sábado, 21 de dezembro de 2024

LUC FERRY & MARCEL GAUCHET - DEPOIS DA RELIGIÃO

 




O que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei?

Ed.DIFEL, Rio de Janeiro 2008

Síntese: Pe Paolo Cugini 

Digitação: Carine Almeida Souza


     Assistimos, eles concordam, a um duplo processo, que Marcel Gauchet havia descrito em seu livro Le désenchantement du monde (Gallimard, 1985): de um lado, a “saída da religião” e, do outro, a “individualização do crer”. De fato, o que se apaga, de modo definitivo, é uma visão do mundo inteiramente estruturada pela religião (como heteronomia), uma concepção em que o religioso impregna todos os setores da vida pública e privada. (p. 7)

     Para isso o religioso, como aspiração ao absoluto, como busca de sentido numa interrogação sobre a morte, está muito longe de desaparecer na época contemporânea: ele persiste como uma hiância que mesmo os reducionismos mais radicais não conseguem preencher. Compreende-se dessa forma como, em nossos dias, o enfraquecimento das religiões e a permanência do religioso podem se encontrar no mesmo patamar. (p. 8)

     Como pensar o religioso depois da religião? (p. 8)

     Para Luc Ferry, a época contemporânea caracteriza-se pelo cruzamento de dois processos: por um lado, o que ele chama de “humanização do divino”, ou seja, o fato de que a história cultural moderna consiste na tradução dos conteúdos teóricos e práticos da religião na linguagem do humanismo ou, dito de outra forma, numa linguagem que seja compatível com o indivíduo posto como valor cardinal. Por outro lado, a “divinização do humano”, isto é, o fato de que no âmago desse individualismo autônomo – condição do homem moderno – reemerge a transcendência: uma transcendência não mais virtual (entre os homens e o além), mas horizontal (entre os próprios homens).

     É esse duplo processo que faria do humanismo contemporâneo um humanismo do homem-Deus. No coração desse humanismo, única alternativa a uma interpretação materialista e imanentista da vida humana, o religioso não estaria destinado a se enfraquecer, mas, ao contrário, a encontrar sua forma mais autêntica. Para Luc Ferry, a “verdadeira” religião – isto é, aquela mais conforme à inspiração humana – não estaria atrás de  nós, mas adiante, como um horizonte a ser elaborado.

     Marcel Gauchet, por sua vez, contesta essa alternativa do materialismo e do humanismo do homem-Deus, considerando que uma interpretação radicalmente não religiosa da transcendência é possível. Ele persiste assim na idéia de que vivemos a época de um afastamento e de uma separação entra o homem e Deus que não cessa de se ampliar. É essa separação que teria atingindo atualmente sua amplitude máxima, de tal forma que o humanismo contemporâneo, que deveria ser pensado ou inventado em nossos dias, não seria aquele do homem-Deus, mas, ao contrário, aquele do homem sem Deus e do homem definitiva e irrevogavelmente sem Deus. A figura histórica do sagrado é destinada a enfraquecer em proveito de um “absoluto terrestre”, cujas modalidades e formas ainda necessitam ser identificadas. (p. 8,9 e 10)

     A sabedoria do homem-Deus, longe de deixar lugar ao orgulho e à desmedida (a hybris dos gregos), tentará encontrar no indivíduo finito e mortal os meios de sua justificação, de sua salvação e de sua grandeza. (p. 11)

     O ponto que nos ocupará hoje é muito vasto: ele concerne ao lugar do sagrado na idade laica. Está destinado a desaparecer ou encontra uma nova configuração no horizonte do humanismo? Em que recanto de nossas sociedades de indivíduos as grandes questões sobre o sentido da existência irão doravante se aninhar ou se esconder? Em suma, o que se tornará o religioso depois da “saída da religião”? (p. 16)

Luc Ferry

     Relendo Marcel Gauchet para preparar esse encontro, perguntei-me se os desacordos que notam entre nós são efetivamente reais ou somente fictícios. Hoje seria uma boa ocasião para tentar medi-los. Entre as três dissensões mencionadas por Pierre-Henri Tavoillot, parece-me de fato que a mais importante, se é que existe, é aquela que diz respeito ao uso da palavra sagrado e à legitimidade ou não de falar, como o faço, da “divinização do humano”, ou ainda da relação com o sagrado ou da “espiritualidade laica”. Esse vocabulário seria legítimo em nossos dias? Não é abusivo? Provavelmente é isso que pode suscitar a principal dissensão. (p. 16 e 17)

     Se compreendemos bem que a definição do religioso dada por Marcel Gauchet está ligada à questão da organização política e da produção da lei, compreendemos também que o religioso na história da Europa pertence, com efeito, ao passado. (p. 20)

     O religioso pertence ao passado em um sentido muito mais profundo e muito mais estrutural: não é simplesmente que saímos das ingenuidades religiosas; é o fato de que o religioso, entendido nesse sentido, pertence a formas de organização política tradicionais, nas quais a lei é pensada como a herança de uma tradição que, ela mesma, se enraíza num passado imemorial e finalmente divino. Ora, é essa estrutura da organização social na qual a temporalidade pertence ao passado que está, por excelência, hoje extinta, na medida em que, grosseiramente, a partir da Revolução Francesa – poderíamos mesmo mostrar como isso se enraíza no nascimento do Estado -, temos sociedades organizadas a partir da idéia de auto-instituição, da idéia de que parlamentos e principalmente com a idéia de que a temporalidade dessas sociedades se pensa a partir do futuro. (p. 20 e 21)

     A religião se tornou uma opinião particular entre outras, uma crença pessoal entre outras e que ela não estrutura mais o espaço público e nem é mais matriz a lei. (p. 22)

     Parece, de fato, que a filosofia moderna não pode ser verdadeiramente compreendida senão como uma tentativa de traduzir num vocabulário que é o da razão, portanto nos conceitos por essência laicos, os grandes discursos religiosos, começando, é claro pelo discurso cristão. (p. 35)

     A noção de transcendência não é redutível à de heteronomia ou de dependência radical. Na história da filosofia há, seja dito de passagem, ao menos duas grandes figuras da transcendência, duas grandes definições da transcendência. Em primeiro lugar há a transcendência tal como ela existe a montante da consciência humana, antes e acima dela. É a transcendência da Revelação, a transcendência da heteronomia de que fala Marcel Gauchet, a transcendência à qual o papa convida seus seguidores a voltar, quando diz, no fundo, em Esplendor da verdade: vocês não são obrigados a ser cristãos, mas, se forem cristãos, então admitam que há uma verdade revelada, uma verdade crística e que essa verdade dada pelo próprio Deus possui um certo número de implicações morais – e funda o que o papa chama, aliás corretamente, nessa perspectiva, de “teologia moral”. (p. 27 e 28)

     Mas há também uma outra figura da transcendência que, a meu ver, não é menos transcendente que a primeira – e é sobre ela que deve incidir o debate. Em certo sentido, penso que ela não é menos religiosa: acho mesmo que ela designa precisamente a verdade das religiões. Trata-se de uma segunda forma de transcendência, de uma transcendência que não esteja montante da consciência humana, mas, ao contrário, a jusante das experiências vividas, que não está, portanto, situada estruturalmente no passado, e sim no futuro; uma transcendência que corresponde àquilo que Husserl designava como uma “transcendência na imanência”, isto é, o horizonte inevitável e incontornável de nossas experiências vividas, não só na ordem da verdade (“2 + 2 = 4” é transcendente em relação à menor individualmente ao relativismo ambiente), mas também – e é claro que aqui se trata de uma metáfora – transcendência na ordem da ética, e, por que não, da cultura. (p. 28 e 29)

     A partir do momento em que se estabelecem valores superiores à vida material, biologia, entra-se na esfera do religioso. (p. 33)

     A idéia de transcendência não desapareceu e que não podemos – e este será o sentido de minha conclusão – nos satisfazer simplesmente com as morais laicas. (p. 34)

     Por um lado, parece-me exato que as morais laicas não conseguem se encarregar do conjunto da experiência dos indivíduos atuais. O discurso moral, tal como nossas sociedades o compreendem (isto é, a regulagem da relação com os outros segundo a norma de reciprocidade), não responde a tudo. 

     Também estou de acordo com Luc Ferry, na mesma ordem de idéias, para considerar que as nações de sacrifício e de dever conservam um sentido em nossos dias. Sacrifício e dever, longe de estarem condenados a desaparecer porque teriam somente um conteúdo religioso, continuam a ser perspectivas organizadoras, eixos da experiência humana. (p. 38)

     Qual é o estatuto dessa transcendência que abita nossa experiência? Podemos de direito qualificá-la de religiosa se em pregarmos esse termo com um mínimo de rigor terminológico? Vocês podem adivinhar que tenho as maiores dúvidas a esse respeito. (p. 38 e 39)

      Há as coisas sérias e também há uma roupagem “ideal” que legitima fantasmaticamente uma organização coletiva estabelecida por motivos sólidos. Ora, esse modo de pensar interdita, de maneira absoluta, compreender a especificidade do fenômeno religioso e, ao mesmo tempo, sua onipresença na quase totalidade da história humana. Ele não está somente na cabeça dos atores para esconder-lhes a realidade de seu mundo. Ele organiza seu mundo. O que a religião representa nessas condições? O que ela manifesta? O que significa seu papel estruturante? Por que, para resumir, houve religião esses enigmas tornam-se ainda mais opacos se concordamos que não dá para respondê-los como sendo uma necessidade invariante da consciência coletiva ou da constituição do social. (p. 39 e 40)

     As sociedades funcionaram maciçamente na religião. O que acontece quando uma sociedade se põe a funcionar fora da religião? É isso que está em jogo no “desencantamento do mundo”. (p. 40)

     Assistimos a dois processos simultâneos: a uma saída da religião, compreendida como saída da capacidade do religioso em estruturar a política e a sociedade, e a uma permanência do religioso na ordem da convicção última dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo espectro de variações, segundo as experiências históricas e nacionais. (p. 41 e 42)

     Pouco importa: fervor americano ou debandada na Europa ocidental são fenômenos que não tocam o ponto central, a saída da estruturação religiosa das sociedades. Saída que não impede a manutenção de uma vida religiosa na escala dos indivíduos. De fato, no próprio lugar onde o recuo da religião, inclusive no registro da convicção privada, é o mais avançado, como é o caso da Europa ocidental, ele não implica o desaparecimento puro e simples da preocupação espiritual, sem que busquemos defini-la bem por enquanto. (p. 42)

     A questão em forma de objeção levantada por Luc Ferry é a seguinte: há, como ele crê, uma disposição natural do espírito humano para a metafísica? Eu o admitiria também, tacitamente, colocando-me por isso em contradição comigo mesmo. Admito, de fato, alguma coisa dessa ordem, mas alguma coisa que compreendo diferentemente da Luc Ferry é inteiramente legítima. Na perspectiva de minha análise, eu a retraduzo assim: com o que pôde trabalhar a invenção histórica das religiões? (p. 43)

A disposição religiosa da humanidade

     Em qual disposição da humanidade se funda essa instituição que, de outro ponto de vista, responde a motivos políticos e sociais bem determinados? È a ocasião de dar ao menos algumas indicações quanto à resposta possível. Mesmo que se rejeite a idéia de uma natureza religiosa do homem, ou de uma disposição natural para a metafísica, é preciso que haja algo como um substrato antropológico a partir do qual a experiência humana é suscetível de se instituir e de se definir sob o signo da religião. Nenhuma lógica política dá conta disso com que a religião vai se desdobrar, a saber, o investimento humano sobre o invisível. O que é que, no homem, dá sentido a essa passagem pelo outro? Pois é nisso que consiste o fenômeno cardial: ele reside nessas dimensões de invisibilidade e de alteridade que nos habitam constitutivamente. O homem é um ser que, em todos os casos, é convocado pelo invisível ou requisitado pela alteridade. Esses são os eixos dos quais ele tem originária e irredutivelmente a experiência. O homem não é levado a eles pela necessidade de conhecimento ou de compreensão racional dos fenômenos da natureza, como queria certa explicação esclarecida da religião. Não há aí o efeito de uma busca de causalidade que engajaria o espírito a remontar às causas primeiras para além das causas visíveis. É um “dado” imediato da consciência, se posso dizer assim. O homem fala, e encontra o invisível em suas palavras. Ele experimenta a si mesmo, irredutivelmente, sob o signo do invisível. Ele não pode deixar de pensar que há em si outra coisa além daquilo que ele vê, toca e sente. Ele imagina, e imediatamente seu pensamento se projeta além daquilo que lhe é acessível – e se apresenta ao pensamento. (p. 45 e 46)

     Há uma estrutura antropológica que faz com que o homem possa ser um ser de religião. Ele não o é necessariamente. Ele pôde sê-lo historicamente, durante a maior duração de seu percurso. Pode deixar de sê-lo, mas, nesse caso, esse potencial de religiosidade estará destinado a continuar. O que quer dizer, na prática, que haverá sempre mais ou menos espíritos para se reconhecer no passado religioso da humanidade – e que os espíritos não religiosos encontrarão outros empregos para essas dimensões constituintes. (p. 46 e 47)

      Tendo terminado, ao que parece, a era das religiões constituídas, o que ocorre com esse núcleo antropológico sobre o qual elas fizeram fundo? Uma vez desfeita a organização coletiva segundo a heteronomia, que tinha sido a alma das religiões estabelecidas até há dois séculos, o que pode oferecer essa organização do humano que durante tanto tempo suportou o religioso? Não somente ela subsiste, mas a vemos se destacar cada vez mais claramente por si mesma. (p. 47)

O que é o sagrado?

     Não existe palavra mais propícia ao erro que esta de sagrado. É preciso repetir, contra o abuso metafórico permanente do qual é objeto, que não temos a liberdade de usá-la de qualquer maneira, contando com a aura da qual é carregada para fazer sentido. Trata-se de uma categoria que remete a um enraizamento histórico preciso. Sagrado, no rigor do termo, designa uma experiência fundamental na ordem das religiões, que é a conjunção tangível do visível e do invisível, do aqui embaixo e do além. Para ser inteiramente rigoroso, o sagrado deve ser tratado, no meu entender, como uma noção histórica. Ele nasce com a virada capital da história religiosa da humanidade que marca o surgimento do Estado. (p. 48)

     Há o sagrado quando há um encontro material entre a natureza e a sobrenaturalidade. (p. 49)

     Ora, se há uma categoria que o desencantamento do mundo deixa pouco à vontade, é bem essa. A “desmagificação” do mundo, que reteve prioritariamente a atenção, é inseparável de um processo de dessacralização, do qual se pode seguir historicamente a trajetória com grande precisão. Se há uma grande dimensão do religioso da qual saímos, é essa do sagrado, inclusive para as consciências mais crentes. No máximo subsiste uma memória daquilo que outrora pôde ser o sagrado, assim como das espécies de substitutos que nos enganam. (p. 59)

     Tomando com rigor a noção, não vejo como se possa falar de sagrado no mundo atual, a não ser por uma derivação metafórica mais enganosa que esclarecedora. (p. 50)

     Não estamos presos numa escolha binária entre sagrado e profano. No interior do dito profano há ordens de considerações absolutas e ordens de considerações relativas. A profanação não impede a existência de absolutos sem garantia sacra. (p. 50 e 51)

     Paralelamente, a idéia de Deus de amor, tão importante na tradição cristã, esvazia-se de sentido. É um traço que toca no âmago do propósito de Luc Ferry. O princípio último que se supõe abraçar todas as coisas é certamente fonte de uma benevolência que justifica nossa presença no mundo. Todavia, não tem mais relação com o criador preocupado com a redenção e a salvação de sua criatura. É o aspecto do processo de desantropomorfização que coloca o cristianismo numa situação instável, ambígua, aparentemente, em relação ao estado espontâneo da espiritualidade contemporânea. O Deus filosófico divorcia-se decididamente, aqui, do Deus teológico. Mas o ponto crucial a ser sublinhado é que, no meio dessas transformações, a idéia de Deus conserva um sentido. (p. 54)

A discussão

     Não somente a existência de uma necessidade não implica sua resposta, mas, em geral, a desqualifica. (p. 59)

     Não desejo comparar uma religião com um “verdadeiro Deus” e uma religião estranhamente reduzida ao divino, dado que, nos dois casos, tenho o pressentimento de que “o verdadeiro Deus” falta. Em contrapartida, nos dois casos, é a questão da relação com o absoluto, terrestre ou não, que para mim é central. (p. 60)

     No livro VI de A república, é do divino que fala Platão, e não dos deuses no plural, nem de quem quer que seja que se assemelhe ao seu sindicato... Como testemunha a etimologia da palavra “teoria”, os gregos já têm do divino uma concepção que remete, sob alguns aspectos, ao que entendo por transcendência na imanência: pois o divino, no fundo, é a ordem do mundo enquanto tal, a harmonia cósmica, que é ao mesmo tempo transcendente em relação aos humanos (exterior e superior a eles) e, entretanto, perfeitamente imanente ao real. É o análogo da idéia do divino à qual tentei fazer justiça em O homem-Deus. (p. 62)

     Se admitimos a noção de absoluto, de fato, o que queremos dizer com isso? Queremos dizer, por exemplo, que, partindo das considerações morais mais elementares, nos apercebemos de que há, para certo número de pessoas entre nós e talvez mesmo para todo mundo, certo número de valores, de princípios morais que não são negociáveis? Que esses princípios são tão pouco negociáveis que nós os apercebemos eventualmente como podendo envolver o risco de nossa própria vida (mesmo que, a esse respeito, reconheço sem constrangimento, raramente estejamos à altura)? Em linhas gerais, é essa descrição? Se a resposta for sim – como creio que você concordará -, ela irá trazer-lhe muitos problemas para os quais não bastará, temo, limitar-se à esquivança... (p. 63)

     A questão dos filósofos é, apesar disso, essencial naquilo que nos interessa particularmente: o que é Deus? Como não sei rigorosamente nada, falo do divino, isto é, desse sentimento de absoluto com faces múltiplas que descubro no contato com valores dos quais devo lhes dizer e redizer que não os inventei nem fabriquei, seja na ordem da verdade, da moral, da cultura ou do amor. Teologia negativa, se quiserem, de valores encarnados cuja origem me escapa, mas cujas explicações, materialistas não me parecem, na mesma medida, satisfatórias, dado que são mais teológicas ainda! (p. 67)

     Creio que não é por concessão à atmosfera da época, nem por fidelidade a uma sobrevivência tradicional que Kant reintroduz o religioso na última parte da crítica da razão prática, mas porque ele é levado por uma convicção que me parece às vezes muito interessante: aquela segundo a qual não é porque o religioso perdeu seu lugar de fundação da lei a montante que ele não é “convocado” a jusante pela lei. (p. 69)

     Por que falar de sagrado? Nisso concordo com Gauchet sobre a necessidade de uma definição rigorosa. Porque esse absoluto terrestre de que falávamos – e que percebemos por meio da experiência da verdade (isso porque a noção de transcendência na imanência é múltipla) -, essa noção de absoluto terrestre remete a uma transcendência, a partir do momento em que não se a considere com puramente ilusória. (p. 71)

     Cito em todos os meus livros a pequena passagem do discurso sobre a desigualdade, de Rousseau, sobre a diferença entre o homem e o animal. Sou obrigado a lembrá-lo toda vez, pois, a meu ver, essa própria diferença é o divino no homem. Por que digo o divino no homem? Porque se admitirmos a idéia de que o ser humano tem a faculdade de se livrar ou de se emancipar de todos os códigos, se admitirmos que a natureza não é nosso código e que a história também não o é (mesmo que, isso é óbvio, elas o sejam também muito amplamente, mas inteiramente), se admitirmos então que há uma sobrenaturalidade  e uma transistoricidade no ser humano, então talvez nos encontremos diante da origem última do divino. É por isso que algo como a idéia de um absoluto terrestre pode nos aparecer: quando falo do divino no homem, é a isso que viso. (p.73)

     A humanidade, do ponto de vista de seus valores últimos, vive em relatividade continuidade consigo mesma. As implementações civilizatórias são muito diversas, e a dispersão dos costumes, além das divergências das valorizações secundárias, chocaram legitimamente os observadores. Mas, olhando o núcleo duro, a unidade do percurso é realmente notável. Isso se aplica mesmo ao mundo moderno. É preciso ser tão atento à descontinuidade prática que ele representa, quanto é preciso saber discernir a continuidade que o une aos mundos antigos, no que concerne às experiências constitutivas. Não saímos dos círculo da unidade da espécie humana, e é pior aí, diga-se de passagem, que podemos encontrar uma saída para a falsa querela da “universalidade dos direitos humanos”. Eles efetivamente foram explicitados num dado momento histórico e numa dada sociedade, produzindo expressões sociais e políticas em ruptura com as sociedades tradicionais; para dizer rapidamente, inclusive a sociedade cristã tradicional. Isso não os impede de possuir um enraizamento muito vasto e muito mais antigo. (p. 79)

      Sou levado a crer que, devido a essa disposição, encontraremos a religião em comunidades humanas, em todas as épocas, em continuidade com as religiões do passado. Sua presença poderá ser bastante minoritária, mas nem por isso será menos significativa. Todavia, esse carne antropológico parece-me destinados sobretudo a encontrar outras expressões. O motivo está amplamente iniciado. Tudo aquilo que passava pela religião está destinado a se recompor fora da religião. (p. 80)

     A experiência estética, e de modo mais amplo a experiência imaginária, a experiência do conhecimento, a experiência psicológica  de si e, eu adicionaria hoje, a experiência ética, que me havia escapado na época, todas elas se redefinem, se aprofundam e crescem em importância a partir desse ponto central que antigamente era oferecido pelo religioso. São, na mesma medida, experiências do outro, di invisível e do um que, de sagradas e místicas que eram, se tornaram inteiramente profanas. Elas funcionam nos antípodas de suas antigas expressões, com os mesmos dados antropológicos de base. Não é que o religioso desapareça – por conseguinte, é que aquilo que se manifestava como religioso se metamorfoseia em outra coisa, razão pela qual a humanidade não sofre de nenhum déficit com o recuo das crenças estabelecidas. Continuamos a participar disso que estava no âmago da experiência religiosa,mas fazemos disso um outro emprego. É o que nos torna capazes de compreender o passado religioso, apesar de lhe darmos as costas e de nos subtrairmos, na prática, de sua órbita. (p. 80 e 81)

     O verdadeiro religioso está no pensamento desse absoluto terrestre. Há uma outra razão pela qual não desejo abandonar o vocabulário religioso, histórico e quase mitológico: é que freqüentemente os textos religiosos são, por seu conteúdo, mais ricos e mais interessantes que os textos filosóficos. (p. 85)

Questões de método

     Luc Ferry nos dizia que a história da filosofia moderna ser vista como um processo de laicização da religião cristã, de secularização de valores cristãos. A tese exige que se introduza ao menos uma nuança que muda muitas coisas. Seria mais exato considerar essas filosofias modernas como heresias cristãs. Um livro como aquele do padre de Lubac sobre a posteridade espiritual de Joaquim de Fiore já traz muitos elementos a esse respeito. Toda a apreciação do desdobramento das filosofias modernas se encontram transformadas. É uma história à margem do mainstream da história do cristianismo que se encontra iniciada. A idéia de uma laicização ou de uma secularização em bloco encontra-se ao menos relativizada. (p. 90)

     Nossa constituição não pode se conceber inteiramente como uma auto-constituição. É essa dimensão que as sociedades religiosas privilegiaram, até fazer dela o ponto capital de um sistema completo de sentidos, que coloca a condição humana na dependência total de uma doação extrínseca. Simetricamente, é a dimensão que a sociedade saída da religião tende a esquecer, em proveito da auto-instituição da humanidade na história – auto-instituição que não explica o que torna o homem capaz da história. É também a dimensão que precisamos começar a estabelecer criticamente contra as diversas ingenuidades reducionistas. Até onde podemos ir na inteligência desse dado antropogênico, desse feixe de condições primordiais que nos dão humanidade? (p. 99 e 100).

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