Síntese: Paolo Cugini
1
As
necessidades da alma
O objeto da obrigação, na área de
coisas humanas, é sempre o ser humano como tal. Há obrigação para com todo ser
humano, pelo simples fato de ele ser um ser humano, sem que nenhuma outra
condição precise intervir, mesmo que ele não reconhecesse nenhuma.
Esta obrigação é eterna. Ela
corresponde ao destino eterno do ser humano. Só o ser humano tem um destino
eterno. As coletividades humanas não o têm. Então, não há para com elas,
obrigações diretas que sejam eternas. Só é eterno o dever para com ser humano
como tal.
Esta obrigação é incondicionada. Se está
fundada sobre alguma coisa, essa alguma coisa não pertence a nosso mundo. No
nosso mundo, ela não está fundada sobre nada. É a única obrigação relativa às
coisas humanas que não está submetida a nenhuma condição.
Esta obrigação tem não um
fundamento, e sim, uma verificação no acordo da consciência universal. (p.09)
É, portanto, uma obrigação eterna
para com o ser humano não o deixar passar fome, quando se tem ocasião de
socorrê-lo. Sendo esta obrigação a mais evidente, ela deve servir de modelo
para estabelecer a lista dos deveres eternos para com todo ser humano. Para ser
estabelecida com todo o rigor, esta lista deve proceder deste primeiro exemplo
por analogia. (p.10)
Em conseqüência, a lista das
obrigações para com o ser humano deve corresponder à lista daquelas
necessidades humanas que são vitais, análogas à fome.
Entre essas necessidades, algumas
são físicas, como a própria fome. São bastante fáceis de enumerar. Concernem à
proteção contra a violência, moradia, roupas, calor, higiene, cuidados em caso
de doença. (p.10-11)
O homem precisa, não de arroz ou de
batatas, mas de comida; não de madeira ou carvão, mas de aquecimento.
Igualmente para as necessidades da alma, é preciso reconhecer as satisfações
diferentes, mas equivalentes, respondendo às mesmas necessidades. É preciso
também distinguir dos alimentos da alma os venenos que, de tempos em tempos,
podem dar a ilusão de fazer às vezes de alimento.
A ausência de tal estudo força os
governos, quando têm boas intenções, a agitarem-se cegas.
A ordem
A primeira necessidade da alma, a
que está mais próxima de seu destino eterno, é a ordem, ou seja, um tecido de
ralações sociais tal que ninguém seja coagido a violar obrigações rigorosas
para se executar outras obrigações.
(p.13-14)
A liberdade
Um alimento indispensável à alma
humana é a liberdade. A liberdade, no sentido concreto da palavra, consiste
numa possibilidade de escolha. Trata-se, evidentemente, de uma possibilidade
real. Em toda a parte em que a vida coletiva, é inevitável que regras, impostas
pela utilidade coletiva, limitem a escolha.
A obediência
A obediência é uma necessidade vital da alma
humana. É de duas espécies: obediência a regras estabelecidas e obediência a
seres humanos vistos como chefe. Supõe o consentimento, não para com cada uma
das ordens recebidas, mas sim um consentimento concedido de uma vez por todas,
sob a única reserva, se for o caso, das exigências da consciência. (p.17)
Sendo a obediência um alimento necessário à
alma, todo aquele que está definitivamente privado dela está doente. Assim,
toda coletividade regida por um chefe soberano que não é responsável por
ninguém encontra-se entre as mãos de um doente. (p.18)
Mil sinais mostram que os homens de nossa
época tinham, há muito tempo, fome de obediência. Mas aproveitou-se isso para
lhe dar a escravidão.
(p.18)
A responsabilidade
A iniciativa e a responsabilidade, o
sentimento de ser útil e até mesmo indispensável, são necessidades vitais da
alma humana.
A privação completa a esse respeito
é o caso do desempregado, mesmo que seja socorrido de forma a poder comer,
vestir-se e morar. Ele não é nada na vida econômica, e o voto que constitui sua
parte na vida econômica, e o voto que constitui sua parte na vida política não
tem sentido para ele.
A igualdade
A igualdade é uma necessidade vital da
alma humana. Consiste no reconhecimento público, geral, efetivo, expresso
realmente pelas instituições e costumes, de que a mesma quantidade de respeito
e de atenções é devida a todo ser humano, porque o respeito é devido ao ser
humano como tal e não tem graus.
(p.19)
Poe conseqüências, as diferenças
inevitáveis entre os homens jamais devem ter o significado de uma diferença no
grau de respeito. Para que não sejam sentidas como tendo esse significado, é
preciso um certo equilíbrio entre o igualdade e a desigualdade. (p.19-20)
A igualdade e tanto maior quanto as
diferentes condições humanas são vistas como sendo, não mais ou menos uma do
que a outra, mas simplesmente outras. Que a profissão de mineiros e a de
ministro seja simplesmente duas vocações diferentes, como as de poeta e
matemático. Que as durezas materiais ligadas à condição de mineiro sejam
consideradas em honra dos que as sofrem. (p.22)
A hierarquia
A hierarquia é uma necessidade vital
da alma humana. Ela é constituída por uma cesta veneração, um certo devotamento
para com os superiores, considerados não em suas pessoas nem no poder que
exercem, mas como símbolos. Aquilo de que são símbolos é essa área que se
encontra acima de todo homem e cuja expressão neste mundo é constituída pelas
obrigações de cada homem para com seus semelhantes. Verdadeira hierarquia supõe
que os superiores tenham consciência dessa função de símbolo e saibam que ela é
o único objeto legítimo do devotamento de seus subordinados. A verdadeira
hierarquia tem como efeito levar cada um a se instalar moralmente no lugar que
ocupa. (p.22-23)
A honra
A honra é uma necessidade vital da
alma humana. O respeito devido a casa ser humano como tal, mesmo que seja
efetivamente concedido, não basta para satisfazer essa necessidade; pois ela é
idêntica para todos e imutável; ao passo que a honra tem relação com um ser
humano considerado, não simplesmente como tal, mas em seu meio social. Essa
necessidade é plenamente satisfeita, se cada uma das coletividades das quais um
ser humano é membro lhe oferecem uma participação em uma tradição de grandeza encerrada
em seu passado e publicamente reconhecida fora. (p.23)
Toda opressão cria uma penúria a
respeito da necessidade de honra, pois as tradições de grandeza possuídas pelos
oprimidos não são reconhecidas, por falta de prestígio social. (p.23)
O castigo
O castigo é uma necessidade vital da
alma humana. Ele é de duas espécies, disciplinar e penal. Os da primeira
espécie oferecem uma segurança contra os desfalecimentos, com os quais a luta
seria extenuante demais se não houvesse um apoio exterior. Mas o castigo mais
indispensável à alma é o do crime. Pelo crime um homem coloca a si próprio fora
da rede de obrigações eternas que vincula cada ser humano a todos os outros.
Não pode ser reintegrado a não ser pelo castigo, plenamente se houver consentimento
de sua parte, se não imperfeitamente. Assim como a única maneira de demonstrar
respeito àquele que passa fome é dar-lhe de comer, também o único meio de
demonstrar respeito àquele que se colocou fora da lei é reintegrá-lo na lei
submetendo ao castigo que ela prescreve. (p.24)
A desconsideração pela política, a
leviandade dos magistrados, o regime das prisões, a desclassificação definitiva
dos cadastros na política; a escala das penas que prevê uma punição muito mais
cruel para dez roubos minúsculos do que para uma violação ou certos
assassinatos, e que chega a prever punições para o simples acidente, tudo isso
impede que exista entre nós o que quer que seja que mereça o nome de
castigo. (p.25)
A liberdade de opinião
A liberdade de opinião e a liberdade
de associação são geralmente mencionadas juntas. É um erro. Salvo no caso dos
agrupamentos naturais, a associação não é uma necessidade, e sim um expediente
da vida prática. (p.26)
Ao contrário, a liberdade de
expressão total, ilimitada, para toda opinião qualquer que seja, sem nenhuma
restrição nem reserva, é uma necessidade absoluta para a inteligência. Por
conseqüência, é uma necessidade da alma, pois quando a inteligência não está à
vontade, toda alma está doente. A natureza e os limites da satisfação
correspondem a essa necessidade estão inscritos na própria estrutura das
diferentes faculdades da alma. Pois uma mesma coisa pode ser limitada e
ilimitada, como se pode prolongar indefinidamente o comprimento de um retângulo
sem que ele deixe de se limitado na largura. (p.26)
Mas a posição dos imbecis e dos
covardes não deixava de estar em vasta medida em conformidade com a razão. Os
escritores têm uma maneira admissível de jogar nos dois quadros. Nunca tanto
quanto na nossa época pretenderam o papel de diretores de consciência e o
exercem. De fato, durante os anos que precederam a guerra, ninguém lhos
disputou exceto os cientistas. O lugar outrora ocupado pelos padres era detido
por físicos e romancistas, o que basta para medir o valor de nosso progresso.
Mas se alguém pedia contas aos escritores da orientação de sua influência,
refugiavam-se com indignação por trás do privilégio sagrado da arte pela arte. (p.28)
Alem disso, a própria necessidade de
liberdade, tão essencial à inteligência, exige uma proteção contra a sugestão,
a propaganda, a influência por obsessão. São modos de coerção, uma coerção
particular, que o medo ou a dor física não acompanham, mas não deixa de ser uma
violência. A técnica moderna fornece-lhe instrumentos extremamente eficazes.
Essa coerção, por sua natureza, é coletiva, e as almas humanas são suas
vitimas.
(p.29)
De mesmo modo, pode haver repressão
contra a imprensa, os programas radiofônicos, e qualquer outra coisa parecida,
não somente por atentado as princípios de moralidade publicamente reconhecidos,
mas pela baixeza do tom e do pensamento, o mau gosto, a vulgaridade, por uma
atmosfera sorrateiramente corruptora. (p.29)
Muito pelo contrário, a proteção da
liberdade de pensar exige que seja proibido por lei a um grupo de expressar uma
opinião. Por que quando um grupo se põe a ter opiniões, tende inevitavelmente a
impô-las a seus membros. Cedo ou tarde, os indivíduos se encontram impedidos,
com um grau de rigor maior ou menor, sobre um número de problemas mais ou menos
considerável, de expressar opiniões opostas às do grupo, a não ser que saiam
dele. Mas a ruptura com um grupo do qual se é membro acarreta sempre sofrimentos,
pelo menos um sofrimento sentimental. E na medida em que o risco, a
possibilidade de sofrimento, são elementos saudáveis de necessários da ação, na
mesma medida são coisas nocivas no exercício da inteligência. Um temor, mesmo
leve, provoca sempre seja abaixamento, seja enrijecimento, segundo o grau de
coragem, e não é preciso mais para falsear o instrumento de precisão
extremamente delicado e frágil que a inteligência constitui. Mesmo a amizade a
esse respeito é uma grande perigo. A inteligência é derrotada logo que a
expressão dos pensamentos é precedida, explícita ou implicitamente, da
palavrinha “nós”. E quando a luz da inteligência se obscurece, ao fim de um
tempo bastante curto o amor pelo bem se perde.
A solução prática imediata é a
abolição dos partidos políticos.
(p.30)
A segurança
A segurança é uma necessidade
essencial da alma. A segurança significa que a alma não está sob o peso do medo
ou do terror, exceto pelo efeito de um concurso de circunstâncias acidentais e
por momentos raros e curtos. O medo ou terror, como estado de alma duradouro,
são venenos quase mortais, que a causa seja a possibilidade do desemprego, ou a
repressão policial, ou a repressão de um conquistador estrangeiro, ou a espera
de uma invasão provável, ou qualquer outra desgraça que parece ultrapassar as
forças humanas. (p.35)
O risco
O risco é uma necessidade essencial
da alma. A ausência de risco suscita uma espécie de tédio que paralisa de modo
diferente do medo, mas quase tanto. Aliás há situações que, implicando uma
angústia difusa sem riscos precisos, comunicam as duas doenças simultaneamente. (p.36)
A proteção dos homens contra o medo
e o terror, não implica a supressão do risco; implica ao contrario a presença
permanente de uma certa quantidade de riscos em todos os aspectos da vida
social; pois a ausência de risco enfraquece a coragem a ponto de deixar a alma,
se for o caso, sem a menos proteção interna contra medo. É preciso somente que o risco se
apresente em condições tais que não se transforme em sentimento de
fatalidade. (p.36)
A propriedade privada
A propriedade privada é uma
necessidade vital da alma. A alma fica isolada, perdida, se não estiver no meio
de objetos que sejam para ela como um prolongamento dos membros do corpo. Todo
homem é insensivelmente levado a se apropriar pelo pensamento de tudo o que
usou por muito tempo e continuamente para o trabalho, o prazer ou as
necessidades da vida. Assim um jardineiro, ao fim de certo tempo, sente que o
jardim é dele. Mas onde o sentimento de apropriação não coincide com a
propriedade jurídica, o homem e continuamente ameaçado por separações muito
dolorosas.
Se a propriedade privada for reconhecida
como uma necessidade, isso implica para todos à possibilidade de possuir outra
coisa alem dos objetos de consumo corrente. (p.37)
A verdade
A necessidade de verdade é mais
sagrada do que qualquer outra. No entanto, jamais é mencionada. Fica-se com
medo de ler quando se percebeu uma vez a quantidade e a enormidade das
falsidades materiais expostas sem vergonha, mesmo nos livros dos autores mais
reputados. Lê-se então como se beberia a água de um poço duvidoso. (p.38-39)
Não há nenhuma possibilidade de
satisfazer num povo a necessidade de verdade, se não se puder achar para este
fim homens que amem a verdade.
(p.41)
2
O desenraizamento
O enraizamento é talvez a
necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais
difíceis de definir. Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e
natural na exigência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do
passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, ou seja,
ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser
humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua
vida normal, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz
parte naturalmente.
(p.43)
Há desenraizamento todas as vezes
que há conquista militar, e nesse sentido a conquista é quase sempre um
mal. (p.44)
Mesmo sem conquista militar, o
poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor uma influência
estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento. (p.44)
O dinheiro destrói as raízes e
toda parte onde penetra, substituindo todos os móbiles pelo desejo de ganhar.
Vence sem dificuldades todos os outros móbiles porque pede um esforço de
atenção muito menor. Nada é tão clara e tão simples quanto uma cifra. (p.44)
Desenraizamento operário
Há uma condição social inteira e
perpetuamente suspensa ao dinheiro, é o salário, sobretudo desde que o salário
por peça obriga cada operário a manter a atenção sempre fixa no cálculo do
dinheiro. É nesta condição social que a doença do desenraizamento é mais
aguda. (p.44)
O segundo fator de desenraizamento
é a instalação como é concebida hoje. O Renascimento provocou em toda parte um
corte entre as pessoas cultas e a massa; mas ao separar a cultura da tradição
nacional, ela mergulhava pelo menos na tradição grega. Desde então, os laços
com as tradições nacionais não foram reatados, mas a Grécia foi esquecida.
Disso se resultou uma cultura que se desenvolveu num meio restrito, separado do
mundo, uma atmosfera confinada, uma cultura consideravelmente orientada para a
técnica e influenciada por ela, muito tingida de pragmatismo, extremamente
fragmentada pela especialização, completamente desprovida ao mesmo tempo de
contato com esse universo e de abertura para outro mundo.
Em nossos dias, um homem pode
pertencer aos meios, ditos cultos, por um lado sem ter nenhuma concepção a
respeito do destino humano, por outro lado sem saber, por exemplo, que todas as
constelações não são visíveis em todas as estações. (p.45)
O que se chama hoje instruir as
massas é pegar essa cultura moderna, elaborada num meio tão fechado, tão
doentio, tão diferente à verdade, tirar-lhe tudo o que ela ainda possa conter
de outro puro, operação que se chama vulgarização, e enfornar o resíduo tal e
qual na memória dos infelizes que desejam aprender, como se enfia comida pela
goela de pássaros.
Aliás, o desejo de aprender por
aprender, o desejo de verdade tornou-se raríssimo. (p.46)
O desenraizamento é de longe a
doença mais perigosa das sociedades humanas, pois multiplica-se a si mesmo.
Seres verdadeiramente desenraizados não têm senão dois comportamentos
possíveis: ou caem numa inércia da alma quase equivalente à morte, como a maior
parte dos escravos no tempo do Império Romano, ou se jogam numa atividade que
tende sempre desenraizar, frequentemente pelos métodos mais violentos, aqueles
que ainda não o estão ou não o estão senão em parte. (p.47)
Quem é desenraizado desenraiza. Quem
é enraizado não desenraiza.
(p.47)
Nesta situação quase desesperada,
não se pode encontrar socorro aqui em baixo senão nas ilhotas de passado
mantidas vivas na superfície da terra.
(p.50)
O amor pelo passado não tem nada
haver com a orientação política reacionária. Com todas as atividades humanas, a
revolução extrai toda sua selva de uma tradição. (p.50)
Há vários séculos, os homens de raça
branca vêm destruindo o passado toda parte, estupidamente, cegamente, em sua
terra e fora dela. Se em alguns aspectos houve, contudo progresso verdadeiro
durante esse período, não é por causa dessa raiva, mas apesar dela, sob a
impulsão do pouco de passado mantido vivo.
O passado destruído jamais retorna.
A destruição do passado é talvez o maior crime. Hoje, a preservação do pouco a
que resta deveria tornar-se quase uma idéia fixa. É preciso para como o
desenraizamento terrível que os métodos coloniais dos europeus sempre produzem,
mesmo sobre formas menos cruéis. É preciso abster-se, após a vitória, de punir
o inimigo vencido, desenraizando-o ainda mais; desde que não é possível nem
desejável exterminá-lo, agravar sua loucura seria mais louco do que ele. É preciso
também ter em vista, antes de tudo, em toda inovação política, jurídica ou
técnica susceptível de repercussões sociais, um arranjo que permita aos seres
humanos retomar suas raízes.
(p.51)
Só a J.O.C. [Juventude Operária
Cristã] se dedicou à desgraça da adolescência operária; a existência de tal
organização é talvez o único sinal certo de que o cristianismo não morreu entre
nós. (p.61)
A formação de uma juventude
operária deve ultrapassar a formação puramente profissional. Ela deve,
evidentemente, comportar uma educação, com a formação de toda juventude; e para
isso é desejável que o aprendizado não se faça nas escolas, onde sempre se faz
mal, e sim esteja mergulhado não se pode mais confiá-lo às fábricas. Devem-se
fazer esforços de invenção. Seria preciso algo que combinasse as vantagens da
escola profissional, as do aprendizado na fábrica, as do canteiro de obras de
companheiros do tipo atual, e muitas outras coisas mais.
Mas a formação de uma juventude
operária, sobretudo num país como a França, implica também uma instrução, uma
participação em uma cultura intelectual. É preciso que elas se sintam em casa
num mundo do pensamento.
Que a participação, e que cultura? É
um debate que dura há muito tempo. Em certos meios, antigamente, falava-se
muito de cultura operária. Outros diziam que não há cultura operária ou não
operária, mas cultura simplesmente. Esta observação teve como efeito, em suma,
fazer conceder aos operários mais inteligentes e mais ávidos de aprender o
tratamento que se concede aos secundaristas semi-idiotas. As coisas puderam às
vezes passar-se um pouco melhor, mas globalmente está bem aí o principio da
vulgarização, tal como é compreendida em nossa época. A palavra é tão medonha
quanto à coisa. Quando se tiver algo quase satisfatório a designar, será
preciso achar outra palavra.
Certo, e verdade é una, mas o erro é
múltiplo; em toda cultura, salvo no caso de perfeição, que para o homem não é
senão um caso limite há mistura de verdade e de erro. Se nossa cultura
estivesse próxima da perfeição, estaria situada acima das classes sociais. Mas
como é medíocre, é em ampla medida uma cultura de intelectuais burgueses, e
mais particularmente, há algum tempo, uma cultura de intelectuais funcionários
públicos. (p.63)
O que torna nossa cultura tão
difícil e comunicar ao povo, não é que ela seja alta demais, é que é baixa
demais. Adota-se um remédio singular abaixando-a ainda mais antes de lha fornecer-me
pedaços. (p.63)
Há dois obstáculos que tornam
difícil o acesso do povo à cultura. Um é a falta de tempo e de forças. O povo
tem pouco lazer a consagrar a um esforço intelectual; e a fadiga põe um limite
à intensidade do esforço.
(p.64)
Esse obstáculo não tem nenhuma
importância. Ao menos não teria nenhuma, se não se cometesse o erro de lhe
atribuir importância. A verdade ilumina a alma da proporção de sua pureza e não
de alguma espécie de quantidade. Não é a quantidade de metal que importa, mas o
grau de liga. Nessa área, um pouco de ouro puro vale muito outro puro. Um pouco
de verdade pura vale tanto quanto muita verdade pura. Do mesmo modo, uma
estátua grega perfeita contém tanta beleza quanto duas estátuas gregas
perfeitas. (p.64)
Os obstáculos materiais – falta de
lazer, fadiga, falta de talento natural, doença, dor física – atrapalham na
aquisição dos elementos inferiores ou médios da cultura, não na dos bens mais
preciosos que ela encerra.
O segundo obstáculo à cultura operária
é que à condição operária, como qualquer outra, corresponde uma disposição
particular da sensibilidade. Por conseqüência, há algo de estrangeiro no que
foi elaborado por outros e para outros.
O remédio para isso é um esforço de
tradução. Não de vulgarização, mas de tradução, o que é bem diferente.
Não tornar verdades, já
excessivamente pobres, constituída na cultura dos intelectuais, para as
degradar, mutilar, esvaziar de seu sabor, mas simplesmente expressá-las, em sua
plenitude, por meio de uma linguagem que, segundo a expressão da Pascal, as
torne sensíveis ao coração, para pessoas cuja sensibilidade se acha modelada
pela condição operária.
A arte de transpor as verdades é uma
das mais essenciais e das menos conhecidas. O que a torna difícil, é que, para
a praticar, é preciso ter-se colocado no centro de uma verdade, tê-la possuído
em sua nudez, por trás da forma particular sob a qual ela se encontra por acaso
exposta.
De resto, a transposição é um
critério para uma verdade. O que não pode ser transposto mão é uma verdade; do
mesmo modo que o que não muda de aparência segundo o ponto de vista não é um
objeto sólido, mas uma ilusão de ótica. No pensamento também há um espaço de
três dimensões. (p.65)
A cultura é um instrumento manejado
por professores para fabricar professores que por sua vez fabricarão
professores.
Entre todas as formas atuais da
doença do desenraizamento, o desenraizamento da cultura não é o menos
alarmante. A primeira conseqüência dessa doença é geralmente, em todas as
áreas, que estando às relações cortadas cada coisa é vista como uma finalidade
e si. O desenraizamento engendra a idolatria. (p.66)
Há um terceiro obstáculo à cultura
operária; é a escravidão. O pensamento é por essência livre e soberano, quando
se exerce realmente. Ser livre e soberano, na qualidade de ser presente,
durante uma hora ou duas, e escravo o resto do dia, é um dilaceramento tão
pungente que é quase impossível não renunciar, para se subtrair a isso, às
formas mais altas do pensamento.
Se fossem realizadas reformas
eficazes, esse obstáculo desapareceria pouco a pouco. Bem mais do que isso, a
lembrança da escravidão recente e os restos da escravidão desaparecendo seriam
um estimulante poderoso para o pensamento no decurso da liberação. (p.68)
Em resumo, a supressão da condição
proletária, que é definida antes de tudo pelo desenraizamento, reduz-se à
tarefa de constituir uma produção industrial e uma cultura do espírito em que
os operários estejam e sintam em casa.
Evidentemente, os próprios operários
teriam grande parte em tal construção. Mas pela natureza das coisas, essa parte
iria aumentando à medida que se realizasse sua libertação real. Ela está
inevitavelmente no mínimo enquanto os operários estiverem sob a dominação da
desgraça. (p.69)
O
desenraizamento camponês
O problema de desenraizamento
camponês não é menos grave que o desenraizamento operário. Embora a doença
esteja menos avançada, tem algo de ainda mais escandaloso; pois é contra a
natureza que a terra seja cultivada por serem desenraizados. É preciso conceder
a mesma atenção aos dois problemas.
(p.74)
O desenraizamento camponês foi, no
decurso dos últimos anos, um perigo tão mortal para o país quanto o
desenvolvimento operário. Um dos sintomas mais graves foi, há sete ou oito
anos, o despovoamento do campo prosseguindo em plena crise de desemprego.
É evidente que o despovoamento do
campo, no limite, desemboca na morte social. Pode-se dizer que ela não irá até
lá. Mas nada se sabe a esse respeito. Até aqui, não se percebe nada que seja
susceptível de pará-lo.
A respeito desse fenômeno. Há duas
coisas a notar.
Uma é que os brancos o transportam
a toda a parte aonde vão. A doença atingiu mesmo a África negra, que no entanto
era sem duvida há milhares de anos um continente feito de vilarejos. Essas
pessoas ao menos, quando não se vinha massacrá-las, torturá-las ou reduzi-las à
escravidão, sabiam viver felizes na sua terra. Nosso contato está a fazê-los
perder essa capacidade. Isso poderia fazer duvidar se mesmos os negros da
África, embora os mais primitivos entre os colonizados, não tinham no fim das contas
mais a nos ensinar a aprender de nós. Nossos benefícios para com eles
parecem-se com os do financista para com o sapateiro. Nada no mundo compensa a
perda da alegria no trabalho.
A outra observação a fazer é que
os recursos, ilimitados na aparência, do Estado totalitário, são imponentes
contra esse mal. Houve a esse respeito, na Alemanha, confissões oficiais, formais,
varias vezes repetidas. Num sentido, tanto melhor, pois isso dá uma
possibilidade de fazer melhor do que eles. (p.76-77)
O complexo de inferioridade nos
campos é tamanho que se vêem camponeses milionários achar natural serem
tratados por pequenos burgueses aposentados com uma arrogância de colonialistas
para com indígenas. É preciso que um complexo de inferioridade seja fortíssimo
para não ser apagado pelo dinheiro.
(p.77)
A necessidade de enraizamento, nos
camponeses, tem primeiro a forma da sede de propriedade. É verdadeiramente uma
sede para eles, uma sede saudável e natural. (p.78)
A ciência deve ser apresentada aos
camponeses e aos operários de maneiras muito diferente. Para os operários, é
natural que tudo esteja dominado pela mecânica. Para os camponeses, tudo
deveria ter por centro o maravilhoso circuito pelo qual a energia solar, tendo
descido até às plantas, fixada pela clorofila, concentrada nas sementes e nos
frutos, entra no homem que come ou bebe, passa para seus músculos e se gasta
para trabalhar a terra. Tudo o que se relaciona com a ciência pode disposto em
torno desse circuito, pois a noção de energia está no centro de tudo. O
pensamento desse circuito, se penetrasse no espírito dos camponeses, envolveria
de poesia o trabalho. (p.82)
De maneira geral, toda a
introdução, nos vilarejos, deveria ter por objeto essencial aumentar a
sensibilidade à beleza do mundo, à beleza na natureza. Os turistas, é verdade,
descobriam que os camponeses não se interessam pelas paisagens. Mas quando se
compartilha com camponesas jornadas de trabalho esgotantes, que é o único
procedimento para conversar com ele francamente, ouvem-se alguns lamentar que
seu trabalho seja duro demais para deixá-los gozar as belezas da natureza. (p.82)
A primeira condição para um
reenraizamento moral do campesinato país é que a profissão de professor
primário rural seja algo distinto, específico, cuja formação seja não só
parcialmente, mas totalmente diferente de formação de um professor primário das
cidades. É absurdo no mais alto grau fabricar num mesmo molde professores para
Beleville ou para um pequeno vilarejo. É um dos numerosos absurdos de uma época
cujo caráter dominante é a burrice.
A segunda condição é que os
professores primários rurais conheçam os camponeses e não os desprezam, o que
não se obterá simplesmente recrutando-os no campesinato. (p.83)
Seria muito proveitoso também que as
Igrejas fizessem da condição de padre ou pastor de vilarejo alguma coisa
específica. É um escândalo ver quanto, num vilarejo francês inteiramente
católico, a religião pode estar ausente da vida diária, reservada a algumas
horas do domingo, quando se pensa em com quanta predileção. Assim como as
estrelas e o sol dos quais fala o professor moram nos cadernos e livros e não
têm nenhuma relação com o céu, assim também a vinha, o trigo, as ovelhas as
quais se faz menção domingo na igreja nada têm em comum com a vinha, o trigo,
as ovelhas que se encontram nos campos e aos quais se dá todos os dias um pouco
de sua vida. Os camponeses cristãos estão desenraizados também em sua vida
religiosa. (p.84)
A única atitude ao mesmo tempo
legítima e praticamente possível que o ensino público possa ter, na França,
para com o cristianismo, consiste em vê-lo como um tesouro do pensamento humano
entre tantos outros. É absurdo no mais alto grau que um aluno francês no fim
dos estudos secundários tenha tomado conhecimento de poemas da Idade Média, de Polyeucte, de Athalie, de Phèdre, de
pascal, de Lamartine, de doutrinas filosóficas impregnadas de cristianismo como
as de Descartes e de Kant, da Divina Comédia
ou do Paradise Lost, e que jamais
aberto a Bíblia. (p.86)
Bastaria dizer aos futuros
professores primários e aos futuros professores: a religião teve em todos os
tempos e em todos países, salvo muito recentemente em alguns lugares da Europa,
um papel dominante no desenvolvimento da cultura, do pensamento, da civilização
humana. Uma instrução na qual jamais se trata de religião é um absurdo. Por
outro lado, assim como em história se fala muito da França aos pequenos
franceses, é natural que se estando na Europa, se falar de religião, se trate
antes de tudo de cristianismo.
Por conseguinte, seria preciso
incluir no ensino de todos os graus, para as crianças já um pouco crescidas,
cursos, que se poderiam etiquetar, por exemplo, história religiosa. Far-se-ia
as crianças lerem passagens de Escrituras, e acima de tudo os Evangelhos.
Comentar-se-ia no próprio espírito do texto, como sempre de deve fazer. (p.86)
Nossa época tem como missão
própria, como vocação a constituição de uma civilização fundada sobre a
espiritualidade do trabalho. Os pensamentos que se relaciona ao pressentimento
dessa vocação, e que estão esparsos em Rousseau, George Sand, Tolstoi,
Proudhon, Marx, nas encíclicas dos papas, e em outros lugares, são os únicos
pensamentos originais do nosso tempo, os únicos que não tenhamos tomado
emprestados dos gregos. É porque não estivemos à altura desta grande coisa que
estava crescendo dentro de nós que nos jogamos no abismo dos sistemas
totalitários. Mas se a Alemanha for vencida, talvez nossa derrota não seja
definitiva. Talvez ainda tenhamos uma oportunidade. Não se pode pensar nisso
sem angústia; se a tivemos, medíocres como somos, como faremos para não a
perder?
Essa vocação é a única coisa
suficientemente grande para propor aos povos em vez do ídolo totalitário. Se
não for proposta de maneira a fazer sentir sua grandeza, eles permaneceram no
poder do ídolo, ele será somente pintado de vermelho em vez de marrom. Se se
propuser aos homens escolher entre a manteiga, uma fatalidade misteriosa
constrange-os contra sua vontade a escolher os canhões. A manteiga está por
demais desprovida de poesia – a menos quando se tem manteiga, pois ele assume
uma espécie de poesia quando falta. A preferência que se tem por ela é
inconfessável. (p.90)
A forma contemporânea da grandeza
autêntica é uma civilização constituída pela espiritualidade do trabalho. É um
pensamento que se pode destacar sem correr o risco de nenhuma desunião. A
palavra espiritualidade não implica nenhuma filiação particular. Os próprios
comunistas, na atmosfera atual, sem dúvida não a repeliriam. Seria fácil aliás
encontrar em Marx citações que se referem toda à acusação de falta de
espiritualidade lançada à sociedade capitalista; o que implica que ela deve
existir na sociedade nova. Os conservadores não ousariam repelir essa fórmula.
Os meios radicais, laicos, maçons, também não. Os cristãos adotá-la-iam
alegremente. Ela poderia suscitar a unanimidade. (p.91)
Desenraizamento e nação
Uma outra espécie de desenraizamento
ainda deve ser estudada por um conhecimento sumário de nossa principal doença. É
o desenraizamento que se poderia chamar geográfico, ou seja, em relação às
coletividades que correspondem a territórios. O próprio sentido dessas
coletividades quase desapareceu, exceto por uma única, a nação. Mas há, houve
muitas outras. Algumas menores, todas pequenas às vezes: cidade ou conjunto de
vilarejos, província, região; outras englobando várias nações; outras
englobando vários pedaços de nações.
Somente a nação; substituiu tudo
isso. A nação, ou seja o Estado; pois não se pode achar outra definição para a
palavra nação senão o conjunto dos territórios que reconhecem a autoridade de
um mesmo Estado. Pode-se dizer que na nossa época o dinheiro e o Estado tinham
substituído todos os outros vínculos.
(p.92-93)
Não haverá movimento operário
saudável se ele não encontrar à sua disposição uma doutrina designando um lugar
à noção de pátria, e um lugar determinado, ou seja, limitado. Aliás,
necessidade não é mais evidente para os meios operários senão porque o problema
da pátria vem sendo ai discutido há muito tempo. Mas é uma necessidade comum a
todo país. É inadmissível que a palavra que hoje retorna quase continuamente
acoplada à de dever quase nunca tenha sido objeto de algum estudo. Em geral,
não se acha para citar a esse respeito senão a uma pagina medíocre de Renan.
A nação é um fato recente. Na Idade
Média a fidelidade ia para o senhor, ou cidade, ou para ambos, e além para
meios territoriais que não eram muitos distintos. O sentimento que chamamos
patriotismo já existia, num grau por vezes muito intenso; seu objeto é que não
era territorialmente definido. O sentimento recobria segundo as circunstâncias
áreas de terra variáveis.
(p.96)
Salvo erro, a noção de Estado como
objeto de fidelidade apareceu, pela primeira vez na França e na Europa, com
Richelieu. Antes dele podia-se falar, num tom de dedicação religiosa, do bem
público, do país, do rei, do senhor. Ele foi o primeiro que adotou o princípio
que todo aquele que exerce uma função pública deve toda sua fidelidade, no
exercício dessa função, não ao público, não ao rei, mas ao Estado e nada mais.
Seria difícil definir o Estado de uma maneira rigorosa. Mas não é infelizmente
possível duvidar de que essa palavra designe uma realidade. (p.107)
Mas quando a igreja cometeu o erro
irreparável de associar sua sorte à das instituições monárquicas, ela cortou-se
da vida pública. Nada podia servir melhor às aspirações totalitárias do Estado.
Devia resultar daí o sistema laico, prelúdio à adoração confessada do Estado
como acontece hoje.
Os cristãos estão sem defesa contra
o espírito laico. Pois ou eles se entregam inteiramente a uma ação política,
uma ação de partido, para recolocar e poder temporal entre as mãos de um clero,
ou dos seguidores de um clero; ou então se resignam a ser eles mesmos irreligiosos
em toda a parte profanos de sua própria vida, o que é geralmente o caso hoje em
dia, num grau muito mais alto do que os próprios interessados têm consciência.
Nos dois casos é abandonada a função própria da religião, que consiste em
impregnar de luz toda vida profana, pública e privada, sem jamais a dominar de
nenhuma forma (p.111)
Se o Estado matou moralmente tudo o
que era, territorialmente falando, menor do que ele, transformou também as
fronteiras territoriais em muros de prisão para encerrar os pensamentos. Quando
se olha a história de perto, e fora dos manuais, fica-se estupefato de ver
quando certas épocas quase desprovidas de meios materiais de comunicação
ultrapassavam a nossa em riqueza, variedade, fecundidade, intensidade de vida
nas trocas de pensamentos através dos mais vastos territórios. É o caso da
Idade média, da Antiguidade pré-romana, período imediatamente anterior aos
tempos históricos. Em nossos dias, como o rádio, a aviação, o desenvolvimento
dos transportes de toda espécie, a tipografia, a imprensa, o fenômeno moderno
da nação encerra em pequenos compartimentos separados mesmo numa coisa tão
naturalmente universal quanto a ciência. As fronteiras, evidentemente, não são
intransponíveis; mas assim como para viajar é preciso passar por uma infinidade
de formalidades aborrecidas e penosas, do mesmo modo todo contato com um
pensamento estrangeiro, em qualquer área, demanda um esforço mental para passar
a fronteira. É um esforço considerável, e muitas pessoas não consentem em
fazê-lo. Mesmo para aqueles que o fazem, o fato de um esforço seria
indispensável impede que vínculos orgânicos possam ser estabelecidos por cima
das fronteiras.
É verdade que existem Igrejas e
partidos internacionais. Mas quanto às Igrejas, apresentam o escândalo
intolerável de padres fiéis perdidos a Deus ao mesmo tempo, com os mesmos
ritos, as mesmas palavras, e, é preciso supô-lo, um grau igual de fé e de
pureza de coração, a vitória militar para um ou outro de dois campos inimigos.
Esse escândalo vem de longe; mas em nosso século a vida religiosa está mais
subordinada à da nação do que jamais esteve. Quanto aos partidos, ou não são
internacionais senão por ficção, ou internacionalismo toma aí a forma da
subordinação total em uma certa nação. (p.115)
A fidelidade implica por uma
filiação religiosa conta igualmente muito pouco, por singular que isso seja, na
vida moderna. Apesar de diferenças evidentes e consideráveis, um efeito em
sentido análogo é produzido pelo sistema inglês da Igreja nacional e pelo
sistema francês da separação das Igrejas e do Estado. Somente o segundo parece
mais destruidor.
A religião foi proclamada uma
questão privada. Segundo os hábitos de espírito atuais, isso não quer dizer que
ela reside no segredo da alma, nesse lugar profundamente escondido onde nem
mesmo a consciência de cada um penetra. Isso quer dizer que ela é questão de
escolha, de opinião, de gosto, quase de fantasia, algo como a escolha de um
partido político ou mesmo como a escolha de uma gravata; ou ainda que ela é uma
questão de família, de educação, de meio. Tendo-se tornado uma coisa privada,
perde o caráter obrigatório reservado às coisas públicas, e por conseqüência
não tem mais direito inconteste à fidelidade. (p.117)
Numerosas expressões reveladoras
mostram que é assim. Quantas vezes, por exemplo, não se ouve repetir este
lugar-comum: “Católicos, protestantes, judeus ou livres pensadores, somos todos
franceses”, exatamente como se diria: “Marselheses, lioneses, ou parisienses,
somos todos franceses”. Em textos emanados do papa, pode-se ler. “Não só do
ponto de vista cristão, mas mais geralmente do ponto de vista humano...”; como
se o ponto de vista cristão, que ou não tem nenhum sentido, ou então pretende
envolver todas as coisas nesse mundo e no outro, tivesse um grau de
generalidade menor do que o ponto de vista humano. Não se pode conceber uma
confissão de falência mais terrível. Eis como se pegam os “ anathema sit”. No
fim das contas, a religião, degradada à posição de questão privada, reduz-se à
escolha de um lugar onde ir passar na hora ou duas, domingo de manhã.
O que é cômico nisso é que a
religião, ou seja, a relação do homem com Deus, não é vista hoje como uma coisa
sagrada demais para a intervenção de qualquer autoridade externa, mas é posta
no número de coisas que o Estado deixa à fantasia de cada um, como sendo de
pouca importância quanto aos assuntos públicos. Ao menos foi assim foi num
passado recente. Essa é a significação atual da palavra “tolerância”. (p.118)
Acusa-se frequentemente a
Antiguidade de não ter sabido reconhecer senão os valores coletivos. Na
realidade, esse erro foi cometido pelos romanos, que eram ateus, e pelos
hebreus; e por estes, somente até o exílio na Babilônia. Mas se não temos razão
ao atribuir esse erro à Antiguidade pré-cristã, também não temos razão ao não
reconhecer que o cometemos continuamente, corrompidos como estamos pela dupla
tradição romana e hebraica, que prevalece quase sempre em nós sobre a
inspiração cristã pura.
Os cristãos hoje estão embaraçados por reconhecer que, se
der à palavra pátria o sentido mais forte possível, um sentido completo, um
cristão não tem senão uma pátria que está situada fora deste mundo.
“Constituí-vos tesouros no céu... pois lá onde está o tesouro de um homem,
estará também seu coração”. É, portanto proibido ter o coração na terra.
Os cristãos hoje não gostam de
fazer a pergunta sobre os diretos respectivos, sobre seu coração, de Deus e de
seu país. Os bispos terminaram um de seus protestos mais corajosos dizendo que
recusavam a escolher entre Deus e a Alemanha. E por que se recusam? Sempre se
podem produzir circunstâncias implicando uma escolha a fazer entre Deus e
qualquer coisa terrestre, e a escolha nunca deve ser duvidosa. Mas os bispos
franceses teriam usado a mesma linguagem. A popularidade de Joana d’Arc no
decurso do ultimo quarto século não geral algo completamente são; era um
recurso cômodo para esquecer que há uma diferença entra a França e Deus.
Contudo essa covardia interior frente ao prestígio da idéia de pátria não
tornou a patriotismo mais enérgico. A estátua de Joana d’ Arc estava colocada
de maneira a atrair os olhares, em todas as igrejas do país, durante esses dias
horrendos em que os franceses abandonaram a França. (p.123)
Numa alma cristã, a presença da
virtude pagã do patriotismo é um solvente. Ela passou de Roma às nossas mãos
sem ter sido batizada. Coisa estranha, os bárbaros, ou aqueles que assim eram
chamados, foram batizados quase em dificuldade no momento das invasões; mas a
herança da Roma antiga jamais o foi, sem dúvida porque não podia sê-lo, e isso
apesar do Império Romano ter feito do cristianismo uma religião de Estado.
Seria difícil aliás imaginar uma
injúria mais cruel. Quanto aos bárbaros, não é surpreendente que os godos
tenham entrado facilmente no cristianismo, se, como acreditavam seus
contemporâneos, eles eram do sangue desses getas, os trácios mais justos, que
Heródoto chamava os imortalizadores por causa da intensidade de sua fé na vida
eterna. A herança desses bárbaros misturou-se ao espírito cristão para formar
um produto único, inimitável, perfeitamente homogêneo que foi denominado
cavalaria. Mas entre o espírito de Roma como a mulher sentada sobre a besta, a
mulher grávida dos nomes da blasfêmia.
O renascimento foi uma
ressurreição do espírito grego, depois do espírito romano. Foi só nessa segunda
etapa que ele agiu como um solvente do cristianismo. Foi durante essa segunda
etapa que nasceu a forma moderna da nacionalidade, a forma moderna do
patriotismo. (p.131-132)
O centro da contradição inerente ao
patriotismo é que a pátria é uma coisa limitada cuja exigência é ilimitada. No
momento do perigo extremo, ela pede tudo. Por que se concederia tudo a uma
coisa limitada? Por outro lado, não estar resolvido a lhe dar tudo em caso de
necessidade, abandoná-la completamente, pois sua conservação não pode ser
assegurada por menos. Assim, parece que se está sempre ou aquém ou além do que
se lhe deve, e se for além, por reação volta-se mais tarde tanto mais ninguém.
A contradição é só aparente. Ou
mais exatamente ela é real, mais vista na sua verdade ele se reduz a uma dessas
contradições fundamentais da situação humana, que é preciso reconhecer aceitar,
e usar como estribo para subir além do que é humano. Jamais neste universo há
igualdade de dimensões entre uma obrigação e seu objeto. A obrigação é um
infinito, seu objeto não o é. Esta contradição pesa sobre a vida cotidiana de
todos os homens, se exceção, inclusive aqueles que seriam completamente incapazes
de formulá-la mesmo confusamente. Todos os procedimentos que os homens
acreditaram ter encontrado para sair delas são mentiras.
Uma
delas consiste em só reconhecer obrigações para com o que não deste mundo. Uma
variedade desse procedimento constitui falsa mística, a falsa contemplação. Uma
outra é a prática das boas obras realizadas num certo espírito, “pelo amor de
Deus”, como se diz, não sendo os infelizes socorridos senão a matéria da ação,
uma ocasião anônima de testemunhar benevolência a Deus. Em ambos os casos há
mentira, pois “aquele que não ama seu irmão que ele vê, como amaria a Deus que
não vê?) É somente através das coisas e dos seres daqui de baixo que o amor
humano pode penetrar até o que mora do outro lado.
Um outro procedimento consiste em
admitir que há aqui embaixo um ou vários objetos encerrados esse absoluto, esse
infinito, essa perfeição que estão essencialmente vinculados à obrigação como
tal. É a mentira da idolatria.
O terceiro procedimento consiste
em negar toda obrigação. Não se pode provar por uma demonstração do tipo
geométrico que é um erro, pois a obrigação é de uma ordem de certeza muito
superior àquela em que residem as provas. De fato, essa negação é impossível.
Constitui um suicídio espiritual. E o homem é feito de tal modo que nele a
morte espiritual é acompanhada por doenças psicológicas elas mesmas mortais. De
fato, o instinto de conservação impede que a alma faça mais do que aproximar de
tal estado; de fato ele o reconhece. Não há homem que não faça às vezes
julgamentos sobre o bem e o mal, ao menos para censurar o outro.
É preciso aceitar a situação que
nos cabe e que nos submete a obrigações absolutas para com coisas relativas,
limitadas é imperfeitas. Para discriminar quais são essas coisas e como se
podem compor suas exigências para conosco, é preciso só ver claramente no que
consiste sua relação com o bem.
Para a pátria, as noções de
enraizamento, de meio vital, bastam para este fim. Elas não precisam ser
estabelecidas por provas, pois há alguns anos são verificadas
experimentalmente. Como há meios de cultura para certos animais microscópicos,
terrenos indispensáveis pata certas plantas, do mesmo modo há uma certa parte
da alma em cada um e certas maneiras de pensar e de agir circulando de uns para
os outros que não podem existir senão no meio nacional e desaparecerem quando
um país é destruído.
(p.145-146)
Pode-se amar a França pela glória
que parece assegurar-lhe uma existência ampla no tempo e no espaço. Ou então
pode-se amá-la como uma coisa que, sendo terrestre, pode se destruída, e cujo
valor é muito mais sensível.
São dois amores distintos;
talvez, provavelmente, incompatíveis, embora a linguagem os misture. Aqueles
cujo coração é feito para experimentar o segundo podem, pela força do hábito,
empregar a linguagem que não corresponde senão ao primeiro.
Só o segundo é legítimo para um
cristão, pois só ele tem a cor da humildade cristã. Só ele pertence à espécie
de amor que pode receber o nome de caridade. Não se acredite que este amor
possa somente ter por objeto um país infeliz.
A felicidade é um objeto para
compaixão pela mesma razão que a infelicidade, porque é terrestre, ou seja,
incompleta, frágil, e passageira. De resto sempre há infelizmente na vida de um
país um certo grau de infelicidade.
Não se acredite também que tal
amor correria o risco de ignorar ou de negligenciar o que há de grandeza
autêntica e pura no passado, no presente e nas aspirações da França. Muito pelo
contrario. A compaixão é tanto mais terna, tanto mais pungente, quanto mais se
discerne o bem no ser que é seu objeto, e ela dispõe a discernir o bem. Quando
um cristão representa para sim mesmo Cristo na cruz, a compaixão nele não é
diminuída pelo pensamento de perfeição, nem inversamente. Mas por outro lado,
tal amor pode ter os olhos abertos para as injustiças, as crueldades, os erros,
as mentiras, os crimes, as vergonhas, contidos no passado, presente e nos
apetites do país, sem dissimulação nem reticência, e sem ser por isso
diminuído; ele se torna somente mais um doloroso. Para a compaixão, o próprio
crime é uma razão, não de se afastar, mas de se apaixonar, para compartilhar,
não a culpa, mas a vergonha. Os crimes dos homens não diminuíram a compaixão de
cristo. Assim a compaixão tem os olhos abertos para o bem e o mal e encontra em
ambos razões de amar. É o único amor aqui em baixo que é verdadeiro e
justo. (p,158-159)
Os sentimentos pessoais
desempenham nos grandes acontecimentos do mundo um papel que nunca se discerne
em toda sua extensão. O fato de que haja ou não amizade entre dois homens,
entre dois meios humanos, pode em certos casos ser decisivo para o destino do
gênero humano.
É absolutamente compreensível. Uma
verdade nunca aparece a não ser no espírito de um ser humano particular. Como
ele a comunicará? Se tentar expô-la, não será ouvido; pois os outros, não
conhecendo essa verdade, não a reconhecerão como tal; não saberão que o que ela
está dizendo é verdade; não lhe prestarão atenção suficiente para se aparecerem
disso; pois não terão nenhum motivo para realizar esse esforço de atenção.
Mas a amizade, a admiração, a
simpatia, ou qualquer outro sentimento benevolente os disporia naturalmente a
um certo grau de atenção. Um homem quem tem algo novo a dizer – pois para os
lugares-comuns nenhuma atenção é necessária – não pode ser o início ouvido
senão pelos que o amam.
Assim a circulação das verdades
entre os homens depende inteiramente do estado dos sentimentos; e é assim para
todas as espécies de verdades.
Nos exilados que não esquecem seu
país – e aqueles que o esquecem são perdidos – o coração está irresistivelmente
voltado para a pátria infeliz que há poucos recursos afetivos para a amizade
para com o país onde se mora. Essa amizade não pode verdadeiramente germinar e
crescer no seu coração se não exercerem uma espécie de violência. Mas essa
violência é uma obrigação.
Os franceses que estão em Londres
não tem obrigação mais imperiosa para com o povo francês, que vive com os olhos
voltados para eles, do que fazer que haja entre eles mesmos a elite dos
ingleses uma amizade real, viva, calorosa, íntima, eficaz.
Fora da utilidade estratégica,
outras considerações ainda devem ter lugar na escolha das ações. Elas tem ainda
muito mais importância, mas vêm em segundo lugar, porque a utilidade
estratégica é uma condição para que a ação seja real; onde ela está ausente, há
agitação, não ação, e a virtude indireta da ação, que lhe dá o valor principal,
está ausente ao mesmo tempo.
(p.188)
Um avaro não é um avaro quando
começa a amealhar. É estimulado de início, sem dúvida, pelo pensamento dos
prazeres que se conseguem com dinheiro. Mas os esforços e as privações que ele
se impõe cada dia produzem um treinamento. Quando o sacrifício supera de longe
o impulso inicial, o tesouro, objeto do sacrifício, torna-se para ele um fim em
si, e ele subordina-lhe sua própria pessoa. A mania do colecionador repousa
sobre um mecanismo análogo. Poder-se-ia citar uma quantidade de outros exemplos.
Assim quando os sacrifícios
feitos a um objeto superam de longe um impulso que os causou, resulta daí, para
com esse objeto, ou um movimento de repulsão, ou um apego de uma espécie nova e
mais intensa, alheio ao impulso primeiro.
No segundo caso, há bem ou mal
segundo a natureza do objeto.
Se no caso do doente há
frequentemente repulsão, é porque esse gênero de esforço está privado de
futuro; nada de exterior responde à acumulação interior de fadiga. O avaro,
quanto a ele, vê crescer se tesouro.
Há aliás também situações,
combinações de caracteres, tais que um doente numa família inspira ao contrário
um apego fanático. Estudando suficientemente tudo isso, poder-se-ia sem dúvida
discernir as leis.
Mas mesmo um conhecimento sumário
desses fenômenos pode fornecer-nos regras as leis.
Mas mesmo um conhecimento sumário
desses fenômenos pode fornecer-nos regras práticas.
Para evitar o efeito de repulsão,
é preciso prever o esgotamento possível dos móbiles; é preciso de período em
período dar a autoridade da expressão oficial a móbiles novos para as mesmas
ações, móbiles respondendo ao que terá podido germinar espontaneamente no
íntimo dos corações.
É preciso sobretudo velar para
que o mecanismo de transferência que vincula a avaro ao tesouro funcione de
maneira a produzir bem ou não mal; evitar ou em todo caso reduzir ao escrito
mínimo todo o mal que poderia assim ser suscitado. (p.191-192)
Uma das verdades fundamentais do
cristianismo é que um progresso para uma imperfeição menos não é produzido pelo
desejo de uma menor imperfeição. Só o desejo da perfeição tem a virtude de
destruir na alma uma parte do mal que a macula. Daí o mandamento de Cristo:
“sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito”
Quanto mais a linguagem humana
está longe da beleza divina, tanto mais as faculdades sensíveis e intelectuais
dos homens estão longe da verdade, tanto mais as necessidades da vida social
estão longe da justiça. Por conseqüência, não é possível que a política não
precise de esforços de invenção criadora tanto a arte e a ciência.
É por isso que a quase totalidade
das opiniões políticas e das discussões em que elas se opõem é tão alheia à
política quanto o choque das opiniões estéticas nas cervejarias de Montparnasse
é alheio à arte. O político no caso como artista no outro não podem encontrar
aí senão um certo estimulante, que deve ser tomado em dose muito pequena.
Quase nunca se vê a política como
uma arte de espécie tão elevada. Mas é porque se está acostumado há séculos a
vê-la simplesmente, ou em todo caso principalmente, como a técnica da aquisição
e da conservação do poder.
Ora, o poder não é um fim. Por
natureza, por essência, por definição, ele constitui exclusivamente um meio.
Ele é para a política o que é um piano para a composição musical. Um compositor
que precisa de um piano para a invenção das melodias ficará embaraçado se
estiver num vilarejo onde não haja nenhum. Mas se lhe arranjarem um, é preciso
então que componha.
Infelizes que somos, confundiríamos a
fabricação de um piano com a composição de uma sonata.
Um método de educação não é grande
coisa se não tiver como inspiração como a concepção de uma certa perfeição
humana. Quando se trata da educação de um povo, essa concepção deve ser a de
uma civilização. Não se deve procurá-la no passado, que só contem o imperfeito.
Muito menos ainda em nossos sonhos de futuro, que são por necessidade tão
medíocres quanto nós mesmos, e por conseqüência de muito longe inferiores ao
passado. É preciso procurar a inspiração de tal educação, como o próprio
método, entre as verdades eternamente inscritas na natureza das coisas.
Eis, sobre esse assunto, algumas
indicações.
Quatro obstáculos sobretudo nos
separam de uma forma de civilização susceptível de valer alguma coisa. Nossa
concepção falsa de grandeza; a degradação do sentimento da justiça; nossa
idolatria do dinheiro; e a ausência em nós de inspiração religiosa. Podes-se
expressar na primeira pessoa do plural, sem nenhuma hesitação, pois é duvidoso
que no instante presente um único ser humano na superfície do globo terrestre
escape a esse quádruplo desvio, e mais duvidoso ainda que haja um único na raça
branca. Mas se houver alguns, como é preciso esperar apesar de tudo, estão
escondidos. (p.198)
Para discernir uma crueldade, é
preciso levar em conta as circunstâncias, as significações variáveis vinculadas
aos atos e às palavras, da linguagem simbólica própria de cada maio; mas uma
vez que uma ação foi indubitavelmente reconhecida como uma crueldade, quaisquer
que sejam o lugar e a data, ela é horrível.
A superstição moderna do
progresso é um subproduto da mentira pela qual se fez do cristianismo a
religião romana oficial; ela está ligada à destruição dos tesouros espirituais
dos países conquistados por Roma, à dissimulação da perfeita continuidade entre
esses tesouros e o cristianismo, a uma concepção histórica da Redenção, que faz
dela uma operação temporal e não eterna. O pensamento do progresso foi mais
tarde laicizado; é hoje o veneno de nossa época. Colocando que a desumanidade
era no século XIV uma coisa boa e grande, mas um horror no século XX, podia-se
impedir um garoto do século XX, amante de leituras históricas, de dizer o mesmo
:“Sinto em mim mesmo que agora a época em que a humanidade era uma virtude
acabou e que a época da desumanidade retorna”? Quem proíbe de imaginar uma
sucessão em vez de uma linha contínua? O dogma de progresso desonra o bem
fazendo-o uma questão de moda.
É aliás somente porque o espírito
histórico consiste em crer na palavra dos assassinos que esse dogma parece responder
tão bem aos fatos. Quando por momentos o horror consegue romper a
insensibilidade espessa de um leitor de Tito Lívio, ele diz: “Eram os costumes
da época”. Ora sente-se à evidência nos historiadores gregos que a brutalidade
dos romanos horrorizou a paralisou os contemporâneos exatamente como faz a dos
alemães. (p.207-208)
Não há outro procedimento para o conhecimento
do coração humano senão o estudo da história juntamente com a experiência da
vida, de tal maneira que elas se esclarecem mutuamente. Tem-se a obrigação de
fornecer esse alimento aos espíritos dos adolescentes e dos homens. Mas é
preciso que seja um alimento de verdade. É preciso não só que os fatos sejam
exatos tanto quanto se possa controlá-los, mas também que eles sejam mostrados em
sua perspectiva verdadeira relativamente ao bem e ao mal.
A história é um tecido de baixeza e de
crueldades em que algumas gotas de pureza brilham de longe em longe. Se é
assim, o primeiro porque há pouca pureza entre os homens; em seguida porque a
maior parte desse pouco está permanece escondida. É preciso procurar-se se
puder testemunhos indiretos. As igrejas românticas, o canto gregoriano só pôde
surgir entre populações em que havia muito mais pureza do que houve nos séculos
seguintes. (p.209-210)
A transmissão da falsa grandeza
através dos séculos não é particular da história. É uma lei geral. Governa
também por exemplo as letras e as artes. Há uma certa dominação do talento
literário sobre os séculos que corresponde à dominação do talento político no
espaço; são dominações de mesma natureza, igualmente temporais, pertencendo
igualmente ao campo da matéria e da força, igualmente baixas. Então podem ser
um objeto de negociação e de troca.
(p.210)
Não somente no ensino da história,
é em todos os estudos propostos às crianças que o bem é desprezado, e uma vez
homens, não encontramos nos alimentos oferecidos a seu espírito senão motivos
para se endurecerem nesse desprezo.
É evidente, uma verdade que passou a
estado de lugar-comum entre as crianças e os homens, que ao talento não tem
nada a ver com a moralidade. Ora, só se propõe à admiração das crianças e dos
homens o talento em todas as áreas. Em todas a manifestações do talento, quaisquer
que sejam, eles vêem exibir-se com impudência a ausência das virtudes que se
lhes recomenda praticar. Que se pode concluir daí, senão que a virtude é
própria da mediocridade? Esta persuasão penetrou tão fundo que a própria palavra
virtude é agora ridícula, ela que antigamente era tão cheia de sentido, como
também as palavras honestidade e bondade. Os ingleses estão mais perto do
passado do que os outros países; assim não há hoje nenhuma palavra na língua
francesa para traduzir good e wicked.
Como uma criança que ver glorificar
nas lições de história a crueldade e a ambição; nas de literatura e egoísmo, o
bagulho, a vaidade, a sede de fazer barulho; nas de ciências todas as
descobertas que transformaram as vidas dos homens, sem que se leve em conta o
método da descoberta nem o efeito da transformação; como aprenderia ela a
admirar o bem? Tudo aquilo que tenta ir contra essa corrente tão geral, por
exemplo os elogios de Pauster, soa falso. Na atmosfera da falsa grandeza, é
inútil querer reencontrar a verdadeira. É preciso desprezar a falsa grandeza.
É verdade que o talento não tem
vínculo com a moralidade; mas é porque não há grandeza no talento. É falso que
não haja vínculos entre a perfeita beleza, a perfeita verdade, a perfeita justiça; há mais do que
vínculos, há uma unidade misteriosa, pois o bem é uno.
Há um ponto de grandeza em que o
gênio criador de beleza, o gênio revelador de verdade, o heroísmo e a santidade
são indiscerníveis. Já, à aproximação desse ponto, vêem-se as grandezas tender
a se confundir. Não se pode discernir em Giotto o gênio do pintor e o espírito
franciscano; nem nos quadros e poemas da seita Zen na China o gênio do pintor
ou do poeta e o estado de iluminação mística; nem, quando Velasquez põe na tela
reis e mendigos, o gênio do pintor e o amor candente e imparcial que transpassa
o fundo das almas. A Ilíada, as
tragédias de Ésquilo e as de Sófocles têm a merca evidente de que os poetas que
fizeram isso estavam no estado de santidade. Do ponto de vista puramente
poético, sem levar mais nada em conta, é infinitamente proferível ter composto
o Cântico de São Francisco de Assis, essa jóia de beleza perfeita, de que toda
obra de Victor Hugo. Racine escreveu uma única obra de toda literatura francesa
que passa se posta ao lado das grandes obras-primas gregas no momento em que
sua alma era trabalhada pela conversão. Estava longe da santidade quando
escreveu suas outras peças, mas também não se encontra ai essa beleza
dilacerante. Uma tragédia como King lear
é futuro direto do puro espírito de amor. A santidade irradia nas igrejas
românticas e no canto gregoriano. Monteverdi, Bach, Mozart foram esses puros em
sua vida como em sua obra. (p.211-212)
Um missionário que persuade um
polinésio a abandonar suas tradições ancestrais, tão poéticas e tão belas,
sobre a criação do mundo, pelas do Gênesis, impregnadas de uma poesia muito
semelhante, esse missionário extrai sua força persuasiva da consciência que tem
de sua superioridade de homem branco, consciência findada sobre a ciência. Ele é
no entanto pessoalmente estrangeiro à ciência tanto quando o polinésio, pois
todo aquele que não é especialista lhe é completamente estrangeiro. O Gênesis
ainda lhe é mais estrangeiro. Um professor primário de vilarejo que zomba do
padre, e cuja atitude dissuade as crianças de irem à missa, extrai sua força
persuasiva da consciência que ele tem de sua superioridade de homem moderno
sobre um dogma da Idade Média, consciência fundada sobre a ciência. No entanto,
relativamente a suas possibilidades de controle, a teoria de Einstein é pelo
menos pouco tão pouco fundada e tão contrária ao bom senso quanto a tradição
cristã referente à concepção e nascimento de Cristo. (p.215)
A igreja do século XIII tinha
cristo; mas tinha a Inquisição. A ciência do século XX não tem Inquisição; mas também
não tem cristo, nem nada equivalente.
(p.216)
Ainda uma vez, não é o adolescente
abandonado, miserável vagabundo, de alma faminta, que é justo acusar, mas
aqueles que lhe deram mentira para comer. E aqueles que lhe deram mentira para
comer eram nossos predecessores aos quais nos assemelhamos.
Na catástrofe de nosso tempo, os
algozes e as vítimas são, uns e outros, antes de tudo os portadores
involuntários de um testemunho sobre a atroz miséria no fundo da qual jazemos.
Para ter o direito de punir os
culpados, seria necessário primeiro nos purificarmos de ser crime, contido sob
toda sorte de disfarces em nossa própria alma. Mas se tivermos sucesso nessa
operação, uma vez que ela estiver cumprida não teremos mais nenhum desejo de
punir, e se acreditarmos ser obrigados a fazê-lo, fá-lo-emos o menos possível
com extrema dor. (p.217)
Não há senão uma escolha a fazer. Ou
é preciso perceber e ação no universo, ao lado da força, outro princípio, ou é
preciso reconhecer a força como senhora única e soberana das relações humanas
também. (p.217-218)
Durante os últimos séculos, sentiu-se
confusamente a contradição entre a ciência e o humanismo, ainda que não se
tenha nunca tido a coragem intelectual de olhá-la de frente. Sem a ter primeiro
exposto aos olhares, tentou-se resolvê-la. Esta improbidade de inteligência é
sempre punida com erro.
O utilitarismo foi o fruto de uma
dessas tentativas. É a suposição de um maravilhoso pequeno mecanismo mediante o
qual a força, entretanto nas esfera das relações humanas, se torna produtora
automática de justiça.
O liberalismo econômico dos burgueses
do século XIX repousa inteiramente sobre a crença em tal mecanismo. A única
restrição era que, para ter a propriedade de ser produtora automática de
justiça, a força deve ter a forma do dinheiro, com exclusão de todo uso seja
das armas seja do poder político.
O marxismo não é senão a crença num
mecanismo desse gênero. Aí, a força é batizada de história; tem como forma de
luta de classe; a justiça é relegada a um futuro que deve ser precedido de uma
espécie de catástrofe apocalíptica.
(p.218)
A força não é uma maquina de criar
automaticamente justiça. É um mecanismo cego de onde saem o acaso,
indiferentemente, os efeitos justos ou injustos, mas, pelo jogo das
possibilidades, quase sempre injustos. A passagem do tempo não conta; não
aumenta no funcionamento desse mecanismo a proporção ínfima dos efeitos por
acaso conforme a justiça.
Se a força for absolutamente
soberana, a justiça é absolutamente irreal. Mas ele não o é. Sabemo-lo
experimentalmente. Ela é real no íntimo do coração dos homens. A estrutura de
um coração humana é uma realidade entre as realidades desse universo, assim
como a trajetória de um astro
Não se está no pode de um homem
excluir absolutamente toda espécie de justiça dos fins que ele destina as suas
ações. Nem mesmo dos nazistas o conseguiram. Se fosse possível a homens, eles
sem dúvida tê-lo-iam conseguido.
(p.219)
Para os cristãos, a incompatibilidade
absoluta entre o espírito da religião e o espírito da religião e o espírito da
ciência, quem tem ambos sua adesão, instala permanentemente na alma um
mal-estar surdo e inconfessado. Ele pode ser quase insensível; é segundo os
casos mais ou menos sensíveis; é, evidentemente, quase sempre inconfessado.
Impede a coesão interna. Opõe-se a que a luz cristã impregne todos os
pensamentos. Por um efeito indireto de sua presença contínua, os cristãos mais
fervorosos fazem a toda hora de sua vida julgamentos, opiniões, em que se acham
aplicados sem seu conhecimento critérios contrários ao espírito do
cristianismo. Mas a conseqüência mais funesta desse mal-estar é impossibilitar
que se exerça em sua plenitude a virtude de probidade intelectual.
O fenômeno moderno da irreligiosidade
do povo explica-se quase inteiramente pela incompatibilidade do povo explica-se
quase inteiramente pela incompatibilidade entre a ciência e a religião.
Desenvolveu-se quando se começou a instalar o povo das cidades num universo
artificial, cristalização da ciência. Na Rússia, a transformação foi
apresentada por uma propaganda que, para desenraizar e fé, se apoiava quase
inteiramente sobre o espírito da ciência e da técnica. Em toda parte, depois
que o povo das cidades se tornou irreligioso, o povo do campo, tornado
influenciável por ser complexo de inferioridade para com as cidades, foi atrás,
ainda que em menos grau.
Pelo próprio fato da deserção das
igrejas pelo povo, a religião foi automaticamente situada à direita, tornou-se
uma coisa burguesa, uma coisa de conformistas. Pois de fato uma religião
instituída é obrigada a se apoiar-se naqueles que vão há igreja. Não se pode
apoiar naqueles que ficam fora. É verdade que mesmo antes dessa deserção, o
servilismo do clero para com os poderes temporais levou-o cometer faltas
graves. Mas elas teriam sido reparáveis sem essa deserção. Se provocam essa
deserção por um lado, foi por um lado muito pequeno. Foi quase unicamente a
ciência que esvaziou as igrejas.
Se uma parte da burguesia foi menos
perturbada em sua piedade pela ciência do que foi a classe operária, é primeiro
por que ela tinha um contato menos permanente e menos carnal com as aplicações
da ciência. Mas é sobretudo porque não tinha fé. Quem não tem fé não pode
perdê-la. Salvo algumas exceções, a prática da religião era para ela uma
convivência. A concepção científica do mundo não impede de observar as
conveniências.
Assim o cristianismo é de fato, com
exceção de alguns focos de luz, uma conveniência relativa aos interesses
daqueles que exploram o povo.
Não é portanto espantoso que ele
tenha um lugar tão medíocre, neste momento, na luta contra a forma atual do
mal.
Tanto mais que, mesmo nos meios, nos
corações em que a vida religiosa é sincera e intensa, ela tem quase sempre no
próprio centro um princípio de impureza por insuficiência do espírito de
verdade. A existência da ciência dá má consciência aos cristãos. Poucos dentre
eles ousam ter certeza que, se começassem do zero e se considerassem todos os
problemas abolindo toda preferência, num espírito de exame absolutamente
imparcial, o dogma cristão lhes apareceria como sendo manifesta e totalmente a
verdade.
Essa incerteza deveria afrouxar seus
vínculos como a religião; não é assim, e o que impede que seja assim é que a
vida religiosa lhe fornecem algo que precisam. Eles mesmos sentem mais ou menos
confusamente que estão apegados à religião por uma necessidade e a do bem. Deus
dá-se ao homem gratuitamente e mais ainda, mas o homem não deve desejar
receber. Ele deve dar-se totalmente, incondicionalmente, e pelo único motivo
que depois de ter errado de ilusão em ilusão na busca ininterrupta do bem, ele
tem certeza de ter discernido a verdade voltando-se para Deus. (p, 222, 223 e 224)
A maioria dos que vão para o
cristianismo, ou que, tendo nascido nele e nunca o tendo deixado, se apegam a
ele com um movimento verdadeiramente sincero e fervoroso, são impedidos e
depois mantidos por uma necessidade do coração. Não poderiam privar-se de
religião. Ao menos não poderiam privar-se sem que resultasse para eles espécie
de degradação. Ora, para que o sentimento religioso proceda do espírito de
verdade, é preciso estar totalmente pronto para abandonar sua religião, a ponto
de perder assim toda razão de viver, no caso em que ela fosse algo que não a
verdade. Somente nesta disposição de espírito se pode discernir se há verdade
nela ou não. De outro modo não se ousa nem mesmo colocar o problema com rigor.
Deus não deve ser para o coração
humano uma razão de viver como é o tesouro para o avaro. (p.225-226)
O pragmatismo invadiu e maculou mesmo
a concepção da fé.
Se o espírito de verdade está quase
ausente na vida religiosa, seria singular que estivesse presente na vida
profana. Seria o desmoronamento de uma hierarquia eterna. Mas não é assim.
Os sábios exigem do público que ele
conceda à ciência esse respeito religioso que é devido à verdade, e o público
acreditam neles. Mas é enganado. A ciência não é um futuro do Espírito de
verdade, e isso é evidente quando se presta atenção.
Pois o esforço da pesquisa científica,
tal como foi compreendida desde o século XVI até nossos dias, não pode ter por
móbile o amor pela verdade.
Há ai um critério cuja aplicação é
universal e segura; ele consiste para apreciar uma coisa qualquer, em tentar
discernir a proporção do bem contida, não na própria coisa, e não mais. A fala
de Cristo sobre as árvores e os frutos o garante.
Só Deus, é verdade, discerne os
móbiles no íntimo dos corações. Mas a concepção que domina uma atividade,
concepção que geralmente não é secreta, é compatível com certos móbiles e não
com outros; há aqueles que ela exclui por necessidade, pela natureza das
coisas. (p.227)
O amor real e puro deseja sempre antes
de tudo permanecer inteiro na verdade, qualquer que seja, incondicionalmente.
Toda outra espécie de amor deseja antes de tudo satisfações, e por esse fato é
princípio de erro e de mentira. O amor real e puro é por si mesmo espírito de
verdade. É o Espírito Santo. A palavra grega que se traduz por espírito
significa literalmente sopro ígneo, sopro misturado a fogo, e designava, na
Antiguidade, a noção que a ciência designa hoje pela palavra energia. O que nós
traduzimos como “espírito de verdade” significa a energia da verdade, a verdade
como força agente. O amor puro é essa força agente, o amor que não quer a
nenhum preço, em nenhum caso, nem mentira nem erro.
Para que esse amor fosse o móbile do
sábio em seu esforço esgotante de pesquisa, seria preciso que ele tivesse algo
a amar. Seria preciso que a concepção que ele tem do objeto de seu estudo
encerrasse um bem. Ora acontece o contrário. Desde o renascimento – mais
exatamente, desde a segunda metade do Renascimento – a própria concepção da
ciência é a de um estudo cujo objeto está colocado fora do bem e do mal, sobre
tudo fora do bem, considerado sem nenhuma relação com o bem. A ciência só
estuda os fatos como tais e os próprios matemáticos vêem as relações
matemáticas como fatos do espírito. Os fatos, a força, a matéria, isolados,
considerados em si mesmos, sem relação com mais nada, não há nada aí que um
pensamento humano possa amar.
(p.229)
Sofremos realmente da doença da
idolatria; ela é tão profunda que retira dos cristãos a faculdade do testemunho
da verdade. Nenhum diálogo que surdos pode aproximar-se em força cômica do
debate e espírito moderno e da Igreja. Os descrentes escolhem para de eles
fazer argumentos contra a fé cristã, em nome do espírito científico, verdades
que constituem indireta ou mesmo diretamente provas manifestadas da fé. Os
cristãos nunca se apercebem disso, e esforçar-se francamente, como má
consciência, como uma falta aflita de probidade intelectual, por negar essas
verdades. Sua cegueira é o castigo pelo crime de idolatria. (p.234)
O espírito de verdade está hoje quase
ausente da religião, na ciência de todo o pensamento. Os males atrozes no meio
dos quais debatemos, sem nem mesmo chegar a experimentar todo seu trágico, vêm
inteiramente daí. “Este espírito de mentira e de erro – da queda dos reis
funesto mensageiro”, de que falava Racine, hoje não é maia monopólio dos
soberanos. Entende-se a todas as classes da população; abarca nações inteiras e
coloca-se em delírio.
O remédio é fazer voltar a descer o
espírito de verdade entre nós, primeiro na religião e na ciência; o que implica
em que elas se reconciliem.
O espírito de verdade pode residir na
ciência sob a condição de que o móbile do sábio seja o amor pelo objeto que é a
matéria do seu estudo. Esse objeto é o universo no qual vivemos. Que se pode
amar nele, senão sua beleza? A verdadeira definição da ciência é que ela é o
estudo da beleza do mundo.
Logo que se pensa nisso é evidente, a
matéria, a força cega não são o objeto da ciência. O pensamento não pode
atingi-las; fogem dele. O pensamento do sábio só atinge relações que apreendem
matéria e força numa rede invisível, impalpável e inalterável de ordem e de
harmonia. “A rede do céu é vasta, diz Lao-Tsé; sua malhas são largas; no
entanto nada passa através delas”.
Como o pensamento humano teria por
objeto outra coisa que não pensamento? Esta é uma dificuldade tão conhecida na
teoria do conhecimento que se renuncia a considerá-la, é deixada de lado como
um lugar-comum. Mas há uma resposta. É que o objeto do pensamento humano é,
também ele, pensamento. O sábio tem por fim a união de seu próprio espírito com
a sabedoria misteriosa eternamente inscrita no universo. Por conseguinte como
haveria oposição ou mesmo separação entre o espírito da ciência e o da religião?
A investigação científica não é senão uma forma da contemplação religiosa.
Era exatamente o caso da Grécia. O que
se passou então depois? O que aconteceu para que essa ciência que, quando a
espada romana o derrubou, tinha o espírito religioso por essência, tenha
despertado materialista ao sair de sua longa letargia? Que acontecimento
surgira no intervalo?
Produzira-se uma manifestação na
religião. Não se trata de advento do cristianismo. O cristianismo original, tal
como está ainda presente para nós no Novo Testamento, e sobretudo nos
Evangelhos, era, como a religião antiga dos Mistérios, perfeitamente apto a ser
a inspiração central de uma ciência perfeitamente rigorosa. Mas o cristianismo
sofreu uma transformação, provavelmente vinculada à sua passagem à posição de
religião romana oficial.
Após sua transformação, o pensamento
cristão, exceto alguns raros místicos sempre expostos ao perigo de serem
condenados, não admite outra noção da Providência divina senão a de uma
Providência pessoal.
Essa noção encontra-se no Evangelho,
pois Deus é aí chamado pai. Mas a noção de uma Providência impessoal, e num
sentido quase análoga a um mecanismo, também se encontra aí. “Tornai-vos os
filhos de vosso Pai, aquele dos céus; pois ele faz levantar o sol sobre os maus
e os bons, e faz cair a chuva sobre os justos e os injustos... Sede portanto
perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.” (Mateus, 5, 45.)
Assim é a imparcialidade cega da
matéria inerte, é essa regularidade impiedosa da ordem do mundo, absolutamente
indiferente à qualidade dos homens, e por isso tão frequentemente acusada de
injustiça – é isso que é proposto como modelo de perfeição à alma humana. É um
pensamento de tal profundidade que não somos nem mesmo hoje capazes de
apreendê-lo; o cristianismo contemporâneo perdeu-o completamente.
Todas asa parábolas sobre a semente
respondem à noção de uma previdência impessoal. A graça cai de Deus como todos
os seres; o ela se torna neles depende do que eles são; lá ela penetra
realmente, os frutos que traz são o efeito de um processo análogo a um
mecanismo, e que, como um mecanismo, tem lugar na duração. A virtude de
paciência, ou para traduzir mais exatamente a palavra grega, de espera imóvel,
é relativa a essa necessidade da duração.
A
não-intervenção de Deus na operação da graça é expressa tão claramente quanto
possível: “O reino de Deus é como se um homem jogar um grão na terra, depois
dormir e velas noite e dia, e o grão germina e cresce sem que ele saiba como.
Automaticamente a terra traz o fruto; primeiro o caule, depois a espiga, depois
a plenitude do grão na espiga.” (Marcos, 4, 26.) (p.235,236 e 237)
Poder-se-ia
encontrar nos Evangelhos, embora eles só nos tenham transmitido uma pequena
parte dos ensinamentos de Cristo, o que se poderia chamar uma física
sobrenatural da alma humana. Como toda doutrina científica, ela só contém
coisas claramente inteligíveis e experimentalmente verificáveis. Somente a
verificação é constituída pela marcha para a perfeição, e por conseqüência é
preciso crer na palavra dos que a realizaram. Mas nós acreditamos na palavra, e
sem controle, dos sábios que nos dizem o que se passa em seus laboratórios,
ainda que ignoremos se eles amam a verdade. Seria mais justo crer na palavra
dos santos, ao menos daqueles que são autênticos, pois é certo que amam
perfeitamente a verdade. (p.240)
O único fato sobrenatural aqui embaixo é
a própria santidade e o que se aproxima dela; é o fato de que os mandamentos
divinos se tornam, naqueles que amam Deus, um móbile, uma força agente, uma
energia motriz, no sentido literal, como a gasolina num automóvel. Se três
passos são miraculosos; são-no igualmente, quer sejam executados sobre o solo
ou sobre a água. Somente se forem executados sobre o solo nada de extraordinário
aparece. (p.241)
Os poderes exercidos por Cristo
constituíam, não uma prova, mas um elo no encadeamento de uma demonstração.
Eram o sinal seguro de que Cristo estava situado fora da humanidade comum,
entre aqueles que se deram ao bem ou ao mal. Eles não indicavam qual dos dois.
Mas discriminação era fácil de fazer pela perfeição manifesta de Cristo, a
pureza de sua vida, a perfeita beleza de suas palavras, e o fato de que ele
exercia seus poderes somente para atos de compaixão. Disso resultava somente
que era um santo. Mas aqueles que estavam certo de que ele era um santo, quando
o ouviam afirmar que era o filho de Deus, podiam hesitar sobre o sentido de
suas palavras, mas eram obrigados a crer que elas encerravam uma verdade. Pois
um santo, quando diz tais coisas, não pode nem mentir nem enganar-se. Nós
também somos obrigados a crer tudo o que Cristo disse, salvo no que podemos
supor uma má transcrição; e o que constituía força da prova é a beleza. Quando
o que está em questão é o bem, a beleza é uma prova rigorosa e certa; e mesmo
não pode haver nenhuma outra. É absolutamente impossível que haja alguma
outra. (p.242)
A fé na Providência consiste em
estar certo de que o universo na sua totalidade é conforme a vontade de Deus
não somente no primeiro sentido, mas também no segundo; ou seja, que neste
universo o bom vence o mal. Não se pode tratar senão do universo na sua
totalidade, pois nas coisas particulares não podemos infelizmente duvidar de
que haja mal. Assim o objeto dessa certeza é a disposição eterna e universal
constituindo o fundamento da ordem invariável do mundo. A providência divina
jamais aparece de outra forma, salvo erro, nem nos textos sagrados da China, da
Índia e da Grécia, nem nos Evangelhos.
Mas quando a religião cristã foi oficialmente
adotada pelo Império Romano, pôs-se na sombra o aspecto impessoal de Deus e da
Providência divina. Fez-se de Deus um duplo do Imperador. A operação foi
facilitada pela corrente judaica da qual o cristianismo, pelo fato de sua
origem histórica, não pudera purificar-se. Jeová, nos textos anteriores ao
exílio, tem com os hebreus a relação jurídica de um senhor com escravos. Eles
eram escravos do Faraó; Jeová tendo-os tirado as mãos do Faraó, sucedeu-lhe nos
direitos. São sua propriedade, e ele domina-os como qualquer homem domina seus
escravos, salvo que dispõe de uma escolha maior de recompensas e castigos.
Ordena-lhes indiferentemente o bem ou o mal, mas muito mais frequentemente o
mal, e nos dois casos eles não têm senão que obedecer. Pouco importa que sejam
mantidos na obediência pelos móbiles mais vis, desde que as ordens sejam
executadas.
Tal concepção estava precisamente à
altura do coração e da inteligência dos romanos. (p.245)
Esta concepção é a de uma submissão
incondicionada, total, mas concedida unicamente à legitimidade, sem nenhuma
consideração pelo poder nem pelas possibilidades de prosperidade ou de
desgraça, de recompensa ou castigo. É exatamente a mesma concepção que a
obediência ao superior nas ordens monásticas. Um rei obedecido assim era
realmente uma imagem de Deus para seus súditos, como um prior de convento para
seus religiosos, não por uma ilusão que o teria feito parecer divino, mas
unicamente pelo efeito de uma convenção que se acreditava divinamente
retificada. Era um respeito religioso absolutamente desprovido de idolatria. A
mesma concepção de senhoria legítima era transposta, abaixo do rei, de cima
baixo da hierarquia social. Toda a vida pública ficava assim impregnada da
virtude religiosa de obediência, como a de um convento beneditino de boa
época. (p.246)
O Evangelho, é verdade, está cheio
de comparações tiradas da escravidão. Mas na boca de Cristo essa palavra é uma
astúcia do amor. Os escravos são os homens que quiseram de todo seu coração
dar-se a Deus como escravos. E, embora isso seja um Don realizado num instante
e de uma vez por todas, na seqüência esses escravos não param um segundo de
suplicar a Deus que consinta em mantê-los na escravidão. (p.250)
A inspiração verdadeiramente cristã
felizmente conservada pela mística. Mas fora da mística pura, a idolatria
romana maculou tudo. Idolatria, pois é o modo de adoração, não o nome atribuído
ao objeto, que separa a idolatria da religião. Se um cristão adora Deus com um
coração disposto como o coração de um pagão de Roma na homenagem prestada ao
imperador, esse cristão também é idólatra. (p.250)
Na tradição mística da Igreja
católica, um dos objetos principais das purificações através das quais a alma
deve passar é a abolição total da concepção romana de Deus. Enquanto sobrar um
traço disso, a união de amor impossível.
Mas o esplendor dos místicos foi
impotente para aniquilar essa concepção na Igreja como ela estava aniquilada em
sua alma, porque a igreja precisava dela como o império precisara. Precisava
dela para sua dominação temporal. De modo que a divisão do poder em poder
espiritual e temporal, de que se fala tão frequentemente a propósito da Idade
Média, é coisa mais complexa do que se pensa. A obediência ao rei segundo a
concepção espanhola clássica é uma coisa infinitamente mais religiosa e mais
pura do que do que a obediência a uma Igreja armada com a Inquisição e propondo
uma concepção escravagista de Deus, como foi a ampla medida o caso no século
XIII. Pode ser que, por exemplo no século XIII em Aragão, o rei tenha sido
detentor de uma autoridade realmente espiritual, e a Igreja de uma autoridade
realmente temporal. Como quer que seja, o espírito romano de imperialismo e de
dominação jamais abandonou suficientemente a igreja para que ela abolisse a
concepção romana de Deus.
Em conseqüência, a concepção da
Providência tornou-se irreconhecível. É um gritante a ponto de aturdir o
pensamento. Os mistérios autênticos da fé são também absurdos, mas de um
absurdo que ilumina o pensamento e o faz produzir em abundância verdades
evidentes à inteligência. Os outros absurdos são talvez mistérios diabólicos.
Ambos se encontram mesclados no pensamento cristão corrente como o trigo e o
joio.
A concepção da Providência que
corresponde ao Deus do tipo romano é uma intervenção pessoal de Deus no
universo para ajudar certos meios em vista de fins particulares. Admite-se que
a ordem do mundo, deixada a si mesma e sem intervenção particular de Deus em
tal lugar, tal instante para tal fim, poderia produzir efeitos não adequados à
vontade de Deus. Admite-se que Deus pratica as intervenções, destinadas a
corrigir o jogo da causalidade, então elas mesmas submetidas à causalidade.
Deus viola a ordem do mundo para fazer surgir aí, não o que ele quer produzir,
mas causas que trarão como efeito o que ele quer produzir. (p.251-252)
A concepção absurda da Providência
como intervenção pessoal e particular de Deus para fins particulares é
incompatível como a verdadeira fé.
(p.254-253)
Os homens que ignoram o verdadeiro
bem desobedecem a Deus neste sentido de que não lhe obedecem como convém a uma
criatura pensante, por um consentimento do pensamento. Mas seus corpos e alma
estão absolutamente submetidos às leis dos mecanismos que regem soberanamente a
matéria física e psíquica. A matéria física e psíquica neles obedece
perfeitamente; são perfeitamente obedientes enquanto matéria, e não são outra
coisa, se não possuírem nem desejarem a luz sobrenatural, a única que eleva o
homem acima da matéria. É por isso que o mal que eles nos fazem deve ser
acolhido como o mal que nos faz a matéria inerte. Além da compaixão que convém
conceder a um pensamento humano perdido e doente, eles devem ser amados como
deve ser amada a matéria inerte, enquanto partes da ordem perfeitamente bela do
universo. (p.261)
Em todo caso todas as tradições religiosas da Antiguidade, incluindo a Antigo Testamento, fazem remontar os ofícios a um ensinamento direto de Deus. A maioria afirma que Deus se encarnou para essa missão pedagógica. Os egípcios por exemplo, pensavam que a encarnação de Osíris tivera por objeto simultaneamente esse ensinamento prático e a Redenção pela Paixão. (p.267)
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