sábado, 28 de dezembro de 2024

PAUL RICOEUR, A Crítica e a Convicção

 



 Edições 70, Lisboa, 1995

Síntese: pe Paolo Cugini 

Digitação: Jaciara Souza Pereira


Existe nos Estados Unidos da América um poder de decisão, uma capacidade de querer, um arbitrário, que é de natureza diferente do querer em conjunto da sociedade civil. Foi em torno deste problema que muito girei, porque creio que não podemos esquivar-nos a ele, se queremos pensar filosoficamente o político, ou seja uma forma avançada da racionalidade, mas que comporta também uma força arcaica de irracionalidade. Não podemos deixar de contar com ela, impõe ao cidadão um dever de vigilância, vigilância a respeito das irrupções de violência que permanecem inscritas na própria estrutura do político. (pag. 139)

É possível, afinal de contas, que a função rectriz do político só se possa exercer quando se encontra e gere um compromisso entre a relação hierárquica e a relação consensual. Prosseguindo nesta linha, definiríamos então o projecto  democrático como o conjunto das disposições que são tomadas para que o racional prevaleça sobre o irracional, mas simultaneamente para que o laço horizontal do querer viver em conjunto prevaleça de modo habitual sobre a relação irredutivelmente hierárquica de comando e de autoridade. (pag. 140)

A autoridade reflexão moral, a partir da nação “autoridade”. A autoridade é uma coisa muito perturbadora, na medida em que faz referencia, por contraste, á autonomia. No fundo, o contratualismo político não será, no corpo político, uma transposição da autonomia do individuo em sentido moral? Como definir a autonomia? Dizendo que a liberdade é origem da sua própria lei e que a lei moral é aqui da liberdade; em termos kantianos, temos aqui um “facto da razão”, uma relação sintética a priori. Mas, mesmo com esta noção de autonomia, embatemos a partir do plano moral, aquém, portanto, do facto político, em algo que resiste á inteira reabsorção na definição de liberdade como dando a si a sua própria lei. Tal resistência manifesta-se, em primeiro lugar, na figura da exterioridade: é a dimensão que Levinas tão bem explorou, a exterioridade de outrem que me chama á minha responsabilidade, que me constitui sujeito responsável. A seguir, no facto da superioridade, que poderia ser ilustrada pela relação mestre/discípulo, quer se trate da tradição socrática quer da tradição judaica do mestre de justiça – as duas tradições parecem-me reunidas no admirável De Magistro de Santo Agostinho. Enfim, após a exterioridade e a superioridade, deparamos com o enigma da anterioridade: antes da lei moral existe sempre uma lei moral, como antes de César existe outro César; antes da lei moisaica existem leis mesopotâmicas e antes destas existem outras ainda, etc. Estamos em presença de uma espécie de sempre-já-lá, que faz com que a investigação de um começo dotado fracasse perante a perspectiva da origem. É como se houvesse uma dialética da origem e do começo: o começo, gostaríamos de poder datá-lo numa cronologia, mas a origem foge sempre para trás, ao mesmo tempo que surgiu no presente sob o enigma do sempre-já-lá. (pag. 140 e 141)

Talvez resida aí o problema da democracia: como educar, para a adesão crítica, cidadãos que nunca estão na situação de poderem engendrar a partir de si mesmos o político? Neste ponto de doutrina, separo-me de Claude Lefort, que, perante o enigma da origem do poder, insiste na ausência de fundamento peculiar á democracia. (pag. 143)

Tento dizer, pela minha parte, que ele assenta sempre na anterioridade de si mesmo em relação a si mesmo. Podemos chamar a tal uma fundação? Se sim, seria no sentido em que falamos de acontecimentos fundadores. Mas os acontecimentos fundadores presumidos não escapam ao enigma da origem fugaz ou, para dizer melhor, á dialética da origem imemorial e do começo dotado.

Mas é verdade que com a palavra “democracia” se fica embaraçado pelo vocabulário; lembro-me muito bem do que dizia Aron, isso irritava-nos, mas ele tinha mil vezes razão: “Democracia = definição do bom governo. O adjectivo que se põe a seguir é que conta. Democracia popular, democracia liberal...”(pag. 143 e 144)

Creio que é um dos aspectos. Este mal-estar, na fase presente, está muito menos ligados á violência residual da relação vertical, violência contra a qual o cidadão teria de se acautelar, do que a uma certa dificuldade do político em encontrar as suas balizas, ou se preferir, do Estado contemporâneo em situar relativamente á sociedade civil. 

Em primeiro lugar, porque o Estado-nação se encontra ensanduichado no plano as soberania entre soberanias superiores – a Europa, os pactos internacionais, as Nações Unidas – e soberanias inferiores – os poderes regionais, os poderes municipais, etc. por cima e por baixo, a soberania do Estado está cercada. É verdade que estados federais como os Estados unidos da América ou a Alemanha têm a este respeito uma hierarquia melhor codificada do que a nossa. (pag. 144)


Mas porque é que diz englobado?      

Porque a procura ou o exercício do poder é uma actividade competitiva que nos ocupa somente entre outras. Se vamos a uma reunião política, vamos a um lugar que difere daquele em que, por exemplo, fazemos as nossas compras. Eis porque se pode ter a impressão de que só funcionamos episodicamente como ser político, no mesmo sentido em que funcionamos esporadicamente como consumidores ou como produtores, ou como profissionais portadores de uma competência. 

As regras pelas quais pertencemos ao corpo político são de uma natureza inteiramente diferente e estão diferentemente codificadas consoante os países. Por exemplo, a relação entre nacionalidade e cidadania pode ser função da lei do sangue ou da lei do solo. Na Alemanha, mesmo se você for residente de longa duração, nunca se tornará alemão; em compensação, pode votar em algumas eleições. Em frança, um estrangeiro nunca pode voltar. Portanto, a regra de pertença ao corpo político é absolutamente especifica, mesmo em relação a decisões políticas secundarias. O direito de asilo, o direito das minorias, a privação ou a aquisição da naturalidade, a maneira como se é considerando membro de determinado corpo político, tudo isso obedece a regras que são as da cidade como englobante e não como uma das cidades, situada numa topografia das esferas de pertença.

Outro exemplo é fornecido pelos limites de jurisdição de um Estado, porque o território não constitui somente uma geografia, mas também um espaço de validade das leis, para  lá do qual outras leis são válidas. O espaço de jurisdição de um Estado é aquilo que mostra que a pertença ao corpo político é verdadeiramente primeira. (pag. 145 e 146)

Existe, portanto, uma relativa indeterminação naquilo que é da ordem do político e naquilo que não o é; temos dificuldade em situar o Estado que é, ao mesmo tempo, a instituição englobante e uma das instituições que funcionam de maneira interminante, através de operações descontinuas como uma eleição, uma manifestação, etc. penso que este é um aspecto novo, e talvez o aspecto actual mais marcante do que outrora chamei o paradoxo político. (pag. 146)

Pela minha parte, penso que, no tocante á sua fundação, as democracias são herdeiras. Herdeiras justamente dos regimes de estruturas hierárquica, por outras palavras, de um teológico-político. Continua a ser verdade que o teológico-político clássico é algo de passado; a pretensão de fundar o político numa teologia ou, para retomar o nosso esquema, apenas no eixo vertical da autoridade, dependente também ela de uma autoridade divina – tal pretensão terminou e sofro-lhe o luto. Mas daí não se segue que todo o teológico-político tenha perdido o seu sentido: se dele algo permanece é no lado do querer viver em conjunto que importa procurá-lo, e já não no lado da estrutura verticaal. Quero simplesmente dizer no lado do querer viver em conjunto como prática da fraternidade. Estou persuadido de que existem a este respeito, na noção de “povo de Deus” e na sua componente de perfeita reciprocidade eclesial, verdadeiro recursos para pensar um modelo político. (pag. 148)

Seria preciso para tal observar a história do Israel bíblico, que é absolutamente singular. Releia o segundo Isaias ([5 Isaías, 40 e 55]): Consolai,  consolai o meu povo, diz o vosso Deus. Animai Jerusalém e gritai-lhe que a sua servidão terminou...” Em que poder se apoiam estas esperanças? Em Ciro! Ciro é referido duas vezes no segundo Isaias ([6 Em 44, 28 e 45, 1]): “Digo a Ciro: ‘És o meu pastor, cumprirás em tudo a minha vontade’. Digo a Jerusalém: ‘Serás reedificadas!’ E ao templo: ‘Serás reconstruído!’” E também: “Eis o que diz Javé a Ciro, seu ungido...” Lidamos aqui com um teológico-político externo. Ciro conduziu uma política que poderíamos chamar muilticulral e, por isso, autorizou os exilados, as gentes da gola, a reentrar em Jerusalém; agiu em beneficio de um político que não é o seu, e foi assim que os hebreus se puderam dedicar á reconstituição do templo. Houve, sem duvida, na historia de Israel, momentos de autonomia, sobretudo com Esdras e Neemias, e a elaboração deuma espécie de teocracia, mas sem poder político. O poder político eram os persas, depois os impérios helenísticos, e finalmente os romanos que o detinham. Tendes, portanto, aqui o exemplo singular de um religioso que não produziu teológico-político de tipo autoritário. Toda a história da morte e da ressurreição de um povo através da experiência do exílio, a problemática da fundação das tradições patriarcais, por outras palavras, o grande trabalho do que se chama hoje a escola do segundo Isaias, consistiu em repensar e em reconciliar duas tradições absolutamente diferentes: a de Abraão e de Jacob – a tradição dos pais – e a de Moises, ou seja do primeiro exílio fora do Egito. Fundir de certa maneira Abrão e Moises. Esta reconciliação das tradições diferentes só foi possível porque constituía ao mesmo tempo uma reconciliação com o passado, através da rememoração da destruição. Parece-me possível revisitar actualmente, após a morte do teológico-político de tendência teocrática, o esquema bíblico – e é, aliás, provavelmente o esquema crítico fundamental, o da morte e da ressurreição. Deparamos aqui com a possibilidade de um teológico-político autoritário, ou seja daquele em que o eclesial dava ao político a sua unção, ao passo que o político proporcionava ao eclesial a força do seu braço secular; a permuta do braço secular e santo crisma, eis o nosso teológico-político, e é esse que está morto.

Historicamente, foi a este tipo de fundação teológica que a nossa democracia sucedeu. (pag. 148 e 149)

De um lado, portanto, o mal absoluto como irrupção; do outro, a mutação gradual do autoritário em totalitário, através de operações propriamente políticas.

Até ponto ode existe como que uma passagem ao limite. O gradualismo da explicação histórica ou política reconstitui o decurso progressivo que envolve a irrupção do horrível, a qual, pelo contrario, não é gradual. Mas, na realidade, é sempre assim, que o mal progride: irrompe progredido, se assim se pode falar. Kierkegaard e Kafka, que seria necessário reler conjuntamente, não cessaram de girar em torno deste mistério da passagem ao limite. Em O Processo, tal como O Castelo, o mal é certa maneira rastejante; as fases da sua progressão são inumeráveis, e de súbito aí está ele. O seu carácter inclassificável dissimula-se no gradualismo da sua progressão. E foi, sem dúvida, o que aconteceu na Alemanha.

No caso da Alemanha, não terá a democracia contribuído grandemente, pelas suas fraquezas, pela inépcia do cálculo político de uns e de outros, para o advento do nazismo?

Haveria, decerto, muito a dizer sobre esse capitulo. Que uma democracia tenha feito a cama ao totalitarismo, é uma ironia da história, um ardil, não da razão, mas da des-razão.

Pois também é verdade que a progressão da humanidade-massa se fez através de um regime democrático mal estruturado, ou fracamente estruturado, como era a República de Weimar. Paradoxalmente, ao destruir as estruturas hierárquicas próprias da tradição autoritária da Alemanha de Guilherme II,  a democracia dos anos vinte suprimiu todos os factores de resistência ao totalitário, abateu aquilo a que eu chamaria as “estruturas estruturamentes” da sociedade. (pag. 154 e 155)

Mas a democracia encerra esse risco: ao abater as estruturas estruturantes, os corpos intermédios e todas as corporações, ela isola o cidadão em face da vontade geral. É o universo rousse-auista, com as possibilidades novas que ele implica. Karl Popper via em todos os inimigos da sociedade aberta ([¹0 karl Popper, A Sociedade Aberta e os seus Inimigos.]), de Platão a Rousseau, artesãos involuntários do totalitarismo. 

Quer isso dizer que faz do totalitarismo uma patologia da democracia?

Não queria deixar-me arrastar para ai. Falo apenas das democracias do século XX  e da fraca resistência que opuseram aos totalitarismos. (pag. 155 e 156)

Talvez seja, finalmente, em termos de facilitação que importa pensar o advento do totalitarismo: o que é que facilitou a chegada gradual de hitler ao poder, a marcha passo a passo em direção ao autoritário e, em seguida, o salto camuflado do autoritário para o totalitário, através de uma espécie de passagem ao limite? 

Mas tropeço sempre na mesma dificuldade: como preservar intacta a dimensão do tremendum horrendum, e também o gradualismo da explicação?

Quando fala do totalitarismo, faz exclusivamente referencia ao nazismo. Diria a mesma coisa do comunismo? 

Provavelmente. Mas com uma dupla reserva a respeito da comparação. Em primeiro lugar, como  já lhe disse, penso que não se pode comprar as formas do mal. Mas também por uma razão mais pessoal: a comunidade a que pertenço, a comunidade cristã e ocidental, tem muito pouco a ver com a história do Gulag; em compensação, esteve totalmente implicada na história da Shoah. Um certo anti-semitismo teológico, sob a forma da acusação de deicídio, é incontestavelmente uma das componentes do que chamei factor de facilitação do advento do totalitarismo. Esta implicação – tão indireta quanto se pretende – permanecer para os cristãos uma forma de culpabilidade, da qual se devem arrepender verdadeiramente e sem reserva, muito mais, por fim, do que dos “silêncios” (alguns) das Igrejas.    

Os “silêncios” dos corpos eclesiásticos não são, alias, os únicos a incriminar. Onde e quando se ouviu a voz da universidade enquanto corpo social, enquanto dimensão da sociedade civil? O facto é que os universitários alemães não fizeram nada para proteger os seus colegas judeus. Eles contribuíram até para pôr fim á extraordinária tentativa de integração dos judeus vindos da Lituânia, da Polônia, da Rússia, após terem sido expulsos dos seus guetos pelos progroms. Essa tentativa estava quase a ser bem sucedida; a síntese da judaidade e da germanidade – síntese que o próprio Herman Cohen tinha pensado ([¹¹ Herman Cohen (1842-1918), figura de proa da escola neo-kantiana de Marburgo, desenvolveu no final da sua vida uma filosofia sistemática da religiao inspirada pelo judaísmo. Cf. pardès, “Germanit

è et judatè”, nº 5, 1987. ]), antes de desenvolver a sua própria concepção do judaísmo – foi destruída no momento em que alcançava a maturidade. Isso faz parte integrante do Ocidente, da história complicada de amor e de ódio, de3integracao e de rejeição, de que estão tingidas desde sempre as relações entre judeus e não judeus. (pag. 156 e 157) 

Entre textos gregos e fontes bíblicas, a diferença deve todavia ser modulada. Descobri isso recentemente, por ocasião da revolução exegética dos últimos anos, no domínio dos estudos do Antigo Testamento. Estes assentaram, durante perto de um século, na hipótese das quatro fontes – javista, eloísta, deuteronomica,  sarcerdotal – que supotamente se estindiam ao longo de sete ou oito séculos de escrita. Ora, esta teoria, que foi durante muito tempo e vinheta do método histórico-crítico, e dos exegetas-teologos, permitira edificar uma visão coerente da teologia do Antigo Testamento, fundada na acumulação de uma série de proclamações, de querigmas, unificados no querigmas final do judaísmo. Em prol desta coerência presumida, parecia justificada uma oposição maciça entre judaísmo e helenismo. Actualmente, este edifício está em pleno desmatamento. A crise do exílio na Babilônia torna-se a referencia primeira para a reunião das tradições múltiplas de antes do exílio. Parece, hoje, que as suas escrituras e as suas rescritas tiveram lugar num tempo muito mais curto, e a sua unificação parece ter sido mais ou menos imposta pelas autoridades persas no regresso dos prisioneiros. Á visão lentamente progressiva, convergente a unificada das escrituras judaicas substituir-se-ia uma visão mais contrastada, até mesmo mais polémica, da Bíblia hebraica, que convida igualmente a uma leitura plural. A leitura mais interessante parece ser uma leitura ás avessas; partir-se-ia do Deuteronómico, cuja estranheza Espinosa foi um dos primeiro a sublinhar, bem como das histórias de Judá e de Israel compreendidas entre a monarquia de David e o Exílio – histórias culpabilizantes, marcadas pelo sinete deuteronómico –; em  seguida, remontar-se-ia em direção ao maciço mosaico da doação da Lei e, mas aquém ainda, direcção ás lendas dos patriarcas, colocadas sob o signo da bêncao e da promessa em vez do mandamento e da acusação; a leitura terminaria pela visão sacerdotal de uma criação boa, arruinada pelo homem, tal como a lemos no primeiro capitulo de Génesis. 

Trata-se, evidentemente, de uma hipótese de composição dos diferentes livros. (pag. 192 193)    


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