Síntese Pe. Paolo Cugini
Carta a
Albertine Thévenon (1934-1935)
Veio o que era a última coisa do mundo
que eu esperava de mim; a docilidade. Uma docilidade de besta de carga
resignada. Parecia que eu tinha nascido para esperar, para receber, para
executar ordens – que nunca tinha
feito senão isso -, que nunca
mais faria outra coisa. Não tenho orgulho em confessar isso. É a espécie de
sofrimento que nenhum operário fala; dói demais, só de pensar. Quando a doença
me obrigou a parar, tomei consciência com clareza do baixo nível que tinha
descido, prometi a mim mesma suportar essa existência até o dia em que
conseguisse reassumir, apesar dela. Tenho mantido minha palavra. Lentamente, no
sofrimento, reconquistei, através da escravidão, o sentimento da minha
dignidade de ser humano, um sentimento que, desta vez, não se apoiava em nada
exterior, e sempre acompanhado da consciência de não ter nenhum direito a nada,
de que cada momento livre de sofrimento e de humilhações devia ser recebido com
uma graça, como s simples efeito de acasos favoráveis.
Dois fatores condicionam esta
escravidão: a rapidez e as ordens. A rapidez: para alcançá-la, é preciso
repetir movimento atrás de movimento, numa cadência que, por ser mais rápida do
que o pensamento, impede o livre curso da reflexão e até do devaneio.
Chegando-se à frente da máquina, é preciso matar a alma, oito horas por dia,
pensamentos, sentimentos, tudo. Quer se esteja irritado, triste ou desgostoso,
é preciso engolir, recalcar tudo no íntimo, irritação, tristeza ou desgosto:
diminuíram a decadência.
(p.79 e
80)
Carta
a uma aluna
- 1934
O trágico
dessa situação é que o trabalho é maquinal demais para fornecer assunto ao
pensamento, e, alem disso, impede qualquer outro pensamento. Pensar é ir menos
depressa; ora, há normas de rapidez estabelecidas por burocratas sem piedade e
que é preciso cumprir para não ser despedido e, ao mesmo tempo, para se ganhar
o suficiente (o salário é por peças)
Aqui não é como na universidade onde se é
pago para pensar, ou pelo menos para fingir, aqui, a tendência seria, de
preferência, a de pagar para não pensar; então, quando se percebe um clarão de
inteligência, tem-se a certeza de que ele não te engana. Alem disso, as
maquinas por si mesmas, me atraem e me interessam imensamente. Devo acrescentar
que estou na fábrica principalmente pra me informar a respeito de um certo número
de questões muito especificas que me preocupam e que não lhe pormenorizar.
(p.84 e 85)
Quanto ao
amor, não tenho conselhos a lhe dar, mas, pelo menos, advertências. O amor é
algo de grave onde frequentemente corremos de um engajamento parta sempre,
tanto da própria vida quando da vida de um outro ser humano. Podemos dizer que
este risco sempre existe, a menos que um dos dois faça do outro o seu
brinquedo; só que neste caso – que é
muito freqüente – o amor passa a ser algo de odioso. Veja: o essencial do amor
consiste em que um ser humano tem uma necessidade vital de um outro ser humano
– necessidade recíproca ou não, depende do caso. A partir de então, o problema
e conciliar semelhante necessidade com a liberdade, e desde tempos imemoriais,
os homens debatem esse problema. Por isso, a idéia de procurar o amor para ver que
é, para animar a vida um pouco uma vida
por demais triste, etc., me parece perigosa e, principalmente, pueril. Posso
dizer-lhe que na sua idade, e mais tarde também, quando tive a tentação de
procurar conhecer o amor, afastei-a; eu me dizia que era melhor não arriscar o
engajamento de todo minha vida numa direção impossível de prever antes de ter
atingido uma grau de maturidade que permitisse saber ao certo o que é que eu
quero da vida de uma forma geral, o que é que eu espero dela. Não isso como um
exemplo; cada vida segue dentro de suas próprias leis. Mas você pode extrair
algo para pensar. Acrescento que o amor me parece comportar um risco ainda mais
assustador ainda do que o de engajar cegamente a nossa própria existência; é o
risco de nós tornarmos o árbitro de uma outra existência humana, quando é
profundamente amado. Minha conclusão
(que só lhe dou como uma indicação) não é a que se deva fugir do amor
mas que não o devemos procurar, e principalmente quando somos muito jovens. É
muito melhor, eu nesse caso não o encontrar, acredito eu. (p.86)
O esgotamento acaba por me fazer esquecer os verdadeiros motivos de
minha estada na fabrica, torna-se invencível para mim a tentação mais forte que
essa vida conclui: a de não pensar mais, o único meio de não sofrer com ela. Só
no sábado de tarde e no domingo é que minhas lembranças voltam – farrapos de
idéias! -, que me lembro de que sou também
um ser pensante. Por favor, que me domina quando constato a dependência em que
me acho das circunstâncias exteriores: bastaria que elas me obrigassem um dia a
um trabalho sem repouso semanal – o que, afinal de contas, sempre é possível –
e eu me transformaria numa besta de carga, dócil e resignada (pelo menos para
mim). Só o sentimento de fraternidade, a indignação pelas injustiças infligidas
a outros permanecem intactos – mas até que ponto tudo isso vai resistir ao
correr do tempo? Não estou longe de concluir que a salvação da alma de um
operário depende, em primeiro lugar, da sua constituição física. Não vejo como
os que não são fortes podem evitar cair em alguma forma de desespero –
embriaguez ou vagabundagem ou crime, ou corrupção, ou, simplesmente e bem mais
freqüente, embrutecimento (e a religião?).
Impossível a revolta, a não ser lampejos
(quer dizer mesmo em termos sentimentais). Em primeiro lugar, contra o quê? A
gente está sozinha, com o seu trabalho, não poderia revoltar-se senão contra
ele; ora, trabalhar com essa irritação seria trabalhar mal, e daí morrer de
fome. Exemplo, a operária tuberculosa despedida por ter matado em encomenda.
Aqui somos como cavalos que se ferem a si próprios quando puxam os freios – e o
jeito é curvar-se. Chega-se até a perder consciência dessa situação, a gente a
suporta, é tudo. Qualquer despertar do pensamento torna-se, então
doloroso. (p.97)
Pela segunda vez
à procura de emprego
Saindo do dentista (terça de manhã, eu
acho, ou antes, quinta de manhã) e subindo no ônibus, reação estranha. Como que
eu, a escrava, posso entrar nesse ônibus, usá-lo graças a meus 12 centavos como
qualquer um? Que extraordinário! Se me obrigassem brutalmente a descer dele
dizem que meio de locomoção tão cômodos não são para mim, que eu só devo andar
a pé, acho que até me parecia natural. A escravidão me fez perder totalmente o
sentimento de ter direitos. Parece-me um favor ter momentos em que não preciso
agüentar a brutalidade humana. Esses momentos são como sorrisos do céu, dom do
acaso. Esperemos que eu conserve esse estado de alma, tão razoável.
Ao que parece, meus colegas não tem esse
estado de alma no mesmo grau; não compreendem plenamente que são escravos. As
palavras justo e injusto
sem duvida conservam, até certo
ponto, um sentido para eles, nessa situação, em que tudo é injustiça. (p.105 e 106)
Ganhei nesta experiência? O sentimento de que não tenho nenhum direito, seja qual for (cuidado para não perdê-lo). A capacidade de me bastar moralmente a mim mesma, de viver nesse estado de humilhação latente e perpétuo, sem me sentir humilhada a meus próprios olhos; de provar intensamente cada instante de liberdade ou camaradagem, como se devesse ser eterna. Um contato direto com a vida..
Estive a ponto de ser dobrada. Quase o
fui – minha coragem, o sentimento da minha dignidade ficaram praticamente
abatidos durante um período cuja lembrança me humilharia, se não fosse o fato
de que praticamente quase não me lembro dele. Me levantava com angustia, ia
para a fabrica com medo, trabalhava com uma escrava, a pausa do meio-dia era
uma aflição; voltava às 5h:45, preocupada em dormir logo e o bastante ( o que
não acontecia) e em levantar-me bem cedo. O tempo era um peso intolerável. O
receio – o medo – do que se ia seguir, não parava de me apertar o coração até
chegar o sábado de tarde e o domingo de manhã. E o motivo do medo eram as ordens.
O sentimento de dignidade pessoal tal qual
o fabricou a sociedade está desfeito. É
preciso forjar um outro
(embora o esgotamento extinga a consciência da própria faculdade de pensar!) – Esforçar-me por conservar esse
outro.
A gente, afinal, acaba por notar a própria
importância.
A classe dos que não contam - em nenhum situação
– aos olhos de ninguém... e que não contaram nunca o que acontecer, apesar do
ultimo verso da 1º estrofe da “ Internacional”.*
O fato capital não é o sofrimento, mas a
humilhação.
Nisso, talvez, é que Hitler baseia sua
força (ao passo que o estúpido “materialismo”...)
(Se o sentimentalismo desse um sentimento
de responsabilidade à vida cotidiana...)
Nunca esquecer esta observação: sempre
encontrei, entre esses seres frustrados, generosidade de coração e aptidão para
as idéias em proporção direta.
Uma opressão evidentemente inexorável e
invencível não gera, como reação imediata, a revolta, mas a submissão.
Em Alsthom só aos domingos me revolta...
Na Renault tinha chega a uma atitude mais
estóica. Substituir a submissão pela aceitação. (p.107
e 108)
FRAGMENTOS*
Em que consiste a dificuldade do exercício
do entendimento? Em que se pode
verdadeiramente refletir sobre o particular, ao passo que o objeto de reflexão
é, por essência, universal. Ignora-se como os gregos resolveram essa
dificuldade. Os modernos resolveram-na por signos que representam o que é comum
a muitas coisas; ora, essa solução não é boa. A minha é...
(Descartes teria visto a defasagem
formidável, entre as Regular e a Geometria, sem a falta imperdoável de
ter redigido esta ultima como um matemático vulgar)
Das duas maneiras de compreender uma
demonstração...
Em toda operação matemática, há duas
coisas a distinguir.
1.º Sendo dados signos, com leis convencionais, o que pode saber de suas relações
mútuas? Seria necessário chegar a uma
concepção bastante clara das combinações
de signos para formar uma teoria
universal de todas as combinações de
signos
tomadas
como tais (teoria de grupos?).
2.º Relação entre as combinações de
signos e os problemas reais que a natureza
coloca
(essa relação consistiria sempre
em uma analogia).
No que concerne às combinações de signos
tomadas como tais, seria necessário um catalogo completo das dificuldades –
levando-se em consideração aquelas que se referem ao tempo e ao espaço.
Quanto à aplicação, um estudo perspicaz
deixaria, sem duvida, que ela repousa não sobre a propriedade de representar as
coisas que seriam contidas nos signos (qualidade de oculta), mas sobre uma analogia de operações
Seria
possível fazer uma lista das aplicações da matemática.
Não existe concepção geral da ciência...
Movimento ascendente de descendente
perpétuo das coisas em direção aos símbolos (aos símbolos cada vez mais
abstratos) e dos símbolos em direção às coisas. Ex.: geometria e teoria dos
grupos (invariantes...) (contínuo-descontínuo...).
Fazer uma lista das dificuldades que os
trabalhos comportam? Difícil.
E uma série de trabalho? A mecânica tendo
o maior número de relações com a
matemática.
Também série
de signos no esforço perpétuo daqueles que os criam para tornar suas
combinações cada vez mais analógicas às condições reais do trabalho humano.
Senhor e servo. Hoje, servidores absolutamente servidores, sem a
reviravolta hegeliana.
É por causa do domínio das forças da
natureza...
Em todas as outras formas de escravidão,
a escravidão está na circunstâncias. Aí somente ele está transportada para o
próprio trabalho.
Efeitos da escravidão sobre a alma.
O que conta em uma vida humana, não são
acontecimentos que nela dominam o curso dos anos – ou mesmo o dos meses – ou mesmo os dois dias. É maneira pela
qual se encadeia um minuto ao seguinte, e o que custa a
cada um, em seu corpo, em seu coração, em sua alma – para efetuar minuto por
minuto esse encadeamento.
Se eu escrevesse um romance, faria uma
coisa de inteiramente novo.
Conrad: tamanha união entre o velho
marinheiro (chefe, evidentemente...) e o seu barco, que cada ordem deve vir por
inspiração, sem hesitação nem incerteza. O que supõe um regime da atenção muito diferente tanto da reflexão quanto do
trabalho servil.
Questões:
1.º Há, às vezes, uma semelhante união
entre um operário e sua máquina ?
(Difícil de saber)
2.º Quais são as condições de uma união como
esta –
a) Na estrutura da maquina,
b) Na cultura do operário,
c) Na natureza dos trabalhos?
Essa união é, evidentemente, a condição
de uma felicidade plena. Só ela faz do trabalho um equivalente da arte. (p.112, 113 e 114)
A vida e a
greve dos metalúrgicos
O cansaço.
o cansaço deprimente, amargo, por vezes doloroso a tal ponto que se deseja
a morte. Todo mundo, em todas as situações, sabe o que é estar cansado, mas
este cansaço precisaria de um nome à parte. Homens vigorosos, na força da
idade, adormecem de cansaço no banco do metrô. Não depois de um dia de trabalho
“quente”, mas depois de um dia de trabalho normal. Um dia como virá outro no
dia seguinte, e outro, sempre. Descendo a rampa do metrô, ao sair da fabrica
vem uma angustia assaltar o pensamento: será que vou encontrar um lugar
sentado? Seria muito duro ter de ficar de pé. Mas é comum viajar de pé. Cuidado
então que o excesso de cansaço o impeça a dormir! Aí seria preciso forçar ainda
um pouco mais no dia seguinte. (p.123
e 124)
O medo.
São raros os momentos do dia em que o coração não está um pouco comprimido por
alguma angustia. De manhã, a angustia do dia a se viver. Nos ramais no metrô que
levam para Billancourt, entre 6 e 6h:30 da manhã, a maioria dos rostos vão
contraídos por essa angustia. Quem saiu em cima da hora tem medo do relógio de
ponto. No trabalho, o medo de não estar na velocidade boa, para os que tem
dificuldade de atingi-la. O medo de “ matar”
peças forçando a cadência, porque a velocidade produz uma espécie de
embriaguez que anula a atenção. O medo de todos os pequenos acidentes que podem
ser causas de peças estragadas ou de ferramenta quebrada. De uma forma geral, o
medo das broncas. Muitos sofrimentos são aceitos só para enviar uma bronca. A
menor delas é uma humilhação dura, porque não se ousa responder. E quantas
coisas podem provocar uma bronca! A máquina foi mal regulada pelo regulador;
uma ferramenta é de aço ruim; impossível colocar bem as peças: vem a bronca.
Vai-se procurar o chefe pela seção para ter serviço, o que consegue é ser
barrado. Se o tivesse esperado na gaiola, seria também uma bronca. (p.124)
A
sujeição.
Nunca fazer nada, por menos que seja, que se constitua uma iniciativa. Cada
gesto é, simplesmente, execução de uma ordem. Pelo menos para os operadores da
máquina. Numa máquina para série de peças, cinco ou seis movimentos simples são
indicados, e basta apenas repeti-los a toda velocidade. Até quando? Até que se
receba ordem para fazer outra coisa. Quanto tempo durará essa série de peças?
Até que o contramestre dê outra série. Quanto tempo ficarei nessa máquina? Até que o encarregado dê ordem de ir para
outra. A gente é uma coisa entregue à vontade de outro. Como não é natural para
um homem transforma-se em coisa, e como não há coação visível (chicote,
cadeias), é preciso dobrar-se a si próprio em direção a esta positividade. Que
vontade de poder largar a alma no cartão de entrada é só retomá-la à saída! Mas
não é possível. A alma vai com a gente para oficina. É preciso tempo todo
fazê-lo calar-se. Na saída, muitas vezes não a temos mais, porque estamos
cansados em excesso. Ou, se a temos ainda, que sofrimento, quando chega a
noite, reparar no que fomos durante 8 horas nesse dia, e que no dia seguinte
serão ainda 8 horas, e também no dia seguinte do dia seguinte...
Que mais? A extraordinária importância
que adquirem a benevolência ou a hostilidade dos superiores imediatos,
reguladores, chefes de seção, mestres, os que dão, dentro dos seus critérios, o
bom ou o mau serviço, que podem a seu bel-prazer ajudar ou repreender nos
golpes de azar. A contínua necessidade de não desagradar. (p.124 e 125)
E as reivindicações, o que se pensar
delas? É preciso reparar primeiro um
fato bem compreensível, mas muito grave. Os operários fazem a greve, mais
deixam os militantes a cuidado de estudar o pormenor das reivindicações. A ruga
da passividade contraída cotidianamente durante anos e anos não se perde em
alguns dias, nem mesmo em alguns dias tão lindos. E depois, não é no momento em
que, por alguns dias, nos evadimos da escravidão, que podemos encontrar dentro
de nós a coragem de estudar as condições da opressão sobre a qual estivemos
curvados dia a dia, e sob a qual ainda nos vamos curvar. Não é possível pensar
nisso o tempo todo. Há limites para as forças humanas. Contentamo-nos em gozar,
plenamente, sem segundas intenções, o sentimento de que enfim contamos para
alguma coisa; que vamos sofrer menos que vamos ter férias pagas - disso se fala
com os olhos brilhando, é uma reivindicação
que ninguém vai mais tirar o coração da classe -, que vamos ter melhores
salários e alguma coisa pra dizer n fábrica, e que tudo isso não vai ser
simplesmente conseguido, mas imposto. Por uma vez deixamo-nos nos embalar por
esses doces pensamentos e ninguém entra em detalhes!
Ora, este movimento levanta graves
problemas. O problema central, a meu ver, é a relação entre a reivindicações
morais. É preciso encarar as coisas de frente. Os salários exigidos ultrapassam
as possibilidades das empresas dentro do
regime atual? Se sim, o que pensar? Não se trata somente da metalúrgica, já que
com razão o movimento reivindicatório se estendeu a outras categorias. Então?
Vamos assistir a uma nacionalização progressiva da economia sob o embalo das
reivindicações operarias, a uma evolução rumo a economia do Estado e ao poder
totalitário? Ou a um agravamento do desemprego? Ou a um recuo dos operários
obrigados a baixar a cabeça mais uma vez sob a pressão das necessidades
econômicas? Em cada um desses casos, este belo movimento teria um triste
fim. (p. 129 e 130)
A racionalização*
23
de fevereiro de 1937
O
operário não sofre somente na insuficiência do pagamento. Ele sofre porque na
atual sociedade está relegado a um nível inferior, porque está reduzido a uma
espécie de servidão. A insuficiência dos salários é apenas uma conseqüência
dessa inferioridade e dessa servidão. A classe operaria sofre por está sujeita
à vontade arbitrária dos quadros dirigente da sociedade, que lhe impõem, fora
da fábrica, seu padrão da existência e, dentro da fábrica, suas condições de
trabalho. Os sofrimentos suportados na fábrica por causa da arbitrariedade
patronal pesam tanto na vida dum operário quanto as privações suportadas fora
da fábrica por causa da insuficiência dos salários.
Os direitos que os trabalhadores podem
conquistar no local de trabalho não dependem diretamente da propriedade ou do
lucro, mas das relações entre o operário a máquina, entre o operário e os
chefes, e do poder maior ao menor da direção. Os operários podem obrigar a
direção de uma fábrica a reconhecer-lhes direitos, sem privar os proprietários
da fábrica nem de seu titulo de
propriedade nem de seus lucros; e, reciprocamente, eles podem ser totalmente
privados de seus direitos numa fábrica
que seja uma propriedade coletiva. As aspirações dos operários a terem direitos
na fábrica fazem com que se choquem não com o proprietário mas com o gerente.
Ás vezes é o mesmo homem, mas pouco importa.
Portanto,
há duas questões a distinguir a exploração da classe operaria que se define
pelo lucro capitalista, e as opressões da classe operária no local de trabalho,
que se traduz em sofrimentos prolongados, conforme o caso, quarenta e oito
horas ou quarenta horas por semana, mas que podem ir ainda alem da fábrica
ocupando as vinte quatro horas do dia.
(p.137 e 138)
Se
amanhã os patrões forem expulsos, se as fabricas forem coletivizadas, nada vai
mudar quanto a esse problema fundamental: o que é preciso para extrair o maior
numero possível de produtos, não é necessariamente o que pode satisfazer aos
homens que trabalham da fábrica (p.139)
Conciliar
as exigências da fabricação com as aspirações dos homens que fabricam é um
problema que os capitalistas resolvem facilmente suprimindo um dos termos: eles
resolvem como se esses homens não existissem. Em contrapartida, determinados
conceitos anarquistas suprimem o outro termo; as necessidades da fabricação.
Mas como é possível esquecê-los no papel e não eliminá-los de fato, não há
solução. A solução ideal seria uma organização do trabalho tal que cada fim de
tarde saíssem ao mesmo tempo o maior numero possível de produtos bem feitos e
de trabalhadores felizes. Se, por um acaso providencial, pudéssemos encontrar
esse método de trabalho, suficientemente perfeito para tornar o trabalho
alegre, não haveria mais problema. Mas esse método não existe, e o que acontece
é exatamente o contrário. E se tal solução não é praticamente realizável, é
justamente porque as necessidades da produção e as necessidades dos produtores
não coincidem forçosamente. Seria bom demais se os processos de trabalho mais produtivos
fossem ao mesmo tempo os mais agradáveis. Mas, pelo menos, podemos
aproximarmo-nos dessa solução procurando métodos que coincidem ao máximo os
interesses da empresa e os direitos dos trabalhadores. (p. 139)
Experiência da vida de fábrica
Marselha, 1941-1942
No decorrer dos últimos anos sentiu-se
bem que, de fato, os operários da fábrica estão de alguma forma desenraizadas,
exilados em sua própria terra. Mas não se sabe por quê. Passear pelos
subúrbios, entrever quartos frios e sombrios, as casas, as ruas, isso não ajuda
muito a compreender a vida que aí se leva. A infelicidade do operário da
fábrica é ainda mais misteriosa. Os próprios operários dificilmente podem
escrever, falar, até mesmo refletir a esse respeito, pois a primeira
conseqüência da infelicidade é que o próprio pensamento se quer evadir, não
quer considerar a desgraça que o fere. Por isso, quando os operários falam do
seu próprio destino quase sempre repetem palavras de propaganda feitas por
gente que não é operário. A dificuldade é, pelo
menos, igualmente grande para um antigo
operário: é fácil para ele falar de sua primeira condição, mas muito
difícil pensar realmente nisso, porque nada é coberto mais depressa pelo
esquecimento do que a infelicidade passada.
(p. 156)
As grandes e pequenas misérias
continuamente impostas na fábrica a um organismo humano, ou, como dia Jules
Romains, “ este sentimentos de miúdas infelicidades físicas que a tarefa não
exige e com as quais nem de longe de beneficia”, não contribuem menos para
torna sensível a servidão. Não os sofrimentos ligados às necessidades dos
trabalhos; esses trazem até um certo orgulho de serem suportados; mas os que
são inúteis. Ferem a alma porque geralmente ninguém pensa em queixar-se;
sabe-se que nem se pensa se quer nisso. Já se tem a certeza antecipada de que
viria uma bronca que deveria ser engolida sem abrir a boca. Falar seria
arranjar uma humilhação. Muitas vezes, se é algo que um operário não consiga
suportar, vai preferir calar-se e pedir a conta. Tais sofrimentos
frequentemente são, em si mesmos, muito leves; se eles se tornam amargos, é que
todas as vezes que são sentidos – e são sentidos incessantemente -, o fato de
que seria tanto esquecer, o fato de que não se está em casa na fábrica, o fato de
que não sem nela o direito de cidadania, e o de que cada um é um estranho
admitido como simples intermediário entre as máquinas e as peças fabricadas,
tudo isto atinge o corpo e a alma; sob este golpe, a carne e o pensamento se
retraem. Como se alguém repetisse ao ouvido minuto a minuto, sem que possa
responder nada: “Você não é nada aqui. Você está aí para curvar-se, suportar
tudo e calar-se”. Semelhante repetição é quase irresistível. Chega-se a
admitir, no âmago de si mesmo, que não se é nada. Todos os operários de
fábrica, ou quase todos, e até os de aspecto mais independente, tem algo mais
imperceptível nos movimentos, no olhar, principalmente na obra dos lábios, que
exprime que foram obrigados a se terem por nada. (p.157 e 158)
A monotonia de uma jornada na fábrica,
mesmo se nenhuma mudança de trabalho vem quebrá-la, está entremeada de mil
pequenos incidentes que povoam cada dia e fazem dele uma nova história; mas,
como acontece com a mudança de trabalho, esse incidentes ferem mais do que
reconfortam. Correspondem se a uma diminuição de salário, no caso de trabalho
por peças, de forma que não são nada desejáveis. Mas, muitas vezes também ferem
por si mesmo. A angústia esparsa, difusa, sobre todos os momentos do trabalho,
se encontra neles, a angústia de não se ir bastante depressa, e, como muitas
vezes é o caso, quando se precisa de outrem para poder continuar, de um
contramestre, de um almoxarife, de um regulador, o sentimento da dependência,
da impotência, e de contar como nada ao olhos de quem se depende, pode
tornar-se doloroso a ponto de arrancar lágrimas tanto de homem como de mulheres.
A contínua possibilidade de tais incidentes máquina parada, caixa desaparecida
e assim por diante, em vez de diminuir o peso da monotonia, tirar-lhe o remédio
que ela geralmente traz em si mesma, o poder e entorpecer e embalar os
pensamentos de forma que anule, em certa medida, o ser sensível, uma leve
angustia impede esse efeito de entorpecimento e força a tornar consciência da
monotonia, embora seja intolerável ter consciência disso. Nada pior do que a
mistura da monotonia e do acaso: eles se agravam mutuamente, pelo menos quando
o acaso é angustiante. É angustiante na fábrica pelo fato de não se
reconhecido; teoricamente, embora todo mundo saiba q não é assim, as caixas
para pôr as peças fabricadas nunca faltam, os reguladores nunca fazem esperar,
e qualquer atraso da produção é um erro do operário. O pensamento deve
constantemente pronto ao mesmo tempo para seguir o curso monótono de gestos
indefinidamente repetidos e para encontrar em sim próprio recursos para
remediar o imprevisto. Obrigação contraditória, impossível exaustiva. O corpo
está às vezes esgotado, de noite, à saída da fábrica, mas o pensamento está
sempre esgotado, mais ainda do que o corpo. Que passou por este esgotamento e
não o esqueceu, pode reconhecê-lo nos olhos de quase todos os operários que
desfilam à saída da fábrica. Que bom seria poder depositar a alma, à entrada,
no cartão de ponto e retomá-la intacta à saída! Mas é o contrário que se dá.
Ela vai com a gente para a fábrica, onde sofre: de noite esse esgotamento como
que a anulou, e as horas de lazer são inúteis. (p.160 e 161)
Os rostos contraídos pela angústia do dia que se vai atravessar e os olhos
dolorosos no metrô de manhã; o cansaço profundo, essencial, o cansaço da alma
mais ainda do que o corpo, que marca as atitudes, os olhares e a ruga dos
lábios, à noite, à saída, os olhares e atitudes de animal na jaula, quando uma
fábrica, depois do fechamento anual de dez dias, acaba a reabrir um novo ano
interminável; a brutalidade difusa que se encontra quase em toda parte; a
importância que quase todos dão a detalhes presentes em si, mas dolorosos por
seu significado simbólico, como a obrigação de apresentar um cartão de
identidade ao entrar; as gabolices lamentáveis trocadas entre os rebanhos
apinhado diante das portas das agências de emprego, e que, por oposição, evocam
tantas humilhações reais; as palavras incrivelmente dolorosas que escapam às
vezes, como por inadvertência, da boca dos homens e mulheres iguais a todos os
outros; o ódio e o desgosto pela fábrica, pelo lugar de trabalho, que tantas
vezes transparecem nas palavras e nos atos, ensombreando a camaradagem e lançando operários e operárias, assim que
saem, na pressa de cada qual para sua casa quase trocar palavras; a alegria,
durante a ocupação, de se possuir em pensamento a fábrica, percorrendo-lhe as
seções, o orgulho novo de mostrá-la aos familiares explicando-lhes onde está
seu trabalho, alegria e orgulho fugazes que exprimiam, por oposição, de uma
forma tão pungente, as permanentes dores do pensamento pregado no lugar; todos
os movimentos das classes operárias, tão misteriosos para os espectadores, são,
na realidade, tão fáceis de compreender, como não confiar em todos esses
sinais, quando, ao mesmo tempo em que vemos em torno de nós, sentimos em nós
mesmos todos os sentimentos correspondentes?
A fábrica deveria ser um lugar de
alegria, um lugar onde, mesmo que fosse inevitável que o corpo a alma
sofressem, também a alma pudesse, no entanto, gozar de alegrias, alimentar-se
de alegria. Para isso seria preciso mudar, de um lado, pouca coisa, do outro
lado, muitas. Todos os sentimentos de forma ou de transformação social
prestam-se a erros; se realizassem,
deixariam o mal intacto; eles visam a mudar um excesso e muito pouco: muito
pouco, o que é a causa do mal; em excesso as circunstâncias que lhe são
estranhas. (p.167-168)
Um dos mais poderosos, em todo
trabalho, é o sentimento de que há algo a fazer, e de que um esforço pode ser
cumprido. Este estímulo, numa fábrica, e principalmente para o operador de
máquinas, é o que, muitas vezes, falta completamente. Quando o operário coloca
mil vezes numa peça em contato com a ferramenta de uma máquina, acaba por
achar-se, e, a isso somando-se o cansaço, na situação de uma criança, a quem se
mandou enfiar continhas para que ficasse quieta; a criança obedece porque tem
medo do castigo e espera um bombom, mas seu ato não tem sentido para ela, a não
ser a conformidade com a ordem dada pela pessoa que tem poder sobre ela. Se o
operário soubesse claramente,dia a dia, momento a momento, que parte está
construindo, nesse conjunto da fábrica, e que lugar ocupa na sociedade a
fábrica em que trabalha, seria outra coisa.
(p.169)
Uma uniformidade que imita os
movimentos dos relógios não os das constelações, uma variedade que exclui toda
regra e toda precisão, produz um tempo que para o homem é inabitável e
irrespirável. (p.173)
Só a transformação das máquinas pode
impedir que o tempo dos operários se assemelhe ao dos relógios; mas não basta;
é preciso que o futuro se abra ante o operário com uma certa possibilidade de
previsão, a fim de que ele tenha o sentimento de progredir no tempo, de
caminhar, a cada esforço, na direção de um certo acabamento. Atualmente o
esforço que ele está realizando, não leva a nenhuma parte, a não se à honra da
saída, mas como um dia de trabalho se segue sempre a outro, o acabamento de que
se trata não é nada mais senão a morte; ele só pode imaginar um outro fim sob a forma de salário, no caso do trabalho
por peças, o que o força a obsessão dos tostões. Oferecer um porvir para os
operários dando a possibilidade de enxergar o trabalho futuro é um problema que
se coloca de diferentes formas, segundo cada caso particular. De uma maneira
geral, a solução desse problema inclui, além
de um certo conhecimento do funcionamento do conjunto da fábrica posto
ao alcance de cada operário em relação à sua seção. Quanto ao futuro próximo,
cada operário deveria, o quanto possível, saber mais ou menos o que terá de
fazer durante os oitos ou quinze dias que se vão seguir, e mesmo ter direito a
uma certa escolha quanto à ordem de sucessão das varias tarefas. Em relação ao
futuro longínquo, ele deveria ter condições de projetar algumas marcas que lhe
determinam o caminho, de uma forma, é claro, menos extensa de menos preciso do
que o patrão e o gerente, mas mesmo assim análoga. Assim, sem que seus direitos
efetivos tinham sido de alguma forma acrescentados, ele participará desse
sentimento de enraizamento de que o
coração do homem tem sede, e que, sem
diminuir a dor, suprime o desgosto. (p.173)
O mal que se trata de curar
interessa também a toda sociedade. Nenhuma sociedade pode ser estável quando
uma categoria inteira de trabalhadores trabalha todo dia, e o dia todo, como
desgosto. Este desgosto do trabalho altera nos operários toda a concepção de
vida, toda a vida. A humilhação degradante que acompanha cada um de seus
esforços procura uma compensação numa espécie de imperialismo operário
entretida pela propagandas derivadas do marxismo; sem um homem que fabrica
porcas e parafusos sentisse, fabricando suas porcas e parafusos, um orgulho
legítimo, não provocaria artificialmente em si mesmo um orgulho ilimitado pelo
pensamento de que sua classe está destinada a fazer a história e a dominar
tudo. O mesmo acontece com a concepção de vida privada, e especialmente da
família e do relacionamento entre sexos; o triste enfraquecimento provocado
pelo trabalho de fábrica deixa um vazio que exige ser preenchido, e que só pode
sê-lo por prazeres rápidos e brutais e a corrupção resultante disso é contagiosa
para todas as classes da sociedade. À primeira vista a correlação não é
evidente; no entanto, há correlação; a família não será verdadeiramente
respeitada pelo povo enquanto uma parte desse povo trabalhar continuamente com
desgosto.
Muitos males que surgiram das fábricas.
É difícil, talvez não seja impossível. Seria preciso primeiro que os
especialistas, engenheiros e outros tomassem mesmo a peito não só construir
objetos, bem como não destruir homens. Não torná-los felizes, mas,
simplesmente, não obrigar nenhum deles a se avaliar. (p.174-175)
Na
guerra civil espanhola
Diário de Espanha
Realmente nada mudou, menos uma
coisinha: o poder é do povo. Os homens de azul comandam. É, atualmente, um
desses períodos extraordinários que até agora tivessem maior continuidade, em
que os que sempre obedecem assumem as responsabilidades. Isso não acontece sem
inconvenientes, é claro. Quando se dá a garotos se de dezesseis anos, fuzis desarmados
em meio de uma população desarmada...
(p.179-180)
Às
vésperas do nazismo
As condições
de uma revolução alemã
1932
Trata-se, na verdade,
menos da Alemanha do que da situação mundial estudada através da Alemanha. A
pergunta que o mundo atualmente se faz, a pergunta que a crise atual da
economia capitalista faz, é, aos olhos de Trotsky, a seguinte: fascismo ou
revolução? A fase atual do regime capitalista – a maioria dos estudos dos
economistas burgueses tendem para essa conclusão – não é mais compatível nem
com o liberalismo econômico, nem, conseqüentemente, com a democracia burguesa.
A economia, e o Estado devem ser dirigidos pelos operários para os operários ou
pelo capitalismo dos bancos e dos monopólios contra os operários. A crise lança
o problema de uma forma aguda. Os meios policiais ordinários não bastam mais
para manter a sociedade capitalista em equilíbrio. É a hora da tática fascista.
Essa tática consiste em movimentar, excitar para o combate contra os operários
“as massas da pequena burguesia enraivecida, os bandos de desclassificados, os
lumpemproletários desmoralizados, todas essas incontáveis existências humanas
que o próprio capital financeiro levou ao desespero e à raiva”. Quanto à
vitória do fascismo, essa “termina no açambarcamento direto e imediato, pelo
capital financeiro, de todos os órgãos e instituições de dominação, de direção
e educação: o aparelho do Estado e o exército, as municipalidades, as
universidades, as escolas, a imprensa, os sindicatos, as cooperativas”. A
fascistização do Estado significa... “antes de mais nada e sobretudo: destruir
as organizações operárias, reduzir o proletariado de um estado amorfo, criar um
sistema de organismos que penetrem profundamente nas massas e sejam destinadas
a impedir a cristalização independente do proletariado. O regime fascista é
exatamente isso”. Assim tudo está ameaçado ao mesmo tempo; não apenas a classe
operária, mas também todas as conquistas da burguesia liberal e toda a cultura
de uma forma geral.
(p.185-186)
A Alemanha à espera
(impressão de agosto e setembro – 1932)
Uma revolução só pode ser dirigida
por homens consciente e responsáveis: poder-se-ia, portanto, formar a
contradição essencial do partido nacional-socialista, dizendo que é o partido
dos revolucionários inconscientes e irresponsáveis. Toda crise grave levanta
massas de pessoas que se arruínam no regime que suportam, sem ter a força de
querer transformá-lo; essas massas, por trás do verdadeiros revolucionários,
poderiam ser uma força; o significado essencial
do movimento hitlerista consiste nisto: em que ele ajuntou uma grande
parte de lado, fazendo assim cair necessariamente sob o controle do grande
capital. O movimento nacional-socialista – já que os chefes acham, com razão, o
termo movimento popular preferível a partido – é, como resultante de sua
própria essência, constituído e intelectuais, de uma ampla massa de pequenos
burgueses, de empregados de escritórios e de camponeses, e de uma parte dos
desempregados; mas , entre estes últimos, muitos são atraídos sobretudo pelo
alojamento, pelo alimento e pelo dinheiro que ganham nas tropas de assalto. O
traço de união entre esses elementos tão
diversos é formado menos por um sistemas de idéias do que por um conjunto de
sentimentos confusos, apoiados por uma propaganda incoerente. Nos campos,
prometem-se altos preços de venda, nas cidades, a vida barata. Os jovens
romanescos são atraídos perspectiva de luta, de dedicação, de sacrifício; os
brutos, pela certeza de uma dia massacrar à vontade. No entanto, uma certa
lista, que alimenta, nos pequenos burgueses, uma intensa saudade da união
sagrada de outrora, batizada como “socialismo da frente”; esse fanatismo,
exasperado por uma sábia demagogia, chega às vezes, nas mulheres, a um furor
quase histérico contra os operários conscientes. Mas, no conjunto do movimento
hitlerista, a propaganda nacionalista se apóia antes de mais nada no
ressentimento certo ou errado que os alemães têm de ser esmagados menos por se
próprio capitalismo do que pelo
capitalismo dos países vitoriosos; daí resulta algo muito diferente do
nacionalismo tolo e exibicionista que se conhece na França, uma propaganda que,
tentando, além disso, convencer de que a maioria dos capitalista da Alemanha
são judeus, se esforça por colocar os termos capitalista e alemão
como dois termos antagônicos. Pode-se medir o poder de irradiação que
possui, neste momento, a classe operaria alemã pelo fato de que o partido
hitlerista apresenta o patriotismo em si como uma forma de luta contra o
capital. (p.201-202)
Antígona
1936
Sófocles é uma dos maiores dentre esse
velhos poetas. Escrever peças de teatro, dramas e comédias; só ficaram alguns
de seus dramas. Em cada um deles a personagem principal é uma pessoa corajosa e
orgulhosa que luta sozinha contra uma situação intoleravelmente dolorosa; ela se curva sobre o preço da injustiça; há
momentos em que a coragem desfalece; mas ela resiste e não deixa nunca degradar
pela infelicidade. Assim, esses dramas, embora dolorosos, nunca deixam uma
impressão de seriedade.
Antígona
é o titulo de uma dessas tragédias. O tema é a história de um ser humano
que, sozinho, sem nenhum apoio, se opõe a seu próprio país, às leis do seu
país, ao chefe do Estado, e que, como se espera, e condenado à morte. Isso
acontece numa cidade grega chama Tebas. Dois irmãos, depois da morte do pai,
disputaram o trono; um deles conseguiu exilar o outro e se tornou rei. O
exilado conseguiu apoios lá fora; voltou para atacar a cidade natal à frente de
um exército estrangeiro, na esperança de retornar ao poder. Houve batalha; os
estrangeiros foram afugentados; mas os dois irmãos se encontrarem no campo de
batalha e matam um ao outro.
Seu tio se torna rei. Decide que os
cadáveres não terão o mesmo tratamento. Um dos dois irmãos morreu para defender
a pátria; corpo será enterrado com todas as honras devidas. O outro morreu
atacando seu próprio país; o corpo ficará largado no chão, entregue ao animais
e aos corvos. É preciso saber que no espírito dos gregos havia desgraça pior
nem humilhação pior do que ser tratado assim depois da morte. O rei anuncia sua
decisão aos cidadãos que lhe diz que se alguém tentar enterrar o cadáver maldito
será castigado com a morte.
Os dois irmãos mortos duas irmãs que
são ainda mocinhas. Uma delas, Ismênia, é ainda uma criança doce e tímida,
dessas que se vêem em qualquer lugar, a outra, Antígona, tem uma coração amante
e uma coragem heróica. Ela não pode suportar o pensamento que o corpo do irmão
seja tratado tão vergonhosamente. Entre os dois deveres de felicidade, a
felicidade do irmão vencido e a felicidade à pátria vitoriosa, ela não hesita
nem por um instante. Recua-se a abandonar o irmão, esse irmão cuja memória é maldita
pelo povo e pelo Estado. Decide enterrar o cadáver apesar da proibição do rei e
da ameaça de morte. (p.373-374)
A Ilíada ou o poema da força
O verdadeiro herói, o verdadeiro
assunto, o centro da Ilíada, é a
força. A força que é manejada pelos homens, a força que submete aos homens, a
força diante a qual a carne dos homens de contrai. A alma humana aparece, no
poema, continuamente modificada por suas relações com força, arrastada,
obcecada pela força que ela julga dominar, curvada sobre a pressão da força que
ela sofre. Os que tinham imaginado que a força, graças ao progresso, pertencia
doravante ao passado, puderem ver nesse poema um documento; os que sabem
discernir a força, tanto hoje como outrora, no centro de toda história humana,
vêem nele o mais belo, o mais puro dos espelhos.
A força é aquilo que transforma quem
quer que seja submetido em uma coisa. Quando ela se exerce até o fim,
transforma o homem em coisa, no sentido mais literal da palavra, porque o
transforma em cadáver. Era uma vez alguém e, um instante depois, não há mais
ninguém. É um quadro que a Ilíada não se cansa de nos apresentar. (p.379)
A força que se mata é uma forma
sumária, grosseira, de força. Quando mais variada em seus processos, quanto
mais surpreendente em seus efeitos é a outra força, a que não mata; ou vai
matar, talvez, ou então está apenas suspensa sobre o ser que pode matar a
qualquer momento, seja como for, ela transforma o homem em pedra. Do poder de
transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um outro poder –
prodigioso sob uma outra forma –, o de transformar em coisa um homem que
continua vivo. Está vivo, tem uma alma; no entanto, é uma coisa. Ser estranho:
uma coisa que tem uma alma. Quem dirá quanto lhe custa, a cada momento,
conforma-se, torcer-se, dobrar-se sobre si mesma? Ela não foi feita para viver
numa coisa; quando é constrangida, tudo nela padece de violência. (p. 380-381)
Os suplicantes, pelo menos, uma vez
atendidos, se tornam outra vez homens como os outros. Mas há seres mais
infelizes que, sem estarem mortos, se tornam coisas para o resto de suas vidas.
Não há em seus dias nenhum jogo, nenhum vazio, nenhum campo livre para algo que
venha deles próprios. Não são homens que vivam mais duramente do que outros,
colocados socialmente mais abaixo que outros; é uma outra espécie humana, um
compromisso entre o homem e o cadáver. Há uma contradição do ponto de vista lógico
no fato de que um ser humano seja uma coisa; mas quando o impossível se tornou
uma realidade, a contradição se torna na alma dilaceramento. Essa coisa aspira
a cada momento ser um homem, uma mulher, e não consegue, em nenhum momento. É
uma morte que estende ao longo de toda uma vida: uma vida que a morte congelou
muito tempo antes de suprimi-la. (p.383)
Não é possível perder mais do que o
que o escravo perde; ele perde toda a sua vida interior. Só reencontra um pouco
dela quando aparece a possibilidade de mudar de destino. Tal é o domínio da
força: domínio que vai tão longe quanto o da natureza. A natureza, também,
quando entram em jogo as necessidades vitais, apaga toda vida interior e até a
dor de uma mãe:
A força manejada por outrem é
imperiosa sobre a alma como a fome extrema, a partir do momento em que é um
poder incessante de vida e de morte. E é um domínio tão frio, tão duro como se
fosse exercido pela matéria inerte. O homem, que em toda a parte é o mais
fraco, está no coração das cidades tão só, mais só do que pode estar o homem
perdido no meio de um deserto. (p.385-386)
Se todos, ao nascerem, estão
destinados a sofrer a pressão da violência, isso é uma verdade para qual o
domínio das circunstâncias embota os espíritos dos homens. O forte nunca é
totalmente forte, nem o fraco totalmente fraco, mas ambos ignoram. Eles não se
julgam da mesma espécie; nem o fraco de considera semelhante ao forte, nem é
olhado como tal. Quem possui a força, anda num meio não resistente, sem que
nada, na matéria humana em seu redor, seja de natureza a suscitar, entre o
impulso inicial e o ato, esse breve intervalo onde se abriga o pensamento. Onde
o pensamento não tiver lugar, nem a justiça nem a prudência o terão. Eis porque
esses homens armados agem dura e loucamente. A arma deles se enterra um
moribundo descrevendo-lhe as injúrias por que seu corpo vai passar. (p.388)
Assim, aqueles a quem a força é
emprestada pelo destino perecem por terem confiado demais nela.
Impossível que não pareçam. Eles não
consideram sua própria força uma qualidade limitada, nem sua relações como os
outros como um equilíbrio entre forças desiguais. Como os outros homens não
impõem a seus movimentos esse tempo de parada, do qual, e só dele, procede
nossas atenções para com os nossos semelhantes, daí inferem que o destino lhes
deu toda permissão a eles e nenhuma a seus inferiores. A partir de então, vão
além da força de que dispõem. Vão inevitavelmente além. Ignoram que ela é limitada.
Ficam, então, entregues ao acaso sem nenhum recurso, e as coisas não lhe
obedecem mais. Às vezes o acaso os ajuda; em outras os prejudica-os; ei-los
expostos nus à desgraça, sem a armadura de poder que protegia sua alma, sem
mais nada, a partir de então, que os separe das lágrimas.
Este castigo de um rigor geométrico,
que pune automaticamente o abuso da força, foi o objeto primeiro da meditação
entre os gregos. Constitui a alma da epopéia; sob o nome de Nêmesis, é a mola
das tragédias de Esquilo; os pitagóricos, Sócrates, Platão, partiram daí para
pensar o homem e o universo. A noção da força se tornou familiar para toda a
parte em que o helenismo penetrou. Foi talvez, essa noção grega, que subsistiu,
sob o nome de Kharma, em países do Oriente impregnados de budismo, mas o Ocidente
a perdeu e nem tem mais, em nenhuma de sua línguas, uma palavra para
significá-la; as idéias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam
determinar a conduta da vida, só têm um emprego servil na técnica. Só diante da
matéria somos geômetras; os gregos foram primeiramente geômetras no aprendizado
da virtude. (p.389)
Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte do Heitor
devia dar uma alegria breve, a Aquiles, e a morte de Aquiles uma alegria breve
aos troianos, e o aniquilamento de Tróia uma alegria breve aos aqueus. (p.392)
Assim a violência esmaga aqueles que
toca. Acaba por aparecer como exterior tanto ao que maneja quanto ao que sofre
com ela; nasce, então, a idéia de um destino sob o qual algozes e vítimas sejam
igualmente inocentes, os vencedores e os vencidos irmãos na mesma miséria. O
vencido é uma causa de infelicidade para o vencedor, como o vencedor para o
vencido. (p.393)
Um uso moderado da força, o único
que permitiria escapar da engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana,
tão rara quanto à dignidade contínua na fraqueza. Aliás, a moderação tampouco
existe sempre sem perigo; pois o prestígio que constitui mais de três quartos
da força, é feito, antes de mais nada, pela soberba indiferença tão contagiosa
que se comunica aos que lhe estão sujeitos. Mas, normalmente, não é um
pensamento político que aconselha o excesso. É a tentação do excesso que é
quase irresistível. (p.393)
Por falta dessa generosidade o
soldado vencedor é como um flagelo da natureza; dominado pela guerra, tanto
quanto o escravo, embora de outra maneira, ele se tornou uma coisa e as
palavras não tem poder sobre ele, bem como sobre a matéria. Um e outro, em
contato com a força, sofrem a conseqüência infalível, que é a de converter os que
são tocados por ela em mudos e surdos.
Tal é a natureza da força. O poder
que ele possui de transformar os homens em coisas é duplo, e se exerce no
sentido de ambos os lados; petrifica diferentemente, mas igualmente, as almas
dos que a sofrem e dos que a manejam. Esta propriedade atinge o mais alto grau
no meio das armas, a partir do momento em que uma batalha se encaminha para uma
decisão. As batalhas não são decididas entre os homens que calculam, trabalham,
tomam uma resolução a executam, mas entre os homens despojados dessas faculdades,
transformados, caídos no nível, ou na matéria inerte que só a passividade, ou
das forças cegas que são apenas impulso. Este é o ultimo segredo da guerra e a Ilíada o exprime em suas comparações,
nas quais os guerreiros aparecem como os símiles seja do incêndio, da
inundação, do vento, dos animais ferozes, de qualquer causa cega de desastre,
seja dos animais medrosos, das árvores, da água, da areia, de tudo o que é
movido pela violência das forças exteriores. Gregos e troianos, de um dia para
outro, às vezes de uma hora para outra, sofrem sucessivamente uma e outra
transmutação: (p.398)
O amor conjugal, condenado à
infelicidade, é de uma surpreendente pureza. O esposo, evocando as humilhações
da escravidão que esperam por sua mulher amada, omite aquela que, só no pensar,
mancharia por antecipação a sua ternura. Nada mais simples do que as palavras
dirigidas pela esposa ao que vai morrer:
(p.400)
Mas o triunfo mais puro do amor, a
graça suprema das guerras é a amizade que sobe o coração dos inimigos mortais.
Ela faz desaparecer a fome de vingança pelo filho morto, pelo amigo morto,
apaga por milagre ainda maior a distância entre benfeitor e suplicante, entre
vencedor e vencido. (p.400-401)
Esses momentos de graça são raros na
Ilíada, mas bastam para fazer sentir
com um desgosto extremo o que a violência faz e fará parecer.
No entanto, tal acúmulo de
violências seria frio sem uma inflexão de amargura incurável que se faz sentir
continuamente, embora muitas vezes seja indicada apenas por uma única palavra,
outras vezes até por um corte de verso, por um encadeamento. Nisso é que a Ilíada é uma obra única, por essa
amargura que procede da ternura, e que se estende sobre todos os humanos, do
mesmo modo que a luz do sol. (p.401)
Toda a Ilíada está à sombra da maior desgraça que pode existir entre os
homens: a destruição de uma cidade. Se o poeta tivesse nascido em Tróia essa
desgraça não parecia mais dilacerante. Mas o tom não muda quando se trata dos
aqueus que parecem bem longe da pátria.
(p.402)
Seja como for, esse poema é uma
coisa milagrosa. A armadura cai sobre a única causa justa de amargura, a
subordinação da alma humana à força, isto é, afinal de contas: à matéria. Essa
subordinação é a mesma em todos os mortais, embora a alma a suporte de diversas
maneiras, conforme o grau de virtude. Ninguém, na Ilíada, lhe escapa, assim como ninguém neste mundo pode
escapar-lhe. Nenhum dos que sucumbem a ela é olhado por isso com desprezível.
Tudo o que, no interior da alma e nas relações humanas, foge ao império da
força, é amado, mas amado dolorosamente, por causa do perigo de destruição
continuamente pendente. Esse é o espírito da única epopéia verdadeira que o
Ocidente possui. (p.404)
O Evangelho é a ultima e maravilhosa
expressão do gênio grego, assim como a Ilíada
é a primeira; o espírito da Grécia transparece nele não só no que aí se
manda procurar – excluindo qualquer outro bem – “o reino da justiça de nosso
Pai celeste”, mas também quando nele se expõe a miséria humana, sofrida por um
ser divino ao mesmo tempo que humano. As narrativas da Paixão mostram que um
espírito divino, unido à carne, é alterado pelo infortúnio, trema ante o
sofrimento e a morte, se sente, no fundo da desgraça, separado dos homens e de
Deus. O sentimento da miséria humana lhes dá esse tom de simplicidade, que a
marca do gênio grego, e que constitui todo o valor da tragédia ática e da Ilíada. Alguma palavras produzem um som
estranhamente vizinho ao da epopéia; e ao adolescente troiano enviado ao Hades,
contra a sua vontade, vem à memória quando Cristo diz a Pedro: “Um outro
tecingirá e te levará para onde não queres ir”. Esse tom é inseparável do
pensamento que inspira o Evangelho; pois o sentimento da miséria humana é uma
condição da justiça e do amor. Quem ignora até que ponto a fortuna variável e a
necessidade mantêm toda alma humana sob sua dependência, não pode olhar como
semelhantes nem amar como a si mesmos que o acaso separou de si por um abismo. A
diversidade das coações que pensam sobre os homens fazer nascer a ilusão de que
há entre eles espécie diversas que não se pode comunicar. Só é possível amar e
ser justo quando se conhece o poder da força e quando se sabe não o respeitar.
As relações entre a alma humana e o
destino; em que medida cada alma modela seu próprio destino; em que é que um
necessidade impiedosa transforma uma alma, esteja ela entregue como estiver ao
destino variável; aquilo que por efeito da virtude e da graça pode permanecer
intacto; tudo isto é matéria em que a mentira é fácil de sedutora. O orgulho, a
humilhação, o ódio, o desprezo, a indiferença, o desejo, de esquecer ou de
ignorar, tudo contribui para fazer a tentação da força. Em particular, nada é
mais raro que uma justa expressão da desgraça; pintando-a, quase sempre se
finge acreditar ora que a queda é uma vocação inata do infeliz, ora que um alma
pode suportar a infelicidade sem ser marcada por ela, sem que ela mude todos os
pensamentos de uma forma que só ela pode fazer. Os gregos, na maioria das
vezes, tiveram a força que permite que uma pessoa não minta a si mesma; foram
recompensados e souberam atingir em tudo o mais alto grau de lucidez, de pureza
e de simplicidade. Mas o espírito que se transmitiu da Ilíada ao Evangelho,
passando pelos pensadores e poetas trágicos, não passou dos limites da
civilização grega, e, desde que se destruiu a Grécia, só restaram reflexos. (p.404, 405 e 406)
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