elevado no homem, vale dizer, o pensar.
1. Gênese de todas as coisas do infinito
Como nascem as coisas do infinito, através de que processo e por que causa? Isso aconteceria por uma separação ou um destacamento de contrários (quente-frio seco-úmido etc.) do princípio uno, por causa de um movimento eterno.
De onde as coisas tiram o seu nascimento, aí se cumpre a sua dissolução segundo a necessidade; de fato, reciprocamente pagam a pena e a culpa da injustiça, segundo a ordem do tempo.
3. Os infinitos cosmos e a gênese do nosso mundo
Como o princípio é infinito, também infinitos são os mundos que se geram do princípio a audácia da representação da terra, que não tem necessidade de uma sustentação material e se sustenta por equilíbrio de forças, e, em segundo lugar, a modernidade da idéia de que a origem da vida ocorreu com animais aquáticos e o vislumbre conseqüente da idéia da evolução das espécies mediante adaptação ao ambiente. E isso já é por si suficiente para montar quanto o logos, com Anaximandro, se distanciou do meio.
III. ANAXÍMENES
1. O princípio como ar
O princípio primeiro é, sim, infinito em grandeza e quantidade, mas não é indeterminado: ele é ar, ar infinito. Todas as coisas que são derivam, portanto, do ar e das suas diferenciações. Relata-nos Teofrasto:
[O ar] se deferência nas varias substancias segundo o grau de rarefação e condensação: e assim dilatando-se dá origem ao fogo, enquanto condensando-se dá origem ao evento e depois ás nuvens; e em grau maior de densidade forma a água, depois a terra e em seguida as pedras; as outras derivam depois destas.
Não se compreende bem de que modo os contrários, separando-se, geram as varias coisas; por isso Anaxímenes, sem dúvida, pensou que devia buscar outra solução.
Um testemunho antigo relata-nos que Anaxímenes pôs o ar como arché, porque o ar melhor que qualquer outra coisa, se presta a variações, e, por conseqüência, melhor que qualquer outra coisa presta-se a ser pensado como principio de geração de tudo.
No fragmento 2 lemos:
Assim como a nossa alma, que é ar, nos sustenta e nos governa, assim o sopro e o ar abraçam todo o cosmo.
Como o ar é essencial para a vida do homem e dos seres vivos, assim o deve ser para todas as coisas e para todo o cosmo (que Anaxímenes concebia como ser vivo).
Característica do ar é esta:
Quando ele é absolutamente uniforme, é invisível, torna-se visível com o frio, com o quente, com a unidade e com o movimento. Podemos crer, como nos é referido pelos antigos, que Anaxímenes tenha chamado o ar de “deus”, e crer também que tenha chamado deuses as coisas que derivam do ar.
2. Derivação das coisas
O ar é concebido por Anaxímenes como naturalmente dotado de movimento; e, pela sua própria natureza mobilíssima, bem se presta a ser concebido como em perene movimento.
Mas Anaxímenes, como já notamos, determina também qual seja o processo que do ar faz derivar as coisas: trata-se da condensação e da rarefação, como todas as nossas fontes dizem. A rarefação do ar dá origem ao fogo, a condensação dá origem á água e depois á terra.
IV. HERÁCLITO DE ÉFESO
1. O fluxo perpétuo de todas as coisas
Heráclito leva o discurso filosófico dos três milesianos a posição decididamente mais avançadas e em grande parte novas. Heráclito chamou a atenção para a perene mobilidade de todas as coisas que são: nada permanece imóvel e nada permanece em estado de fixidez e estabilidade, mas tudo se move, tudo muda, tudo se transforma, sem cessar e sem exceção.
De quem desce ao mesmo rio vêm ao encontro águas sempre novas.
Não se pode descer duas vezes ao mesmo rio e não se pode tocar duas vezes substancia mortal no mesmo estado, mas por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança dispersa-se e recolhe-se, vem e vai.
Descemos e não descemos ao mesmo rio, nós mesmos somos e não somos.
O rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na realidade é feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se dispersam; nada permanece e tudo devém; as coisas não têm realidade senão, justamente, no perene devir “tudo flui”.
2. Os postos no quais o devir se desdobra e a sua oculta harmonia (a síntese dos opostos)
O devir de que falamos é caracterizado por um contínuo fluir das coisas de um contrário ao outro:
O devir é, um continuo conflito dos contrários que se alternam, é uma perene luta de um contra o outro, é uma guerra perpetua. Mas, dado que as coisas só têm realidade, no perene devir, então, por conseqüência necessária, a guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas:
A guerra é mãe de todas as coisas e de todas as rainhas.
E é claro, enfim, que a multiplicidade das coisas se recolha numa unidade dinâmica superior: se as coisas só têm realidade enquanto devêm, e se o devir é dado pelos opostos que se contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia, então é claro que na síntese dos opostos está o principio que explica a toda realidade, e é evidente, por conseqüência, que exatamente nisso consiste Deus ou o Divino. Diz, Heráclito no fragmento 67.
O Deus é dia-noite, é inverno-verão, é guerra-paz, saciedade-fome. Deus é a harmonia dos contrários, a unidade dos opostos.
3. O fogo como principio de todas as coisas
Os fragmentos, todas as coisas trocam por fogo e o fogo por todas as coisas, como as mercadorias se trocam por ouro e o ouro por mercadorias.
Esta ordem, idêntica para todas as coisas, não a faz nenhum dos Deuses, nem dos homens, mas era sempre, é e será fogo eternamente vivo, que em medidas se acende e em medidas se apaga.
Mutações do fogo: em primeiro lugar o mar, a metade deste a terra, a metade vento incandescente.
O fogo é perenemente móvel, é vida que vive da morte do combustível, é incessante transformação em fumaça e cinzas, é, como diz perfeitamente Heráclito do Deus, “fome e saciedade”, vale dizer, unidade de contrários, fome das coisas, que faz as coisas serem, e saciedade das coisas, que as destrói e faz perecer.
O deus ou o Divino heraclitiano coincide com esse fogo. Fragmento 64:
O raio governo todas as coisas. Sobrevindo o fogo, julgará e condenará todas as coisas.
Fragmento 32: o uno, o único sábio, não quer e quer também ser chamado Zeus.
Fragmento 78: A natureza humana não possui conhecimentos ( ), a natureza divina sim.
Fragmento 41: Só existe uma sabedoria: reconhecer a inteligência ( ) que governa todas as coisas através de todas as coisas.
Parece também praticamente certo que Heráclito chamou este seu princípio de logos, o que, em todo caso, como muitos sustentam-se não quer dizer propriamente razão e inteligência, mas, antes, regra segundo a qual todas as coisas se realizam e lei comum a todas as coisas e que todas governa inclui racionalidade e inteligência.
É claro que, para Heráclito, a verdade não pode consistir senão em captar, entender e exprimir esse logos comum a todas as coisas. E compreende-se, por conseqüência, que ele desconfia dos sentidos, porque estes se detêm na aparência das coisas; que ele despreza as opiniões comum dos homens, porque a estes foge tudo o que fazem em estado de vigília, assim como não sabem o que fazem quando dormem; enfim é claro que ele despreze o saber dos outros filósofos, porque o considera vã erudição, que acumula múltiplas noções particulares sem captar a lei universal.
4. A alma
Heráclito expressou também alguns pensamentos sobre a alma, que vão além dos seus predecessores. Por um lado, ele, como os milesianos, identificou a natureza da alma com a natureza do principio e disse que é fogo, e também disse ser mais sábia a alma mais seca, e, por conseqüência, coincidir a perda do senso com o umedecimento da alma.
Mas, ao lado dessa ordem de pensamentos, ele expressou outra de teor totalmente diferente, que o levou a descobrir na alma algo de propriedade completamente diferentes do corpo. Lemos fragmento 45:
Os confins da alma não os encontrarias nunca, embora percorrendo os seus caminhos; tão profundo é o eu logos.
Snell notou que essa concepção da “profundidade da alma” comporta a sua diferenciação nítida de qualquer órgão e função física: não tem sentido falar de mão profunda ou de orelha profunda.
Ora, diz ainda o mesmo estudioso, “a representação da profundidade surgiu justamente para designar a característica da alma, que é a de ter uma qualidade particular, não relativa nem ao espaço nem a extensão [...]. Com isso Heráclito quer significar que a alma estende-se ao infinito, justamente ao contrário do que é físico”.
Esta segunda ordem de pensamento liga-se á dimensão religiosa do pensamento órfico, do qual faz eco também o fragmento 62:
Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida daqueles.
Isso exprime com linguagem heraclitiana a crença órfica segundo a qual a vida do corpo é mortificação da alma e a morte do corpo é vida da alma. E, como os órficos, Heráclito admitiu prêmios e castigos depois da morte e, portanto, uma imortalidade pessoal, como expressamente diz o fragmento 27:
Depois da morte aguardam os homens coisas que estes não esperam e nem sequer imaginam.
Porém, é uma ordem de pensamentos que mal concorda com a visão de conjunto, na qual não há espaço para uma alma pessoal, nem para um além. E, todavia, é uma ordem de pensamentos que encontraremos outras vezes nos pré-socráticos, inconcililiada e inconciliável com a sua doutrina da physis, mas que, exatamente por isso, se revelará fecundíssima, no sentido que explicaremos adequadamente a propósito de Platão.
Mas, antes de concluir a seção sobre Heráclito, queremos evocar alguns dos seus pensamentos morais, que devem ter-lhe sido inspirados, mas que pela sua doutrina da realidade, pela sua visão órfica da lama. A felicidade –diz o fragmento 4 – não pode consistir nos prazeres do corpo: se assim fosse, felizes seriam os bois diante do feno. E o belíssimo fragmento 85 precisa ulteriormente:
Difícil é a luta contra o desejo, pois o que este quer, compra-o a preço da alma.
É um pensamento no qual quase se adivinha o núcleo da ética ascética do Fédon: saciar o corpo significa perder a alma.
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