sábado, 28 de dezembro de 2024

PAUL RICOEUR, A Hermenêutica Bíblica

 



 LOYOLA, São Paulo, 2006


Síntese: pe Paolo Cugini

Digitação: Jaciara Souza Pereira



A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos

Esse em busca de uma relação que encontra sua expressão no movimento e no “ela” do discurso: em outros temas, estou em busca de uma relação que diz respeito a finalidade do discurso, cumprimento do desejo que o impele para frente. (pag. 102)

Essa oposição entre o Nome e o Ídolo é a chave de uma série da história: ao Ídolo, uma visão cosmológica. A segunda é que o tipo de história que é coerente com uma teologia do Nome, não é, por sua vez, uma história dada, centrada em um presente dado: é uma história dirigida para um cumprimento. Nesse sentido, a própria história é a esperança da história; cada realização, cada cumprimento, é compreendido como o restabelecimento de uma promessa – o “ainda não” da promessa dá sua tensão á História.(pag. 103)

O primeiro pensamento que a esperança suscita, desde que se aplique ao campo da experiência humana, é, paradoxalmente, a irracionalidade da própria esperança. (pag. 104)

A primeira expressão dessa lógica absurda da esperança deve encontrar-se na concepção antropológica de S. Paulo. Paulo  foi o primeiro que tentou elaborar uma interpretação existencial dos dois acontecimentos cristológicos centrais: a Cruz e a Ressurreição. E essa interpretação existencial é fundamentalmente antinômica: morte de homem velho, renascimento do homem novo. Esse segundo nascimento é o acontecimento escatológico em termos existenciais. Contudo, esse acontecimento escatológico não se pode exprimir por meio de uma lógica da identidade. Devemos exprimi-lo como uma ruptura, como um salto, com uma nova criação, como um totalmente outro.

A expressão mais chocante dessa antropologia antinômica pode achar-se no famoso capitulo 5º da epistola aos Romanos (5, 18- 19): (pag. 104)

A significação existencial dessa lei de superabundância é rica e complexa. Há varias maneiras de viver segundo esse acontecimento escatológico da nova criação. Varias maneiras: pessoal e coletiva, ética e política. Todas essas maneiras são irredutíveis á pura sabedoria do  eterno presente: trazem a marca do futuro do “ainda não” e do “quanto mais”: nos termos de Kierkegaard, a esperança faz da liberdade a paixão pelo possível, contra a triste meditação do irrevogável. Essa paixão pelo possível é a resposta da esperança a todo amor nietzscheano do destino, a toda adoração do destino,  a todo Amor fati. (pag. 105)

A critica kantiana da teologia clássica, quer medieval quer luterana, deve ser tomada a sério e considerada como uma contribuição positiva ao que podemos chamar de critica da esperança nos limites da pura razão. Quero agora concluir esta comunicação com as proposições seguintes:

1. O problema da esperança, em comparação com o da fé, é menos o problema de um objeto especifico que o da finalidade do discurso filosófica e teológica. A filosofia e a teologia são concernidas pela esperança na maneira com ambas estão ligadas no ponto respectivo de do encerramento de seu horizonte.

2. A tarefa especifica da teologia, sob esse aspecto, é ligar a pregação da esperança e da ação humana – ética e política – á pregação central da Igreja, a do Senhor ressuscitado. Em outros termos, a teologia compreende a esperança como a antecipação através da história da ressurreição de todos os homens dentre os mortos.

3. Enquanto tal, a esperança é ao mesmo tempo irracional, como sendo “a despeito” da morte e “além” do desespero, e racional, como afirmado uma lei nova, a lei da superabundância, da superabundância do sentido sobre o não-sentido.

4. O equivalente filosófico da esperança e de sua lei da superabundância deve encontrar-se na forma de dialética que rege a relação entre a liberdade e a plena atualização. Enquanto a dialética hegeliana, que é uma dialética conclusiva, é o equivalente filosófico de uma teologia especulativa centrada no eterno Agora da verdade, a dialética kantina, que é uma dialética não conclusiva, tem mais afinidade com uma teologia da esperança, i.é., com uma interpretação do cristianismo para a qual a esperança não pode ser resolvida pela gnosis e para a qual, portanto, a esperança abre o que o conhecimento pretende fechar.

5. Entre uma filosofia da esperança e essa espécie de dialética não conclusiva há não só uma relação de correspondência, que permanece ainda uma relação estática, mas uma relação dinâmica que chamo de relação de aproximação. Por aproximação entendo o esforço do pensamento para aproximar-se cada vez mais do acontecimento escatológico que constitui o centro de uma teologia da esperança. Graças e essa ativa aproximação da esperança pela dialética, a filosofia sabe algo e diz algo da pregação pascal. Mas o que ela sabe e diz permanece nos limites da pura razão. É nessa auto-restrição que se residem ao mesmo tempo a responsabilidade e a modéstia da filosofia. (pag. 115 e 116)

Procederei de modo seguinte. Reagruparei  minhas observações em torno de quatro proposições centrais ou teses, que tomadas em conjunto são destinadas a definir o que eu gostaria de chamar de identidade dinâmica.

1. Minha primeira tese  é que o tecer intriga é o paradigma de toda “síntese de heterogêneo” no campo narrativo.

Como  podem ter notado, digo “tecer da intriga” antes que “intriga” a fim de sublinhar o caráter de processo da própria intriga. Já na Poética de Aristóteles, todas as definições que concernem ao mythos (quer dizer, a fábula, a história ficcional) da tragédia e da epopeia são substantivos derivados de verbos: a fábula – a intriga – diz Aristóteles é “o arranjo [systasis, synthesis] de acontecimentos em uma ação inteira e complexa”. Para isso, desejo primeiro sublinhar a função de mediação da intriga. É essa função mediadora que está subentendida no conceito de uma “síntese do heterogêneo”. Esse conceito resumia, de fato, muitos traços singulares que tocam o ato configuracional que faz da história contada um todo temporal.

Ficando perto da definição de Aristóteles do mythos da tragédia e da epopeia, podemos dizer que a intiga, como “tecer das intriga”, serve de mediação entre os acontecimentos ou peripéciais dispersas (ta pragmata na Poética de Aristóteles) e a história inteira. (pag. 118)

Por conseguinte, um acontecimento deve ser mais do que uma ocorrência singular e deve caracterizar-se como um acontecimento por sua contribuição á progressão da intriga. Por outro lado, uma historia deve ser mais do que uma simples enumeração de acontecimento postos em uma ordem sucessiva: deve organizá-los em um todo inteligível que permite a quem o deseje perguntar qual é o “tema” da história. (pag. 119)

2. Minhas segunda tese  refere-se ao estatuto epistemológico da inteligibilidade apresentada pelo ato configuracional do tecer da intriga. Minha tese, aqui, é que essa inteligibilidade narrativa possui mais afinidade com a sabedoria prática, ou com o julgamento moral, que com a razão teoria. Esta tese possui um importante corolário que diz respeito á relação entre a narrativa contemporânea e a inteligibilidade própria ao tecer da intriga. Vejo a narratologia como uma simulação da inteligência narrativa por meio de um discurso de segunda ordem pertencem ao mesmo nível de racionalidade que as outras ciências da linguagem. Essa prioridade da inteligência narrativa sobre a narratologia como disciplina racional é o núcleo de minha segunda tese. Antes de considerar essa dependência da narratologia cientifica em relação á inteligência narrativa, desejo centrar-me no termo mesmo de inteligível. Aristóteles foi o primeiro a sublinhar a capacidade da poesia de “ensinar”, de veicular significações revestidas de uma certa forma de universalidade. O próprio ato de configuração da intriga torna-a típica e compreensível, apesar da singularidade de seus “heróis” designados por nomes próprios – ou outra forma de inteligibilidade, á da ética, que Aristóteles chamava a phronēsis. Phoronēsis diz-nos que a felicidade é o coroamento por excelência da vida e do agir, mas ela não nos diz como obter esse estado de fato. É a poesia que nos mostra como as mudanças da fortuna, principalmente a virada de fortuna para infortúnio, alimenta-se da pratica concreta. Mas mostra-nos isso sob a modalidade hipotética da ficção. No entanto, é por nossa familiaridade com esses tipos de tessitura da intriga que aprendemos como ligar experiência e felicidade. (pag. 119 e 120)

3. Minha terceira tese é que o esquematismo narrativo narrativo é por sua vez constituído por uma história que participa de todas as características de uma tradição. Com isso não aludo á transmissão inerte de algum depósito morto, mas á transmissão viva de uma inovação que pode sempre ser reativada pela volta aos momentos mais criativos da composição poética. Esse fenômeno da tradicionalidade é a chave do funcionamento dos paradigmas narrativos e, por conseguinte, sua identificação. A constituição de uma tradição repousa no jogo entre inovação e sedimentação. É á sedimentação que podemos atribuir os paradigmas que constituem a tipologia do tecer da intriga de que acima falamos. Eles – ou antes, sua esquematização – provêm de uma história sedimentada cuja gênese foi apagada.

A sedimentação está em vigor em muitos níveis, que requerem que se distinga com cuidado nosso uso do termo “paradigma”. Assim, Aristóteles desenvolve sua análise do tecer da intriga em três níveis, que são por assim dizer, “nivelados” na Poética. Apresenta primeiro um conceito formal da intriga, como a concordância discordante de toda história que engloba peripécias, i. é., contingencias em uma ordem temporal de qualquer tipo em seguida, desenvolve o conceito genérico da tragédia grega, especificado pela reversão da fortuna em infortúnio, por causa de incidentes lamentáveis e terríveis pela falta trágica de um personagem, senão distinto pela excelência e a ausência de vícios ou de malevolência etc. Esse “gênero” mais ou menos regulou o desenvolvimento posterior da literatura dramática no Ocidental. Em terceiro lugar, há algo de paradigmático em obras singulares como a Ilíada ou o Édipo-Rei. Na medida em que o laço causal supera a pura sucessão – o “um por causa do outro” – antes do que “um depois do outro” – o arranjo das peripécias torna-se um tipo que produz um universal. Dessa maneira, nossa tradição narrativa foi modelada não só pela sedimentação da forma de concordância discordante, mas pela do gênero trágico e, finalmente, pela dos tipos engendrados no nível de obras singulares tratadas como paradigmáticas. Se admitimos como paradigmáticos a forma, os gêneros e os tipos, obtemos uma hierarquia de paradigmas que nasceram do trabalho da imaginação produtiva em diversos níveis.  (pag. 124)

4. Quarta tese. A identidade do texto narrativo não se limita ao que se chama o “dentro” do texto. Como identidade dinâmica, emerge para a interseção entre o mundo do texto e o mundo do leitor. É nesse ato de leitura que a capacidade que tem a intriga de transfigurar a experiência é atualizada. O ato de leitura pode desempenhar esse papel porque seu dinamismo próprio enxerta-se no do ato configuracional e conduz a seu acabamento.

Há três etapas nesta quarta tese. Primeiro, fala de uma “interseção” entre dois tipos de mundos. Por mundo de texto, entende o mundo apresentado pela ficção diante dela mesma, por assim dizer, como o horizonte da experiência possível no qual a obra desloca seus leitores. Por mundo do leito, entendo o mundo efetivo em que a ação real se desvela. É um mundo no sentido em que a ação se produz no meio de circunstancia que, como o termo sugere, “rodeiam” a ação; ou, para utilizar a expressão de Hannah Arendt na Condição humana, a ação passa-se em uma “rede de relações” no meio das quais o agente é desvelado em palavras e ações. É o desvelamento de quem é o atuante”, que implica um mundo como o horizonte das circunstâncias e das interações que constituem a rede próxima de relações de cada agente. Para a crítica literária, o mundo da ação é o “fora” do texto, como esposto ao “dentro” do texto. Enquanto “fora” do texto, é estranho a seu mundo de investigação. Minha opinião é que essa distinção não dialética entre “ dentro” e “fora” não é óbvia, mas resulta da extrapolação de traços que convêm ás entidades inferiores á frase, como as palavras, lexemas e fonemas, ás obras do discurso – isto é, a expressões verbais de tamanho da frase ou mais longas que ela. É para a linguística, como ciência dessas entidades menores, que o dito mundo efetivo que chamamos mundo real, é uma entidade extra-linguística. O mundo “fora” só é “fora” para um tratamento da linguagem que a estabelece como uma série auto-suficiente de entidades a qual são imanentes todas as relações. Isso porém é uma decisão metodológica, constitutiva da linguística como ciência, tratar a linguagem como um “dentro”sem “fora”, o que torna sem pertinência qualquer exame desse “fora”. Para uma hermenêutica que não toma como assegurada essa separação não dialética entre um “dentro” e um “fora”, o problema é antes compreender como a linguagem continua a servir de mediação entre o homem e o mundo, mesmo quando a função poética, como o faz notar Roman Jakobson, aumenta o fosso entre os signos e o mundo. Essa tripla mediação de referencialidade (o homem e o mundo), de comunicabilidade (o homem e o homem) e de compreensão (o homem e ele mesmo)constitui o problema mais importante de uma hermenêutica de textos poéticos. O que denomino interseção entre o mundo do texto e o mundo do leitor é somente um dos aspectos desse problema hermenêutica. (pag. 126 e 127)

A abordagem poética

Vou tentar aqui identificar o elo intermediário entre uma explicação formal e uma explicação existencial, como sendo o processo metafórico em obra na estrutura do relato. A parábola, parece-me, é a conjunção de uma forma narrativa e de um processo metafórico. Acrescentarei mais tarde um terceiro traço decisivo.

A explicação dessa estrutura complexa pode ser abordada de dois lados:

1. Chamar uma certa narrativa de “parábola” é dizer que a história se refere a algo alem do que é dito; ela “quer dizer...” algo além. Mas como o “sentido” de uma história enquanto história está ligado á sua “referência” enquanto referencia parabólica? O problema é muito mais difícil do que perece. Se é verdade que a estrutura interna da narrativa “fecha” a história sobre ela mesma, e fez dela uma “unidade auto-suficiente” (N. Frye), como sabemos que a historia quer dizer...alguma outra coisa? Sem já discutir o conteúdo teológico da expressão “o Reino de Deus é como...”, como a similitude, a semelhança trabalham em conjunção com a estrutura “interna”? há, no interior do próprio texto algumas “marcas” de sua referencia “interior”? ou devemos nos apoiar apenas no fato  de que as parábolas são narrativas no interior de uma narrativa (o evangelho), na medida em que a forma evangelho é uma forma narrativa? Ou há traços “interiores” que já estão implicitamente dirigidos para significações existenciais, e que só se tornam explícitos quando colocados na convergência com outros modos de discursos no resto do evangelho? Em outros termos, como o relato começa, dele mesmo, o processo que faz dele uma parábola?

2. Partindo do outro lado – quer dizer do processo metafórico – pode-se perguntar como uma metáfora pode tomar a forma mediadora de uma narrativa. A teoria moderna da metáfora só resolve em parte o problema. Torna compreensível o funcionamento dos enunciados metafóricos na base de algumas “tensões” internas que são resolvidas através de uma “inovação semântica”. Mas esses enunciados metafóricos limitam-se a frases, e são as expressões transitórias e vivas que  se tornam triviais e, depois, mortas. A teoria da parábola exige um desenvolvimento especifico a fim de ser aplicada a um “obra” de discurso, que tem uma composição por sua própria conta em nível mais elevado que o da frase, a valores metafóricos que se tornam tradicionais sem se tornarem triviais ou mortos (ao menos não muito depressa!). (pag. 134 e 135)

Parábolas e discurso religioso

Se as parábolas são espécies de textos “poéticos”, o que faz delas, de fato, formas de discursos especificamente “religiosos”? Essa questão levanta o problema da significação da frase “Reino de Deus”  na parábolas de expressão do Reino. Proponho uma hipótese baseada na comparação entre as maneiras como vários modos de discurso apontam em direção á expressão “Reino de Deus”: os ditos proclamatórios, os ditos proverbiais e os ditos parabólicos. Há nesses diversos modos de discurso um procedimento comum, uma estratégia comum, apesar do fato de que um dito proclamatório não é um dito proverbial e que a parábola é a única forma narrativa metafórica? Norman Perrin mostrou como, pela maneira como Jesus dele se serve, o quadro mítico do discurso apocalíptico explode, e o poder simbólico das significações temporais mediatizadas pelo mito é liberado, devido á mediação mítica e apesar dela. Da mesma maneira Beardslee mostra que os ditos proverbiais utilizados por Jesus sofrem uma espécie de intensificação, baseada na hipérbole e no paradoxo. Buscando um traço correspondente para a parábola, fique impressionado com o contraste entre o realismo da narrativa e a extravagância do desfecho e dos principais personagens. A “extravagância” não seria um traço especificamente “religioso” da parábola, semelhante á “intensificação” no provérbio e a liberação de símbolos temporais, além da interpretação literal, nos mitos escatológicos? (pag. 136)

Não poderíamos dizer que a linguagem poética, tal como a das parábolas, provérbios e ditos proclamatórios, redescreve a realidade humana segundo a “qualificação” trazida pelo símbolo “Reino de Deus”? Isso significaria que o referente ultimo da linguagem parabólica (proverbial e proclamatória) é a experiência humana centrada em torno das experiências-limite que correspondem ás expressões-limite do discurso. (pag. 137)

O referente da parábola, poderíamos dizer (e o dos outros modos de discurso) é a experiência humana, concebida como experiência de todo o homem e de todos os homens, enquanto interpretada á luz dos recursos mimeticos de algumas ficções realistas e extravagantes, por sua vez enquadradas em estruturas narrativas especificas. (pag. 138)

1. Antes de tudo, o discurso religioso mesmo não é um modo de discurso unidimensional. Comporta uma tensão entre “imagem” e “sentido” que pode uma interpretação. Em parte alguma, o discurso religioso é desprovido de um esforço mínimo de interpretação. Kērygma e hermēneia vão de mãos dadas. Nesse sentido, a conexão entre a forma narrativa e o processo mataforico prepara o caminho para uma série infinita de ensaios de interpretações. (pag. 138)

2. Da interpretação passamos á “tradução”, em que o conteúdo significante é explorado na base de conceitos e de noções pertencentes a uma cadeia de pensamento distinta da base simbólica. As traduções de uma linguagem para outra não são só traduções para uma língua estrangeiras, mas também traduções “internas”. Tomarei como exemplo o genero de relação que Jϋngel estabelece entre o conceito paulino da “justiça de Deus” e o símbolo de “Reino de Deus” em Jesus.

3. Gostaria em seguida de resumir o problema dos “qualificadores” já operando em um discurso religioso. Não nos orietam eles para uma certa forma de conceito, ou para um certo uso do pensamento conceitual, que preservaria a tensão entre “imagem” e “significação”? não poderíamos dizer que a relação entre as expressões-limite e as experiências-limite pede a mediação de conceitos-limites. (pag. 138 e 139)

Um passo novo foi dado quando alguns estruturalistas franceses combinaram o método estrutural com a ideologia estruturalista. Por esse termo, entendo uma concepção geral quanto ao estatuto filosófico do discurso como “texto”.

1. Para esses autores, a autonomia do texto é não só um fator de distanciamento na comunicação humana mas significa a abolição completa da dimensão referencial da linguagem. (pag. 150)

2. Esse segundo passo é encorajado por toda a obra de Claude Lévi-Strauss, que toma a segunda via aberta depois de Propp. Em lugar de formalizar episódios e de preservar um fator diacrônico (como Greimas faz ainda), procede-se a uma radical descronologização da narrativa, estendendo ás unidades do discurso maiores do que a frase, as regras de combinação que foram aplicadas com tanto sucesso no nível das unidades de linguagem menores do que a frase, os fonemas e os lexemas. Em outros termos, tratam-se os textos de maneira análoga ao sistema de signos que Saussure chama de língua em oposição á palavra. (pag. 151)

3. Damos agora um exemplo dessa abordagem ultra-estruturalista que combina Greimas, Lévi-Strause e Berthes. O exemplo proposto é o da parábola do semeador (Mt 13, 1- 23) tal como a explica Louis Marin (1971 a). A escolha dessa parábola parece provocação. Por razoes que vão aparecer no momento devido, a tentativa de isolar um texto primitivo dessa parábola tal como foi pronunciada por Jesus é intencionalmente ignorada. Interpretação chamada alegórica faz parte do texto porque o texto é o último texto (de um ponto de vista histórico-crítico), i. é., o que lemos no evangelho de Mateus como sendo o próprio texto dado. Se o texto é inconsistente de um ponto de vista histórico-crítico, ele é altamente significante para uma abordagem estrutural: suas partes não são simplesmente colocadas em uma ordem sucessiva, mas apresentam muitos níveis de discurso ligados um ao outro, segundo as leis de transformações especificas. O sistemas de transformações é o referente para a própria analise. Veremos adiante por que o autor pensa que essa abordagem convém particularmente aos textos bíblicos. (pag. 153)

O estruturalismo: uma fase intermediário ou uma via alternativa?

O estruturalismo levanta duas questões interligadas: é um tipo de abordagem que não pode, de modo algum, ser conectado com a hermenêutica e que deve ser negligenciado pela hermenêutica existencial como uma via alternativa de fazer hermenêutica? E se é um modo de abordagem radicalmente estranho, é ele novo começo ou uma situação sem saída, o melhor meio de matar os textos? Sei que pensadores da corrente existencialista tomaram essas duas posições firmes contra o estruturalismo. Desenvolverei as razões que poderiam justificar uma dicotomia pura e simples entre estruturalismo e hermenêutica, mas essa não será minha posição pessoal. A análise das parábolas vais dar-nos uma nova possibilidade de tentar o caminho mais difícil, segundo o qual uma análise estrutural – desconectada da ideologia estruturalista – pode enriquecer uma enriquecer uma hermenêutica existencial. (pag. 160)

Dois problemas principais estão englobados aqui, cada um deles englobando por sua vez duas questões subordinadas.

*O primeiro problema concerne á importância de uma teoria da metáfora para o estudo do discurso bíblica. Duas afirmações serão feitas: (a) que a metáfora é mais do que uma figura de estilo, mas contém uma inovação semântica; (b) que a metáfora inclui uma dimensão denotativa ou referencial, a saber, o poder de redefinir a realidade.

* O segundo problema refere-se á articulação entre a estrutura narrativa e o processo metafórico. O problema pode ser abordado de dois ângulos: (a) do processo á estrutura: que queremos   dizer quando dizemos que nas parábolas a narrativa deve ser tomada metaforicamente e não liberalmente? (b) da estrutura ao processo: que indícios internos ou externos nos levam a interpretar uma narrativa como parábola, se isso que dizer interpretá-la metaforicamente? (pag. 168)

É porque temos mais ideias do que palavras que precisamos estender o sentido dessas palavras de que dispomos além de seu uso ordinário. (pag. 169)

A metáfora é uma dessas figuras. Nela, a semelhança serve de razão á substituição de uma palavra figurativa por uma palavra literal, seja que falte, seja que se omita. A metáfora distingue-se de outras figuras de estilo tais como a metonímia na qual a contiguidade desempenha o papel da semelhança na metáfora. (pag. 169)

O que permanece constante nessa tradição pode resumir-se nas seis proposições seguintes: (1) a metáfora é um tropo, i. é. Uma figura do discurso que concerne á nominação. (2) A metáfora é uma extensão da nominação por um desvio do sentido literal das palavras (3) A razão desse desvio na metáfora é a semelhança. (4) A função da semelhança é fundar a substituição da significação figurativa de uma palavra ao sentido literal de uma palavra que poderia ter sido usada no mesmo lugar (5) A significação substituída não inclui inovação semântica: podemos então traduzir uma metáfora restabelecendo a palavra literal no lugar da palavra figurativa que lhe foi substituída. (6) Porque não comporta inovação, a metáfora não dá nenhuma informação sobre a realidade: é só um ornamento do discurso e, por conseguinte, pode ser categorizada como uma função emocional do discurso. (pag. 169)

A metáfora provém da tensão entre os termos de um enunciado metafórico. (pag. 170)

Se a metáfora só concerne ás palavras porque se produz primeiro no nível da frase toda, então o primeiro fenômeno não é o desvio da significação literal ou própria das palavras, mas o funcionamento mesmo da predicação no nível de todo o enunciado. (pag. 170)

O que está em jogo, no  enunciado metafórico, é fazer aparecer uma similitude onde a visão ordinária não percebe adequação nenhuma. (pag. 171)

Através desse erro calculado a metáfora revela uma relação de significação que até então não se tinha percebido, entre termos impedidos de comunicar-se entre si pelas classificações anteriores. (pag. 171)

Nesse sentido Aristóteles diz com razão que “fazer boas metáforas é perceber as semelhanças”. Mas esse ver é ao mesmo tempo uma construção: as boas metáforas são mais as que instituem uma semelhança do que aquelas que só fazem registrar uma. (pag. 171)

A substituição é uma operação estéril, mas na metáfora, ao contrário, a tensão entre as palavras, especialmente a tensão entre duas interpretações, uma literal e outra metafórica, no conjunto da frase, dá lugar a uma verdadeira criação de significação de que a retórica só percebia o resultado final. Em uma teoria de tensão – que oponho aqui a uma teoria da substituição – uma nova significação emerge, que tem a ver com o conjunto do enunciado. Sob esse aspecto, a metáfora é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem estabelecida e que só existe pela atribuição de predicados inabituais. (pag. 171 e 172)

Primeiro, as verdadeiras metáforas são intraduzíveis. Só as metáforas de substituição podem receber uma tradução que restaure sua significação própria. As metáforas de tensão são intraduzíveis porque criam significação. Dizer que são intraduzíveis não significa que não podem ser parafraseadas, mas a paráfrase é infinita e não esgota a inovação da significação

6.A segunda consequência é que a metáfora não é um ornamento do discurso. A metáfora tem mais do que um valor emocional. Comporta uma informação nova. (pag. 172)

A linguagem poética fala também da realidade, mas faz isso em nível totalmente diferente da linguagem cientifica. Não nos mostra um mundo já presente, como o fazem as linguagens descritiva e a didática. Com efeito, como vimos, a referencia ordinária da linguagem é abolida pela estratégia natural do discurso poético. Mas na medida mesma em que essa referencia de primeira ordem é abolida, é liberado um outro poder de dizer o mundo, embora em outro nível de realidade. Esse nível é o que a fenomenologia husserliana designou como “o mundo do vivo” (Lebenswelt) e que Heidegger chamou  “ser no mundo”. É um mundo que eclipsa os objetos manipuláveis, um mundo que esclarece a vida, um “ser no mundo” não manipulável, que me parece ser a contribuição ontológica fundamental da linguagem poética. (pag. 177 e 178)

Concluirei essa segunda parte da seção com três observações: (a) As funções retórica e poética da linguagem são reciprocamente invertidas. A primeira tenta persuadir os homens conferindo ao discurso ornamentos agradáveis; a segunda visa a re-descrever a realidade pelo caminho tortuoso da ficção heurística. (b) A metáfora é essa estratégia de discurso pela qual a linguagem despoja-se de sua função descritiva ordinária a fim de servir-se de sua função extraordinária de re-descrição. (c) Podemos falar com precaução de verdade metafórica para designar a pretensão de atingir a realidade que está ligada ao poder de re-descrição da linguagem poética. Quando o poeta diz: “A natureza é um templo onde pilares vivos...” o verbo ser não se limita a correlacionar o predicado “templo” ao sujeito “natureza”. A cópula não é só relacional. Implica que essa relação re-descreve o que é de certa maneira. Diz que tal é o o caso. (pag. 178)

Tentamos definir a parábola como o modo de discurso que aplica a uma forma narrativa um processo metafórico. Essa definição exprime em linguagem mais técnica a convicção espontânea do leitor profano de estar lidando, ao mesmo tempo, com uma historia livremente criada e com uma transferência de significação que não afeta essa ou aquela parte da história, mas a narrativa como um todo, e que se torna desse modo uma ficção capaz de re-descrever a vida. Para uma retórica do discurso bíblico, a dificuldade principal consiste em articular de maneira adequada a forma narrativa e o processo metafórico e, portanto, em combinar corretamente a teoria dos gêneros que rege a forma narrativa e a teoria dos “tropos” que rege a transferência de significação da história, tomada como um todo, para a esfera existencial á qual é aplicada. Nossa tentativa de definição da parábola como funcionamento metafórico de uma narrativa só faz exprimir a tarefa a cumprir no quadro de uma retórica do discurso bíblico. (pag. 179)

A metáfora é o dispositivo retórico que uma interpretação alegórica descobre nas parábolas. (pag. 179)

Mas se há indícios internos para uma compreensão metafórica das parábolas, eles são demasiado evasivos e duvidosos para serem identificadas somente na base de uma só parábola. Minha aposta é que as parábolas fazem sentido se, e somente se, são tomadas em conjunto. Uma parábola isolada é uma construção artificial do método histórico-crítico. As parábolas constituem uma coleção, um “corpus”, que só é plenamente significante tomado como um todo. Certamente, não conservamos todas as parábolas de Jesus, mas a seleção que foi operada pela tradição da Igreja parece bastante para fazer aparecer um esquema de sentido comum. Nesse sentido, Crossan tem razão de tomar toda a coleção das parábolas como um campo de articulação ao qual aplica uma sequencia temporal tirada da ontologia heideggeriana: espera, reversão e ação. (pag. 187 e 188)

Próxima da proposição precedente, uma nova hipótese vem ao espírito. Não temos só de tomar o corpus das parábolas como um todo, mas também o corpus dos dizeres atribuídos a Jesus pelos sinópticos. Como o expõe Noman Perrin (1974, 277-303) os dizeres escatológicos, os dizeres proverbiais, os dizeres parabólicos apontam juntos na mesma direção. O símbolo “Reino de Deus” (ao qual voltarei depois por ele mesmo) designa o horizonte comum a esses três modos de discurso. Essa nota é de uma importância enorme: implica que os diferentes modos de discurso podem ser traduzidos um no outro. Essa “traduzibilidade” de um modo de discurso em outro, logo que percebida, livra o ouvinte de toda veleidade de apegar-se á compreensão literal. Abre os olhos e os ouvidos. A convertibilidade entre os dizeres proverbiais e os dizeres parabólicas tem uma importância particular. Os dizeres proverbiais estendem aos dizeres parabólicos sua própria ironia, sua textura paradoxal e hiperbólica, sua arte de desorientar o ouvinte. Proponho dizer que uma narrativa pode ser compreendida como parábola se pode também ser convertida em provérbios ou em dizer escatológico. A equivalência entre parábola, proclamação e provérbio ajuda-nos a romper as estruturas narrativas. Faz explodir o “fechamento”da estrutura. Assim, a estrutura narrativa recua para o plano de trás, e o processo metafórico vem para o primeiro plano. Essa inversão de propriedade entre estrutura e processo não poderia ser realizada sem essas trocas mutuas entre vários modos de discurso, porque a atenção deveria ser atraída para além da narrativa no momento mesmo em que é captada pela própria intriga. O fato de pensar no interior como no exterior da forma é possibilitado pela atração exercida por uma forma de discurso sobre o outro. (pag.  188 e 189)

O processo de “intersignificação” que se produz entre as parábolas tomadas como um corpus distinto, depois entre esse corpus e as outras “palavras” de Jesus deve ser prosseguido, um passo adiante, pela intersignificação entre as “palavras” mesmas consideradas como um corpus maior e as “ações” de Jesus. Por essa observação, fazemos justiça a uma ideia importante de Jeremias segundo a qual algumas ou mesmo a maioria das parábolas [de Jesus] são apologias e justificações de sua própria maneira de tratar publicamos, prostitutas e fariseus. (pag. 189)

Os milagres, na realidade, são histórias dadas como histórias verdadeiras As parábolas são histórias dadas como ficção. Mas o que querem dizer é a mesma coisa: o curso da vida ordinária é rompido, a surpresa jorra. O inesperado acontece, os ouvintes são interpelados e levados a pensar o impensável. Se pomos juntos as diferenças entre as duas afirmações concernentes á relação com a realidade efetiva, e se nos concentramos na “significação” das palavras, das ações ordinárias e das ações milagrosas, não poderíamos então dizer que as parábolas atraem nossa atenção para a dimensão “milagrosa” do tempo, ao mesmo que as narrativas dos milagres recebem da pregação sua dimensão “parabólica”? não é por acaso que o evangelho de João chamará os milagre de semeia (sinais). Nem tampouco é por acaso que podemos ler as parábolas da semente como sinalizando o valor milagroso da messe: “Mas outros grãos caíram sobre a terra boa; deram fruto brotando e desenvolvendo-se e produziram trinta, sessenta, cem por um” (Mc 4, 8; Lc 8, 8; Mt 13, 8) (pag. 189 e 190)

Quero aqui mostrar que não é tanto a função metafórica enquanto tal que constitui a linguagem religiosa, quanto uma certa intensificação da função metafórica que também se enquanto uma certa intensificação da função metafórica que também se encontra em outros discursos não metafóricos, tais, como o discurso proclamatório, especialmente os enunciados de caráter escatológico dos evangelhos sinópticos e os dizeres proverbiais. Essas formas como tais não constituem a linguagem religiosa, mas antes o que chamarei provisoriamente a “transgressão” pela qual essas formas de discurso sinalizam, além de sua significação imediata, para o Todo Outro. (pag. 193)

Assim fica o problema: como o “Reino de Deus” funciona enquanto referente das parábolas? Não podemos determiná-lo antes de ter colocado as parábolas em relação com outros tipos de enuciados nos quais o Reino de Deus serve também de ponto de convergência: proponho dizer que a expressão “Reino de Deus” é uma expressão limite em virtude da qual as diferentes formas de discurso, empregadas pela linguagem religiosa, são modificadas, e pelo fato mesmo convergem para um ponto último que se torna seu ponto de encontro com o infinito. (pag. 194)

Os dizeres proclamatórios. A maneira de proceder mais apropriada parece-me que é esquecer um momento as parábolas e começar por dois outros tipos de discurso, que nos permitirão perceber melhor a detonação da forma do discurso sob a pressão das expressões-limites. Começamos assim pelos dizeres proclamatórios. É aqui que a singularidade da linguagem religiosa é a mais evidente, se é verdade que a proclamação de Jesus foi essencialmente uma proclamação escatológica. Consideramos as quatro fórmulas que Normam tinha por autenticas. “Os tempos estão cumpridos” o Reino de Deus está perto: convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1, 15). “Mas se é pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é então que o Reino de Deus adveio para vós” (Lc 11, 20). “ O Reino de Deus não vem de uma maneiro visível. Não se dirá: ‘Ei-lo, está aqui’ ou então: ‘Está ali’ Com efeito, eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17, 20- 21). “Desde os tempos de João Batista  até ao presente, o Reino dos céus sofre a violência e os violentos buscam apoderar-se dele” (Mt 11, 12)

O que é importante nessas palavras não é tanto a forma apocalíptica do discurso, que é uma forma de discurso tradicional, exatamente como o mashal o é em relação á parábola. O fato importante para nós é que essa forma é simultaneamente empregada, transgredida e revertida por seu uso novo. Podemos dizer que a forma apocalíptica desempenha aqui o mesmo papel que a forma narrativa na parábola. Aqui também a proclamação apocalíptica apresenta um caráter liberal que é transgredido de maneira comparável á que transgride a forma de uma história na parábola. Com efeito, há em seguida uma maneira liberal de compreender o simbolismo apocalíptico.

É compreendê-lo temporalmente, segundo uma ordem cronológica e perguntar: “Quando vai acontecer? É para o fim ou agora, ou ainda não?” Devemos admitir que as tentativas de solução oferecidas por intérpretes bem conhecidos como Schweitzer (escatologia iminente), Dodd (escatologia realizada) e Jeremias (escatologia realizando-se: sich-realisierende) ficam todas engessadas no esquema temporal liberal. Quanto a isso, essas interpretações parecem encorajadas pela maneira como o mito funciona em relação aos mitos fundamentais postos em obra por essa forma de discurso. Como já mostrei na “Simbólica do mal” (La Simbolique Du Mal), os símbolos primários funcionam somente por intermédio se símbolos de segunda ordem, que põem em jogo personagens, acontecimentos, um drama etc. mas o mito tem a função ambígua, de uma parte, de preservar a função simbólica de maneira a torná-la operativa, em certa medida, num nível pré-conceitual e, de outra parte, de canalizar e, em certo sentido, interceptar o movimento do símbolo-fonte, dando-lhe uma expressão histórica, de maneira a impedir a manifestação do que Philipp Wheelwright chama sua “vitalidade ancestral”. É a razão pela qual a forma do mito encoraja e parece autorizar interpretações em termos de “esteno-sistemas”. Na realidade, é desse modo que o discurso apocalíptico funciona. Poe em jogo os grandes símbolos do “Senhor”, do “Reino” e do “Poder” que falam do que Norman Perrin chama a “atividade régia” de Deus. Afeta igualdade o símbolo da redenção, que Perrin diz ser talvez até mais rico do que todos os símbolos do Reino. Mas esses símbolos funcionam num tempo mítico que, embora não sendo o tempo das origens de que fala Mircea Eliade, não é menos simétrico em relação ao tempo do fim, um tempo mítico em que o símbolo desenvolve todas as suas potencialidades temporais, embora dissimulado-as em representações que objetivizam a temporalidade fundamental significada pelo mito.

Ora, que faz Jesus? De novo, no primeiro texto, interpreta seus próprios exorcismos na base das pragas do Egito, mas projeta sua significação em uma temporalidade que escapa ás alternativas propriamente cronológicas (o Reino de Deus está “bem perto”). O novo Êxodo para o qual aponta a reativação do símbolo incluído no mito do êxodo, é um símbolo que opera ao mesmo tempo no mito, na medida em que é fonte de força vital para o povo concernido, e contra o mito, subvertendo sua interpretação literal. O segundo texto acima citado implica claramente a recusa de calcular o tempo, i. é., de interpretar o símbolo do “reino que sobrevém” em termos de temporalidade literal. O que é essencialmente discutido nesse texto é, para citar Perrin, “a pratica apocalíptica da procura dos sinais”, i. é., o tratamento do mito como alegoria e dos símbolos como esteno-símbolos. Dizendo “O Reino de Deus está no meio de vós”, Jesus coloca seus ouvintes diante do símbolo apocalíptico como diante de um símbolo verdadeiramente tensional, com seu poder de evocar um conjunto de significação, assim como o mito da redenção torna-se um verdadeiro mito, como seu poder de mediatizar a experiência da realidade existencial.

Da mesma maneira, no quarto texto, a linguagem é tirada dos mitos da guerra do Batista, de Jesus e de seus discípulos. Esse mito significa seu destino. E não tenho nenhuma dificuldade em segui Norman Perrin quando propõe discernir a mesma preocupação existencial no pedido da prece do Senhor: “Venha o teu Reino”. (pag. 194, 195 e 196)

Talvez seja também necessário dizer da parábola o que dissemos aqui do provérbio, a saber, que dele mesmo não fornece nem uma via prática, pela qual seria possível re-inserir o modelo impossível no urso da existência, nem uma via de incorporação dessa ruptura em uma visão unificante. (pag. 197)

Vou concluir fazendo uma sugestão. O que é simbólico em uma história-metáfora? É seu aspecto de realismo ou, ao contrário, a extravagância que interrompe o curso da ação soberbamente pacifico e que constitui o que chamei o extraordinário no meio do ordinário? Se essa hipótese é verdadeira, teremos determinado o traço que transforma a poética da parábola em uma poética da fé. (pag. 201)

Voltarei a esse ponto na terceira parte desta seção. Bastará aqui fazer as afirmações seguintes:

1. As diversas formas de discurso religioso – pelo menos as que os sinópticos atribuem a Jesus – apresentam uma similitude de função, a saber, o tipo de abuso que arruína a própria forma do discurso empregando. Tentei atrair a atenção sobre isso, chamando-as “expressões-limite”.

2. O símbolo “Reino de Deus” pode ser designado como o referente comum desses diferentes tipos de discurso é portanto, igualmente a seu funcionamento como expressões-limite. Poderíamos arriscar-nos a chamar o símbolo “Reino de Deus” de referente-limite dessas expressões-limite. É esse referente-limite que preside ao que chamarei as expressões-limite, que a linguagem religiosa tenta re-descrever, na segunda parte desta seção.

3. O funcionamento das expressões-limite e do símbolo “Reino de Deus” prefigura a estrutura modelo-qualificador que caracteriza não só a linguagem religiosa, mas também a linguagem propriamente teológica. Podemos fazer a hipótese dessa constituição paradoxal da linguagem teológica na sua fonte – i. é., ao mesmo tempo seu estimulo e sua estrutura pré-conceitual – no funcionamento das expressões-limite da linguagem religiosa. (pag. 203)

Qual é o referente último da linguagem religiosa? O poder poético de ficção, dissemos no capitulo precedente, é o de re-descrever a realidade. É precisamente nesse sentido que é uma espécie de modelo; mas o discurso religioso, acabamos de dizer, não é uma ficção como as outras. É, poderíamos dizer, uma metáfora-limite. Por conseguinte, a questão é saber que poder de re-descrição está ligado á linguagem religiosa, na medida em que é o lugar das metáforas-limite e de todas as outras expressões-limite ás quais as parábolas de Jesus estão ligadas. Outra maneira de pôr o mesmo problema seria perguntar, tomado em consideração o vocabulário introduzido acima, qual é o uso e a função da ficção quando é levada ao extremo pela adição de qualificadores. (pag. 204)

Nosso método regressivo nos levou de um encontro puramente extrínseco entre a linguagem religiosa e os conceitos filosóficos, através da noção de correlação, para um exame direto da linguagem religiosa, do ponto de vista de suas potencialidades conceptuais. (pag. 211)

Da interpretação á tradução. Um segundo degrau intermediário entre o discurso figurativo e o conceitual pode encontrar-se em uma série de modos de discurso semi-conceituais típicos da literatura didática, apologética e dogmática, donde surgiu a teologia, em conjunção com as filosofias gregas. As primeiras cristologias pertencem a esse grupo. Sua linguagem tem alguma afinidade com o ramo da literatura de sabedoria, que Beardlee chama “especulativa” (ver G. VON  Rad) em contraposição a outra forma mais popular, a que pertencem os dizeres proverbiais. Chamo essa linguagem de linguagem de “tradução”, “em que o conteúdo significante é explorado como a base de conceitos e de noções pertencentes a uma corrente de pensamento distinto da base simbólica”. Reproduzo aqui um conceito utilizado pelo prof. Fred Streng em curso dado diante da Associação Americana para o Estudo da Religião, na Universidade de Vanderbilt (primavera 1973). Segundo esse pesquisador, é um traço fundamental do cristianismo poder transmitir sua linguagem criando uma série de linguagem de translação, i. é., linguagens capazes de uma dupla historia, a da linguagem de onde vêm e da linguagem em que são traduzidas. (Assim, palavra “religião” refere-se ao mesmo tempo á piedade romana e á fé judaica e cristão.) A cada etapa do processo de translação, a linguagem religiosa recolhe novas metáforas, novas instrumentos retóricos e, também, novas dimensões conceituais, que tornam a linguagem original apta, ou pelo menos não demasiado inadequada, para tratar com outras religiões, com as culturas estrangeiras e com a própria filosofia.

Essa análise bate perfeitamente com o exemplo especifico desenvolvido, em sua obra magistral, por Eberhard Jungel. A obra trata da correlação entre o conceito paulino de “justiça de Deus” e o símbolo “Reino de Deus” empregado por Jesus. Ambos veiculam a mesma mensagem fundamental, são “ acontecimentos de palavra” (Sprachereignise) semelhantes, mas em dois níveis diferentes em relação á conceptualidade. (Os leitores anglófonos encontrarão uma comparação similar em funk [124-133 e 224-250] entre a parábola e a carta como modo de discurso). (pag. 213 e 214)

3.Limite expressões, experiências e conceitos. A terceira etapa de uma pesquisa sobre a relação entre o discurso “figurativo” e o “conceitual” leva-nos a discutir o papel dos conceitos-limite em nosso quadro conceitual. Essa expressão, “conceito limite”, e “conceito de linha fronteira”, é sugerida por nossa discussão anterior das duas expressões paralelas: expressões-limite e experiências-limite. Com essas duas categorias eu desejava sublinhar a correspondência entre o papel dos “qualificadores” (no sentido de Ian Ramsey) que operam na linguagem “estranha” dos dizeres parabólicos, proverbiais e proclamatórios, e as experiências de vida “fronteiras” – no sentido de Karl Jaspers. O problema é então determinar se não há um certo uso de pensamento que preserve a tensão entre figura e significação, porque prolonga o papel dos qualificadores no nível conceitual. (pag. 216)

* A teologia especulativa está morta, dizíamos. E é essa a conclusão negativa da primeira crítica em relação á noção de “ilusão transcendental”. Mas essa destruição da teologia especulativa como ciência dos “objetos” não implica que o próprio saber objetivo seja absoluto. Ao contrario, saber objetivo é o trabalho do “entendimento” (Verstand) e o “entendimento” não esgota o poder da “razão” (Vernunft) que permanece a função do incondicionado. Essa distancia, essa tensão entre a “razão” como função do incondicionado e o “entendimento” como a função do saber condicionado encontra sua expressão na noção de “limite” (grenze) que Kant não identifica com a da “fronteira” (Schranke). O conceito de “limite” não implica só – nem mesmo originariamente – que nosso saber seja limitado, tenha fronteiras, mas que a busca do incondicionado ponha limite á reivindicação do saber objetivo de tornar-se absoluto. O limite não é um fato, mas um ato. (pag. 219)

Pregar hoje sobre as parábolas de Jesus ou, melhor, pregar as parábolas, com efeito é um desafio: desafio de que, apesar de todos os argumentos contrários, é sempre possível escutar as parábolas de Jesus de tal maneira que fiquemos atônitos uma vez mais, impressionados, renovados e postos em movimento. Foi esse desafio que me levou a tentar pregar as parábolas e não só estudá-las de maneira erudita, como um texto entre outros .

A primeira coisa que pode impressionar-nos é que as parábolas são narrativas radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos nem milagres, nem tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação, nem mesmo acontecimentos fundadores como na narrativa do Êxodo. Nada, mas precisamente gente como nós. (pag. 226)

Encontra-se aqui o paradoxo inicial: por um lado as histórias são – como disse um critico – narrativas de normalidade, mas, por outro, é o Reino de Deus que se diz ser assim o extraordinário é como o ordinário. (pag. 226)

O segundo passo, além desse primeiro choque, será perguntar o que faz sentido na parábola. Se é verdade, como mostra a exegese contemporânea, que o Reino de Deus não é comparado ao homem que... á mulher que...ao fermento que...mas ao que se passa na narrativa, devemos examinar mais de perto essa breve narração mesma, a fim de identificar o que nela pode ser paradigmático. (pag. 227)

Mas a arte da parábola é ligar dialéticamente o ato da descoberta aos dois outros pontos cruciais. O homem que encontrou o tesouro foi vender tudo o que tinha e o comprou: dois novos pontos críticos que poderíamos chamar, seguindo um comentador moderno, por sua vez inspirado em Heidegger, conversão e decisão. A decisão não vem sequer em segundo lugar: antes da decisão é a conversão. (pag. 227 e 228)

O Reino de Deus é comparado ao encadeamento desses três atos: deixar o acontecimento desenvolver-se; olhar em outra direção; e agir com todas as suas focas de acordo com essa nova visão. (pag. 228)

E se perguntemos: “E finalmente, que é o Reino dos céus?”. Devemos preparar-nos para esta resposta: o evangelho nada diz sobre o Reino dos céus senão que é semelhante a... Não diz o que é, mas a que se assemelha. Isso é difícil de entender. Porque toda a nossa prática cientifica tende a utilizar as imagens só como meios provisórios  e a substituir as imagens por conceitos. Somos convidados a seguir um outro caminho. E a pensar segundo um modo de pensamento que não é metáfora por razões retóricas, mas por causa do deve dizer. Só analogia é que se aproxima do que é totalmente prático. (pag. 229)

Quais as implicações dessa descoberta inquietamente, a saber, que as parábolas nunca permitem uma tradução em linguagem conceitual? Primeiro, que esse estado de fato revela a fraqueza desse modo de discurso. Mas olhando do mais de perto, revela a força única desse modo. Como é possível? Consideremos que com as palavras não lidamos com uma narrativa única apresentada em um longo discurso, mas com uma multidão de pequenas parábolas reunidas na forma unificante do evangelho. Esse fato significa alguma coisa. Significa que as parábolas formam um todo, que devemos apreendê-las como um todo e compreender cada uma á luz das outras. Constituem uma rede de intensificações, se ouso assim falar. (pag. 229)

Por isso é que não basta afirmar que as parábolas nada dizem diretamente sobre o Reino de Deus. Devemos dizer em termos mais positivos que, tomadas juntamente, dizem mais do que qualquer teologia racional. No momento mesmo em que pedem uma explicação teológica, começam a destruir as simplificações teológicas que tentamos pôr em seu lugar. (pag. 230)

Essa maneira de abordar o texto que chamo “orientada em um sentido sapiencial” é de fato instrutiva e o resto da passagem convida-nos a tirar dele algumas lições: que vantagem com efeitos teria um homem em ganhar o mundo inteiro se tem de pegar com sua vida”? que soma poderá dar em troca de sua vida?” Podemos agora perguntar o que está em jogo nesse jogo em que se perde o que se ganha e em que se ganha o que se perde. Aqui a sabedoria parece, para alem, de costumes ou de más compreensões locais ou ligadas ao tempo, visar a uma forma fundamental de um falso cálculo que orienta o conjunto da vida até o ponto que constitui nossa existência cotidiana. Não é preciso estender-se aqui sobre as duas manifestações principais desse erro de calculo, que são as mais frequentemente citadas e as mais próximas uma da outra, sem ser contudo de modo algum superficiais. Quero dizer com isso que “ganhar o mundo” significa ter bens materiais e poder. Com efeito, é difícil não ficar transtornado pelo círculo vicioso provocado pela exploração desbragada da terra e o consumo sem freios dos países industrializados. Alias, “tornar-se o senhor e o proprietário da natureza” é a verdadeira divisa da modernidade anunciada por Descartes. É também igualmente difícil não inquietar-se com espiral, a das armas nucleares. Ganhar o mundo parece aqui implicar um domínio sem limite, com o risco de destruir fisicamente o mundo. Não basta contentar-se com modalidade as superpotências diante desse estado de coisas. Devemos admitir que o drama do exercício do poder é o drama secreto de cada um de nós, mas simplesmente carecemos de poder para pô-lo em execução. (pag. 234)

Assim, para concluir, voltemos á condição particular do intelectual, do universitário a quem dediquei a parte mais problemática de minha meditação na perspectiva da sabedoria, contida no texto do evangelho de hoje. Ganhar o mundo disse eu, para uma pessoa instruída, é buscar o domínio absoluto por intermédio do conhecimento e das técnicas acadêmicas. É também, acrescentei, para quem faz obra de teologia dentro de sua fé apagar-se a que Deus seja a garantia suprema da solidez de nosso conhecimento.

É precisamente essa tentativa de utilizar Deus como garantia de nosso desejo de ter uma garantia que me parece pais posta em questão pela expressão “renunciar a si mesmo”. Como disse Eberhard Jungel, um teólogo de Tubingen, a fé é a reversão da garantia, é risco de uma vida colocada sob o signo de Cristo sofredor. Nossa passagem acrescenta a essa “renuncia a si mesmo” o fato de “tomaar s sua cruz”. Essa poderosa expressão leva-nos ao contexto deliberadamente escolhido pelos autores sinópticos para os versículos que estamos considerando, a saber, o anúncio feito por Jesus de sua Paixão iminente. Que laço existe entre o convite dirigido aos cristãos, de tomar a sua cruz, e o anúncio por Jesus da necessidade da Paixão? Que vínculo há para a pessoa crente que adota a divisa de Anselmo, “Fides quarens intellectum” (a fé que busca compreender)? Tomar uma cruz, é renunciar á representação de Deus como o lugar do conhecimento absoluto, como a garantia de todo meu conhecimento. É aceitar não saber senão uma coisa a respeito de Deus: é que Deus estava presente em Jesus crucificado, e deve ser identificado com Jesus crucificado. Deus tomou a cruz. Tal é a significação do hino cristológico aos filipenses: “esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo, tornado semelhante aos homens...humilhou-se a si mesmo e fez-se obediente até a morte e á morte em uma cruz (Fl 2,7-8).

Tomar a cruz de Jesus, para mim, membro da Universidade, dessa comunidade de saber, significa não supervalorizar um conhecimento, prisioneiro como é de questões de provas e de garantias, diante da necessidade seguinte – mais elevada do que toda necessidade lógica – “Era necessário que o Filho do Homem sofresse e fosse crucificado”. Como único poder divino Deus só dá aos cristãos o sinal da fraqueza divina, que é o sinal do amor de Deus. Deixar-me ajudar pela fraqueza desse amor é para a questão de dar sentido á minha fé, aceitar que Deus só pode ser pensado por meio do símbolo do servo sofredor e pela encarnação desse símbolo no acontecimento eminentemente contingente da cruz de Jesus. (pag. 237 e 238)

Uma interseção ainda mais significativa entre o mito e a história foi posta á luz pela extensão, familiar depois da antropologia contemporânea, da nação do mito aos tipos de narrativas que são extremamente difundidos nas sociedades arcaicas. Essas narrativas são caracterizadas pelo fato de serem anônimas e, portanto, sem origem determinante. São recebidas pela tradição e aceitas como dignas de fé por todos os membros do grupo sem outra garantia de autenticidade que a crença dos que as transmitiram. A história marcará uma “ruptura epistemológica” com esse modo de transmissão e de recepção, mas só depois de uma evolução engloba muitas etapas intermediarias, como veremos mais tarde. Uma fonte de conflitos ainda mais sérios entre o mito e a história e, portanto também uma ocasião de formas mais complexas de transições ou de compromisso, refere-se ao próprio mito, que designamos provisoriamente como narrativa das origens. O interesse pelas origens estende-se bem além da história dos deuses, dos heróis e dos antepassados. As questões que tocam a origem coisas estendem-se ao conjunto das entidades da vida individual e social. Assim, os mitos podem responder a cada um dos tipos de questões seguintes: Como uma sociedade particular veio á existência? Qual o sentido dessa instituição? Por que esse acontecimento e esse rito existem? Porque algumas coisas são proibidas? Que é que legitima uma autoridade particular? Por que a condição humana é tão miserável? Por que sofremos e morremos? O mito responde a essas questões contando como as coisas começaram. Conta a criação do mundo e a aparição dos humanos em sua condição presente, física, moral e social. Por conseguinte, com o mito, tratamos com um tipo particular de explicação que manterá uma relação complexa com a história. Esse tipo de explicação consiste essencialmente em uma função fundadora dos mitos: o mito relata acontecimentos fundadores. Seu laço com a história e o conflito que daí decorre resultam dessa função. Deuma parte, o mito só existe quando o acontecimento fundador não tem lugar na história, mas situa-se num tempo antes de toda história: in illo tempore, para usar a expressão agora clássica de Mircea Eliade. De outra parte o que está em jogo em cada uma dessa fundações é ligar nosso próprio tempo áquele outro tempo, seja sob a forma de participação, imitação, decadência ou abandono. É precisamente essa relação entre nosso tempo e o tempo do mito que é o fator constitutivo do mito, mais do que os tipos de coisas fundadas por ele, seja que essas últimas incluam a totalidade da realidade – o mundo – ou um fragmento da realidade – uma regra ética, uma instituição política, ou mesmo a existência do homem em uma condição particular, culposa ou inocente. (pag. 248)

O primeiro testemunho que temos da ruptura da história com o mito foi fornecido por Heródoto, no meio do século V antes de Cristo. Sua obra constitui uma etapa literária decisiva. E seu titulo – Historiē, em dialeto jônico a – a partir de então determinou não só o nome da disciplina que Heródoto inaugurava, mas também a principal significação desse termo, a saber, a investigação. Essas “histórias” são de fato investigações sobre as causas das guerras travadas entre gregos e persas. Á diferença dos mitos das origens e dos contos heroicos situados em épocas longínquas, as histórias de Heródoto ocupam-se de acontecimentos recentes. Heródoto interessa-se pelo papel de causa exercido pelos acontecimentos anteriores e pelo papel dos atores responsáveis nos acontecimentos que ele explorava. Seus escritos são bem mais do que simples descrições. São expressões de um modo de pensamento caracterizado pelo que se chamou de “iluminismo jônico”, e que assim toma lugar em um conjunto mais vasto de investigações em cosmologia, geográfica e etnografia. Encontram seu equivalente especulativo na filosofia enquanto tal, em que a physis, termo que traduzimos por “natureza”, constitui imediatamente o campo de exploração e a palavra-chave. Na filosofia jônica, a nação de arkhē no sentido de “principio” distinção na nação de origem é de grande importância para a compreensão da separação entre a história e o mito.

A ruptura epistemológica com o mito, que marca a emergência da história, da geografia, etnologia, da cosmologia e da filosofia da natureza, nem por isso nos deve autorizar a representar esse processo como simplesmente genético e linear. (pag. 251 e 252)

Em contraste com uma representação simplista do “milagre grego”, deveríamos em vez disso estar atentos a esse fenômeno de transição que reserva um sentido para os diversos elementos que contribuíram para promover o “acontecimento” do iluminismo jônico. De fato, Heródoto foi precedido por toda uma série de prosadores que lhe prepararam o caminho. O mais importante deles foi sem dúvida Hecateu de Mileto, que só conhecemos por um pequeno numero de citações que nos chegaram. (pag. 252)

A ruptura entre mito e história, por conseguinte, não se produziu de uma só vez, mas só gradualmente. As próprias Histórias de Heródoto não cortavam todo elo com as narrativas da idade heroica, como se pode ver em suas tentativas de uma cronologia geral remontando á guerra de Tróia. E se Heródoto interessava-se tão particularmente pelas guerras persas, era porque, na sua opinião, mereciam ser contada tanto como o tinha sido a guerra de Tróia. Enfim, a dimensão épica da obra de Heródoto, que lhe permite manter os elos cronológicos e analógicos entre as épocas heroica e histórica, deve ser atribuída á influência da epopeia versificada de Homero.

A dupla relação de ruptura e de filiação entre mito e história, no nível da forma narrativa, torna-se mais clara se consideramos o fim ou a meta atribuídos a esse gênero de literatura. Aqui passamos do primeiro ao segundo sentido de história. O fim que Heródoto atribuía a suas investigações pode encontrar-se no prólogo da Histórias: “Eis o começo das pesquisas (historiē) de Heródoto de Halicarnasso a fim de que as ações humanas não possam ser esquecidas, nem as coisas grandes e admiráveis, quer fossem realizadas pelos gregos quer pelos bárbaros, fiquem sem relato, nem especialmente as causas (αitiē) das guerras entre uns e outros”. (pag. 252 e 253)

Esse culto da memória liga a história á autocompreensão que um povo adquire entregando uma narrativa de seu passado. A memória que a história cultiva é a de um povo tomado como um corpo único. Desse modo, a história toma lugar no corpo das tradições que em conjunto constituem o que podia chamar-se a identidade narrativa de uma cultura. (pag. 253)

O terceiro traço do projeto de Heródoto aponta na mesma direção: o objeto de sua pesquisa é descobrir a causa de um acontecimento essencialmente conflituoso, a saber as guerras persas. (pag. 253)

Dessa tríplice análise podemos constatar que a passagem do mito á historia não se pode reduzir á pura substituição do primeiro pela segunda. No caso, com essa evolução linear devemos dar lugar a uma acumulação de gêneros literários e de modos de pensar ligados entre eles: os mitos teológicos escritos no estilo da mitologia escolar e literária, os mitos da época heroica moldados no modo literário da epopeia e da tragédia e, finalmente, a história. A história substitui tão pouco o mito, que Platão faz ainda guerra aos mitos nos seus diálogos, não sem incluir porém aqui e ali algum palaios logos recebido da tradição órfica ou da sabedoria atribuída ao Egito. E até ele mesmo cria certos mitos sob a forma de contos filosóficos. (pag. 254)

É porque o tempo é uma confusão total para o observador humano, que o poeta apela á Musa para uni-lo á mais alta visão dos deuses. Nos mitos de Hesíodo, as idades e as raças que nele evoluem estão inseridos entre o tempo dos deuses e o tempo dos homens, servindo tanto para separa-los como para pô-los em relação. É uma história de decadência, interrompida somente pela quarta raça, a dos heróis. O destino da raça da última idade, a idade de ferro, é sofrer a fadiga e as tribulações e, portanto, viver sofridamente no tempo. O único remédio para isso é a repetição monótona do trabalho nos campos. Contudo, o ciclo do tempo já é o do tempo humano. (pag. 255)

É só com Tucídides que um tempo lógico vai guiar a desordem do tempo histórico, provinda da repetição das mesmas dissensões entre cidades, o que provoca a “ocorrência e a recorrência sem fim” das desgraças inumeráveis e terríveis. O segundo grande historiador grego está então pronto para definir sua obra como um meio de “penetrar claramente no acontecimentos do passado e nos que devem ainda vir, em razão do caráter humano que possuem, oferecendo semelhanças e analogias” (História da guerra do Peloponeso, 1.22). é o sentido da famosa expressão ktēma eis aiei (aquisição para sempre): o tempo humano só toma consciência perante o tempo dos deuses quando a narrativa é encarada em uma espécie de lógica da ação. (pag. 256)

No caso do cristianismo, talvez não existam textos sagrados, porque não é o texto que é sagrado, mas Aquele de quem se fala. Por exemplo, não há privilegio para a língua em que o texto foi escrito pela primeira vez: não há nenhuma importância em lê-lo em grego, hebraico ou aramaico etc. aí já há algo que permite o ato crítico: o ato crítico não é proibido pela natureza do texto, porque não é um texto sagrado no sentido em que o Alcorão é sagrado (pois um muçulmano diria que ler o Alcorão em inglês não é ler o Alcorão: tem de ser lido em árabe). Mas para o cristianismo, a tradução é totalmente possível, porque a tradução dos Setenta é uma espécie de dessacralização da língua original, do momento em que se admitiu que a Bíblia podia ser posta em grego. E uma certa atividade critica estava implicada nesse ato de tradução. Para seu tempo, Jerônimo era um espírito crítico. (pag. 279 e 280)

Eu era bastante reticente quanto a utilizar a palavra “sagrada” em meu ensaio sobre a revelação ([² Ver P. RICOEUR, “Toward a Hermeneutic of the Idea of Revalation” , em L.SMUDGE (Ed) essayas on Biblical interpretation, Filadélfia, 1980, 73-118; publicado em Frances o titulo de La Révélation, Bruxelles, 1977,15-54]). Tive de lutar muito duramente até dizer enfim, em que eu creio, o que eu penso quando me sirvo da palavra “revelação”. Mas até um certo ponto estou pronto a dizer que reconheço algo de revelador que não está fixado em todo texto absoluto e imutável. Porque o processo de revelação é um movimento permanente de abertura de alguma coisa que está fechada, a manifestação de alguma coisa que estava oculta. A revelação é um processo histórico, mas a noção de texto sagrado é algo anti-histórico. Sinto-me aterrorizado por esta palavra: “sagrado”. (pag. 283)

Na minha opinião, o projeto de uma teologia narrativa não é idêntico ao de uma teologia da historia – se entendemos por teologia da história uma tentativa de construir uma historia universal no sentido hegeliano, sob a conclusão de uma “Heilsgeschchte” indo do Gênesis ao Apocalipse, pontuada por acontecimentos salvíficos tais como o Êxodo  e a Ressurreição. A propósito, defendo que “o eclipse da narrativa bíblica”, que Hans Frei descreve em seu livro magistral, aplica-se a um esquema de pensamento proveniente da confusão de uma teologia que leva em conta a dimensão narrativa da fé bíblica e uma teologia da história mais ou menos sofisticada. ([² Ver H. FREI, The Eclipse of Biblical Narrative: a Study in Eighteenth and Niineteenhh Century Hermeneutics, New Haven, Yale University Press, 1974]) (pag. 286)

Os RESURSOS DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA

Os principais recursos da teologia narrativa são as prodigiosas aquisições que podemos constatar no campo da narratologia. Essas aquisições podem ser colocadas sob quatro rubricas:

1. Primeiro, encontramos na arte de tecer a intriga a paradigma de todos os estratagemas literários empregados pelos narradores de maneira a obter uma narrativa inteligível de uma série de acontecimentos ou peripécias ou, reciprocamente, de modo a fazer que esses eventos ou peripécias entrem na narrativa. Dessa maneira, o tecer da intriga junta traços tão heterogênios quanto circunstancias, agentes, interações, consequências, meios e resultados fortuitos. (pag. 288)

Essa temporalidade mistura os dois componentes temporais: de um lado, a pura sucessão abstrata e interminável que podemos chamar  de peripécias da narrativa, o que constitui a face episódica da narrativa; de outro lado, o aspecto de integração, de culminação e de fechamento trazido pelo que Louis O. Mink chama “o ato configuracional da narração”. Esse ato consiste em agrupar as peripécias da narrativa e criar a configuração de uma sucessão. (pag. 288)

3.O terceiro traço que uma teologia narrativa pode reter do estado atual da discussão corrente no campo literário diz respeito ao papel da tradição, não só na transmissão, mas igualmente na recepção e na interpretação das narrativas recebidas. Esse fenômeno de tradicionalidade é muito complexo porque repousa na dialética maleável entre inovação e sedimentação. É a sedimentação que atribuímos aos paradigmas que permite que uma tipologia do tecer a intriga surja e se estabilize. Mas o fenômeno oposto da inovação não é menos importante. Por quê? Porque os paradigmas gerados por uma precedente inovação servem de guias para uma experimentação ulterior no campo narrativo.nessa dialética entre inovação e sedimentação, toda uma panóplia de soluções desenvolveu-se entre os dois pólos da repetição servil e do desvio calculado, potencialmente através de todos os graus da deformação regulada.

4. O quarto traço que quero reter para nossa discussão ulterior da teologia narrativa concerne á “significação de uma narração”. Esse tipo de “significação” não está confinada em um suposto interior do texto. Ela advém na interseção entre o mundo do texto e o mundo dos leitores. É sobretudo na recepção do texto pelos leitores que a capacidade da intriga de transfigurar a experiência é atualizada.

Por mundo do texto, entendo o mundo desdobrado diante dele, por assim dizer como o horizonte da experiência possível no qual a obra desloca seus leitores. Por mundo do leitor, entendo o mundo efetivo em que a ação real é desenvolvida no meio de uma “rede de relações”, para empregar uma expressão de Hannah Arendt em The Human Condition [A condição humana]. (pag. 289 e 290)

A DIFICULDADE DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA

Tal é o sentido em que se pode dizer que as narrações bíblicas intensificam a qualidade narrativa da experiência. Mas há fortes razões para exprimir duvidas sobre a continuidade entre as narrativas bíblicas e as narrativas em geral. Mencionarei quatro delas.

Primeiro, essas narrações pertencem á classe das narrativas “sagradas” enquanto opostas ás narrativas “profanas” ([¹¹ S. CRITES, “The Narrative QuLITY Of Experience”, Journal of American Academy of religion 39 (1971) 291-311]). Não é que façam uso de uma linguagem diferente da linguagem de todos os dias: ao contrário, essas narrativas enraízam o discurso teológico na linguagem ordinária. Não é sua linguagem que é sagrada, mas sua função. Portamos do que acabamos de dizer sobre a metanarrativa. Só falta acrescentar alguns traços decisivos de modo a compreender a diferença entre narrativas sagradas e profanas. Primeiro, essas narrativas são tradicionais no sentido em que o fato de terem sido no passado narradas dessa maneira constitui uma razão para contá-las de novo. Segundo, elas fazem autoridade, no sentido em que consistem em seleções e coleções que separam os textos canônicos dos apócrifos. Terceiro, são litúrgicas no sentido em que alcançam sua plena significação quando são reativadas em um contexto cultural. (pag. 293)


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