Hans-Georg
Gadamer
Síntese Pe. Paolo Cugini
Introdução
A presente investigação inicia,
portanto, com uma crítica da consciência estética, a fim de defender a
experiência da verdade que nos é comunicada pela obra de arte contra a teoria
estética, que se deixa limitar pelo conceito da verdade da ciência. Mas não se
limita à justificação da verdade da arte.
Partindo dessa base, busca, antes, um conceito de conhecimento e de verdade que
corresponda ao todo de nossa experiência hermenêutica. Tal como na experiência
da arte, estamos às voltas com verdades que suplantam fundamentalmente o âmbito
do conhecimento metodológico, algo semelhante se dá também no conjunto das
ciências do espírito, onde nossa tradição histórica, mesmo sendo transformada
em todas as suas formas em objeto de
pesquisa, acaba, ela mesma, manifestando-se
em sua verdade. A experiência da tradição histórica vai fundamentalmente
além do que nela se pode investigar. Ela não pode simplesmente ser classificada
como verdadeira ou falsa, no sentido determinado pela crítica histórica;
transmite sempre a verdade, da qual devemos tirar
proveito. (p.31)
Primeira parte
A liberação da questão da verdade a partir da
experiência da arte
1.
A superação da dimensão estética
1.1.
A significação da tradição humanista para as
ciências do espírito
1.1.1.
O
problema do método
A auto-reflexão lógica
das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século
XIX, está completamente dominada pelo modelo das ciências da natureza. Mostra-o
um simples olhar sobre a expressão “ciência do espírito”, na medida em essa
expressão só recebe o significado que nos é familiar em sua forma plural. As
ciências do espírito compreendem a si mesmas por analogia às ciências da
natureza, e isso tão decisivamente que o eco idealismo que acompanha o conceito
de espírito e de ciência do espírito retrocede a um segundo plano. (p.37)
Mas o que representa o
verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam ao pensamento é que não
se consegue compreender corretamente a natureza das ciências do espírito,
usando o padrão de conhecimento progressivo da legalidade. (Gesetzmassigkeit). A experiência do mundo sócio-histórico não se
eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências da natureza. O
que quer que signifique ciência aqui, e mesmo que em todo conhecimento
histórico esteja incluído o emprego da experiência genérica no respectivo
objeto de pesquisa, o conhecimento histórico não aspira tomar o fenômeno
concreto como caso de uma regra geral. O caso individual não se limita a
confirmar uma legalidade, a partir da qual, em sentido prático, se poderia
fazer previsões. Seu ideal é, antes, compreender o próprio fenômeno na sua
concreção singular a histórica. Por mais que a experiência geral possa operar
aqui, o objetivo não é confirmar nem ampliar essas experiências gerais, para se
chegar ao conhecimento de uma lei – por exemplo, como se desenvolvem os homens,
os povos, os estados –, mas compreender como este homem, este povo, este estado
é o que veio a ser; dito genericamente, como pode acontecer que agora é
assim.
Na verdade, as ciências
do espírito estão muito longe de se sentirem simplesmente inferiores às
ciências da natureza. Na herança espiritual do classicismo alemão ela
desenvolveram, antes, a consciência de orgulho de serem o verdadeiro suporte do
humanismo. A época do classicismo alemão trouxe consigo apenas a renovação da
literatura e da crítica estética, que superou o ideal de gosto barroco e
racionalista do Aufklarung, mas deu
também um conteúdo fundamentalmente novo ao conceito de humanidade, esse ideal da
razão esclarecida. Foi sobretudo Herder quem superou o perfeccionismo do Aufklarung através do novo ideal de uma
“formação para o humano”, preparando assim o terreno sobre o qual puderam se
desenvolver, no século XIX, as ciências dos espíritos históricas. O conceito de formação, que naqueles
tempos alcançou um valor predominante, foi, sem dúvida, o mais alto pensamento
do século XVIII, e é esse conceito que caracteriza o elemento em que vivem as
ciências do espírito do século XIX, mesmo que não saibam justificar isso
epistemologicamente. (p.43-44)
1.1.2.
Os
conceitos básicos do humanismo
a) Formação (Bildung)
No conceito de formação percebe-se claramente quão
profundamente é a mudança espiritual que nos permite parecer contemporâneos do
século de Goethe, e, em contrapartida considerar a época barroca como um
passado pré-histórico. Conceitos e palavras decisivas, com as quais costumamos
trabalhar, foram cunhadas naquele tempo, e quem não quer se deixar levar pela
linguagem, esforçando-se por alcançar uma autocompreensão histórica
fundamentada, vê-se obrigado a encontrar um caminho entre questões da história
da palavra e do conceito. No que segue, só poderemos esboçar alguns princípios
de grande tarefa que se coloca aqui à pesquisa, princípios que servem ao
questionamento filosófico que nos move. Conceitos tão familiares como “arte”,
“história”, “criatividade”, “cosmo visão”, “vivência”, “gênio” , “mundo
exterior”, “interioridade”, “expressão”, “estilo”, “símbolo”, guardam em si um
grande potencial de desvelamento histórico. (p.44)
O fato de a formação (assim como a tal palavras “Formation”) designar mais o resultado
desse processo de devir do que o próprio processo corresponde a uma freqüente
transferência do devir para o ser. Aqui a transferência é bastante evidente,
pois o resultado da formação não se produz na forma de uma finalidade técnica,
mas nasce do processo interior de formulação e formação, permanecendo assim em
constante e evolução e aperfeiçoamento. Não é por acaso que, nesse particular,
a palavra formação se pareça com a palavra grega physis. Assim como a natureza, a formação não conhece nada exterior
às suas metas estabelecidas.
(p.46)
A formação como elevação
à universalidade é, pois uma tarefa humana. Exige um sacrifício do que é
particular em favor do universal. O sacrifício do particular, porém, significa,
negativamente, inibição da cobiça e, com isso, liberdade de objeto da cobiça e
liberdade para sua objetividade.
(p.48)
Com isso fica claro que
o que perfaz a essência da formação não é o alheamento como tal, mas o retorno
a si, que pressupõe naturalmente o alheamento. Nesse caso, a formação não deve
ser estendida apenas como um processo que realiza a elevação histórica do
espírito ao sentido universal, mas é também o elemento onde se move aquele que
se formou. Que elemento será esse? Aqui começam as perguntas que tivemos que
fazer a Helmholtz. A resposta de Hegel não poderá nos satisfazer, pois, para
Hegel, a formação como movimento de alheamento e apropriação se realiza num
total apoderamento da substância, na dissolução de toda essência objetiva, o
que só se alcança no saber absoluto da filosofia.
Mas reconhecer que a
formação seja algo como um elemento de espírito, isso não obriga a vincular-se
à filosofia hegeliana do espírito absoluto, do mesmo modo que seu juízo acerca
da historicidade da consciência não vincula à sua filosofia da história mundial.
O que importa é ter claro que, também para as ciências históricas do espírito,
que se distanciam de Hegel, a idéia da formação plena continua sendo um ideal
necessário, uma vez que a formação é o elemento no qual se movimentam. Mesmo o
que o antigo uso de linguagem denomina “uma formação completa”, âmbito do
fenômeno corporal, não chega a ser a ultima fase de um desenvolvimento, mas o
estado de amadurecimento que todo desenvolvimento deixou atrás de si,
possibilitando o movimento harmonioso de todos os membros. Justamente nesse
sentido as ciências do espírito pressupõe que a consciência científica já é
algo formado, possuindo assim esse tato verdadeiramente inapreensível e
inimitável, que sustenta a formação de juízo e o modo de conhecimento das
ciências do espírito, como um elemento. (p.50-51)
Não conseguiremos
apreender corretamente a essência da própria memória caso vejamos nela apenas
uma disposição ou capacidade genérica. Reter, esquecer e voltar a lembrar
pertencem à constituição histórica do homem e fazem parte de sua história e
formação. Quem exercita sua memória como uma mera capacidade – e toda técnica
de memória e tal exercício – continua sem possuir o que é mais próprio da
memória. A memória precisa ser formada, pois a memória não é memória em geral e
para tudo. Para algumas coisas temos memória, para outras não; e algumas coisas
queremos guardar na memória, outras banir. Estaria na hora do libertar e
fenômeno da memória de seu nivelamento capacitativo que a psicologia lhe impôs
e de reconhecê-lo como um traço essencial do ser histórico e limitado do homem.
Desde há muito tempo que não levamos suficientemente em consideração que o
esquecimento pertence à relação entre reter e lembrar. (p.52)
Considerar com maior
exatidão, estudar uma tradição com maior profundidade não bastam se não
disporem de uma receptividade para o que há de diferente numa hora de arte ou
no passado. (p.53)
b)
Sensus communis
Sendo assim, torna-se necessário
voltar-nos para a tradição humanista e perguntar: que forma de conhecimento das
ciências do espírito se poderá aprender dela? É aqui que o escrito de Vico, De nostri temporis studiorum ratione,
apresenta um valioso ponto de referência. A defesa do humanismo empreendida por
Vico, como já mostra o título, é medida pela pedagogia jesuíta e se dirige
tanto contra Descartes como contra o jansenismo. Assim como seu esboço de uma
“nova ciência”, esse manifesto pedagógico de Vico tem sua base plantada em
velhas verdades. Por isso, se refere ao sensus
communis, o senso comum, e ao ideal humanista da eloquentia, momentos que já existiam no antigo conceito do sábio.
Desde antigamente, o “bem falar” (eu
legein) é uma fórmula ambígua e não apenas um ideal retórico. Significa
também dizer o que é correto, ou seja, o que é verdadeiro, e não somente a arte
de falar, a arte de dizer bem alguma coisa. (p.56)
c)
Juízo
Esse desenvolvimento do conceito no
século XVIII, na Alemanha, pode ter dua bases na estreita ligação entre o
conceito de sensus communis e conceito de
juízo. A “sã compreensão humana”, chamada também de “compreensão comum”, é,
de fato, caracterizada decisivamente pelo juízo. O que distingue um tolo de uma
pessoa inteligente é que aquele não possui nenhum juízo, isto é, ele não
consegue subsumir corretamente e, por isso, não é capaz de aplicar corretamente
o que aprendeu e sabe. A introdução da palavra “juízo” no século XVIII quer,
portanto, reproduzir adequadamente o conceito de iudicium, que de dever ser considerado como uma virtude espiritual
fundamental. No mesmo sentido asseveram os filósofos moralistas ingleses que o
julgamento moral e estético não obedece à reason,
mas tem o caráter do sentiment (ou
seja, do taste), e de análoga Tetens,
um dos representantes do Aufklärung
alemão, vê no sensus communis um “iudicium sem reflexão”. Na verdade, a
atividade do juízo – de subsumir o particular no universal, de reconhecer algo
como o caso de uma regra – não pode ser demonstrada logicamente. Por isso, o
juízo se encontra em uma situação de perplexidade fundamental devido à falta de
um princípio que poderia guiar sua aplicação. Para seguir esse princípio seria
necessário lançar mão de outro juízo, como observa argutamente Kant. Não pode
pois ser ensinado genericamente; só pode ser exercido de caso a caso e nesse
sentido não passa de mais uma faculdade como são os sentidos. Trata-se de algo
simplesmente impossível de ser aprendido, porque nenhuma demonstração
conceitual pode guiar a aplicação de regras. (p.70)
d)
Gosto
Mais uma vez temos de estender nossa
busca, pois, na verdade, não se trata somente da redução do conceito do sentido
comum ao conceito do gosto, mas também de uma redução do próprio conceito de
gosto. A longa pré-história desse conceito, até transformado por Kant como o
fundamento de sua crítica do juízo, permite reconhecer que originariamente o conceito do gosto possui um cunho muito
mais moral do que estético. Descreve
um ideal de genuína humanidade e deve sua cunhagem ao empenho de se distinguir
criticamente do dogmatismo da “escola”. Foi só mais tarde que se restringiu o
uso do conceito ao “espírito do belo”. (p.74)
1.3.O resgate da questão pela verdade da arte
1.3.1.
Os aspectos problemáticos da formação estética
Onde predomina a arte passam a valer
as leias da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da realidade. É o “reino
inicial”, a ser defendido contra toda limitação, até mesmo contra a tutela
moral do Estado e da sociedade. Esse deslocamento interno na base ontológica da
estética schilleriana está intimamente ligado como fato de que também seu
enfoque extraordinário, presente nas Cartas
sobre a educação estética, acaba se modificando ao longo da execução.
Sabe-se que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte. No lugar
da verdadeira liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar,
aparece a formação de um “estado estético”, uma sociedade cultural que se
interessa pela arte. Com isso, também a superação do dualismo Kantiano entre
mundo dos sentidos e mundo ético, representada pela harmonia da obra de arte e
pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente numa nova
oposição. A reconciliação entre ideal e vida através da arte não passa de uma
reconciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um
brilho efêmero e transfigurado. A liberdade do ânimo, à qual ambos elevam, só é
liberdade num estado estético e não na realidade. Assim, na base da
reconciliação estética do dualismo kantiano do ser e do dever abre-se um
dualismo ainda mais profundo e insolúvel.
A poesia da reconciliação estética deve procurar sua própria
autoconsciência, frente à prosa da realidade alheada.
Não resta dúvida de que o conceito
da realidade, ao qual Schiller opõe a poesia, já não é mais kantiano, uma vez
que Kant, guiado por sua crítica á metafísica dogmática, restringe o conceito
do conhecimento à possibilidade da “ciência natural pura”, outorgando uma
validez indiscutível ao conceito nominalista de realidade, a perplexidade
ontológica em se encontra a estética do século XIX acaba encontrando suas
raízes, em ultima instância, no próprio Kant. Sob o domínio do preconceito
nominalista só se pode compreender o ser estético de uma forma insuficiente e
equívoca.
No fundo, a liberação dos conceitos
que impediam uma adequada compreensão do ser estético é devida antes de tudo à
crítica fenomenológica aplicada á psicologia e à teoria do conhecimento do
século XIX. Ela demonstrou que nos enganamos toda vez que buscamos pensar o
modo de ser do estético a partir do ponto de vista da experiência da realidade
ou quando buscamos compreendê-lo como uma modificação da mesma. Todos esses
conceitos como imitação, aparência, desrealização, ilusão, magia, sonho
pressupõem uma referência como um ser verdadeiro, do qual o ser estético se
diferencia. (p.132-133)
O que chamamos de obra de arte e
vivenciamos esteticamente repousa, portanto, sobre um produto da abstração. Na
medida em que se abstrai de tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto
de vida originário, isto é, de toda função religiosa ou profana em que se
encontrava e em que possuía ser significado, então se tornará visível a “pura
obra de arte”. Nesse sentido, a abstração da consciência estética produz algo
que é, para si mesmo, positivo. Permite ver e existir por si mesmo aquilo que é
a pura obra de arte. Chamo a esse seu produto de “distinção estética” (p.135)
O verdadeiro processo da formação,
isto é, a elevação à universalidade, aparece aqui desagregado em si mesmo. A
facilidade de a reflexão pensante em si movimentar em generalidade, em colocar
qualquer conteúdo sob pontos de vista propostos e assim vesti-lo com
pensamentos, é, segundo Hegel, a maneira de não se deixar envolver com o
verdadeiro conteúdo dos pensamentos. A esse livre dissolver-se do espírito em
si mesmo Immermann chama de algo dissipador. Com isso, descreve a situação
introduzida pela literatura pela filosofia clássica da época de Goethe, em que
os espíritos já encontravam prontas todas as formas de espírito e, por isso, o
que se constituía no genuíno trabalho da formação, isto é, eliminar o que era
estranho e tosco, acabava sendo trocado pelo desfrute do mesmo. Tinha se
tornado fácil fazer uma boa poesia e
por esse motivo tornara-se difícil ser um poeta. (p.139)
1.3.2.
Crítica da abstração da consciência estética
O ver “estético” se caracteriza
evidentemente pelo fato de não referir apressadamente o olhar a um universal,
ao significado conhecido, a um fim planejado ou algo parecido, detendo-se antes
nesse olhar como estético. Mas nem por isso deixamos de estabelecer esse tipo
de referência nesse olhar; p. ex., esse fenômeno branco que admiramos
esteticamente não deixamos de vê-lo como uma pessoa. Nossa percepção não é
nunca um simples reflexo daquilo que foi proporcionado aos sentidos. (p.141)
O mero ver, o mero ouvir são
abstrações dogmáticas que reduzem artificialmente os fenômenos. A percepção
inclui sempre o significado. Por isso, procurar uma unidade da figura estética
unicamente em sua forma e em oposição ao seu conteúdo não passa de um
formalismo ao avesso, que, alem disso, não pode se reportar a Kant. Com o seu
conceito da forma, Kant tinha em mente algo bem diferente. O conceito kantiano
de forma designa a construção estética não frente ao conteúdo significativo de
uma obra de arte mas frente ao mero estímulo sensível do que seja material. O
chamado conteúdo objetivo não é, de forma alguma, uma matéria à espera de uma
conformação posterior, mas na obra de arte o conteúdo encontra-se sempre
vinculado à unidade de forma e significado. (p.143)
Se quisermos levar em conta a crítica
à teoria da produtividade inconsciente do gênio, vemo-nos colocados de novo
diante do problema que Kant tinha resolvido através da função transcendental
que atribuiu ao conceito do gênio. O que é uma obra de arte e como se
diferencia de um produto artesanal ou mesmo de uma “obra mal feita”, isto é, de
algo de menor valor estético? Para Kant a para o idealismo, a obra de arte era
definida como a obra do gênio. Sua característica de ser algo completamente
bem-sucedido e exemplar confirmava-se ao oferecer um objeto inesgotável para
ser desfrutado e observado, deter-se nele e interpretá-lo. O fato de que à
genialidade do criar corresponda uma genialidade do desfrutar já estava na
teoria kantiana do gosto e do gênio, e mesmo K.Ph. Moritz e Goethe ensinavam-no
de modo ainda mais patente.
(p.145)
O conceito da “cosmovisão”, que
nos é familiar e que surge pela primeira vez em Hegel, na Fenomenologia do Espírito, para caracterizar a complementação
postulatória da experiência ética fundamental em uma ordem moral do mundo,
proposta por Kant e Fichte, só irá encontrar sua cunhagem genuína na estética.
É a multiplicidade e a possibilidade de mudança das cosmovisões que acabou
emprestando ao conceito “cosmovisão” esse tom que nos é familiar. Mas o
exemplo-guia nesse sentido é a história da arte, porque essa multiplicidade
histórica não pode ser abolida pela unidade de uma meta do progresso voltada
para a verdadeira arte. É verdade que Hegel só consegui reconhecer a verdade da
arte por tê-la sobrepujado com o saber conceitual da filosofia e construiu a
história das cosmovisões bem com a história mundial e a história da filosofia a
partir de uma completa autoconsciência do presente. Tampouco isso pode ser
considerado um mero desvio do caminho, já que permitiu que ultrapassasse
amplamente o campo do espírito subjetivo. Nessa ultrapassagem reside um momento
da verdade permanente do pensamento de Hegel. Sabemos também que, na medida em
que a verdade do conceito de torna assim todo-poderosa, subsumindo em si toda
experiência, a filosofia de Hegel volta a negar o caminho da verdade que
reconhecera na experiência da arte. Se procurarmos defender o que esse caminho
comporta de razão, devemos prestar contas, por princípio, do que se compreende aqui
por verdade. É nas ciências do espírito, em seu conjunto, onde devemos buscar
uma resposta para essa pergunta. Pois estas não querem suprimir mas compreender
a variabilidade de todas as experiências, quer seja a variabilidade da
consciência estética ou histórica, quer a da consciência religiosa ou política,
ou seja, reconhecer sua verdade. Ainda vamos discutir a relação recíproca entre
Hegel e a autocompreensão das ciências do espírito representada pela “escola
histórica” e como eles partilham o que possibilita uma compreensão adequada do
que chamamos de verdade nas ciências do espírito. Não poderemos fazer justiça
ao problema da arte partindo do ponto de vista da consciência estética, mas
apenas partindo desse horizonte mais amplo.
No início demos apenas um primeiro
passo nessa direção ao procurar corrigir a auto-interpretação da consciência
estética e ao recolocarmos a questão pela verdade da arte, a favor da qual
testemunha a experiência estética. O que nos importa, portanto, é ver a
experiência da arte de tal modo que venha a ser entendida como experiência. A
experiência da arte não deve ser falsificada como um fragmento em posse da
formação estética, não tenho neutralizada assim sua pretensão própria. Veremos
que nisso reside uma conseqüência hermenêutica de longo alcance, na media em
que todo encontro com a linguagem da arte
é um encontro como um acontecimento inacabado, sendo ela mesma uma parte desse
acontecimento. É isso o que se deve erigir contra a consciência estética e
sua neutralização da questão da verdade. (p.150-151)
2.2.4.
A reconstrução e a integração como tarefas hermenêuticas
A disciplina clássica que se ocupa
da arte de compreender textos é a hermenêutica. Mas, se nossas reflexões são
corretas, o verdadeiro problema da hermenêutica deve ser posto de uma maneira
totalmente diferente da habitual. Deverá apontar para a mesma direção em que
nossa crítica à consciência estética havia deslocado o problema da estética. A
hermenêutica deveria então ser compreendida de um modo tão abrangente a ponto
de incluir em si toda esfera da arte e sua problemática. Qualquer obra de arte,
e não apenas as literárias, devem ser compreendidas ao mesmo sentido de
qualquer outro texto, e isso requer capacidade. Como isso a consciência
hermenêutica adquire uma extensão tão abrangente que ultrapassa a da
consciência estética. A estética deve
subordinar-se à hermenêutica. E esse enunciado não se refere apenas ao
aspecto formal do problema, mas aplica-se antes de tudo ao conteúdo. A
hermenêutica, ao contrário, dever determinar-se, em seu conjunto, de maneira a
fazer justiça à experiência da arte. A compreensão deve ser entendida como
parte do acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o sentido de
todo enunciado, tanto os enunciados da arte quanto os de qualquer outra
tradição.
Como disciplina auxiliar da teologia
e da filosofia, a hermenêutica experimentou no século XIX um desenvolvimento
sistemático que a transformou em fundamento para o conjunto das atividades das
ciências do espírito. Ela elevou-se fundamentalmente acima de seu objetivo
pragmático original, ou seja, o de tornar possível ou facilitar a compreensão
de textos literários. Não é somente a tradição literária que representa o
espírito alienado, necessitado de uma apropriação nova e mais viva; antes, tudo
que já não está imediatamente em seu mundo e não se expressa nele e para ele,
junto com a tradição, a arte de todas as demais criações espirituais do
passado, o direito, a religião, a filosofia etc., encontram-se despojado de seu
sentido original e dependem de um espírito que as interprete e intermedeie,
espírito que, a exemplo dos gregos chamados de Hermes, o mensageiro dos deuses.
É à gênese da consciência histórica que
a hermenêutica deve sua função central no âmbito das ciências do espírito. Mas
a questão é saber se o alcance do problema que ela coloca pode ser visto de
maneira correta a partir das premissas da consciência histórica.
O trabalho que se realizou até o
presente, nesse terreno, sobretudo pela tentativa diltheyana de uma
fundamentação hermenêutica das ciências do espírito e suas investigações sobre
a gênese da hermenêutica, ficou a seu modo as dimensões do problema
hermenêutico. Nossa tarefa atual poderia ser a de ser de tentar subtrair-nos da
influência dominante da problemática diltheyana e dos preconceitos da “história
do espírito” fundada por ele.
Com o objetivo de dar uma idéia
antecipada da questão e de estabelecer uma relação das consciências
sistemáticas do que desenvolvemos até aqui com a ampliação que experimenta
agora o nosso questionamento, faremos bem se nos ativermos de imediato à tarefa
hermenêutica colocada pelo fenômeno da arte. Se por um lado conseguimos mostrar
que a “distancia estética” é uma abstração que não pode suspender a pertença da
obra de arte ao seu mundo, por outro, também é incontestável que a arte ao seu
mundo, por outro, também é incontestável que a arte jamais é passado, mas
consegue superar a distancia dos tempos através da presença de seu próprio
sentido. Assim, parece que a partir de um duplo ponto de vista o exemplo da
arte nos mostra um caso privilegiado de compreensão. A arte não é mero objeto
da consciência histórica, e, no entanto a sua compreensão implica sempre uma
mediação histórica. Diante disso, como determinar a tarefa de hermenêutica?
Schleiermacher e Hegel poderiam
representar as duas possibilidades extremas de resposta a essa pergunta. Suas
respostas poderiam ser caracterizadas pelos conceitos de reconstrução e integração. Tanto
para Schleiermacher e Hegel, no começo se encontra a consciência que provoca a
reflexão hermenêutica. Entretanto, eles determinam a tarefa da hermenêutica de
maneira bem diferente.
(p.232)
Scheiermacher, de cuja teoria hermenêutica
nos ocuparemos mais adiante, está totalmente empenhado em reconstruir na
compreensão a determinação original de uma obra. Pois a arte e a literatura que
nos são transmitidas do passado chegam a nós desenraizadas de seu mundo
original. Nossas análises já demonstraram que isso vale para todas as artes e
portanto também para a literatura, mas que se faz particularmente evidente nas
artes plásticas. Schleiermacher escreve que “a partir do momento em que as obras
de arte entram em circulação” o natural e originário já foram perdidos. “Ou
seja, cada uma tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua
determinação original”. “Por isso, a obra de arte perde algo de seu significado
quanto é arrancada de seu contexto originário e este não foi conservado
historicamente.” Ele chega, inclusive, a dizer: “Assim, uma obra de arte está
enraizada também no seu solo e chão, no seu entorno. Ao ser retirada desse
entorno e entrar em circulação, perde o significado, é como algo que foi salvo
de fogo e agora traz as marcas de queimado”
Será que isso não implica que a obra
de arte somente tem seu verdadeiro significado ali onde originalmente pertence?
Será que compreender seu significado não será de algum modo restabelecer o
originário? Se sabemos e reconhecemos que a obra de arte não é um objeto
atemporal da vivencia estética mas pertence a um mundo e somente este poderá
determinar plenamente o seu significado, parece que devemos concluir que o
verdadeiro significado da obra de arte só pode ser compreendido a partir desse
“mundo”, portanto, principalmente a partir da sua origem e de seu surgimento. A
reconstrução do “mundo” a que pertence, a reconstrução do estado original que
havia na “intenção” do artista criador, e execução da obra no seu estilo
original, todos esses meios de reconstrução histórica teriam então o direito de
reivindicar que eles tornam compreensível o verdadeiro significado da obra de
arte e que devem protegê-la contra mal-estendidos e falsas atualizações. Essa
é, efetivamente, a idéia de Schleiermacher, o saber histórico abre a
possibilidade de suprir o que foi perdido e reconstruir a tradição, na medida
em que nos devolve o ocasional e o originário. Assim, o empenho hermenêutico se
orienta para a recuperação do “ponto de conexão” (Anknüpfungspunkt) no espírito do artista, o único a tornar
inteiramente compreensível o significado de uma obra de arte, como faz, por
outro lado, no caso de textos onde a hermenêutica se esforça por reproduzir a
produção original do autor.
É claro que a reconstrução das
condições sob as quais uma obra transmitida cumpria sua determinação original
constituiu uma operação auxiliar verdadeiramente essencial para a compreensão.
Apenas temos que perguntar se o que se alcança por esse caminho é realmente o
que buscamos quanto tentamos encontrar o significado
da obra de arte, e se determinamos corretamente a compreensão quando a
consideramos como uma segunda criação, como a reprodução da produção original.
Uma tal determinação da hermenêutica acaba não sendo menos absurda do que toda
restituição e restauração da vida passada. Face à historicidade de nosso ser, a
reconstrução das condições originais, como toda e qualquer restauração, não
passa de uma empresa impotente. A vida reconstruída recuperada do alheamento,
não é a original. Com a persistência do alheamento, ela obtém uma existência
secundaria da cultura. A tendência recente de devolver as obras de arte dos
museus ao seu lugar original ou de reconstruir o aspecto original dos monumentos
arquitetônicos só confirma este ponto de vista. Mesmo o quadro retirado do
museu e recolocado na igreja ou o edifício reconstruído segundo o seu estado
antigo não são o que foram: convertem-se em objeto para turistas. Igualmente a
atividade hermenêutica que entenda a compreensão como a reconstrução do
original não passa de um exercício de transmissão de um sentido morto. (p.231, 232, 233 e 234)
SEGUNDA PARTE
A EXTENSÃO DA
QUESTÃO DA VERDADE À
COMPREENSÃO NAS
CIÊNCIAS DO ESPÍRITO
1.Preliminares
históricas
1.1.A problematicidade da hermenêutica romântica e sua
aplicação à historiografia
1.1.1. A
transformação essencial da hermenêutica entre a Aufklärung e o Romantismo
Se reconhecemos, então, como tarefa,
seguir mais a Hegel do que a Schleiermacher, devemos acentuar a história da
hermenêutica de um modo totalmente novo. Sua realização já não se dá liberando
a compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, nem poderá
considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey,
seguindo os passos de Schleiermacher. Antes, nossa tarefa será retomar o
caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diferentes dos que ele tinha
em mente com sua autoconsciência histórica. Nesse sentido, deixamos totalmente
de lado a interesse dogmático pelo problema hermenêutico que despertava o
Antigo Testamento na Igreja primitiva, e nos contentamos em seguir o
desenvolvimento do método hermenêutico da Idade Moderna, que desemboca no
surgimento da consciência histórica.
(p.241)
a) A pré-história da hermenêutica
romântica
A arte da compreensão e
interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos distintos, o teológico e
o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como
mostrou muito bem Dilthey, a partir de sua defesa da compreensão reformista da
Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter
indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumental
para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica. (p.241)
O sentido literal da Escritura não
pode ser compreendido univocamente em todas as suas passagens nem a todo o
momento. Pois o que guia a compreensão do individual é o todo da Escritura
Sagrada, assim como que, por outro lado, só se pode alcançar esse todo tendo
percorrido a compreensão do individual. Em si, essa relação circular de todos e
das partes não é nenhuma novidades. A retórica antiga já sabia disso; ela
comparava o discurso perfeito com um corpo orgânico e com a relação entra a
cabeça e os membros. Lutero de seus seguidores transferiram essa imagem oriunda
da retórica clássica para o procedimento da compreensão, e desenvolveram um
princípio geral de interpretação de texto segundo o qual todos os aspectos
individuais de um texto devem ser compreendidos a partir de contextus, do conjunto, e a partir do
sentido unitário para o qual o todo está orientado, o scopus. (p.243)
A necessidade da interpretação
histórica “segundo o espírito do autor” é, nesse caso, conseqüência do caráter
hieroglífico e incompreensível do conteúdo. Ninguém iria interpretar Euclides
observando a vida, o estudo e os costumes (vita,
studium et mores) do autor, e isso valeria também para o espírito da Bíblia
em questões de ordem moral (circa
documenta moralia). E só porque nas narrações da Bíblia aparecem coisas
incompreensíveis (res imperauctoris
percipiamus). E aqui pouco importa se o sentido visado corresponde à nossa
perspectiva; pois queremos conhecer unicamente o sentido das frases (o sensus orationium), não sua verdade (veritas). Para isso precisamos eliminar
toda e qualquer pressuposição, inclusive a da nossa razão (e tanto mais a de
nossos preconceitos) (§ 17).
A
“naturalidade” da compreensão da Bíblia repousa, portanto, sobre o fato de que
o que é evidente será visto e o não evidente tornar-se-á compreensível
“historicamente”. A perturbação da compreensão imediata das coisas em sua
verdade é o que motiva o rodeio pelo histórico. Uma questão bem diferente é
saber o que significa o princípio interpretativo, assim formulado, para a
relação específica de Spinoza, a amplitude
do que na Bíblia só se pode compreender historicamente é muito grande, embora o
espírito do conjunto (quod ipsa veram
virtutem doceat) seja evidente, e mesmo que o evidente possua um significado predominante.
Assim, remontamos à pré-história da
hermenêutica histórica, teremos de destacar de imediato que entre a filosofia e
a ciência da natureza, em sua primeira auto-reflexão, se estabelece uma
correlação muito estreita, que reveste de um duplo sentido. Por um lado, a
“naturalidade” do procedimento da ciência natural pode ser aplicada também ao
posicionamento frente à tradição bíblica – e para isso serve-se do método
histórico. Mas por outro lado também a naturalidade da arte filológica
praticada na exegese bíblica, a arte de compreender pelo contexto, impõe ao
conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o “livro da natureza”. Nesse
sentido, o modelo da filologia pode
orientar o método da ciência da natureza.
Ali se mostra que o saber instituído
pela Escritura Sagrada e pelas autoridades é o adversário contra o qual a nova
ciência da natureza deve se impor. Diferentemente daquela, esta tem sua
verdadeira essência em sua metodologia própria, que através da matemática e da
razão c conduz a evidência do que é compreensível em si mesmo. (p.251)
Por certo que Schleiermacher não foi
o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica em tornar compreensível a
intenção de outras pessoas expressa em discursos e textos. A arte da
hermenêutica jamais foi o organon da
investigação das coisas. Desde o início, isso a distinguiu daquilo que
Schleiermacher chama de dialética. Entretanto, sempre que alguém se esforça por
compreender – por exemplo, a Escritura Sagrada ou os clássicos –, está
operando, indiretamente, uma referência à verdade que está oculta no texto e
que deve vir à luz. Na realidade, o que se deve compreender não é um pensamento
enquanto um momento vital, mas enquanto uma verdade. Este é o motivo por que a
hermenêutica possui uma função auxiliar, permanecendo subordinada à investigação
da coisa em questão. Também Schleiermacher leva isso em conta, desde o momento
em que relaciona a hermenêutica por princípio – no sistema das ciências – à
dialética.
Mesmo assim, a tarefa que ele se
impõe é precisamente isolar o procedimento de compreender. Trata-se de torná-lo
autônomo, como uma metodologia própria. Para
Schleiermacher, isso implica a necessidade de libertar-se das tarefas
redutoras que determinavam a essência da hermenêutica em seus predecessores,
Wolf e Ast. Não aceita a restrição às línguas estrangeiras nem a restrição aos
escritores, “como se a mesma coisa não pudesse ocorrer igualmente na
conversação e escutando diretamente um discurso.
Isso significa bem mais do que
expandir o problema hermenêutico da compreensão do que foi fixado por escrito à
compreensão do discurso em geral – percebe-se aqui um deslocamento de caráter
fundamental. O que deve ser compreendido não é a literalidade das palavras e
seu sentido objetivo, mas também a individualidade de quem fala ou do autor.
Schleiermacher entende que os pensamentos só podem ser compreendidos
adequadamente retrocedendo até sua gênese. O que para Spinoza representa um
caso extremo da compreensibilidade adequadamente retrocedendo até sua gênese. O
que para Spinoza representa um caso extremo da compreensibilidade, obrigando,
com isso, a um rodeio histórico, converte-se para ele no caso normal e
constitui a pressuposição a partir da qual desenvolve a teoria da compreensão.
O que ele encontra “em geral relegado e em parte até mesmo completamente
abandonado” é o “o compreender uma série de idéias como um momento vital que
irrompe, como um ato que está em conexão com muitos outros, inclusive de
natureza diferente.
Assim ao lado da interpretação
gramatical, ele coloca a interpretação psicológica (técnica) – e é aqui que se
encontra sua contribuição mais genuína. No que se segue, deixaremos de lado as
elaborações, em si mesmo perspicazes, elaborados por Schleiermacher sobre a
interpretação gramatical. Elas são primorosos para o que a totalidade prévia da
linguagem desempenhada para o autor – e com isso também para seu intérprete –,
assim como para o significado do todo de uma literatura para cada obra individual.
Como uma nova investigação do legado de Schleiermacher torna provável, pode ser
que a interpretação psicológica só aos poucos tenha ganho sua posição de
destaque no desenvolvimento do pensamento de Schleiermacher. Seja como for,
essa interpretação psicológica tornou-se realmente determinante para a formação
das teorias do século XIX – para Savigny, Boeckh, Steinthal e sobretudo para
Dilthey.
Para Schleiermacher, a cisão
metodológica entre filologia e dogmática continua sendo essencial, até mesmo e
relação à Bíblia, onde a interpretação psicológico-individual de cada um de
seus autores é menos importante do que a significação do que é dogmaticamente
unitário e comum. A hermenêutica abrange a arte da interpretação gramatical e
psicológica. Mas o que há de mais próprio sem Schleiermacher é a interpretação
psicológica. É, em ultima análise, um comportamento divinatório, um
transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o
“decurso interno” da feitura da obra, uma reformulação do ato criador. A
compreensão é, pois, uma reprodução do ato criador, a compreensão é, pois, uma
reprodução referida à produção original, um reconhecer do conhecido (Boeckh),
uma reconstrução que parte do momento vivo da concepção, da “decisão germinal”
como o ponto de organização da composição. (p.255, 256, 257 e 258)
Uma das características de Schleiermacher
é procurar em tudo esse momento da produção livre. Schleiermacher irá fazer
essa mesma distinção também no diálogo, de que se falava há pouco: ao lado do
“diálogo livre”; ele atribuiu esse diálogo livre ao pensamento artístico. Nesse
os pensamentos “quase não são levados em consideração” pelo seu conteúdo. O
diálogo não passa de uma estimulação recíproca na geração de pensamentos (“e
seu fim natural não é outro que o esgotamento paulatino do processo descrito”),
uma espécie de construção artística da relação recíproca da comunicação. (p.259)
O pressuposto de Schleiermacher é de
que cada individualidade é uma manifestação da vida universal e assim “cada
qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, o que estimula a adivinhação
por comparação consigo mesmo”. Assim, ele pode dizer que se deve conceber
imediatamente a individualidade do autor, “transformando-se de certo modo no
outro”. Ao pontualizar assim a compreensão no problema da individualidade, a
tarefa da hermenêutica apresenta-se para Schleiermacher como uma tarefa
universal. Pois tanto o extremo da estranheza quanto o da familiaridade dão-se
com a diferença relativa de toda individualidade. O “método” da compreensão
visará tanto o comum – por comparação – como peculiar – por adivinhação –, ou
seja, terá de ser tanto comparativo como adivinhatório. Mas em ambas as
perspectivas continuará sendo “arte”, porque não pode ser mecanizado como se
fosse mera aplicação de regras. O adivinhatório continua indispensável. (p.261)
Examinemos agora mais de perto o que
Schleiermacher entende por essa equiparação, pois, obviamente, não pode
tratar-se de pura e simples identificação. A reprodução permanece
essencialmente distinta da produção. É assim que Schleiermacher chega ao
postulado de que importa compreender um
autor melhor do que ele próprio se compreendeu – uma fórmula que, desde
então, tem sido repetida incessantemente e cujas diversas interpretações marcam
toda a história da hermenêutica moderna. De fato, esse postulado encerra o
verdadeiro problema da hermenêutica. Por isso, vale a pena deter-nos um pouco
mais sobre o sentido dessa fórmula.
(p.263)
A fórmula de Schleiermacher, tal
como ele a entende, não inclui mais a própria coisa de que se está falando, mas
considera a expressão que representa um texto, abstraindo de seu conteúdo de
conhecimento, como uma produção livre. Corresponde a isso o fato de que ele
orienta a hermenêutica que nele está voltada para a compreensão de tudo que
pertence à linguagem, segundo o modelo estandártico da própria linguagem. O
falar do indivíduo é efetivamente um fazer livre e configurador, por mais que
suas possibilidades estejam restritas pela estruturação fixa da língua. A
linguagem é um campo de expressão e sua primazia no campo da hermenêutica
significa, para Schleiermacher, que ele, como intérprete, considera os textos
como puros fenômenos de expressão, à margem de sua pretensão de verdade. (p.269)
Desse modo, a hermenêutica romântica
e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade, foram
determinantes para a reflexão teórica de investigação da história do século
XIX. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a
concepção do mundo da escola histórica, a filosofia hegeliana da história
universal compreendeu o significado da história para o ser do espírito e para o
conhecimento da verdade com uma profundidade incomparavelmente maior que
aqueles grandes historiadores que não quiseram reconhecer sua dependência com
respeito a ele. O conceito da individualidade de Schleiermacher, que caminhava
lado a lado com os interesses da teologia, da estética e da filologia, não
somente era uma instância crítica contra a construção apriorística da filosofia
da história como oferecia às ciências históricas, ao mesmo tempo, uma
orientação metodológica que as remetia, num grau não inferior às ciências da
natureza, à investigação, isto é, à única base que sustenta uma experiência
progressiva. Assim, a resistência contra a filosofia da história universal
acabou empurrando-a para os ductos da filologia. Ser orgulho estava em que tal
metodologia não pensava o contexto (Zusammenhang)
da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o
estilo do Aufklärung pré-romântico ou
pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da
história universal. Ao contrário, para ela não há nenhum final e nenhum fora,
além da história. Só se pode alcançar a compreensão de decurso total da
história universal a partir da própria tradição histórica. E esta é justamente
a pretensão da hermenêutica filológica, ou seja, a pretensão de que o sentido
de um texto pode ser compreendido por si próprio. Por conseqüência, a base da historiografia é a hermenêutica. (p.271-272)
1.3.A superação do questionamento epistemológico pela
investigação fenomenológica
1.3.1.
O conceito de vida em Husserl e no Conde Yorck
Para cumprir a tarefa que se nos
propõe, é natural que o idealismo especulativo nos ofereça melhores
possibilidades das que perceberam Schleiermacher e a hermenêutica que a ele se
vincula. É que o idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade,
havia sido submetido a uma profunda crítica. E foi justamente a ela que Dilthey
tentou apelar para a sua filosofia da vida. Ele escreve: “Através de que
designa Fichte o ínicio de algo novo? Pelo fato de partir da instituição
intelectual do eu, porém concebendo-o não como uma substância, um ser, um dado,
mas justamente por meio dessa intuição, isto é, desse difícil aprofundamento do
eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e, por conseqüência,
mostra nele a realização de conceitos de energia como oposição e outros”. Da
mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a
vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuaram alguns
de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da vivência:
Nietzsche, Bergson, este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a
forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas, de modo geral, foi somente Heidegger quem tornou consciente a
radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do
conceito de substância para o ser e pra o conhecimento histórico. É só através
dele que se libertou a intenção filosófica de Dilthey. O trabalho de Heidegger
engata da investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa uma ruptura decisiva, na
medida em que não se constituía no platonismo extremo que Dilthey via ali.
Ao contrário, graças à evolução da
grande edição das obras de Husserl que nos permite ter uma idéia melhor da
lenta maturação do pensamento, fica cada vez mais claro que, com o tema da
intencionalidade, institui-se uma crítica cada vez mais radical ao
“objetivismo” da filosofia tradicional – incluindo Dilthey –, que deveria
culminar na pretensão de “que a fenomenologia intencional, pela primeira vez,
fez do espírito enquanto espírito um campo de experiência sistemática e uma
ciência, dando assim uma reviravolta total à tarefa do conhecimento. A
universalidade do espírito absoluto abarca todo o ente numa historicidade
absoluta, na qual se incluiu na natureza como uma construção do espírito. Não é
por acaso que, aqui, o espírito como o único absoluto, isto é, não relativo, se
oponha à relatividade que se lhe manifesta; sim, o próprio Husserl reconhece a
continuidade entre sua fenomenologia e o questionamento transcendental de Kant
e de Fichte: “Mas para ser mais correto é preciso que se acrescente que o
idealismo alemão que parte de Kant já estava apaixonadamente preocupado em
superar a ingenuidade que já era bem visível (sc. do objetivismo).
Essas declarações de Husserl tardio
já podem ter sido motivadas pela confrontação com Ser e tempo, mas a elas precedem inumeráveis tentativas de Husserl,
demonstrando que ele tinha sempre em vista a aplicação de suas idéias aos
problemas das ciências históricas do espírito. Aqui, portanto, não se trata de
um ponto de conexão periférico com trabalho de Dilthey ou, mais tarde, com o de
Heidegger. Representa, antes, a conseqüência de sua própria crítica à
psicologia objetivista e ao pseudoplatonismo da filosofia da consciência. É o
que fica perfeitamente claro após a publicação das Ideen II. (p.326,
327 e 328)
Com isso conquista-se a idéia da
“fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda posição do ser e a
investigação dos modos subjetivos de as coisas se darem, transformando-a num
programa universal de trabalho que deveria permitir a compreensão de toda
objetividade, de todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana
possui validez ontológica. Também ela deve ser vista como “fenômeno”, ou seja,
deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de doação. essa
investigação do eu como fenômeno não é “percepção interior” de um eu real. Mas
tampouco é mera reconstrução da “conscienciabilidade”, isto é, a relação dos
conteúdos da consciência como um pólo transcendental do eu (Natorp); é antes um
tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Frente a um
mero dar-se dos fenômenos da consciência objetiva, um dar-se das vivências
intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da
pesquisa, pois existem também dados que, de sua parte, não são objetivo de atos
intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e
se funde, em ultima análise, com o continuum
das vivencias presentes no anterior e no posterior para formar a unidade do
fluxo da vida. (p.328-329)
Sem dúvida, o conceito e o fenômeno
de horizonte contêm um significado
importante para a investigação fenomenológica de Husserl. Através desse
conceito, que também nós teremos ocasião de empregar, Husserl procura
evidentemente fazer a transição de toda intencionalidade restrita da intenção à
continuidade sustentadora de todo. Um horizonte não é uma fronteira rígida, mas
algo que se desloca com a pessoa e que convida a que se continue a caminhar.
Desse modo, à intencionalidade- horizonte que constitui a unidade do nexo
vivencial corresponde uma intencionalidade-horizonte igualmente abrangente por
parte dos objetos. Pois tudo o que está
dado como ente está dado do mundo e leva consigo o horizonte do mundo. Em suas
retratações com relação a Ideen I,
Husserl ressaltou, numa expressa autocrítica, que naquela época (1923) ainda
não tinha compreendido suficientemente o significado do fenômeno do mundo. A
teoria da redução transcendental que ele havia publicado em Ideen acabaria se tornando cada vez mais
complexa. Já não podia bastar a mera suspensão de validade das ciências
objetivas, porque mesmo na realização da
epoche, na suspensão da posição ontológica do conhecimento científico, o
mundo mantém sua validez como algo dado previamente. Nesse sentido a
auto-reflexão epistemológica que indaga pelo a priori, pelas verdades eidéticas das ciências, não é
suficientemente radical.
(p.330)
O conceito de mundo da vida se opõe a todo objetivismo. Trata-se de um conceito
essencialmente histórico, que não tem em mente um universo do ser, um “mundo
que é”. Nem mesmo a idéia infinita de um mundo verdadeiro, a partir da
progressão infinita dos mundos humanos e históricos, pode ser formulada com
sentido da experiência histórica. É verdade que se pode indagar pela estrutura
do que abrange a todos os entornos já experimentados pelos homens, o que
representa a possível experiência do mundo por excelência e, nesse sentido,
pode-se perfeitamente falar de uma ontologia do mundo. Uma tal ontologia do
mundo continuaria sendo algo bastante diferente do que poderiam produzir as
ciências da natureza, pensadas em seu estado de perfeição. Ela representaria
uma tarefa filosófica que tomaria como objeto a estrutura essencial do mundo.
Mas o mundo da vida quer dizer outra
coisa; significa o todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos. E
aqui já não se pode evitar a conclusão de que, diante da historicidade da
experiência implicada nela, a idéia de um universo de possíveis mundos
históricos da vida é fundamentalmente irrealizável. A infinitude do passado,
mas sobre tudo o caráter aberto do futuro histórico, não são conciliáveis com
essa idéia do universo histórico. Husserl extraiu explicitamente essa
conclusão, sem retroceder ante o “fantasma” do relativismo. (p.332)
Em Husserl já podemos constatar um
momento que de fato ameaça constantemente despedaçar esse quadro. Na verdade
sua, sua posição é bem mais que uma radicalização do idealismo transcendental,
e, para esse “mais”, a função que o conceito “vida” recebe nele é decisiva.
“Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é
a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida”, encontra-se o que
Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista
de toda a filosofia tradicional. A seus olhos, ela consiste em haver desvendado
o caráter de aparência que marcar a controvérsia epistemológica habitual entre
realismo e em haver tematizado em seu lugar a coordenação última entre
subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “ vida
produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração
interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘exterior’. É como a
unidade de um organismo vivo, que pode ser observado e analisado de fora, mas
que só pode ser compreensível nas vivências conscientes e em sua
intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do
organismo utilizada aqui por Husserl é mais do que uma comparação. Como ele expressamente,
deve ser tomada ao pé da letra.
(p.333-334)
A vida se determina pelo fato de o
ser vivo distinguir-se do mundo em que vive e ao qual permanece unido,
manter-se nessa sua autodistinção. A autoconservação do ser vivo se produz de
tal modo que entrega em si o ente que está fora dele. Todo ser vivo se nutre do
que lhe é estranho. A situação fundamental do ser vivo é a assimilação. A
distinção portanto torna-se ao mesmo tempo um não-distinção. O estranho é
apropriado. (p.339)
A fenomenologia hermenêutica de
Heidegger e a análise da historicidade da presença buscavam uma renovação geral
da questão do ser e não uma teoria das ciências do espírito ou uma superação
das aporias do historicismo. Esses eram meros problemas atuais que permitiam
demonstrar as conseqüências de sua renovação radical da questão do ser. Mas
graças precisamente à radicalidade de seu questionamento pôde sair do labirinto
em que se haviam deixado apanhar Dilthey e Husserl com suas investigações sobre
os conceitos fundamentais das ciências do espírito. (p.346)
Compreender
não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do
espírito, como em Dilthey, mas tampouco é, como em Husserl, um ideal
metodológico último da filosofia frente à ingenuidade do ir vivendo. É, ao
contrário, a forma originária de realização da pre-sença,
que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas
direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da
pre-sença, medida em que é poder-ser e “possibilidade”. (p.347)
2.
Os
traços fundamentais de uma teoria da experiência hermenêutica
2.1.A elevação da
historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico
2.1.1.
O círculo hermenêutico e
o problema dos preconceitos
a) A
descoberta de Heidegger da estrutura prévia da compreensão
Heidegger só se interessa pela
problemática da hermenêutica histórica e da crítica histórica com a finalidade
ontológica de desenvolver, a partir delas, a estrutura prévia da compreensão.
Nós, ao contrário, uma vez tendo liberado a ciências das inibições ontológicas
do conceito de objetividade, buscamos compreender como a hermenêutica pôde
fazer jus à historicidade da compreensão. A auto compreensão tradicional da
hermenêutica repousava sobre seu caráter de ser uma disciplina técnica. Isso
vale inclusive para a ampliação diltheyana da hermenêutica à dimensão de organon das ciências do espírito. Pode
até parecer duvidoso que exista uma tal disciplina técnica da compreensão;
sobre isso voltaremos mais adiante. Em todo caso, precisamos compreender quais
as conseqüências para a hermenêutica das ciências do espírito são provocadas
pelo fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da
compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não
precisam ser as de uma teoria que se aplica à práxis. Muito menos a práxis
precisa ser exercida de maneira diferente, de acordo com sua parte. Poder ser
que a conseqüência disso seja a necessidade de corrigir a autocompreensão que se exerce constantemente na compreensão,
livrando-a de adaptações inadequadas. Esse processo iria beneficiar a arte
do compreender apenas de modo indireto.
É por isso que retomamos a descrição
heideggeriana do círculo hermenêutico a fim de que o novo e fundamental
significado que adquire aqui a estrutura circular possa se tornar fecundo para
nosso propósito. Heidegger escreveu: “Embora possa ser tolerado, o círculo não
deve ser degradado a círculo vicioso. Ele esconde uma possibilidade positiva do
conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendida de modo
adequado quando ficar claro que a tarefa primordial, constante e definitiva da
interpretação continua sendo não permitir que a posição prévia, a visão prévia
e a concepção prévia (Vorhabe, Vorsicht,
Vorbegriff) lhe sejam impostas por intuições ou noções populares. Sua
tarefa é, antes, assegurar o tema científico, elaborando esses conceitos a
partir da coisa, ela mesma.”
O que Heidegger aqui não é em
primeiro lugar uma exigência à práxis da compreensão, mas descreve a forma de
realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de
Heidegger tem seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um
círculo, mas que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição
como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda
interpretação correta tem que proteger-se a arbitrariedade de intuições
repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu
olhar para “as coisas elas mesmas” (que para os filósofos são textos com
sentido, que tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim
pela própria coisa, evidentemente, não é para intérprete um decisão “heróica”,
tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente “a tarefa primeira, constante
e ultima”. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa através de todos
os desvios a que vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias
que lhe ocorrem. Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar.
Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um
sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê
o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido
determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na
elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo
constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança da penetração
do sentido.
Essa descrição é, naturalmente, uma
abreviação rudimentar. O fato de toda revisão do projeto prévio estar na
possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos rivais
possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente
a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévios que
serão substituídos por outros mais adequados; justamente todo esse constante reprojetar
que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar é o processo
descrito por Heidegger. Que buscar compreender está exposto a erros de opiniões
prévias que não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos
e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que só podem ser
confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não
existe outra “objetividade” a não ser a confirmação que uma opinião prévia
obtém através de sua elaboração. Pois o que é que caracteriza a arbitrariedade
das opiniões prévias inadequadas senão o fato de que no processo de sua
execução acabam sendo aniquiladas? A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade
quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso,
faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da
opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões
quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.
Essa exigência fundamental deve ser
pensada como a radicalização de um procedimento que na realidade exercemos
sempre que compreendemos algo. Diante de qualquer texto, nossa tarefa é não
introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos extraídos da
linguagem – ou, no caso de uma língua estrangeira, o hábito que nos é familiar
por meios de autores ou de nosso trato cotidiano com a linguagem. Ao contrário,
reconhecemos que a nossa tarefa é alcançar a compreensão do texto somente a
partir do hábito da linguagem da época e de seu autor. Naturalmente, o problema
é saber como se pode satisfazer essa exigência geral. Sobretudo no campo da
teoria do significado, o caráter inconsciente dos próprios hábitos de linguagem
opõe-se a isso. Como é possível conscientizar-nos das diferenças existentes
entre o uso costumeiro da linguagem e o uso do texto?
Em geral é preciso dizer que o que
nos faz parar e perceber uma possível diferença do uso da linguagem é só a
experiência do choque que um texto nos causa – seja porque ele não faz nenhum
sentido, seja porque seu sentido não concorda com essas expectativas. Existe
uma pressuposição geral de que alguém que fala a mesma língua que toma as
palavras que emprega no sentido que me é familiar; essa pressuposição somente
se torna questionável em casos excepcionais. O mesmo ocorre no caso de uma
língua estrangeira que supomos conhecer mediatamente; e também na compreensão
de um texto pressupomos esse uso mediato da língua. (p.354, 355, 356 e 357)
A
tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na
coisa em questão, e já se encontra sempre determinada por esta. Assim, o
empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer
compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de sua próprias
opiniões prévias, ignorando a opinião do texto de maneira mais obstinada e
conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derribe
a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar
disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência
formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à
alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma “neutralidade”
com relação à coisa tampouco um anulamento de si mesma; implica antes de uma
destacada apropriação das opiniões prévias preconceitos pessoais. O que importa
é dar-se conta dos próprios pressupostos, afim de que o próprio texto possa
apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as
opiniões prévias pessoais.
(p.358)
O
historicismo, apesar de toda sua crítica ao racionalismo e à teoria do direito
natural, encontra-se ele mesmo sobre o solo da Aufklärung moderna, compartilhando, inadvertidamente,
de seus preconceitos. Há com efeito também um preconceito da Aufklärung que suporta e determina sua
essência: é o preconceito contra os preconceitos em geral e, com isso, a despotenciação da tradição. (p.360)
b) O
descrédito sofrido pelo preconceito através da Aufklärung
Seguindo a teoria dos preconceitos
desenvolvida na Aufklärung, podemos
encontrar a seguinte divisão básica: é preciso distinguir entre os preconceitos
da estima humana e os preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu
fundamento na origem dos preconceitos, nas perspectivas das pessoas que os
nutrem. O que nos induz a erros é a estima pelos outros, por sua autoridade, ou
a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma
fonte de preconceitos coincide com o conhecimento princípio fundamental da Aufklärung formulado por Kant: tem
coragem de ter servir de teu próprio
entendimento. Embora se estenda para além do papel que os preconceitos
desempenham na compreensão dos textos, a divisa citada acima encontra sua
aplicação preferencial no âmbito da hermenêutica. Com efeito, a crítica da Aufklärung se dirige, em primeiro lugar,
contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura.
Compreendendo a Escritura como um documento histórico, a crítica bíblica põe em
dúvida sua pretensão dogmática. Por isso, lhe é particularmente central o
problema hermenêutico. Ela procura compreender a tradição corretamente, isto é,
isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito
especial, na medida em que o mero fato da fixação por escrito contem em si
própria um momento autoritativo do particular importância. Não é fácil levar a
efeito a possibilidade de o escrito não ser verdade. O escrito tem a
palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se
necessário um esforço crítico especial para nos libertarmos do preconceito
cultivado a favor do escrito e distinguir, também aqui, como em qualquer
afirmação oral, entra opinião e verdade. Seja como for, a tendência geral da Aufklärung é não deixar valer autoridade
alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a
Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer
por sim mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende
da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já
não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós
podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual Aufklärung moderna enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba
ela mesma convertendo-se em investigação histórica. Torna-se a tradição objeto
da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da
aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os
preconceitos” deva ser em toda parte levado às conseqüências extremas do
espiritualismo livre do ateísmo, como a Inglaterra e na França. Ao contrário, a
Aufklärung alemã reconheceu de modo
absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão
humana seria demasiado débil para passar em preconceitos, teria sido uma sorte
se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. (p.361, 362 e 363)
2.1.2. Os
preconceitos como condição da compreensão
a) A
reabilitação de autoridade e tradição
Este é o ponto de partida do problema
hermenêutico. Foi por isso que examinamos o descrédito do conceito do
preconceito na Aufklärung. O que se
apresenta sob a idéia de uma auto construção absoluta da razão como um
preconceito restritivo na verdade faz parte da própria realidade histórica. Se
quisermos fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é
necessário levar a cabo uma reabilitação radical do conceito do preconceito e
reconhecer que existem preconceitos legítimos. Com isso a questão central de
uma hermenêutica verdadeiramente histórica, a questão epistemológica
fundamental, pode ser formulada assim: qual é a base que fundamenta a
legitimidade de preconceitos? Em que se diferenciam os preconceitos
legítimos de todos os inumeráveis preconceitos cuja superação representa a
inquestionável tarefa de toda razão crítica? (p.368)
A reivindicação feita pela Aufklärung da oposição entra fé na
autoridade e uso da própria razão tem sua razão de ser. Enquanto a validez da
autoridade ocupar o lugar do juízo próprio, a autoridade será uma fonte de
preconceitos. Mas isso não exclui o fato de que ela pode ser também uma fonte
de verdade, o que a Aufklärung
ignorou em sua pura e simples difamação generalizada contra a autoridade. Para
nos certificarmos disso podemos nos reportar a um dos maiores precursores da Aufklärung européia, Descartes. Apesar
de toda a radicalidade de seu pensamento metodológico, sabe-se que Descartes
excluiu as coisas da moral das pretensões de uma reconstrução completa de todas
as verdades a partir da razão. Este era o sentido de sua moral provisória. Parece-me
sintomático o fato de que ele não tenha realmente sua moral definitiva e que,
pelo que se pode observar em suas cartas a Elisabete, seus princípios não
trazem nenhuma novidade sobre isso.
(p.370)
Todavia, a essência da autoridade
não é isso. Na verdade, a autoridade é, em primeiro lugar, uma atribuição a
pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem seu fundamento último num ato de
submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de
conhecimento: reconhece-se que outro está acima de nós em juízo e visão e que,
por conseqüência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso
próprio juízo. Isso implica que, se alguém tem pretensões à autoridade, esta
não dever ser-lhe outorgada; antes, autoridade é e deve ser alcançada. Ela
repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão
que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui ao outro uma
visão mais acertada. A compreensão correta desse sentido de autoridade não tem
nada a ver com a obediência cega a um comando. Na realidade, autoridade não tem
a ver com obediência. Mas isso provém unicamente da autoridade que alguém tem.
A própria autoridade anônima e impessoal do superior que deriva das ordens não
procede, em última instância, dessas ordens, mas torna-as possíveis. Seu
verdadeiro fundamento é, também aqui, um ato da liberdade e da razão, que
concede autoridade ao superior basicamente porque este possui uma visão mais
ampla ou é mais experto, ou seja, porque sabe melhor. (p.371)
2.1.3. O
significado hermenêutico da distância temporal
Iniciemos imediatamente com uma
pergunta: como se começa o trabalho hermenêutico? Que conseqüências tem para a
compreensão a condição hermenêutica de pertencer a uma tradição? Recordamos
aqui a regra hermenêutica segundo a qual é preciso compreender o todo a partir
do individual e o individual a partir do todo. (p.385)
Schleiermacher distingue esse círculo
hermenêutico do todo e da parte segundo um aspecto objetivo e um aspecto
subjetivo. Tal como a palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma
parte do anexo da obra de um autor, e esta, por sua vez, forma parte do
conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a leitura. Mas, por
outro lado, como manifestação de um momento criador, o mesmo texto pertence ao
todo da vida da alma de seu autor. Em cada caso a compreensão só pode acontecer
a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. Apoiando-se
nessa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração de um ponto
central”, a partir do qual se produz compreensão do todo. Como dizíamos, com
isso ele transporta para o mundo histórico o que foi desde sempre um fundamento
de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir de
si mesmo. (p.386)
Quando procurarmos compreender,
fazemos o possível inclusive para reforçar os seus próprios argumentos. É o que
acontece já conversação; mas se torna ainda mais claro na compreensão do
escrito. (p.386)
O círculo, portanto, não é de natureza
formal. Não é objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como o
jogo no que se dá o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento o
intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto,
não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos
une com a tradição. Mas em nossa relação com a tradição essa comunhão é
concebida como um processo em contínua formação. Não é uma mera pressuposição sob
a qual sempre já nos encontramos, mas nós mesmos vamos instaurando-a na medida
em que compreendemos, na medida em que participamos do acontecer da tradição e
continuamos determinando-a a partir de nós próprios. O círculo da compreensão
não é, portanto, de mofo algum, um círculo “metodológico”; ele descreve antes
um momento estrutural ontológico da compreensão. (p.388-389)
A concepção prévia da perfeição que
guia toda nossa compreensão demonstra também ela ter em cada caso um conteúdo
determinado. Não se pressupõe somente uma unidade imanente de sentido capaz de
guiar o leitor; pressupõe-se que a compreensão deste seja guiada constantemente
também por expectativas de sentido transcendente, que surgem de sua relação com
a verdade do que é visado. (p.389)
Compreender significa em primeiro
lugar ser versado na coisa em questão, e somente secundariamente destacar e
compreender a opinião do outro como tal. Assim a primeira de todas as condições
hermenêuticas é a pré-compreensão que surge do ter de se haver com essa mesma
coisa. A partir daí determina-se o que pode ser realizado como sentido unitário
e, com isso, a aplicação da concepção prévia da perfeição. (p.390)
O momento da tradição no
comportamento histórico-hermenêutico, realize-se através da comunidade de
preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica precisa partir do
fato de que aquele que quer compreender deve estar vinculado com a coisa que se
expressa na transmissão e ter ou alcançar uma determinada conexão com a
tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência
hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão ao modo de
uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta
de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiares e estranheza,
e nela se baseia a tarefa da hermenêutica. (p.390-391)
Cada época deve compreender a seu
modo um texto transmitido, pois o texto forma parte do todo da tradição na qual
cada época tem um interesse objetivo e onde também ela procura compreender a si
mesma. Como se apresenta a seu intérprete, o verdadeiro sentido de um texto não
depende do aspecto puramente ocasional representado pelo autor e seu público
originário. (p.392)
Compreender não é compreender
melhor, nem sequer no sentido de possuir um melhor conhecimento sobre a coisa
em virtude de conceitos mais claros, nem no sentido da superioridade básica que
o consciente possui com relação ao caráter inconsciente da produção. Basta
dizer que, quando se logra compreender,compreende-se
de um modo diferente. (p.392)
O tempo já não é, primeiramente, um
abismo a ser transposto porque separa e distancia, mas é, na verdade, o
fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. Assim
como a distinção dos períodos não é algo que deva ser superado. (p.393)
Na verdade trata-se de reconhecer a
distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender.
Não é um abismo devorador, mas está preenchida pela continuidade da herança
histórica e da tradição, em cuja luz nos é mostrada toda a tradição. Não será
exagerado falarmos aqui de uma genuína produtividade do acontecer. (p.393)
Muitas vezes essa distância temporal
nos dá condições de resolver a verdadeira condição crítica da hermenêutica, ou
seja, distinguir os verdadeiros preconceitos,
sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal-entendidos. Nesse sentido, uma
consciência formada hermeneuticamente terá de incluir também a consciência
histórica. Ela tomará consciência dos próprios preconceitos que guiam a
compreensão para que a tradição se destaque e ganhe validade como uma opinião
distinta. É claro que destacar um preconceito implica suspender a validez.
Pois, na medida em que um preconceito no determina, não o conhecemos nem o
pensamos como juízo. Como poderia então ser colocado em evidência? Enquanto
está em jogo, é impossível fazer com que um preconceito salte aos olhos; para
isso é preciso de certo modo provocá-lo. Isso que pode provocá-lo é
precisamente o encontro com a tradição, pois o que incita a compreender deve
ter-se feito valer já, de algum modo, em sua própria alteridade. Esta é a condição
hermenêutica suprema. Sabemos agora o que isso exige: suspender por completo os
próprios preconceitos. Mas, do ponto de vista lógico, a suspensão de todo
juízo, e a fortiori de todo
preconceito, tem a estrutura da pergunta. (p.396)
A essência da pergunta é abrir e manter abertas possibilidades. Face ao que nos
diz outra pessoa ou um texto, quando um preconceito se torna questionável, não
quer dizer conseqüentemente que ele seja simplesmente deixado de lado e que o
outro ou o diferente venha a substituí-lo imediatamente em sua validez. (p.396)
Um pensamento verdadeiramente
histórico deve incluir sua própria historicidade em se pensar. Só então deixará
de perseguir o fantasma de um objeto histórico – objeto de uma investigação que
está avançando – para aprender a conhecer no objeto o diferente do próprio,
conhecendo assim tanto um quanto o outro. O verdadeiro objetivo histórico não é
um objeto, mas a unidade de um de outro, uma relação formada tanto pela
realidade da história quanto pela realidade do compreender histórico. Uma
hermenêutica adequada à coisa em questão deve mostrar a realidade da história
na própria compreensão. A essa exigência eu chamo de “história efeitual”. Compreender
é, essencialmente, um processo de história efeitual. (p.396)
2.1.4. O
princípio da historia efeitual
Todo
presente finito tem seus limites. Nós definimos o conceito de situação
justamente por sua característica de representar uma posição que limita as
possibilidades de ver. Ao conceito de situação pertence essencialmente, então,
o conceito de horizonte.
Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a
partir de um determinado ponto. Aplicando esse conceito à consciência pensante,
falamos então da estreiteza do horizonte, da possibilidade de ampliar o
horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou
essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a
vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar o ritmo
de ampliação do campo vital. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não
se vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe
está mais próximo. Ao contrário, ter horizontes saber valorizar corretamente o
significado de todas as coisas que pertencem ao horizonte, no que concerne a
proximidade e distância, grandeza e pequenez. A elaboração da situação
hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para
as questões que se colocam frente à tradição. (p.400)
Na verdade, o horizonte do presente
está num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a
pôr constantemente à prova todos os nossos preconceitos. Parte dessa prova é o
encontro com o passado e a compreensão da tradição da qual nós mesmos
procedemos. O horizonte do presente não se forma pois à margem do passado. Não
existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem horizontes
históricos a serem conquistados. Antes,
compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente
dados por si mesmos. Conhecemos a força essa fusão sobre tudo de tempos
mais antigos e da ingenuidade de sua relação com sua época e com suas origens.
A vivência da tradição é o lugar onde essa fusão se dá constantemente, pois
nela o velho e o novo sempre crescem juntos para uma validez vital sem que um e
outro cheguem a se destacar explícita e mutuamente. (p.404-405)
O projeto de um horizonte histórico
é, portanto, só uma fase ou um momento da realização da compreensão, e não se
prende na auto-alienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio
horizonte compreensivo do presente. Na realização da compreensão dá-se uma
verdadeira fusão de horizonte que, com o projeto do horizonte
histórico, leva a cabo simultaneamente sua suspensão. Nós caracterizamos a
realização controlada dessa fusão como a vigília da consciência
histórico-efeitual. (p.405)
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