sábado, 29 de junho de 2024

Simone Weil, A condição operária e outros estudos sobre a opressão

 

 


         

Síntese Pe. Paolo Cugini

                                                 

 

                                     Carta a Albertine Thévenon  (1934-1935)

 

       Veio o que era a última coisa do mundo que eu esperava de mim; a docilidade. Uma docilidade de besta de carga resignada. Parecia que eu tinha nascido para esperar, para receber, para executar ordens que nunca tinha feito senão isso -,          que nunca mais faria outra coisa. Não tenho orgulho em confessar isso. É a espécie de sofrimento que nenhum operário fala; dói demais, só de pensar. Quando a doença me obrigou a parar, tomei consciência com clareza do baixo nível que tinha descido, prometi a mim mesma suportar essa existência até o dia em que conseguisse reassumir, apesar dela. Tenho mantido minha palavra. Lentamente, no sofrimento, reconquistei, através da escravidão, o sentimento da minha dignidade de ser humano, um sentimento que, desta vez, não se apoiava em nada exterior, e sempre acompanhado da consciência de não ter nenhum direito a nada, de que cada momento livre de sofrimento e de humilhações devia ser recebido com uma graça, como s simples efeito de acasos favoráveis.

        Dois fatores condicionam esta escravidão: a rapidez e as ordens. A rapidez: para alcançá-la, é preciso repetir movimento atrás de movimento, numa cadência que, por ser mais rápida do que o pensamento, impede o livre curso da reflexão e até do devaneio. Chegando-se à frente da máquina, é preciso matar a alma, oito horas por dia, pensamentos, sentimentos, tudo. Quer se esteja irritado, triste ou desgostoso, é preciso engolir, recalcar tudo no íntimo, irritação, tristeza ou desgosto: diminuíram a decadência.

(p.79 e 80)

 

                                             Carta a uma aluna - 1934

 

O trágico dessa situação é que o trabalho é maquinal demais para fornecer assunto ao pensamento, e, alem disso, impede qualquer outro pensamento. Pensar é ir menos depressa; ora, há normas de rapidez estabelecidas por burocratas sem piedade e que é preciso cumprir para não ser despedido e, ao mesmo tempo, para se ganhar o suficiente (o salário é por peças)

   Aqui não é como na universidade onde se é pago para pensar, ou pelo menos para fingir, aqui, a tendência seria, de preferência, a de pagar para não pensar; então, quando se percebe um clarão de inteligência, tem-se a certeza de que ele não te engana. Alem disso, as maquinas por si mesmas, me atraem e me interessam imensamente. Devo acrescentar que estou na fábrica principalmente pra me informar a respeito de um certo número de questões muito especificas que me preocupam e que não lhe pormenorizar.    

(p.84 e 85)

Quanto ao amor, não tenho conselhos a lhe dar, mas, pelo menos, advertências. O amor é algo de grave onde frequentemente corremos de um engajamento parta sempre, tanto da própria vida quando da vida de um outro ser humano. Podemos dizer que este risco sempre existe, a menos que um dos dois faça do outro o seu brinquedo; só que neste caso que é muito freqüente – o amor passa a ser algo de odioso. Veja: o essencial do amor consiste em que um ser humano tem uma necessidade vital de um outro ser humano – necessidade recíproca ou não, depende do caso. A partir de então, o problema e conciliar semelhante necessidade com a liberdade, e desde tempos imemoriais, os homens debatem esse problema. Por isso, a idéia de procurar o amor para ver que é,  para animar a vida um pouco uma vida por demais triste, etc., me parece perigosa e, principalmente, pueril. Posso dizer-lhe que na sua idade, e mais tarde também, quando tive a tentação de procurar conhecer o amor, afastei-a; eu me dizia que era melhor não arriscar o engajamento de todo minha vida numa direção impossível de prever antes de ter atingido uma grau de maturidade que permitisse saber ao certo o que é que eu quero da vida de uma forma geral, o que é que eu espero dela. Não isso como um exemplo; cada vida segue dentro de suas próprias leis. Mas você pode extrair algo para pensar. Acrescento que o amor me parece comportar um risco ainda mais assustador ainda do que o de engajar cegamente a nossa própria existência; é o risco de nós tornarmos o árbitro de uma outra existência humana, quando é profundamente amado. Minha conclusão  (que só lhe dou como uma indicação) não é a que se deva fugir do amor mas que não o devemos procurar, e principalmente quando somos muito jovens. É muito melhor, eu nesse caso não o encontrar, acredito eu.  (p.86)

    O esgotamento acaba por me fazer esquecer os verdadeiros motivos de minha estada na fabrica, torna-se invencível para mim a tentação mais forte que essa vida conclui: a de não pensar mais, o único meio de não sofrer com ela. Só no sábado de tarde e no domingo é que minhas lembranças voltam – farrapos de idéias! -, que me lembro de que sou também um ser pensante. Por favor, que me domina quando constato a dependência em que me acho das circunstâncias exteriores: bastaria que elas me obrigassem um dia a um trabalho sem repouso semanal – o que, afinal de contas, sempre é possível – e eu me transformaria numa besta de carga, dócil e resignada (pelo menos para mim). Só o sentimento de fraternidade, a indignação pelas injustiças infligidas a outros permanecem intactos – mas até que ponto tudo isso vai resistir ao correr do tempo? Não estou longe de concluir que a salvação da alma de um operário depende, em primeiro lugar, da sua constituição física. Não vejo como os que não são fortes podem evitar cair em alguma forma de desespero – embriaguez ou vagabundagem ou crime, ou corrupção, ou, simplesmente e bem mais freqüente, embrutecimento (e a religião?).

       Impossível a revolta, a não ser lampejos (quer dizer mesmo em termos sentimentais). Em primeiro lugar, contra o quê? A gente está sozinha, com o seu trabalho, não poderia revoltar-se senão contra ele; ora, trabalhar com essa irritação seria trabalhar mal, e daí morrer de fome. Exemplo, a operária tuberculosa despedida por ter matado em encomenda. Aqui somos como cavalos que se ferem a si próprios quando puxam os freios – e o jeito é curvar-se. Chega-se até a perder consciência dessa situação, a gente a suporta, é tudo. Qualquer despertar do pensamento torna-se, então doloroso.   (p.97)

 

                               Pela segunda vez à procura de emprego 

 

      Saindo do dentista (terça de manhã, eu acho, ou antes, quinta de manhã) e subindo no ônibus, reação estranha. Como que eu, a escrava, posso entrar nesse ônibus, usá-lo graças a meus 12 centavos como qualquer um? Que extraordinário! Se me obrigassem brutalmente a descer dele dizem que meio de locomoção tão cômodos não são para mim, que eu só devo andar a pé, acho que até me parecia natural. A escravidão me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos. Parece-me um favor ter momentos em que não preciso agüentar a brutalidade humana. Esses momentos são como sorrisos do céu, dom do acaso. Esperemos que eu conserve esse estado de alma, tão razoável.

      Ao que parece, meus colegas não tem esse estado de alma no mesmo grau; não compreendem plenamente que são escravos. As palavras justo injusto  sem duvida conservam, até certo ponto, um sentido para eles, nessa situação, em que tudo é injustiça.      (p.105 e 106)

        Ganhei nesta experiência? O sentimento de que não tenho nenhum direito, seja qual for (cuidado para não perdê-lo). A capacidade de me bastar moralmente a mim mesma, de viver nesse estado de humilhação latente e perpétuo, sem me sentir humilhada a meus próprios olhos; de provar intensamente cada instante de liberdade ou camaradagem, como se devesse ser eterna. Um contato direto com a vida..



       Estive a ponto de ser dobrada. Quase o fui – minha coragem, o sentimento da minha dignidade ficaram praticamente abatidos durante um período cuja lembrança me humilharia, se não fosse o fato de que praticamente quase não me lembro dele. Me levantava com angustia, ia para a fabrica com medo, trabalhava com uma escrava, a pausa do meio-dia era uma aflição; voltava às 5h:45, preocupada em dormir logo e o bastante ( o que não acontecia) e em levantar-me bem cedo. O tempo era um peso intolerável. O receio – o medo – do que se ia seguir, não parava de me apertar o coração até chegar o sábado de tarde e o domingo de manhã. E o motivo do medo eram as ordens.

     O sentimento de dignidade pessoal tal qual o fabricou a sociedade está desfeito. É preciso forjar um  outro  (embora o esgotamento extinga a consciência da própria faculdade  de pensar!) – Esforçar-me por conservar esse outro.

     A gente, afinal, acaba por notar a própria importância.

     A classe dos que não contam - em nenhum  situação – aos olhos de ninguém... e que não contaram nunca o que acontecer, apesar do ultimo verso da 1º estrofe da “ Internacional”.*

     O fato capital não é o sofrimento, mas a humilhação.

     Nisso, talvez, é que Hitler baseia sua força (ao passo que o estúpido “materialismo”...)

    (Se o sentimentalismo desse um sentimento de responsabilidade à vida cotidiana...)

    Nunca esquecer esta observação: sempre encontrei, entre esses seres frustrados, generosidade de coração e aptidão para as idéias em proporção direta.

    Uma opressão evidentemente inexorável e invencível não gera, como reação imediata, a revolta, mas a submissão.

    Em Alsthom só aos domingos me revolta...

    Na Renault tinha chega a uma atitude mais estóica. Substituir a submissão pela aceitação.    (p.107 e 108)

 

FRAGMENTOS*   

     Em que consiste a dificuldade do exercício do entendimento?  Em que se pode verdadeiramente refletir sobre o particular, ao passo que o objeto de reflexão é, por essência, universal. Ignora-se como os gregos resolveram essa dificuldade. Os modernos resolveram-na por signos que representam o que é comum a muitas coisas; ora, essa solução não é boa. A minha é...

    (Descartes teria visto a defasagem formidável, entre as Regular e a Geometria, sem a falta imperdoável de ter redigido esta ultima como um matemático vulgar)

     Das duas maneiras de compreender uma demonstração...

     Em toda operação matemática, há duas coisas a distinguir.

   

       1.º Sendo dados signos, com leis convencionais, o que pode saber de suas relações      

       mútuas? Seria necessário chegar a uma concepção bastante clara das combinações

       de signos para formar uma teoria universal de todas as combinações de signos

       tomadas  como tais (teoria de grupos?).

 

 

 

       2.º Relação entre as combinações de signos e os problemas reais que a natureza

       coloca  (essa relação consistiria sempre em uma analogia).

     

      No que concerne às combinações de signos tomadas como tais, seria necessário um catalogo completo das dificuldades – levando-se em consideração aquelas que se referem ao tempo e ao espaço.

      Quanto à aplicação, um estudo perspicaz deixaria, sem duvida, que ela repousa não sobre a propriedade de representar as coisas que seriam contidas nos signos (qualidade de oculta), mas sobre uma analogia de operações

      Seria possível fazer uma lista das aplicações da matemática.

      Não existe concepção geral da ciência...

      Movimento ascendente de descendente perpétuo das coisas em direção aos símbolos (aos símbolos cada vez mais abstratos) e dos símbolos em direção às coisas. Ex.: geometria e teoria dos grupos (invariantes...) (contínuo-descontínuo...).

     Fazer uma lista das dificuldades que os trabalhos comportam? Difícil.

     E uma série de trabalho? A mecânica tendo o maior número de relações com a matemática.

      Também série de signos no esforço perpétuo daqueles que os criam para tornar suas combinações cada vez mais analógicas às condições reais do trabalho humano.

      Senhor e servo. Hoje, servidores absolutamente servidores, sem a reviravolta hegeliana.

      É por causa do domínio das forças da natureza...

      Em todas as outras formas de escravidão, a escravidão está na circunstâncias. Aí somente ele está transportada para o próprio trabalho.

      Efeitos da escravidão sobre a alma.

      O que conta em uma vida humana, não são acontecimentos que nela dominam o curso dos anos – ou mesmo o dos meses – ou mesmo os dois dias. É maneira pela qual se encadeia  um minuto ao seguinte, e o que custa a cada um, em seu corpo, em seu coração, em sua alma – para efetuar minuto por minuto esse encadeamento.

     Se eu escrevesse um romance, faria uma coisa de inteiramente novo.

     Conrad: tamanha união entre o velho marinheiro (chefe, evidentemente...) e o seu barco, que cada ordem deve vir por inspiração, sem hesitação nem incerteza. O que supõe um regime da atenção muito diferente tanto da reflexão quanto do trabalho servil.   

     Questões:

      1.º Há, às vezes, uma semelhante união entre um operário e sua máquina ?   

      (Difícil de saber)

 

       2.º Quais são as condições de uma união como esta –

           a) Na estrutura da maquina,

           b) Na cultura do operário,

           c) Na natureza dos trabalhos?

      Essa união é, evidentemente, a condição de uma felicidade plena. Só ela faz do trabalho um equivalente da arte.   (p.112, 113 e 114)

 


                                   A vida e a greve dos metalúrgicos

 

    O cansaço. o cansaço deprimente, amargo, por vezes doloroso a tal ponto que se deseja a morte. Todo mundo, em todas as situações, sabe o que é estar cansado, mas este cansaço precisaria de um nome à parte. Homens vigorosos, na força da idade, adormecem de cansaço no banco do metrô. Não depois de um dia de trabalho “quente”, mas depois de um dia de trabalho normal. Um dia como virá outro no dia seguinte, e outro, sempre. Descendo a rampa do metrô, ao sair da fabrica vem uma angustia assaltar o pensamento: será que vou encontrar um lugar sentado? Seria muito duro ter de ficar de pé. Mas é comum viajar de pé. Cuidado então que o excesso de cansaço o impeça a dormir! Aí seria preciso forçar ainda um pouco mais no dia seguinte.    (p.123 e 124) 

     O medo. São raros os momentos do dia em que o coração não está um pouco comprimido por alguma angustia. De manhã, a angustia do dia a se viver. Nos ramais no metrô que levam para Billancourt, entre 6 e 6h:30 da manhã, a maioria dos rostos vão contraídos por essa angustia. Quem saiu em cima da hora tem medo do relógio de ponto. No trabalho, o medo de não estar na velocidade boa, para os que tem dificuldade de atingi-la. O medo de “ matar”  peças forçando a cadência, porque a velocidade produz uma espécie de embriaguez que anula a atenção. O medo de todos os pequenos acidentes que podem ser causas de peças estragadas ou de ferramenta quebrada. De uma forma geral, o medo das broncas. Muitos sofrimentos são aceitos só para enviar uma bronca. A menor delas é uma humilhação dura, porque não se ousa responder. E quantas coisas podem provocar uma bronca! A máquina foi mal regulada pelo regulador; uma ferramenta é de aço ruim; impossível colocar bem as peças: vem a bronca. Vai-se procurar o chefe pela seção para ter serviço, o que consegue é ser barrado. Se o tivesse esperado na gaiola, seria também uma bronca.      (p.124)   

 

        A sujeição. Nunca fazer nada, por menos que seja, que se constitua uma iniciativa. Cada gesto é, simplesmente, execução de uma ordem. Pelo menos para os operadores da máquina. Numa máquina para série de peças, cinco ou seis movimentos simples são indicados, e basta apenas repeti-los a toda velocidade. Até quando? Até que se receba ordem para fazer outra coisa. Quanto tempo durará essa série de peças? Até que o contramestre dê outra série. Quanto tempo ficarei nessa máquina?  Até que o encarregado dê ordem de ir para outra. A gente é uma coisa entregue à vontade de outro. Como não é natural para um homem transforma-se em coisa, e como não há coação visível (chicote, cadeias), é preciso dobrar-se a si próprio em direção a esta positividade. Que vontade de poder largar a alma no cartão de entrada é só retomá-la à saída! Mas não é possível. A alma vai com a gente para oficina. É preciso tempo todo fazê-lo calar-se. Na saída, muitas vezes não a temos mais, porque estamos cansados em excesso. Ou, se a temos ainda, que sofrimento, quando chega a noite, reparar no que fomos durante 8 horas nesse dia, e que no dia seguinte serão ainda 8 horas, e também no dia seguinte do dia seguinte...  

      Que mais? A extraordinária importância que adquirem a benevolência ou a hostilidade dos superiores imediatos, reguladores, chefes de seção, mestres, os que dão, dentro dos seus critérios, o bom ou o mau serviço, que podem a seu bel-prazer ajudar ou repreender nos golpes de azar. A contínua necessidade de não desagradar.   (p.124 e 125)  

      E as reivindicações, o que se pensar delas?  É preciso reparar primeiro um fato bem compreensível, mas muito grave. Os operários fazem a greve, mais deixam os militantes a cuidado de estudar o pormenor das reivindicações. A ruga da passividade contraída cotidianamente durante anos e anos não se perde em alguns dias, nem mesmo em alguns dias tão lindos. E depois, não é no momento em que, por alguns dias, nos evadimos da escravidão, que podemos encontrar dentro de nós a coragem de estudar as condições da opressão sobre a qual estivemos curvados dia a dia, e sob a qual ainda nos vamos curvar. Não é possível pensar nisso o tempo todo. Há limites para as forças humanas. Contentamo-nos em gozar, plenamente, sem segundas intenções, o sentimento de que enfim contamos para alguma coisa; que vamos sofrer menos que vamos ter férias pagas - disso se fala com os olhos brilhando, é uma reivindicação  que ninguém vai mais tirar o coração da classe -, que vamos ter melhores salários e alguma coisa pra dizer n fábrica, e que tudo isso não vai ser simplesmente conseguido, mas imposto. Por uma vez deixamo-nos nos embalar por esses doces pensamentos e ninguém entra em detalhes! 

        Ora, este movimento levanta graves problemas. O problema central, a meu ver, é a relação entre a reivindicações morais. É preciso encarar as coisas de frente. Os salários exigidos ultrapassam as possibilidades das empresas  dentro do regime atual? Se sim, o que pensar? Não se trata somente da metalúrgica, já que com razão o movimento reivindicatório se estendeu a outras categorias. Então? Vamos assistir a uma nacionalização progressiva da economia sob o embalo das reivindicações operarias, a uma evolução rumo a economia do Estado e ao poder totalitário? Ou a um agravamento do desemprego? Ou a um recuo dos operários obrigados a baixar a cabeça mais uma vez sob a pressão das necessidades econômicas? Em cada um desses casos, este belo movimento teria um triste fim.    (p. 129 e 130)   

 

                                      A racionalização*

                                          23 de fevereiro de 1937

 

         O operário não sofre somente na insuficiência do pagamento. Ele sofre porque na atual sociedade está relegado a um nível inferior, porque está reduzido a uma espécie de servidão. A insuficiência dos salários é apenas uma conseqüência dessa inferioridade e dessa servidão. A classe operaria sofre por está sujeita à vontade arbitrária dos quadros dirigente da sociedade, que lhe impõem, fora da fábrica, seu padrão da existência e, dentro da fábrica, suas condições de trabalho. Os sofrimentos suportados na fábrica por causa da arbitrariedade patronal pesam tanto na vida dum operário quanto as privações suportadas fora da fábrica por causa da insuficiência dos salários.

        Os direitos que os trabalhadores podem conquistar no local de trabalho não dependem diretamente da propriedade ou do lucro, mas das relações entre o operário a máquina, entre o operário e os chefes, e do poder maior ao menor da direção. Os operários podem obrigar a direção de uma fábrica a reconhecer-lhes direitos, sem privar os proprietários da fábrica  nem de seu titulo de propriedade nem de seus lucros; e, reciprocamente, eles podem ser totalmente privados  de seus direitos numa fábrica que seja uma propriedade coletiva. As aspirações dos operários a terem direitos na fábrica fazem com que se choquem não com o proprietário mas com o gerente. Ás vezes é o mesmo homem, mas pouco importa.

        Portanto, há duas questões a distinguir a exploração da classe operaria que se define pelo lucro capitalista, e as opressões da classe operária no local de trabalho, que se traduz em sofrimentos prolongados, conforme o caso, quarenta e oito horas ou quarenta horas por semana, mas que podem ir ainda alem da fábrica ocupando as vinte quatro horas do dia.     (p.137 e 138)     

        Se amanhã os patrões forem expulsos, se as fabricas forem coletivizadas, nada vai mudar quanto a esse problema fundamental: o que é preciso para extrair o maior numero possível de produtos, não é necessariamente o que pode satisfazer aos homens que trabalham da fábrica      (p.139)

        Conciliar as exigências da fabricação com as aspirações dos homens que fabricam é um problema que os capitalistas resolvem facilmente suprimindo um dos termos: eles resolvem como se esses homens não existissem. Em contrapartida, determinados conceitos anarquistas suprimem o outro termo; as necessidades da fabricação. Mas como é possível esquecê-los no papel e não eliminá-los de fato, não há solução. A solução ideal seria uma organização do trabalho tal que cada fim de tarde saíssem ao mesmo tempo o maior numero possível de produtos bem feitos e de trabalhadores felizes. Se, por um acaso providencial, pudéssemos encontrar esse método de trabalho, suficientemente perfeito para tornar o trabalho alegre, não haveria mais problema. Mas esse método não existe, e o que acontece é exatamente o contrário. E se tal solução não é praticamente realizável, é justamente porque as necessidades da produção e as necessidades dos produtores não coincidem forçosamente. Seria bom demais se os processos de trabalho mais produtivos fossem ao mesmo tempo os mais agradáveis. Mas, pelo menos, podemos aproximarmo-nos dessa solução procurando métodos que coincidem ao máximo os interesses da empresa e os direitos dos trabalhadores.     (p. 139)   

 

                              Experiência da vida de fábrica

                                            Marselha, 1941-1942         

 

          No decorrer dos últimos anos sentiu-se bem que, de fato, os operários da fábrica estão de alguma forma desenraizadas, exilados em sua própria terra. Mas não se sabe por quê. Passear pelos subúrbios, entrever quartos frios e sombrios, as casas, as ruas, isso não ajuda muito a compreender a vida que aí se leva. A infelicidade do operário da fábrica é ainda mais misteriosa. Os próprios operários dificilmente podem escrever, falar, até mesmo refletir a esse respeito, pois a primeira conseqüência da infelicidade é que o próprio pensamento se quer evadir, não quer considerar a desgraça que o fere. Por isso, quando os operários falam do seu próprio destino quase sempre repetem palavras de propaganda feitas por gente que não é operário. A dificuldade é, pelo  menos, igualmente grande para um antigo  operário: é fácil para ele falar de sua primeira condição, mas muito difícil pensar realmente nisso, porque nada é coberto mais depressa pelo esquecimento do que a infelicidade passada.      (p. 156)       

           As grandes e pequenas misérias continuamente impostas na fábrica a um organismo humano, ou, como dia Jules Romains, “ este sentimentos de miúdas infelicidades físicas que a tarefa não exige e com as quais nem de longe de beneficia”, não contribuem menos para torna sensível a servidão. Não os sofrimentos ligados às necessidades dos trabalhos; esses trazem até um certo orgulho de serem suportados; mas os que são inúteis. Ferem a alma porque geralmente ninguém pensa em queixar-se; sabe-se que nem se pensa se quer nisso. Já se tem a certeza antecipada de que viria uma bronca que deveria ser engolida sem abrir a boca. Falar seria arranjar uma humilhação. Muitas vezes, se é algo que um operário não consiga suportar, vai preferir calar-se e pedir a conta. Tais sofrimentos frequentemente são, em si mesmos, muito leves; se eles se tornam amargos, é que todas as vezes que são sentidos – e são sentidos incessantemente -, o fato de que seria tanto esquecer, o fato de que não se está em casa na fábrica, o fato de que não sem nela o direito de cidadania, e o de que cada um é um estranho admitido como simples intermediário entre as máquinas e as peças fabricadas, tudo isto atinge o corpo e a alma; sob este golpe, a carne e o pensamento se retraem. Como se alguém repetisse ao ouvido minuto a minuto, sem que possa responder nada: “Você não é nada aqui. Você está aí para curvar-se, suportar tudo e calar-se”. Semelhante repetição é quase irresistível. Chega-se a admitir, no âmago de si mesmo, que não se é nada. Todos os operários de fábrica, ou quase todos, e até os de aspecto mais independente, tem algo mais imperceptível nos movimentos, no olhar, principalmente na obra dos lábios, que exprime que foram obrigados a se terem por nada.    (p.157 e 158)   

           A monotonia de uma jornada na fábrica, mesmo se nenhuma mudança de trabalho vem quebrá-la, está entremeada de mil pequenos incidentes que povoam cada dia e fazem dele uma nova história; mas, como acontece com a mudança de trabalho, esse incidentes ferem mais do que reconfortam. Correspondem se a uma diminuição de salário, no caso de trabalho por peças, de forma que não são nada desejáveis. Mas, muitas vezes também ferem por si mesmo. A angústia esparsa, difusa, sobre todos os momentos do trabalho, se encontra neles, a angústia de não se ir bastante depressa, e, como muitas vezes é o caso, quando se precisa de outrem para poder continuar, de um contramestre, de um almoxarife, de um regulador, o sentimento da dependência, da impotência, e de contar como nada ao olhos de quem se depende, pode tornar-se doloroso a ponto de arrancar lágrimas tanto de homem como de mulheres. A contínua possibilidade de tais incidentes máquina parada, caixa desaparecida e assim por diante, em vez de diminuir o peso da monotonia, tirar-lhe o remédio que ela geralmente traz em si mesma, o poder e entorpecer e embalar os pensamentos de forma que anule, em certa medida, o ser sensível, uma leve angustia impede esse efeito de entorpecimento e força a tornar consciência da monotonia, embora seja intolerável ter consciência disso. Nada pior do que a mistura da monotonia e do acaso: eles se agravam mutuamente, pelo menos quando o acaso é angustiante. É angustiante na fábrica pelo fato de não se reconhecido; teoricamente, embora todo mundo saiba q não é assim, as caixas para pôr as peças fabricadas nunca faltam, os reguladores nunca fazem esperar, e qualquer atraso da produção é um erro do operário. O pensamento deve constantemente pronto ao mesmo tempo para seguir o curso monótono de gestos indefinidamente repetidos e para encontrar em sim próprio recursos para remediar o imprevisto. Obrigação contraditória, impossível exaustiva. O corpo está às vezes esgotado, de noite, à saída da fábrica, mas o pensamento está sempre esgotado, mais ainda do que o corpo. Que passou por este esgotamento e não o esqueceu, pode reconhecê-lo nos olhos de quase todos os operários que desfilam à saída da fábrica. Que bom seria poder depositar a alma, à entrada, no cartão de ponto e retomá-la intacta à saída! Mas é o contrário que se dá. Ela vai com a gente para a fábrica, onde sofre: de noite esse esgotamento como que a anulou, e as horas de lazer são inúteis.    (p.160 e 161)               

           Os rostos contraídos pela angústia  do dia que se vai atravessar e os olhos dolorosos no metrô de manhã; o cansaço profundo, essencial, o cansaço da alma mais ainda do que o corpo, que marca as atitudes, os olhares e a ruga dos lábios, à noite, à saída, os olhares e atitudes de animal na jaula, quando uma fábrica, depois do fechamento anual de dez dias, acaba a reabrir um novo ano interminável; a brutalidade difusa que se encontra quase em toda parte; a importância que quase todos dão a detalhes presentes em si, mas dolorosos por seu significado simbólico, como a obrigação de apresentar um cartão de identidade ao entrar; as gabolices lamentáveis trocadas entre os rebanhos apinhado diante das portas das agências de emprego, e que, por oposição, evocam tantas humilhações reais; as palavras incrivelmente dolorosas que escapam às vezes, como por inadvertência, da boca dos homens e mulheres iguais a todos os outros; o ódio e o desgosto pela fábrica, pelo lugar de trabalho, que tantas vezes transparecem nas palavras e nos atos, ensombreando a camaradagem  e lançando operários e operárias, assim que saem, na pressa de cada qual para sua casa quase trocar palavras; a alegria, durante a ocupação, de se possuir em pensamento a fábrica, percorrendo-lhe as seções, o orgulho novo de mostrá-la aos familiares explicando-lhes onde está seu trabalho, alegria e orgulho fugazes que exprimiam, por oposição, de uma forma tão pungente, as permanentes dores do pensamento pregado no lugar; todos os movimentos das classes operárias, tão misteriosos para os espectadores, são, na realidade, tão fáceis de compreender, como não confiar em todos esses sinais, quando, ao mesmo tempo em que vemos em torno de nós, sentimos em nós mesmos todos os sentimentos correspondentes?       

           A fábrica deveria ser um lugar de alegria, um lugar onde, mesmo que fosse inevitável que o corpo a alma sofressem, também a alma pudesse, no entanto, gozar de alegrias, alimentar-se de alegria. Para isso seria preciso mudar, de um lado, pouca coisa, do outro lado, muitas. Todos os sentimentos de forma ou de transformação social prestam-se a erros; se  realizassem, deixariam o mal intacto; eles visam a mudar um excesso e muito pouco: muito pouco, o que é a causa do mal; em excesso as circunstâncias que lhe são estranhas.      (p.167-168)                           

           Um dos mais poderosos, em todo trabalho, é o sentimento de que há algo a fazer, e de que um esforço pode ser cumprido. Este estímulo, numa fábrica, e principalmente para o operador de máquinas, é o que, muitas vezes, falta completamente. Quando o operário coloca mil vezes numa peça em contato com a ferramenta de uma máquina, acaba por achar-se, e, a isso somando-se o cansaço, na situação de uma criança, a quem se mandou enfiar continhas para que ficasse quieta; a criança obedece porque tem medo do castigo e espera um bombom, mas seu ato não tem sentido para ela, a não ser a conformidade com a ordem dada pela pessoa que tem poder sobre ela. Se o operário soubesse claramente,dia a dia, momento a momento, que parte está construindo, nesse conjunto da fábrica, e que lugar ocupa na sociedade a fábrica em que trabalha, seria outra coisa.     (p.169)                          

           Uma uniformidade que imita os movimentos dos relógios não os das constelações, uma variedade que exclui toda regra e toda precisão, produz um tempo que para o homem é inabitável e irrespirável.      (p.173)     

           Só a transformação das máquinas pode impedir que o tempo dos operários se assemelhe ao dos relógios; mas não basta; é preciso que o futuro se abra ante o operário com uma certa possibilidade de previsão, a fim de que ele tenha o sentimento de progredir no tempo, de caminhar, a cada esforço, na direção de um certo acabamento. Atualmente o esforço que ele está realizando, não leva a nenhuma parte, a não se à honra da saída, mas como um dia de trabalho se segue sempre a outro, o acabamento de que se trata não é nada mais senão a morte; ele só pode imaginar um outro fim  sob a forma de salário, no caso do trabalho por peças, o que o força a obsessão dos tostões. Oferecer um porvir para os operários dando a possibilidade de enxergar o trabalho futuro é um problema que se coloca de diferentes formas, segundo cada caso particular. De uma maneira geral, a solução desse problema inclui, além  de um certo conhecimento do funcionamento do conjunto da fábrica posto ao alcance de cada operário em relação à sua seção. Quanto ao futuro próximo, cada operário deveria, o quanto possível, saber mais ou menos o que terá de fazer durante os oitos ou quinze dias que se vão seguir, e mesmo ter direito a uma certa escolha quanto à ordem de sucessão das varias tarefas. Em relação ao futuro longínquo, ele deveria ter condições de projetar algumas marcas que lhe determinam o caminho, de uma forma, é claro, menos extensa de menos preciso do que o patrão e o gerente, mas mesmo assim análoga. Assim, sem que seus direitos efetivos tinham sido de alguma forma acrescentados, ele participará desse sentimento  de enraizamento de que o coração do homem  tem sede, e que, sem diminuir a dor, suprime o desgosto.     (p.173)   

           O mal que se trata de curar interessa também a toda sociedade. Nenhuma sociedade pode ser estável quando uma categoria inteira de trabalhadores trabalha todo dia, e o dia todo, como desgosto. Este desgosto do trabalho altera nos operários toda a concepção de vida, toda a vida. A humilhação degradante que acompanha cada um de seus esforços procura uma compensação numa espécie de imperialismo operário entretida pela propagandas derivadas do marxismo; sem um homem que fabrica porcas e parafusos sentisse, fabricando suas porcas e parafusos, um orgulho legítimo, não provocaria artificialmente em si mesmo um orgulho ilimitado pelo pensamento de que sua classe está destinada a fazer a história e a dominar tudo. O mesmo acontece com a concepção de vida privada, e especialmente da família e do relacionamento entre sexos; o triste enfraquecimento provocado pelo trabalho de fábrica deixa um vazio que exige ser preenchido, e que só pode sê-lo por prazeres rápidos e brutais e a corrupção resultante disso é contagiosa para todas as classes da sociedade. À primeira vista a correlação não é evidente; no entanto, há correlação; a família não será verdadeiramente respeitada pelo povo enquanto uma parte desse povo trabalhar continuamente com desgosto.

          Muitos males que surgiram das fábricas. É difícil, talvez não seja impossível. Seria preciso primeiro que os especialistas, engenheiros e outros tomassem mesmo a peito não só construir objetos, bem como não destruir homens. Não torná-los felizes, mas, simplesmente, não obrigar nenhum deles a se avaliar.      (p.174-175)                        

 

                                            Na guerra civil espanhola

 

                                                Diário de Espanha        

 

           Realmente nada mudou, menos uma coisinha: o poder é do povo. Os homens de azul comandam. É, atualmente, um desses períodos extraordinários que até agora tivessem maior continuidade, em que os que sempre obedecem assumem as responsabilidades. Isso não acontece sem inconvenientes, é claro. Quando se dá a garotos se de dezesseis anos, fuzis desarmados em meio de uma população desarmada...         (p.179-180)             

                                            Às vésperas do nazismo         

                                    

                                  As condições de uma revolução alemã

                                                                    1932     

 

           Trata-se, na verdade, menos da Alemanha do que da situação mundial estudada através da Alemanha. A pergunta que o mundo atualmente se faz, a pergunta que a crise atual da economia capitalista faz, é, aos olhos de Trotsky, a seguinte: fascismo ou revolução? A fase atual do regime capitalista – a maioria dos estudos dos economistas burgueses tendem para essa conclusão – não é mais compatível nem com o liberalismo econômico, nem, conseqüentemente, com a democracia burguesa. A economia, e o Estado devem ser dirigidos pelos operários para os operários ou pelo capitalismo dos bancos e dos monopólios contra os operários. A crise lança o problema de uma forma aguda. Os meios policiais ordinários não bastam mais para manter a sociedade capitalista em equilíbrio. É a hora da tática fascista. Essa tática consiste em movimentar, excitar para o combate contra os operários “as massas da pequena burguesia enraivecida, os bandos de desclassificados, os lumpemproletários desmoralizados, todas essas incontáveis existências humanas que o próprio capital financeiro levou ao desespero e à raiva”. Quanto à vitória do fascismo, essa “termina no açambarcamento direto e imediato, pelo capital financeiro, de todos os órgãos e instituições de dominação, de direção e educação: o aparelho do Estado e o exército, as municipalidades, as universidades, as escolas, a imprensa, os sindicatos, as cooperativas”. A fascistização do Estado significa... “antes de mais nada e sobretudo: destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado de um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetrem profundamente nas massas e sejam destinadas a impedir a cristalização independente do proletariado. O regime fascista é exatamente isso”. Assim tudo está ameaçado ao mesmo tempo; não apenas a classe operária, mas também todas as conquistas da burguesia liberal e toda a cultura de uma forma geral.        (p.185-186)                                       

                     

                                                   A Alemanha à espera

                                                    (impressão de agosto e setembro – 1932)

 

           Uma revolução só pode ser dirigida por homens consciente e responsáveis: poder-se-ia, portanto, formar a contradição essencial do partido nacional-socialista, dizendo que é o partido dos revolucionários inconscientes e irresponsáveis. Toda crise grave levanta massas de pessoas que se arruínam no regime que suportam, sem ter a força de querer transformá-lo; essas massas, por trás do verdadeiros revolucionários, poderiam ser uma força; o significado essencial  do movimento hitlerista consiste nisto: em que ele ajuntou uma grande parte de lado, fazendo assim cair necessariamente sob o controle do grande capital. O movimento nacional-socialista – já que os chefes acham, com razão, o termo movimento popular preferível a partido – é, como resultante de sua própria essência, constituído e intelectuais, de uma ampla massa de pequenos burgueses, de empregados de escritórios e de camponeses, e de uma parte dos desempregados; mas , entre estes últimos, muitos são atraídos sobretudo pelo alojamento, pelo alimento e pelo dinheiro que ganham nas tropas de assalto. O traço de união entre esses elementos  tão diversos é formado menos por um sistemas de idéias do que por um conjunto de sentimentos confusos, apoiados por uma propaganda incoerente. Nos campos, prometem-se altos preços de venda, nas cidades, a vida barata. Os jovens romanescos são atraídos perspectiva de luta, de dedicação, de sacrifício; os brutos, pela certeza de uma dia massacrar à vontade. No entanto, uma certa lista, que alimenta, nos pequenos burgueses, uma intensa saudade da união sagrada de outrora, batizada como “socialismo da frente”; esse fanatismo, exasperado por uma sábia demagogia, chega às vezes, nas mulheres, a um furor quase histérico contra os operários conscientes. Mas, no conjunto do movimento hitlerista, a propaganda nacionalista se apóia antes de mais nada no ressentimento certo ou errado que os alemães têm de ser esmagados menos por se próprio capitalismo  do que pelo capitalismo dos países vitoriosos; daí resulta algo muito diferente do nacionalismo tolo e exibicionista que se conhece na França, uma propaganda que, tentando, além disso, convencer de que a maioria dos capitalista da Alemanha são judeus, se esforça por colocar os termos capitalista  e alemão  como dois termos antagônicos. Pode-se medir o poder de irradiação que possui, neste momento, a classe operaria alemã pelo fato de que o partido hitlerista apresenta o patriotismo em si como uma forma de luta contra o capital.       (p.201-202)   

                                                 Antígona  

                                                      1936      

 

    Sófocles é uma dos maiores dentre esse velhos poetas. Escrever peças de teatro, dramas e comédias; só ficaram alguns de seus dramas. Em cada um deles a personagem principal é uma pessoa corajosa e orgulhosa que luta sozinha contra uma situação intoleravelmente dolorosa;  ela se curva sobre o preço da injustiça; há momentos em que a coragem desfalece; mas ela resiste e não deixa nunca degradar pela infelicidade. Assim, esses dramas, embora dolorosos, nunca deixam uma impressão de seriedade.

           Antígona é o titulo de uma dessas tragédias. O tema é a história de um ser humano que, sozinho, sem nenhum apoio, se opõe a seu próprio país, às leis do seu país, ao chefe do Estado, e que, como se espera, e condenado à morte. Isso acontece numa cidade grega chama Tebas. Dois irmãos, depois da morte do pai, disputaram o trono; um deles conseguiu exilar o outro e se tornou rei. O exilado conseguiu apoios lá fora; voltou para atacar a cidade natal à frente de um exército estrangeiro, na esperança de retornar ao poder. Houve batalha; os estrangeiros foram afugentados; mas os dois irmãos se encontrarem no campo de batalha e matam um ao outro.

          Seu tio se torna rei. Decide que os cadáveres não terão o mesmo tratamento. Um dos dois irmãos morreu para defender a pátria; corpo será enterrado com todas as honras devidas. O outro morreu atacando seu próprio país; o corpo ficará largado no chão, entregue ao animais e aos corvos. É preciso saber que no espírito dos gregos havia desgraça pior nem humilhação pior do que ser tratado assim depois da morte. O rei anuncia sua decisão aos cidadãos que lhe diz que se alguém tentar enterrar o cadáver maldito será castigado com a morte.

           Os dois irmãos mortos duas irmãs que são ainda mocinhas. Uma delas, Ismênia, é ainda uma criança doce e tímida, dessas que se vêem em qualquer lugar, a outra, Antígona, tem uma coração amante e uma coragem heróica. Ela não pode suportar o pensamento que o corpo do irmão seja tratado tão vergonhosamente. Entre os dois deveres de felicidade, a felicidade do irmão vencido e a felicidade à pátria vitoriosa, ela não hesita nem por um instante. Recua-se a abandonar o irmão, esse irmão cuja memória é maldita pelo povo e pelo Estado. Decide enterrar o cadáver apesar da proibição do rei e da ameaça de morte.       (p.373-374)          

 

                                     A Ilíada ou o poema da força  

 

           O verdadeiro herói, o verdadeiro assunto, o centro da Ilíada, é a força. A força que é manejada pelos homens, a força que submete aos homens, a força diante a qual a carne dos homens de contrai. A alma humana aparece, no poema, continuamente modificada por suas relações com força, arrastada, obcecada pela força que ela julga dominar, curvada sobre a pressão da força que ela sofre. Os que tinham imaginado que a força, graças ao progresso, pertencia doravante ao passado, puderem ver nesse poema um documento; os que sabem discernir a força, tanto hoje como outrora, no centro de toda história humana, vêem nele o mais belo, o mais puro dos espelhos.

           A força é aquilo que transforma quem quer que seja submetido em uma coisa. Quando ela se exerce até o fim, transforma o homem em coisa, no sentido mais literal da palavra, porque o transforma em cadáver. Era uma vez alguém e, um instante depois, não há mais ninguém. É um quadro que a Ilíada não se cansa de nos apresentar.      (p.379)           

           A força que se mata é uma forma sumária, grosseira, de força. Quando mais variada em seus processos, quanto mais surpreendente em seus efeitos é a outra força, a que não mata; ou vai matar, talvez, ou então está apenas suspensa sobre o ser que pode matar a qualquer momento, seja como for, ela transforma o homem em pedra. Do poder de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um outro poder – prodigioso sob uma outra forma –, o de transformar em coisa um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; no entanto, é uma coisa. Ser estranho: uma coisa que tem uma alma. Quem dirá quanto lhe custa, a cada momento, conforma-se, torcer-se, dobrar-se sobre si mesma? Ela não foi feita para viver numa coisa; quando é constrangida, tudo nela padece de violência.       (p. 380-381)      

           Os suplicantes, pelo menos, uma vez atendidos, se tornam outra vez homens como os outros. Mas há seres mais infelizes que, sem estarem mortos, se tornam coisas para o resto de suas vidas. Não há em seus dias nenhum jogo, nenhum vazio, nenhum campo livre para algo que venha deles próprios. Não são homens que vivam mais duramente do que outros, colocados socialmente mais abaixo que outros; é uma outra espécie humana, um compromisso entre o homem e o cadáver. Há uma contradição do ponto de vista lógico no fato de que um ser humano seja uma coisa; mas quando o impossível se tornou uma realidade, a contradição se torna na alma dilaceramento. Essa coisa aspira a cada momento ser um homem, uma mulher, e não consegue, em nenhum momento. É uma morte que estende ao longo de toda uma vida: uma vida que a morte congelou muito tempo antes de suprimi-la.       (p.383)        

           Não é possível perder mais do que o que o escravo perde; ele perde toda a sua vida interior. Só reencontra um pouco dela quando aparece a possibilidade de mudar de destino. Tal é o domínio da força: domínio que vai tão longe quanto o da natureza. A natureza, também, quando entram em jogo as necessidades vitais, apaga toda vida interior e até a dor de uma mãe:

           A força manejada por outrem é imperiosa sobre a alma como a fome extrema, a partir do momento em que é um poder incessante de vida e de morte. E é um domínio tão frio, tão duro como se fosse exercido pela matéria inerte. O homem, que em toda a parte é o mais fraco, está no coração das cidades tão só, mais só do que pode estar o homem perdido no meio de um deserto.         (p.385-386)           

           Se todos, ao nascerem, estão destinados a sofrer a pressão da violência, isso é uma verdade para qual o domínio das circunstâncias embota os espíritos dos homens. O forte nunca é totalmente forte, nem o fraco totalmente fraco, mas ambos ignoram. Eles não se julgam da mesma espécie; nem o fraco de considera semelhante ao forte, nem é olhado como tal. Quem possui a força, anda num meio não resistente, sem que nada, na matéria humana em seu redor, seja de natureza a suscitar, entre o impulso inicial e o ato, esse breve intervalo onde se abriga o pensamento. Onde o pensamento não tiver lugar, nem a justiça nem a prudência o terão. Eis porque esses homens armados agem dura e loucamente. A arma deles se enterra um moribundo descrevendo-lhe as injúrias por que seu corpo vai passar.           (p.388)  

           Assim, aqueles a quem a força é emprestada pelo destino perecem por terem confiado demais nela.

           Impossível que não pareçam. Eles não consideram sua própria força uma qualidade limitada, nem sua relações como os outros como um equilíbrio entre forças desiguais. Como os outros homens não impõem a seus movimentos esse tempo de parada, do qual, e só dele, procede nossas atenções para com os nossos semelhantes, daí inferem que o destino lhes deu toda permissão a eles e nenhuma a seus inferiores. A partir de então, vão além da força de que dispõem. Vão inevitavelmente além. Ignoram que ela é limitada. Ficam, então, entregues ao acaso sem nenhum recurso, e as coisas não lhe obedecem mais. Às vezes o acaso os ajuda; em outras os prejudica-os; ei-los expostos nus à desgraça, sem a armadura de poder que protegia sua alma, sem mais nada, a partir de então, que os separe das lágrimas.

           Este castigo de um rigor geométrico, que pune automaticamente o abuso da força, foi o objeto primeiro da meditação entre os gregos. Constitui a alma da epopéia; sob o nome de Nêmesis, é a mola das tragédias de Esquilo; os pitagóricos, Sócrates, Platão, partiram daí para pensar o homem e o universo. A noção da força se tornou familiar para toda a parte em que o helenismo penetrou. Foi talvez, essa noção grega, que subsistiu, sob o nome de Kharma, em países do Oriente impregnados de budismo, mas o Ocidente a perdeu e nem tem mais, em nenhuma de sua línguas, uma palavra para significá-la; as idéias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam determinar a conduta da vida, só têm um emprego servil na técnica. Só diante da matéria somos geômetras; os gregos foram primeiramente geômetras no aprendizado da virtude.        (p.389)     

           Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte do Heitor devia dar uma alegria breve, a Aquiles, e a morte de Aquiles uma alegria breve aos troianos, e o aniquilamento de Tróia uma alegria breve aos aqueus.       (p.392)      

           Assim a violência esmaga aqueles que toca. Acaba por aparecer como exterior tanto ao que maneja quanto ao que sofre com ela; nasce, então, a idéia de um destino sob o qual algozes e vítimas sejam igualmente inocentes, os vencedores e os vencidos irmãos na mesma miséria. O vencido é uma causa de infelicidade para o vencedor, como o vencedor para o vencido.         (p.393)        

           Um uso moderado da força, o único que permitiria escapar da engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tão rara quanto à dignidade contínua na fraqueza. Aliás, a moderação tampouco existe sempre sem perigo; pois o prestígio que constitui mais de três quartos da força, é feito, antes de mais nada, pela soberba indiferença tão contagiosa que se comunica aos que lhe estão sujeitos. Mas, normalmente, não é um pensamento político que aconselha o excesso. É a tentação do excesso que é quase irresistível.         (p.393) 

           Por falta dessa generosidade o soldado vencedor é como um flagelo da natureza; dominado pela guerra, tanto quanto o escravo, embora de outra maneira, ele se tornou uma coisa e as palavras não tem poder sobre ele, bem como sobre a matéria. Um e outro, em contato com a força, sofrem a conseqüência infalível, que é a de converter os que são tocados por ela em mudos e surdos.

           Tal é a natureza da força. O poder que ele possui de transformar os homens em coisas é duplo, e se exerce no sentido de ambos os lados; petrifica diferentemente, mas igualmente, as almas dos que a sofrem e dos que a manejam. Esta propriedade atinge o mais alto grau no meio das armas, a partir do momento em que uma batalha se encaminha para uma decisão. As batalhas não são decididas entre os homens que calculam, trabalham, tomam uma resolução a executam, mas entre os homens despojados dessas faculdades, transformados, caídos no nível, ou na matéria inerte que só a passividade, ou das forças cegas que são apenas impulso. Este é o ultimo segredo da guerra e a Ilíada o exprime em suas comparações, nas quais os guerreiros aparecem como os símiles seja do incêndio, da inundação, do vento, dos animais ferozes, de qualquer causa cega de desastre, seja dos animais medrosos, das árvores, da água, da areia, de tudo o que é movido pela violência das forças exteriores. Gregos e troianos, de um dia para outro, às vezes de uma hora para outra, sofrem sucessivamente uma e outra transmutação:          (p.398)             

           O amor conjugal, condenado à infelicidade, é de uma surpreendente pureza. O esposo, evocando as humilhações da escravidão que esperam por sua mulher amada, omite aquela que, só no pensar, mancharia por antecipação a sua ternura. Nada mais simples do que as palavras dirigidas pela esposa ao que vai morrer:      (p.400)

           Mas o triunfo mais puro do amor, a graça suprema das guerras é a amizade que sobe o coração dos inimigos mortais. Ela faz desaparecer a fome de vingança pelo filho morto, pelo amigo morto, apaga por milagre ainda maior a distância entre benfeitor e suplicante, entre vencedor e vencido.      (p.400-401)

           Esses momentos de graça são raros na Ilíada, mas bastam para fazer sentir com um desgosto extremo o que a violência faz e fará parecer.

           No entanto, tal acúmulo de violências seria frio sem uma inflexão de amargura incurável que se faz sentir continuamente, embora muitas vezes seja indicada apenas por uma única palavra, outras vezes até por um corte de verso, por um encadeamento. Nisso é que a Ilíada é uma obra única, por essa amargura que procede da ternura, e que se estende sobre todos os humanos, do mesmo modo que a luz do sol.         (p.401)   

           Toda a Ilíada está à sombra da maior desgraça que pode existir entre os homens: a destruição de uma cidade. Se o poeta tivesse nascido em Tróia essa desgraça não parecia mais dilacerante. Mas o tom não muda quando se trata dos aqueus que parecem bem longe da pátria.        (p.402) 

           Seja como for, esse poema é uma coisa milagrosa. A armadura cai sobre a única causa justa de amargura, a subordinação da alma humana à força, isto é, afinal de contas: à matéria. Essa subordinação é a mesma em todos os mortais, embora a alma a suporte de diversas maneiras, conforme o grau de virtude. Ninguém, na Ilíada, lhe escapa, assim como ninguém neste mundo pode escapar-lhe. Nenhum dos que sucumbem a ela é olhado por isso com desprezível. Tudo o que, no interior da alma e nas relações humanas, foge ao império da força, é amado, mas amado dolorosamente, por causa do perigo de destruição continuamente pendente. Esse é o espírito da única epopéia verdadeira que o Ocidente possui.        (p.404)         

           O Evangelho é a ultima e maravilhosa expressão do gênio grego, assim como a Ilíada é a primeira; o espírito da Grécia transparece nele não só no que aí se manda procurar – excluindo qualquer outro bem – “o reino da justiça de nosso Pai celeste”, mas também quando nele se expõe a miséria humana, sofrida por um ser divino ao mesmo tempo que humano. As narrativas da Paixão mostram que um espírito divino, unido à carne, é alterado pelo infortúnio, trema ante o sofrimento e a morte, se sente, no fundo da desgraça, separado dos homens e de Deus. O sentimento da miséria humana lhes dá esse tom de simplicidade, que a marca do gênio grego, e que constitui todo o valor da tragédia ática e da Ilíada. Alguma palavras produzem um som estranhamente vizinho ao da epopéia; e ao adolescente troiano enviado ao Hades, contra a sua vontade, vem à memória quando Cristo diz a Pedro: “Um outro tecingirá e te levará para onde não queres ir”. Esse tom é inseparável do pensamento que inspira o Evangelho; pois o sentimento da miséria humana é uma condição da justiça e do amor. Quem ignora até que ponto a fortuna variável e a necessidade mantêm toda alma humana sob sua dependência, não pode olhar como semelhantes nem amar como a si mesmos que o acaso separou de si por um abismo. A diversidade das coações que pensam sobre os homens fazer nascer a ilusão de que há entre eles espécie diversas que não se pode comunicar. Só é possível amar e ser justo quando se conhece o poder da força e quando se sabe não o respeitar.

           As relações entre a alma humana e o destino; em que medida cada alma modela seu próprio destino; em que é que um necessidade impiedosa transforma uma alma, esteja ela entregue como estiver ao destino variável; aquilo que por efeito da virtude e da graça pode permanecer intacto; tudo isto é matéria em que a mentira é fácil de sedutora. O orgulho, a humilhação, o ódio, o desprezo, a indiferença, o desejo, de esquecer ou de ignorar, tudo contribui para fazer a tentação da força. Em particular, nada é mais raro que uma justa expressão da desgraça; pintando-a, quase sempre se finge acreditar ora que a queda é uma vocação inata do infeliz, ora que um alma pode suportar a infelicidade sem ser marcada por ela, sem que ela mude todos os pensamentos de uma forma que só ela pode fazer. Os gregos, na maioria das vezes, tiveram a força que permite que uma pessoa não minta a si mesma; foram recompensados e souberam atingir em tudo o mais alto grau de lucidez, de pureza e de simplicidade. Mas o espírito que se transmitiu da Ilíada ao Evangelho, passando pelos pensadores e poetas trágicos, não passou dos limites da civilização grega, e, desde que se destruiu a Grécia, só restaram reflexos.     (p.404, 405 e 406)                        

                                                       

  

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