domingo, 16 de junho de 2024

Martin Buber -Eclipse de Deus

 



 


Considerações sobre a relação entre religião e filosofia

 

Síntese: Paolo Cugini

 

Religião e realidade

 

I

 

Nesse momento, como declara um representante dessa espécie de pessoas em nossa época, é preciso proclamar que Deus está “morto”, Clamor que, na verdade, não diz outra coisa senão que o homem simplesmente se tornou incapaz de apreender uma realidade independente dele e incapaz de relacionar-se com ela – incapaz, também, de apresentá-la e representá-la em imagens que substituam a contemplação que ele já não consegue atingir. Pois as grandes imagens de Deus que o gênero humano produziu surgem não da fantasia, mas de verdadeiros encontros com o poder e a glória verdadeiramente divinos. Na mesma medida em que se paralisa a capacidade de irmos ao encontro de uma realidade que independe de nós, embora também acessível a nossa busca e a nossa entrega, paralisa-se também a capacidade humana de apreender o divino em imagens. (pág.16)

 

III

 

O encontro com a palavra primordial, com o pronunciar primordial de si e não, não pode ser substituído por nenhum encontro comigo mesmo. (pág.20)

 

IV

 

O pensamento da época, em seu caminhar para tornar Deus irreal, compreensivelmente não se deu por satisfeito com reduzi-lo a um princípio moral. A tendência essencial da filosofia depois de Kant voltou-se para a reconstrução do Absoluto em si – para não vê-lo, portanto, como existente unicamente em nós. Por causa da profundidade do que lhe serve de base, o nome de “Deus” tem de ser preservado, mas de tal modo que toda a qualquer ligação com a realidade concreta de nossa vida, como exposta às manifestações de Deus, deixe de ter sentido. O que, para os pensadores Platão e Plotino, Descartes e Leibniz, era fundamentalmente certo, a realidade de uma visão ou de um contato que determina diretamente nossa existência, já não existe no mundo de Hegel (se abstrairmos de seus trabalhos de juventude, que tinham interesses inteiramente diferentes). “O espiritual, aquilo que chamamos Deus”, e que “é a única realidade” é por essência acessível unicamente à razão, não à totalidade do homem que vive sua vida concreta. A abstração radical, com que, para Hegel, a filosofia começa, faz com que, juntamente com todas as outras realidades da existência, desapareça também a realidade de Eu e Tu. O Absoluto, a razão do mundo, a idéia, portanto “Deus”, serve-se, segundo Hegel, de tudo que existe e acontece na natureza e na história, inclusive também do humano, para chegar à sua auto-realização e perfeita autoconsciência, à auto-realização e autoconciência de Deus, porém ele nunca entra em uma relação real e direta conosco nem nos concede nenhuma relação com ele. (pág.20 e 21)

 

VI

Eclipse de luz celeste, eclipse de Deus é, com efeito, o que caracteriza o momento do mundo em que vivemos. Mas esse não é um processo que possa ser adequadamente apreendido a partir de mudanças que tenham ocorrido no espírito humano. Que o sol se eclipse é um fato que ocorre entre ele e nosso olho, não dentro deste. A filosofia também não nos considera cegos para Deus. Ela acha que apenas nos está faltando, hoje, uma constituição do espírito que consiga tornar possível um reaparecimento de “Deus e dos deuses”, um novo desfile de imagens solenes e elevadas. Mas, quando, como aqui, acontece algo entre o céu e a terra, nada se há de conseguir persistindo-se em pretender descobrir a força que revele o mistério dentro da vida terrena. Quem se recusa a suportar a realidade atuante da transcendência, nossa interlocutora, está trabalhando do lado humano desse eclipse. (pág.25 e 26)

Quando, no dia de sua criação – diz uma lenda judaica -, os primeiros homens rejeitaram a Deus e foram expulsos do jardim, pela primeira vez viram o sol se pôr. Ficaram amedrontados, porque não conseguiram entender tal fato a não ser como se, por sua culpa, o mundo estivesse voltado a mergulhar no caos. Durante a noite inteira os dois ficaram sentados, um diante do outro, chorando, e sua conversão aconteceu. Então raiou a amanhã. Adão ergueu-se, pegou um unicórnio e ofereceu-o a Deus como sacrifício. (pág.26)

 

Religião e filosofia

 

II

 

O que é decisivo para a religião autêntica não é o aparecimento do divino como pessoa, e sim que eu me comporte em relação a ele como em relação a um ser diante de mim, se bem que não apenas como um ser diante de mim. Envolver o divino inteiramente na esfera do humano suspende a divindade do divino. Não é necessário que se saiba algo sobre Deus para realmente pensar em Deus, e muitos fiéis verdadeiros sabem falar a Deus, mas não sabem falar de Deus. O Deus desconhecido, quando se tem a coragem de viver para ele, de ir-lhe ao encontro, de invocá-lo, constitui o objetivo legítimo da religião; quem se recusa a deixar Deus limitado ao transcendente tem dele uma idéia maior do que quem o limita a isso; mas quem o limita ao imanente está pensando em outra coisa, e não nele. (pág.28 e 29)

É a situação do homem que não experimenta o divino, que não mais o experimenta como seu parceiro e interlocutor, que não ousa ou não consegue experimentá-lo, pouco importa: como se distanciou dele existencialmente, perdeu-o como parceiro. (pág.30)

Ao homem que já não consegue encontrar-se, mas que continua capaz de pensar, a única questão possível em matéria de religião é poder ou não estar informando da existência de deuses, e essa pergunta, desvinculada de qualquer experiência, tem de, coerentemente, ser negada. Mas, com a completa separação entre filosofia e religião – em que essa última, na melhor das hipóteses, só merece atenção, agora, do ponto de vista intelectual -, pela primeira vez se mencionam a possibilidade e a tarefa de uma radical distinção entre as duas esferas. Essa possibilidade e essa tarefa, evidentemente, abrangem não apenas as épocas da separação, mas também aqueles antigos tempos dos filósofos, em que cada uma ainda está ligado a uma religião e, não obstante, existe uma nítida distinção entre a verdade do pensamento e a realidade da fé, ou mesmo surgem, com o máximo de clareza, muitos traços distintivos importantes, quando consideramos aqueles primeiros tempos. (pág.31)

 

III

 

A dualidade Eu – Tu completa-se na relação religiosa; a dualidade sujeito-objeto é o que sustenta a filosofia enquanto se faz filosofia. A primeira nasce da situação primordial do indivíduo: ele em presença do ente que aponta para ele e para quem ele aponta; a segunda surge da divisão desse conjunto em duas maneiras de ser inteiramente diferente: um ser que esgota sua capacidade no observar e refletir, e outro que não consegue outra coisa senão ser observado e ser refletido. Eu e Tu subsistem graças à concretude vivida e dentro dessa concretude; sujeito e objeto, produtos da força de abstração, só duram enquanto dura a abstração.

A relação religiosa, por mais configurada e organizada que seja, no fundo não é outra coisa senão o desdobramento da existência que nos foi dada; a atitude filosófica é obra da consciência que se faz autônoma, que se apreende e que se quer autônoma. Nela, na filosofia, o espírito do homem se concentra na obra espiritual; pode-se mesmo dizer que só aqui, só sobre a crista elevada sobre a pessoa, passa a ser espírito; mas na religião, onde esta nada mais é que o mero desdobramento da existência como um todo confrontando-se com o Eterno, toda espiritualidade se insere, também, como parte da integralidade pessoal do indivíduo. (pág.32 e 33)

 

V

 

Qualquer afirmação religiosa é uma tentativa frustrada de fazer justiça ao sentido alcançado. Qualquer exteriorização religiosa é apenas indíco de que o sentido foi alcançado. A resposta do povo de Israel no Sinai, “Faremos e ouviremos”, expressa com ingênua e insuperável concisão aquilo que mais importa. O sentido é encontrado e se manifesta quando a própria pessoa participa e se envolve com ele. (pág.36)

 

VI

 

Toda realidade religiosa começa com aquilo que a religião bíblica chama de “temor a Deus”, isto é, com o torna-se incompreensível e ameaçador da existência entre nascimento e morte, com toda segurança ser abalada pelo mistério – não pelo mistério relativo, inacessível apenas à compreensão humana e que, portanto, pode em princípio ser manifestado, o que ainda se desconhece, e sim pelo mistério substancial, de cuja essência faz parte a imperscrutabilidade: o irreconhecível. (pág.36)

Toda manifestação religiosa autêntica possui um caráter pessoal manifesto ou oculto, isto é, expresso a partir de uma situação concreta de que a pessoa participa como pessoa. Isso se manifesta também quando, por uma nobre vergonha, a palavra “Eu” é basicamente evitada. (pág.37)

A manifestação religiosa está ligada à situação concreta.

Ir ao encontro da situação concreta como sendo dada não significa, em absoluto, que alguém tenha de aceitar em toda a realidade nua e crua, como “dado por Deus”, aquilo que em cada caso lhe acontece. Ao contrário, pode manifestar toda a sua hostilidade contra aquilo que acontece, tratando-o como um “fato” destinado apenas a desafiar suas próprias forças. Mas não se subtrairá à forma concreta daquilo que é e acontece; antes mesmo sob a forma de luta, a enfrentará sobre si e dentro de si. (pág.37 e 38)

 

VII

 

A história da filosofia grega é a história de uma optização do pensamento, que em Platão chegou à clareza definitiva e se completou em Plotino. O objeto desse espetáculo visual do pensamento é o universal, como o ente ou o superente. A filosofia está fundamentada no pressuposto de que no universal se contemple o Absoluto.

Em oposição a ela, a religião, quando precisa determinar-se filosoficamente, tem de dizer que está voltada para a aliança do absoluto com o particular, com o concreto. É por isso que o processo central da filosofia cristã, a disputa escolástica em torno dos universais, em que se tratava da realidade ou não-realidade do universal, era no fundo uma luta entre religião e filosofia, e é nisso que se encontra sua permanente durabilidade. (pág.40 e 41)

 

VIII

 

Na realidade religiosa, a pessoa uniu-se a uma totalidade, pois somente com um ser unificado ela consegue viver religiosamente. Nessa totalidade, naturalmente, está incluído também o pensamento, como uma esfera de autonomia, mas que não vai mais se esforça pela absolutização dessa autonomia. Também no verdadeiro filósofo ocorre uma totalização, porém não uma união; ao contrário, aqui o pensamento impregna e supera todos os poderes e reinos da pessoa, de modo que, no grande ato de filosofar, mesmo as pontas dos dedos pensam – mas deixam de apalpar. (pág.44)

 

O amor a Deus e a idéia de Deus

 

I

 

Pascal, na verdade, não era um filósofo, era um matemático, e para um matemático é muito mais fácil do que para um filósofo distanciar-se do Deus dos filósofos. Mas se o filósofo, para realizar verdadeiramente essa mudança, tivesse, de alguma forma conceitual, que renunciar a incluir Deus em seu sistema, em lugar de conter Deus em seu sistema como um objeto entre outros, mesmo que o mais elevado, então sua filosofia como um todo e em todas as usas partes haveria de apontar para ele sem no entanto tratar dele próprio. Porém isso significa que o filósofo tentaria de reconhecer e confessar que sua idéia do Absoluto é anulada no exato ponto em que o Absoluto vive; que ela é anulada lá onde se ama o Absoluto, porque aí o Absoluto já não é “o Absoluto”, sobre o qual se pode filosofar, mas é Deus. (pág.48)

 

Religião e pensamento moderno

 

I

 

Meu assunto deverá ser unicamente o pensamento moderno na medida em que atribui a si próprio a tarefa de decidir se e em quais condições, ou dentro de quais limites, deve ser atribuído à religião um caráter de realidade humana. Um julgamento sobre isso se encontra, por um lado, no sentido ontológico, no assim chamado existencionalismo de Heidegger e Sartre, e, por outro, no sentido psicológico, na teoria do inconsciente coletivo de Jung. (pág.61)

O que Sartre nos quer ensinar, ele o diz co bastante clareza: “Esse silêncio do transcendente, associado à preservação da necessidade religiosa no homem moderno, é, hoje como ontem, a grande questão. É esse o problema que atormenta Nietzsche, Heidegger, Jaspers”.[1] Noutras palavras: o existencialismo tem de criar coragem, tem de abolir a necessidade religiosa, que já não convém ao nosso tempo, tem de deixar de lado a busca de Deus, tem de “esquecer” Deus.[2] O homem, depois de uma crise de séculos, tanto da fé quanto da ciência, tem de finalmente recuperar a liberdade criadora que um dia ele transferiu para Deus e se reconhecer como o ser cujo aparecimento faz com que o mundo exista. “Pois”, diz Sartre, “não existe nenhum outro universo a não ser o humano, o universo da subjetividade humana”.[3] A frase que acabei de citar soa como a tese de um idealismo renovado. (pág.63)

Sartre partiu do “silêncio” de Deus, mas sem se interrogar sobre a parcela que disso cabe a nossa não-ouvir e a nosso não-ter-ouvido. Do silêncio ele conclui que Deus não existe ou, pelo menos, não existe para nós, [4] pois um Deus de quem eu sou objeto sem que ele o seja para mim nada significa para mim. Essa conclusão tornou-se possível a Sartre porque ele viu como relação primária a exclusiva entre dois seres a relação sujeito-objeto, sem perceber a relação original e decisiva entre Eu e Tu, diante da qual a relação sujeito-objeto é apenas uma elaboração organizativa. Mas Sartre ainda vai adiante: “Temos de extrair as conseqüências”.[5] Deus se cala, isto é, nada de incondicional ou de incondicionalmente vinculante é dito a quem quer que seja. (pág.66)

Como Sartre, também Heidegger se liga à sentença de Nietzsche, “Deus está morto”, que comenta amplamente.[6] Para ele está claro que, com isso, Nietzsche pretendia desfazer-se não somente de Deus, mas também do Absoluto em todas as suas formas – portanto, no fundo, não apenas da religião, mas também da metafísica. Heidegger, na verdade, acredita que nessa negação extrema ele pode, com uma posição nova, começar por um pensamento puramente ontológico, a doutrina do ser, que chega a estabelecer-se no homem ou através do homem – uma doutrina que a colocação de Parmênides sobre o ser, como o absoluto que antecede e está acima, se entrelaça curiosamente com a teoria de Hegel sobre o princípio primordial que alcançou a autoconsciência no espírito humano. (pág.67 e 68)

Por certo, na concepção de Heidegger,[7] não é o homem que decide se e como o divino volta a aparecer; ao contrário, explica, tal aparecer só pode ocorrer a partir do destino do ser. Mas, uma vez que, como condição para isso, se menciona que “antes e em longa preparação o próprio ser tenha se esclarecido e se tornando experiente em sua verdade”,[8] não pode existir dúvida sobre a parte que nisso cabe ao pensamento humano da verdade, em que, precisamente, se esclarece “se e como raiar do sagrado”. Heidegger costuma entender esse ainda incerto raiar do sagrado como o fundo luminoso sobre o qual, então, “pode começar um reaparecer de Deus e dos deuses”. (pág.69)

Mas quero me restringir as suas teses sobre o divino. Essas teses, pela extremada consciência dos limites auto-impostos, só se ocupam com seu “aparecer” e, de modo especial, com as condições de seu futuro reaparecer, que fazem parte do pensamento humano, mais precisamente do pensamento humano sobre o ser. O que mais me chama atenção nessas teses, e o que mais me parece questionável, é que elas tomam como objeto aquilo ou aquele cujo possível aparecer ou reaparecer é designado como o divino, ou como Deus. Pois com essa palavra, desde que o homem passou a encontrar palavras para falar do eterno inominado, têm sido continuamente designados, em todas as línguas, objetos transcendentes, isto é, que por sua essência não são mencionados como objetos conhecíveis, mas dos quais, não obstante, temos consciência como havendo entrado em relação conosco, mudando de figura, preservando a figura sem possuir figuras e concedendo-nos entrar em relação com eles. O ser voltou-se de sua transcendência para nós, desceu até nós na imanência, manifestou-se a nós, falou a nós. Aquele que procede do mistério de sua inacessibilidade chegou por vontade própria – não fomos nós que fizemos com que ele viesse. Foi isso que desde sempre distinguiu religião de magia, pois aquele a quem erroneamente julgamos haver conjurado – mesmo que possa ser figurado como Deus – já não pode ser criado como Deus – tornou-se para os homens um feixe de forças, sobre o qual eles dispõem de um conhecimento secreto e de um poder secreto; se alguém conjura, a palavra não é mais dirigida a ele, nele já não surge resposta e, mesmo recitando uma oração, ele não ora mais. (pág.71 e 72)

 

II

 

Seja como for, a religião é apenas uma questão da relação do homem com Deus, não do próprio Deus. Por isso é muito importante que ouçamos o que Jung pensa a respeito do próprio Deus. Ele o entende, em geral, como um “conteúdo autônomo e psíquico”[9] – portanto não como um ser ou uma essência à qual corresponda um conteúdo. Se não for assim, acrescenta, “também Deus não será real, pois então ele não intervém em parte alguma de nossa vida”. (pág.77)

 

Religião e ética

 

A essência da relação entre o ético e o religioso não se deixa determinar por meio de nenhuma comparação entre as doutrinas éticas e as religiosas. Ao contrário, temos de penetrar em ambas as esferas, lá onde elas tomam formas na situação pessoal concreta; o que para nós importa, assim, é, por um lado, a efetiva decisão moral do indivíduo e, por outro, sua efetiva relação com o Absoluto; em nenhum dos casos o que está em jogo é uma mera faculdade da pessoa, com o pensamento, o sentimento ou a vontade, e sim o conjunto dessas faculdades ou, melhor ainda, o homem integral. Uma terceira esfera, superior a essas duas, não nos é dada; conseguimos apenas fazer com que as duas sejam confrontadas, de tal forma que nesse encontro cada uma delas determine sua relação com a outra. Se dessa maneira concreta consideramos a relação entre as duas esferas a partir do religioso, percebemos sua forte tendência de irradiação sobre toda a vida da pessoa, o que provoca ampla mudança de estrutura: uma religiosidade viva procura produzir uma ética viva. (pág.93 e 94)

 

De uma suspensão da ética

Dever é precisamente o que expressa a vontade de Deus. Noutras palavras: Deus estabelece a ordem de bem e mal - e a quebra quando quer e de pessoa para pessoa. (pág.108)

Vivemos uma época em que a suspensão do ético invade grotescamente o mundo dos homens. É certo que na terra sempre s reuniram os que arremedam o Absoluto, sempre os homens surgiram das sombras para entregar seus Isaacs, é certo que aqui vale a sentença de que somente o próprio indivíduo é capaz de imaginar o que é por ele considerado como Isaac. Mas em todas essas épocas existiram também, na câmara do coração dos homens, imagens do Absoluto, em parte pálidas, em parte grosseiras, todas elas infiéis e no entanto corretas, passageiras como um sonho e não obstante com atestado de eternidade. Por menos confiável que tenha sido essa presença, qualquer um, contanto que ela atente concretamente, tem necessidade apenas de apelar a ela para não sucumbir ao engano das vozes. Isso mudou desde o “Deus está morto” de Nietzsche, ou seja, dito de forma realista, desde que a força do coração passou a definhar – desde que o olho do espírito deixou de perceber a manifestação do Absoluto. Os falsos absolutos governam a alma, que não consegue mais afugentá-los pela imagem do verdadeiro. Em toda parte, por toda a superfície do mundo dos homens, no Oriente e no Ocidente, na esquerda e na direita, eles transgridem, sem empecilhos, a camada do ético e exigem de ti “o sacrifício”. Continuamente, quando pergunto a essas almas jovens e boas: “Por que entregas o que te é mais caro, a autenticidade de tua pessoa?”, recebo como resposta: “É isto mesmo, é este sacrifício supremo que precisa ser feito para que...” Não importa – “para que venha a igualdade”, ou “para que venha a liberdade” ou seja lá o que for. E com toda a confiança são sacrificados. No reino de Moloque os sinceros mentem e os mansos torturam, verdadeiramente convencidos de que a morte dos irmãos abrirá o caminho para a fraternidade! Parece não haver nenhuma maneira de fugir a essa que é a pior de todas as idolatrias.

Não haverá escapatória enquanto não tiver surgindo uma nova consciência do homem, que o desperte e, com as forças mais primitivas de sua lama, o impeça de fazer confusão entre o candidato e o Absoluto, de perceber o que é aparência e engano e corrigi-lo. Sempre e sempre perscrutar com o olhar o falso absoluto, até descobrir suas fronteiras, suas limitações – talvez não exista hoje outro caminho para despertar novamente aquela força do olhar que é capaz de aprender a manifestação do Absoluto que nunca desaparece. (pág.111 e 112)

 

Deus e o espírito do homem

 

Desde os tempos remotos, a realidade da relação de fé – o estar o homem em presença do divino, o discutir o acontecimento do mundo – é ameaçada por sua inclinação para dispor da força do além. Em lugar de entender as ocorrências como chamados endereçados a alguém, o homem pretende assumi-las ele próprio, sem que precise escutá-las. “Eu tenho”, diz o homem, “poder sobre os poderes que invoco”. E, com toda espécie de modificações que o acompanham, prossegue então em toda parte em que são praticados ritos, sem se voltar para o Tu, sem realmente se voltar para sua presença.

O outro adversário pseudo-religioso da relação de fé, cujo efeito não é tão elementar quanto o da conjuração, mas que usa a plena força do intelecto, é o desvelamento. Aqui o homem assume a atitude de levantar a cortina que separa o oculto do manifesto ou do revelado. Ele diz: “Tenho conhecimento do desconhecido e o dou a conhecer”. O pretenso Algo divino que o mago manipulava como o técnico manipula seu dínamo, todo o aparato divino, é desvendado pelo gnóstico. Foi transmitido em herança não apenas às “teosofias” e seus acompanhantes; em muitas teologias, por trás dos atos de explicação, pode ser percebido o gesto desocultador.

Encontramos essa substituição do Eu – TU pelo Eu-Algo sob múltiplas formas nessa nova filosofia da religião que busca “salvar” a religião. Nela, o Eu dessa relação assume cada vez mais o primeiro plano como “sujeito” do “sentimento religioso”, como beneficiário de uma decisão pragmática na qual se deve acreditar, e assim por diante.

Bem mais importante que tudo isso, no entanto, é um processo que se infiltra até o mais íntimo da vida religiosa e pode ser designado como a subjetivação da ação de fé. Sua natureza pode ser exemplificada com mais clareza na oração. (pág.115 e 116)

 



[1] “Um nouveau mystique”, p. 153.

[2] Op. cit. P. 154.

[3] L’existentialisme..., p.93.

[4] “L’existence d”autrui”, pp. 286 e segs., 341.

[5] L’existentialisme..., pp. 33 e segs.

[6] “Nietzsche Wort ‘Gott ist tot”’, in Holzwege, 1950, pp. 193 e segs.

[7] Op. cit., p. 75.

[8] Op. cit., p. 75.

[9] Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten, 1928, p. 205.

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