- E crês seres dotado de certa inteligência?
- Pergunta e responderei.
- E afirmas que fora de ti não existia absolutamente a inteligência, sobretudo considerando que no teu corpo tens uma pequena parte da terra, que é tão extensa, uma exígua parte da água, que é imensa, e que o teu corpo foi formado por alguém que tomou da grande massa dos elementos uma pequena parte de cada um? Se a inteligência não existisse de modo algum, como podes pensar que tu sozinho, por um feliz acaso, te apropriaste dela, e que estes elementos, infinitos em número e imensamente grandes, foram organizados em bela ordem, segundo supões, por uma força não-inteligente?
- Sim, por Zeus, porque não vejo quem tem o poder de fazer isso, como vejo que produz as coisas aqui na terra.
- Mas tampouco vês a tua alma, que tem poder sobre o teu corpo, d4e modo que, segundo o teu raciocínio podes afirmar que não realizas nada com reflexão, mas tudo por acaso (Xenofonte, Memoráveis, I, 8ss).
Segue um elenco dos privilégios do homem com relação a todos os outros animais, e como último argumento se lê:
- E não bastou a Deus ocupar-se do corpo, mas, o que é ainda maior, pôs no homem uma alma de extraordinário poder. Existe outra criatura cuja alma se dê conta da existência dos deuses que dispuseram tão grandes e tão belas coisas? Que outra raça senão a dos homens venera os deuses? Que outra alma, além da humana, é capaz de evitar a fome ou a sede, o frio ou o calor, curar os males, manter a saúde, esforça-se por aprender, ou é capaz, enfim, de recordar o que ouviu, viu, aprendeu? Não te parece claro que, com relação aos outros animais, os homens vivem como os deuses, dispostos por natureza a dominar com o corpo e com a alma? (Xenofonte, Memoráveis, I, 4, 13s).
E como conclusão de todo o discurso, enfim, lê-se:
- Reflete, caro, continuou, que a inteligência que há em ti governa o teu corpo segundo lhe aprazo. Convém, portanto, crer também a sapiência que está no universo dispõe as coisas como lhe agrada,, e não que a tua vista possa alcançar um raio de muitos estádios, mas que o olho de Deus, ao invés seja incapaz de abranger tudo junto, não que a tua alma consiga pensar nas coisas daqui, nas do Egito e da Sicília, mas que a sapiência de Deus, ao contrário, não seja capaz de se ocupar ao mesmo tempo com tudo [...] (Xenofonte, Memoráveis, I, 4, 17s).
Não se apressava em tornar os seus amigos hábeis no falar, no agir e em afrontar uma situação: considerava que, primeiro, devessem Ter um reto sentir. De fato, aos que, privados do sentir, eram capazes de fazer tudo isso, considerava que fossem injustos e mais hábeis em realizar o mal. E buscava em primeiro lugar dar-lhes idéias justas a respeito dos deuses. Outros assistiram e em seguida referiram as suas conversações com alguns sobre este ponto. Eu estive presente quando deve esta discussão com Eutidemo.
- Diz-me, perguntou-lhe, Eutidemo, nunca te ocorreu pensar com quanto carinho os deuses preparam aos homens o necessário?
- Nunca, por Zeus, respondeu.
- E, no entanto, sabes que a nossa primeira e fundamental necessidade é a luz que os deuses nos concedem?
- Certo: se não a tivéssemos, seríamos semelhantes a cegos apesar dos nossos olhos.
- Temos também necessidade de repouso: e eles nos oferecem a noite como dulcíssima restauração.
- Também disso é preciso ser gratos, e muito.
- Ademais, o sol com o seu esplendor ilumina as várias horas do dia e todas as outras coisas, enquanto a noite com as suas trevas é escura; e então. Não fazem estas brilhar as estrelas, que nos indicam as horas da noite, e nos permitem realizar muitas operações, para n6s indispensáveis?
- Assim é, disse.
- Sem dúvida.
- E como temos necessidade de alimento, no-lo fazem crescer do solo e nos dão estações aptas a nos fornecerem em grande quantidade todas as espécies de coisas não só necessárias, mas também agradáveis.
- Também isto é um sinal de afeto para com os homens.
- E o fato de dar-nos a água tão valiosa, que faz nascer e crescer, junto com a terra e as estações, tudo o que nos é útil e nos nutre, e misturada com os alimentos, torna-os mais digeríveis, mais sadios, mais agradáveis: e, em vista da nossa absoluta necessidade, o fato de dar-nos em tão grande abundância?
- Também isto é sinal de uma providência.
- E o fato de Ter-nos dado fogo, que nos defende do frio, que nos defende das trevas, que nos ajuda em todas as artes e em tudo o que os homens fazem para a própria utilidade? Pois, para dizer tudo numa palavra, sem o fogo dos homens não fazem nada que tenha valor para a vida.
- Também isto é uma prova evidente de amor pelos homens.
- E o fato de que o sol, depois do período invernal, avance amadurecendo certos produtos e dessecando outros, dos quais passou o tempo o tempo, e, feito isto, não continue mais a aproximar-se, mas volte para trás, cuidando para não nos arruinar com excessivo calor, e, quando, depois, distanciando-se, alcança o ponto no qual, se fosse mais longe, nos faria morrer por causa do gelo, cumpra uma nova revolução e comece a aproximar-se e volte àquela parte do céu na qual, mais que em qualquer outra, possa nos ser útil?
- Por Zeus, também isto parece que tenha sido feito justamente para a utilidade dos homens.
- E depois, como evidentemente não poderíamos suportar nem o calor nem o frio, se viessem inopinadamente, o fato de que o sol se nos avizinhe pouco a pouco, e, assim, pouco a pouco se afaste, de modo que sem nos darmos conta passamos de um extremo ao outro?
- Eu, disse Eutidemo, já estou me perguntando se os deuses não têm outra ocupação a não ser o cuidado dos homens: a única dificuldade é que os outros animais participam destes bens.
- E não é claro, retomou Sócrates, que também estes existem e crescem para o homem? Que outra criatura, mais que o homem, tira proveito das cabras, das ovelhas, dos bois, dos cavalos, dos asnos e dos outros animais? Muito mais, a meu ver, que dos produtos do solo- e, na realidade, destes, não menos que daqueles, extraímos alimentos e nos enriquecemos. Muitos, na verdade, não usam como alimento os produtos da terra e nutrem-se de leite, de queijo, de carne que lhes fornecem os rebanhos: mas todos domesticam e domam os animais úteis e servem-se deles como ajuda na guerra e noutros trabalhos.
- Reconheço também isto, disse, porque vejo que a muito animais, muito mais fortes que nós, os homens sabe tornar tão dóceis a ponto de fazerem o que querem.
- Ademais, como existem tantas coisas belas e úteis, mas diferentes umas das outras, que te parece o fato de Ter dado aos homens sentidos adaptados a cada uma, graças aos quais gozamos de tudo o que é bom? E o fato de Ter plantado em nós a razão que nos permite julgar a utilidade dos vários objetos percebidos, ajudando-nos com o raciocínio e a memória, e permitindo-nos excogitar muitos meios para gozar os bens e evitar os males? E o fato de Ter-nos dado a faculdade de nos exprimir, mediante a qual participamos de todos os bens, instruímo-nos uns aos outros, os pontos em comum, fixamos leis e administrarmos estados?
- Parece-me, verdadeiramente, Sócrates, que os deuses tratam os homens com maior desvelo.
- E depois, dada a nossa incapacidade de prever o que nos acontecerá no futuro, o fato de nos socorrer também nisso, revelando, a quem os interroga, o êxito das diversas coisas mediante a adivinhação e ensinando também os melhores meios para Ter sucesso?
- E a ti, Sócrates, parecem que tratam de modo ainda mais afetuoso que aos outros, se te prenunciam como deves ou não deves agir, sem que os consulte.
- E que eu digo a verdade, poderás reconhecê-la também tu, se, em vez de esperar que os deuses se te revelam de maneira visível, te contentes em ver as suas obras para venerá-las e honrá-las. Considera que eles mesmos mostram querer que assim seja: de fato, os que dispensam os bens, não o fazem comparecendo diante de nós, e o mesmo Deus que ordena e mantém todo o universo, sede toda beleza e do todo bem, que sempre oferece, a quem precisa, as coisas intactas, são, imunes ao perecimento, prontas para servir com mais agilidade do que o pensamento e sem falha, este Deus, digo, manifesta-se na produção de obras grandiosas, mas não se manifesta em governá-las. Considera também que o sol, exposto, como parece, aos olhos de todos, não se deixa ver minuciosamente pelos homens, mas se alguém tem a audácia de fixá-lo, cega-o. Também os ministros dos deuses são invisíveis: o raio, sabemos bem, desce do alto e domina sobre tudo aquilo que encontra, mas não se o vê, nem quando irrompe nem quando desaparece; tampouco os ventos se vêem, mas os seus efeitos nos são manifestos e, junto, advertimos a sua aproximação. Enfim, a alma do homem, a qual participa, mais do que tudo o que é humano, do divino, tem indiscutível domínio sobre nós; mas tampouco se a vê. Refletindo sobre tudo isso, não se deve desprezar o invisível, mas reconhecer o poder dos efeitos e honrar a divindade (Xenofonte, Memoráveis, IV, 3, 1-14).
A razão disso [i.é, do fato de Sócrates Ter-se mantido longe da política militante] é aquela que muitas vezes em muitas circunstâncias me haveis ouvido dizer, ou seja, que em mim verifica-se algo de divino e demoníaco, exatamente aquilo que Meleto, zombando, escreveu no seu ato de acusação: é como uma voz que se me faz ouvir desde quando eu era criança, e, quando se faz ouvir, sempre me impede de fazer aquilo que eu estou a ponto de fazer, mas não me exorta nunca de fazer (Platão, Apologia de Sócrates, 31 c-d).
Vós bem o sabeis, atenienses: que se há tempo eu me tivesse ocupado com as questões do Estado, há tempo também estaria morto e não teria feito, !} nada de útil nem avós nem a mim (Platão, Apologia de Sócrates, 31 d.).
Quanto se tornar construtor, metalúrgico, camponês, governante, ou estudioso destas atividades, ou especialista em cálculo, em economia, em estratégia, todas estas matérias ele considerava que as aprendem só com a força da inteligência humana: mas o que há de mais importante nelas, dizia que os deuses as reservaram para si e, portanto, não é manifesto aos homens. Na realidade, quem cultivou bem um campo não sabe quem colherá os seus frutos; quem construiu bem uma casa, não sabe quem a habitará; o comandante não sabe se lhe será vantajoso o comando, nem o estadista se lhe aproveitará ser chefe do Estado; quem desposou uma bela mulher para ser feliz não sabe se sofrerá por sua causa, nem quem buscou parentela poderosa da cidade sabe se por ela será expulso da pátria. Portanto, aqueles que não consideravam nenhuma destas coisas em poder da divindade, mas todas em poder da inteligência humana, dizia serem loucos: assim também chamava loucos os que pediam ao oráculo aquilo que os deuses concederam aos homens resolver mediante o estudo [...] ou aquilo que é possível saber recorrendo ao cálculo, á medida, aos pesos (Xenofonte, Memoráveis, I, 1, 7-9).
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