sábado, 28 de dezembro de 2024

ALAIN TOURAINE - CRÍTICA DA MODERNIDADE

 




Ed.Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro 2002

Síntese: Pe Paolo Cugini 

Digitação: Carine Almeida Souza


PRIMEIRA PARTE

A MODERNIDADE TRIUNFANTE

CAPÍTULO I: AS LUZES DA RAZÃO

     A modernidade não é mais pura mudança, sucessão de acontecimentos; ela é difusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso, ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política, economia, vida familiar, religião, arte em particular, porque a racionalidade instrumental se exerce no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer um deles seja organizado do exterior, isto é, em função da sua integração em uma visão geral, da sua contribuição para a realização de um projeto societal. (p. 17)

     A idéia de modernidade não exclui a de fim da história, como testemunham os grandes pensadores do historicismo, comte, Hegel e Marx, mas o fim da história é mais o de uma pré-história e o início de um desenvolvimento produzido pelo progresso técnico, a liberação das necessidades e o triunfo do Espírito. (p. 17)

     A idéia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada. Não basta que estejam presentes as aplicações tecnológicas da ciência para que se fale de sociedade moderna. É preciso, além disso, que a atividade intelectual seja protegida das propagandas políticas ou das crenças religiosas, que a impersonalidade das leis proteja contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, que as administrações públicas e privadas não sejam os instrumentos de um poder pessoal, que a vida pública e vida privada sejam separadas, assim como devem ser as fortunas privadas do orçamento do Estado ou das empresas.

     A idéia de modernidade está portanto estreitamente associada à da racionalização. Renunciar a uma é rejeitar a outra. (p. 18) 

     A mais forte concepção ocidental da modernidade, a que teve efeitos mais profundos, afirmou principalmente que a racionalização impunha a destruição dos laços sociais, dos sentimentos, dos costumes e das crenças chamadas tradicionais, e que o agente da modernização não era uma categoria ou uma classe social particular, mas a própria razão e a necessidade histórica que prepara seu triunfo. Assim, a racionalização, componente indispensável da modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâneo e necessário de modernização. (p. 18 e 19)

     O Ocidente, portanto, viveu e pensou a modernidade como uma revolução. A razão não conhece nenhuma aquisição; ao contrário, ela faz tábua rasa das crenças e das formas de organização sociais e políticas que não se baseiem em uma demonstração de tipo científico. (p. 19)

      O espírito do Iluminismo quer destruir não apenas o despotismo, mas os corpos intermediários, como o fez a Revolução Francesa: a sociedade deveria ser tão transparente quanto o pensamento científico. Idéia que ficou muito presente nos ideais franceses de republica e na convicção de que ela deve ser, antes de mais nada, portadora de ideais universalistas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. O que abre as portas tanto ao liberalismo quanto a um poder que poderia ser absoluto, porque seria racional e comunitário, poder já anunciado pelo Contrato Social, que os jacobinos procurarão construir e que será o objetivo de todos os revolucionários, construtores de um poder absoluto porque científico, e destinado a proteger a transparência da sociedade contra o arbítrio, a dependência e o espírito reacionário. (p. 20)

     O espírito do Iluminismo era o de uma elite instruída, de nobres, de burgueses e intelectuais avançados, que experimentavam nesses prazeres uma libertação e a satisfação de escandalizar a Igreja, principalmente no caso dos países católicos. (p. 22)

     Este conceito de natureza, como o de razão, tem como função principal unir o homem e o mundo, como fazia a idéia de criação, mais freqüentemente associada do que contrária à de natureza, mas permitindo ao pensamento e à ação humanos agir sobre essa natureza conhecendo e respeitando suas leis sem recorrer à revelação nem aos ensinamentos das Igrejas. (p. 23)

     Se esse apelo à natureza tem uma função acima de tudo crítica, anti-religiosa, é porque ela procura dar ao bem e ao mal um fundamento que não seja nem religioso nem psicológico, mas somente social. A idéia de que a sociedade é fonte de valores, que o bem é o que é útil à sociedade e o mal o que prejudica sua integração e eficácia, é um elemento essencial da ideologia clássica da modernidade. (p. 23)

     Existe uma ordem natural onde o homem deve saber inserir-se e, quando ele dela se afasta, arrastado por seus desejos e ambições, ele passa desta existência natural para o domínio do mal que separa e opõe os indivíduos. O contrato social faz surgir um soberano que é ao mesmo tempo a própria sociedade, que constitui um corpo social, desde que seja de pequena dimensão, e a razão. Como todos os filósofos do Iluminismo, Rousseau descarta a revelação divina como princípio de organização da sociedade, substituindo-a pela razão. O soberano de Rousseau anuncia a consciência coletiva de Durkheim, assim como seu pensamento, seguindo o de Hobbes, está na origem de todas as sociologias que definem as funções principais de uma sociedade e avaliam as condutas por sua contribuição positiva ou negativa à integração social e à capacidade das instituições de controlar os interesses e paixões pessoais. (p. 25)

     A ideologia modernista não se ligou à idéia democrática; ela foi nitidamente revolucionária, criticando em teoria, e mais tarde na prática, o poder do rei e da Igreja Católica em nome dos principais universais e da própria razão. (p. 27)

     A identificação da modernidade com a razão foi mais francesa que inglesa; a revolução inglesa e o Bill of Rghts de 1689 clamavam ainda pela restauração dos direitos tradicionais do Parlamento, enquanto que a Revolução francesa, a partir da sua radicalização, clamava, em nome da razão, pela unidade da nação e pelo castigo aos agentes do rei e do estrangeiro. (p. 27)

     A ideologia modernista, que corresponde à forma, historicamente particular, da modernização ocidental, não triunfou apenas o domínio das idéias com a filosofia das luzes. Ela dominou também no mundo econômico, onde tomou a forma do capitalismo, que não pode ser reduzido nem à economia de mercado nem à racionalização. A economia de mercado corresponde a uma definição negativa da modernidade; ela significa o desaparecimento de todo controle holístico da atividade econômica, a independência desta em relação aos objetivos próprios do poder político ou religioso e aos efeitos das tradições e dos privilégios. A racionalização, por seu lado, é um elemento indispensável da modernidade, como foi dito no início deste capítulo. O modelo capitalista de modernização se define, ao contrario, por um tipo de ator dirigente, o capitalista. (p. 32)

     A fé favorece o aparecimento de um comportamento econômico? Mas, como aceitar um tal paradoxo, uma vez que o espírito religioso, transformando e reavivado pela reforma, é antes um ascetismo no mundo, conduzido a um desprendimento dos bens do mundo dificilmente compatível com uma vida consagrada ao trabalho, ao comércio e ao lucro? Somos deste modo levados a uma interpretação mais limitada das realidades analisadas por Weber. O essencial não seria a fé, portanto uma cultura religiosa, mas a ruptura dos laços sociais impostos pelo temor do juízo de um deus escondido. Ruptura da família, das relações de amizade, e rejeição e instituições religiosas que misturavam o sagrado e o profano, a fé e a riqueza, a religião e a política, a exemplo dos papas e dos cardeais da Renascença. Isto no reconduz ao tema Weberiano do desencantamento, da ruptura com todas as formas de interpenetração do sagrado e do profano, do ser e dos fenômenos, para falar uma linguagem kantiana. É no seu capítulo IV que Weber avança mais claramente nesta direção. Se interpretamos desta maneira restrita o seu pensamento, ele está perfeito acordo com o conjunto da idéia ocidental clássica de modernidade, concebida por Weber como intelectualização, como ruptura com o “sentido do mundo” e ação no mundo, como eliminação do finalismo das religiões, da revelação e da idéia de Sujeito. A importância do protestantismo não diz respeito aqui ao conteúdo da sua fé, mas à sua rejeição do encantamento do mundo cristão, definido ao mesmo tempo pelo papel dos sacramentos e pelo poder temporal dos papas. (p. 33 e 34)

     O capitalismo, o apelo à moral natural e a idéia de tabula rasa convergem para definir a ideologia modernista ocidental nos seus aspectos particulares que não se pode identificar com a modernidade em geral e que seria perigoso propor ou impor ao mundo inteiro como o único método certo, o one Best way, para generalizar a expressão de Taylor. (p. 36)

     Esta concepção clássica da modernidade, ao mesmo tempo filosófica e econômica, define-a como triunfo da razão, como libertação e como revolução, e a modernização como modernidade em ato, como um processo inteiramente endógeno. (p. 36)

     Esta concepção clássica da modernidade, que dominou a Europa e depois o conjunto do mundo ocidentalizado antes de recuar diante das críticas e da transformação das práticas sociais, tem como tema central a identificação do ator social com suas obras, sua produção, seja pelo triunfo da razão científica e técnica ou pelas respostas trazidas racionalmente pela sociedade às necessidades e aos desejos dos indivíduos. É por isso que a ideologia modernista afirma antes de tudo a morte do Sujeito. A corrente dominante do pensamento ocidental, desde o século XVI até nossos dias, foi materialista. A concorrência a Deus, a referência à alma foram constantemente consideradas como herança de um pensamento tradicional que era preciso destruir. A luta contra a religião, tão viva na França, na Itália e na Espanha, tão central no pensamento de Maquiavel, de Hobbes e dos Enciclopedistas franceses, não foi apenas a rejeição da monarquia do direito divino, do absolutismo reforçado pela Contra-Reforma, da submissão da sociedade civil à aliança entre trono a altar; ela foi a rejeição da transcendência e, mais concretamente, da separação da alma e do corpo, apelo à unidade do mundo e do pensamento dominado pela razão ou pela busca do interesse e do prazer. (p. 37 e 38)

     O triunfo da modernidade é a supressão dos princípios eternos, a eliminação de todas as essências e de suas entidades artificiais que são o Eu e as culturas, em benefício de um conhecimento científico dos mecanismos biopsicológico e das regras impessoais não escritas de trocas dos bens, das palavras e das mulheres. O pensamento estruturalista radicalizará este funcionalismo e empurrará ao máximo a eliminação do sujeito. O modernismo é um anti-humanismo, porque ele sabe muito bem que a idéia do homem estava ligada à da alma, que impõe a de Deus. A rejeição de toda revelação e de todo princípio moral criou um vazio que é preenchido pela idéia de sociedade, isto é, de utilidade social. O homem é apenas um cidadão. A caridade torna-se solidariedade, a consciência passa a ser o respeito às leis. Os juristas e os administradores substituem os profetas. (p. 38)

      O que resta hoje em dia da ideologia modernista? Uma crítica, uma destruição, um desencantamento. Menos a construção de um mundo novo que a vontade e a alegria de destruir os obstáculos acumulados sobre o caminho da razão. A idéia de modernidade não extrai a sua força da sua utopia positiva, a da construção de um mundo racional, mas da sua função crítica, e por isso a guarda só enquanto persistir a resistência do passado. (p. 39)

CAPÍTULO II: A ALMA E O DIREITO NATURAL

     A modernidade não é a eliminação do sagrado, mas a substituição de um ascetismo fora do mundo por um ascetismo dentro do mundo que não teria qualquer sentido se não apelasse para uma outra forma de divino, de sagrado, ao mesmo tempo que o mundo dos fenômenos se separa do mundo da revelação ou do ser em si. A secularização só pode ser uma das metades do mundo desencantando, sendo a outra o apelo a um Sujeito hoje em dia fora de alcance, mas que não deixa de ser uma referência constantemente presente. (p. 42)

     O dualismo de origem cristã, cuja importância para a formação da modernidade ressaltaremos neste capítulo, será destruído pela ideologia modernista, provocando no século XVIII a abertura de um longo período racionalista que muitos identificaram com a própria modernidade. Mas quando na segunda metade do século IX esta ideologia entrará em crise intelectual, social e política, como veremos na segunda parte deste livro, novas interrogações sobre a modernidade farão reviver o dualismo que acreditávamos destruído para sempre pelo poder da indústria e da guerra. (p. 42)

     Todas as religiões da revelação, antes de tudo o judaísmo, que é a primeira dentre elas, introduzem um princípio de subjetivação do divino que é o começo do desencantamento do mundo. O cristianismo levou mais longe esta tendência rompendo os laços entre a religião e um povo e conferido uma expressão não social ao povo de Deus. Ele separou poder temporal e poder espiritual mais fortemente que os uniu, e é para apoiar o imperador na sua luta contra o papa que se formará o pensamento moderno, sendo que um de seus ramos conduzirá até Lutero. (p. 43)

     É este movimento para o interior que afasta Agostinho do pensamento platônico do qual ele está ao mesmo tempo tão próximo. Porque se ele pensa que tudo que existe é belo, já que tudo pertence à ordem racional da criação, ele não descobre Deus através da beleza de suas obras, mas voltando-se para o homem interior e ali descobrindo uma luz que é a da razão, porém mais amplamente a da alma, criada por Deus à sua imagem. O que nos aproxima muito do cogito cartesiano. Agostinho escreveu Confissões porque a memória é uma atividade do espírito, portanto da razão, e permite a passagem do exterior para o interior.

     Este dualismo está constantemente presente em Lutero, na separação que ele estabelece entre filosofia e teologia, entre o que pertence à razão e o que pertence à fé. Esta ruptura da visão que integra o homem à natureza traz em si um apelo à experiência, à afetividade, que se opõe à razão e é capaz de suscitar uma reflexão sobre a existência que se afasta do racionalismo e alimenta uma concepção do homem que, embora teocêntrica e não antropocêntrica, nem por isso deixou de desempenhar um papel essencial na história do humanismo ocidental. (p. 44)

     O pensamento religioso, dentro do próprio mundo católico, está dividido entre tendências contrárias e violentas polêmicas, em particular entre o que Henri Bremond chamou de humanismo devoto e os jansenistas ou outros agostinismo extremos, próximos da Reforma, levados pela submissão absoluta à graça eficaz. (p. 47)

     Nossa sociedade não é individualista porque ela é racionalista, secularizada e orientada para a produção; ela o é apesar das pressões e da normalização que a produção e a gestão centralizadas impõem aos indivíduos, e ela o é em grande parte graças à influência exercida por concepções morais e sociais de origem religiosa. (p. 49)

     Estas duas faces do homem, a do conhecimento racional das leis criadas por Deus e a da vontade e da liberdade, marcas de Deus no homem, não se opõem uma á outra; elas se combinam no fato de a vontade e a generosidade serem dadas pela razão e, mais concretamente, porque se o homem é uma coisa que pensa, isso significa que a Quarta Parte do Discurso, “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina e que sente” – e o início da Terceira Meditação retoma este texto acrescentando “que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer”. (p. 52 e 53)

     Esta dupla natureza do homem, ao mesmo tempo corpo e alma, está também no centro do pensamento de Pascal. “o homem é o mais prodigioso objeto da natureza; pois ele não pode conceber o que só é corpo e ainda menos o que só é espírito e menos que qualquer coisa como um corpo pode estar unido a um espírito. (p. 53 e 54)

     A idéia de modernidade, que parte sempre da confiança na razão, conhece, portanto, no direito e no pensamento político como na filosofia, uma bifurcação onde se separam um naturalismo, completado pela idéia de sociedade enquanto corpo social, e um individualismo dentro do qual se forma a noção de Sujeito. A grandeza de Descartes é que o autor racionalista do Discurso do método também defendeu um dualismo extremo que transformou a idéia cristã da criatura criada à imagem de se Criador em filosofia do Sujeito pessoal. Da mesma forma, o pensamento político e jurídico separou-se em duas correntes a partir de um tronco comum. (p. 55)

     Do dualismo cartesiano até à idéia de direito natural e mais tarde à obra de Kant, os séculos XVII e XVIII, apesar da força crescente do naturalismo e do empirismo que anunciam o cientificismo e o positivismo do século XIX, permanecem fortemente marcadas, no plano intelectual, pela secularização do pensamento cristão, pela transformação do sujeito divino em sujeito humano, o qual é cada vez menos absorvido na contemplação de um ser cada vez mais escondido, e se torna um ator, um trabalhador e uma consciência moral.

     Esse período é arrematado num grande texto: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão votada pela Assembléia nacional francesa de 26 de agosto de 1789. Sua influência ultrapassou a das declarações americanas e seu sentido é bem diferente do de Bill of Rights inglês de 1689. Se esse texto é longo, não unicamente por proclamar princípios em contradição com a monarquia absoluta e que, neste sentido, são revolucionários, mas também porque ele marca o fim dos debates de dois séculos e confere uma expressão universal a esta idéia dos direitos do homem que contradiz a idéia revolucionária. A Declaração francesa dos direitos situa-se na junção de um período que foi dominado pelo pensamento inglês com o período das revoluções que será dominado pelo modelo político francês e pelo pensamento alemão. É o último texto que proclama publicamente a dupla natureza da modernidade feita simultaneamente de racionalização e de subjetivação, antes que triunfem por um longo século o historicismo e seu monismo. (p. 60 e 61)

     O triunfo da liberdade na França e, alguns anos antes, nos Estados Unidos libertos de sua dependência colonial põe fim a um período de três séculos, aquele que forma o que os historiadores denominaram de o “período moderno”. Gostaria de relembrar que este período não é apenas o da secularização e do espírito do capitalismo. (p. 64)

     A imagem da luzes dissipando as brumas do passado, primeiro sobre os cumes da sociedade, depois sobre espaços cada vez maiores, eu quis substituir pela de duas correntes de pensamento e de organização social opostas. Chamemos a primeira de capitalismo e a segunda de espírito burguês. De um lado, o homem desprendido de todos os liames sociais e que, talvez porque seja eleito, se obriga a disciplinas severas, mais impõe também uma ordem repressiva àqueles que não vivem na justiça e sob o olhar de Deus. Assim se constrói uma sociedade justa, elitista, severa, eficaz, que transforma a fé em atividades práticas. Do outro lado a descoberta da consciência de si, que se preocupa com esta maîtresse forme, forma mestra, como dizia Montaigne, também chamada personalidade individual, e também com o sentimento amoroso, que escapa ao domínio da lei. (p. 65)

     A idéia central que se impõe é que os dois pólos da modernidade, a racionalização e a subjetivação estão em vias de separar-se, enquanto que o mundo anterior, dominado pela união entre filosofia e teologia cristãs, estava instalado num pensamento ao mesmo tempo mágico e racionalista, cristão e aristotélico. Esta separação afetará aos poucos todos os campos. A idéia de que as condutas humanas podem e devem colocar-se inteiramente no interior da racionalidade e de seu universalismo será contestada simultaneamente pelos exploradores da personalidade, pelos nacionalismos e, mais recentemente, pelos analistas de consumo e da comunicação de massa. (p. 67)

CAPÍTULO III: O SENTIDO DA HISTÓRIA

     A modernização econômica acelerada teve como conseqüência principalmente transformar os princípios do pensamento racional em objetivos sociais e políticas gerais. (p. 69)

     A libertação social e política marca a volta à natureza, ao Ser, graças à razão científica que permite esses encontros entre o homem e o universo. Condorcet contava com o progresso do espírito humano para assegurar a felicidade de todos; no século XIX é a mobilização social e política, é o desejo de felicidade que atuam como motores do progresso industrial. É trabalhar, organiza-se e investir para criar uma sociedade técnica geradora de abundância e de liberdade. A modernidade era uma idéia, ela se torna por acréscimo uma vontade, mas sem que seja rompido o vínculo entre a ação dos homens e as leis da natureza e da história, o que assegura uma continuação fundamental entre o século das luzes e a era do progresso. (p. 69 70)

     De um interesse muito mais considerável é o pensamento historicista, revestido de uma forma idealista ou não, que identifica a modernização com o desenvolvimento do espírito humano, o triunfo da razão com o da liberdade, a formação da nação ou a vitória final da justiça social. (p. 70)

     A idéia de progresso ocupa um lugar intermediário, central, entre a idéia de racionalização e a de desenvolvimento. Este dá primazia à política, aquela ao conhecimento; a idéia de progresso afirma a identidade entre políticas e desenvolvimento e triunfo da razão; ela anuncia a aplicação da ciência à política e por isso identifica uma vontade política com uma necessidade histórica. Acreditar no progresso é amar o futuro ao mesmo tempo inevitável e radioso. (p. 72)

     A idéia revolucionária reúne três elementos: a vontade de libertar as forças da modernidade, a luta contra um antigo regime que é obstáculo para a modernização e para o triunfo da razão e a afirmação de uma vontade nacional que se identifica com a modernização. Não existe revolução que não seja modernizadora, libertadora e nacional. (p. 73)

     A entrada no historicismo e no mundo técnico pelo duplo choque da Revolução Francesa e da industrialização inglesa provoca resistências mais extremadas que as de Tocqueville, que recusava a revolução por encontrar na modernidade a realização das idéias dos séculos XVII e XVII. A entrada na história, a passagem das idéias às práticas, a distância intransponível criada entre os fenômenos e o ser, engendra uma nostalgia do ser, princípio de unidade do mundo natural e do mundo humano, e por isso de uma visão racionalista, que não cessará de se fortalecer antes de se tornar a força principal da reação intelectual contra a modernidade. Prometeu triunfante lastima a beleza perdida do Olimpo. (p. 80)

     A franqueza do positivismo vem do fato dele ser estranho às tradições culturais às quais ele se opõe. Ele se dedica inteiramente a resolver o problema do presente: como reintroduzir ordem no movimento? E a solução que ele propõe situa-se somente ao nível da sociedade concebida como um organismo que necessita ao mesmo tempo da diversidade de seus órgãos e da unidade da vida e da energia. Mas que resposta ele traz ao mais importante debate do pensamento dos séculos XVII e XVIII: a difícil conciliação entre o direito natural e o interesse individual, o universal e o particular, a razão e a sensação? A religião da humanidade é atirada entre esses dois universos, mas não vemos como ela se impõe a eles. E, de fato, a política positiva permaneceu sem efeito sobre as práticas sociais. (p. 83 e 84)

     O maior perigo do pensamento historicista é subordinar os atores sociais ao Estado, agente de transformação histórica, ver na subjetividade apenas um momento necessário à aparição do espírito objetivo, depois do espírito absoluto. Uma tendência profunda do historicismo é, falando em nome de um Sujeito identificado com a história, eliminar os sujeitos, isto é, os atores na medida em que procuram transformar sua situação para aumentar sua liberdade. (p. 86)

     Hoje sabemos por experiência que o progresso, o povo e a nação não se fundamentam no entusiasmo revolucionário para criar uma força histórica à qual as barreiras levantadas pelo dinheiro, pela religião e pelo direito não podem resistir. Esta síntese histórica com a qual sonhava a era das revoluções jamais se realizou espontaneamente, apesar dos sonhos de Michelet. Ela só conseguiu o surgimento do poder absoluto de dirigentes revolucionários que se identificaram com a pureza e a unidade da revolução. A unidade do processo histórico só se realizou com a substituição da pluralidade dos atores sociais e a complexidade de suas relações pelo Um da nação, do povo, da comunidade sitiada, no interior da qual devem reinar a lei marcial e a punição dos traidores.

     As revoluções sempre voltaram as costas à democracia, impondo uma unidade, que só podia ser a de uma ditadura, à diversidade de uma sociedade dividida em classes. Foi exatamente porque a participação ativa dos atores sociais na vida pública tronou-se fraca, mesmo na França onde o sufrágio universal existia desde 1848, que se instalou esta dominação da elite política sobre o povo, sobre as classes sociais, que teve início com o Terror e se tornará permanente com os regimes totalitários do século XX. (p. 93 e 94)

     É preciso, portanto, que nos perguntemos, após a derrota do pensamento cristão e do direito natural diante da filosofia da Ilustração, qual é a forma de retorno à subjetividade que deve suceder ao historicismo. Uma tal fórmula tem pelo menos dois méritos. O primeiro é nos colocamos, hoje, a igual distância dos dois séculos que precederam o nosso, de nos obrigar a reconhecer ao mesmo tempo o apelo à razão e a libertação do sujeito pessoal. O segundo é aceitarmos uma situação histórica de nossa reflexão, certamente não sob a forma de uma escala das formas de modernização ou das etapas do crescimento econômico, mas sob a de uma busca de formas de intervenção da sociedade sobre si mesma que podem clamar por uma nova definição das relações entre a eficácia e a liberdade. O modernismo, já o dissemos, primeiramente de prioridade à destruição do passado, à liberação e à abertura. Depois as filosofias da história e do progresso deram um conteúdo positivo à modernidade. Chamaram isso de totalidade, e esta palavra está muito próxima de totalitarismo para que suas ambigüidades e seus perigos sejam evidentes. Podemos conceber uma nova situação histórica, um novo tipo de sociedade onde a modernidade seja definida, não por um princípio único e totalizador, mas ao contrário por novas tensões entre a racionalização e a subjetivação? (p. 95)

SEGUNDA PARTE

A MODERNIDADE EM CRISE

CAPÍTULO I: A DECOMPOSIÇÃO

     Nós vivíamos no silêncio, nós vivemos no barulho; nós estávamos isolados, nós estamos perdidos na multidão; nós recebíamos muito poucas mensagens, nós somos bombardeados por elas. A modernidade nos arrancou dos limites estreitos da cultura local onde vivíamos; ela nos jogou igualmente na liberdade individual como na sociedade e na cultura de massa. Por muito tempo lutamos contra os antigos regimes e suas heranças, mas no século XX lutamos contra os novos regimes, contra a nova sociedade e o novo homem que quiseram criar tantos regimes autoritários, que fazem ouvir os apelos mais dramáticos à libertação, que fazem revoluções dirigidas contra as evoluções e os regimes que delas nasceram. A força principal da modernidade, força de abertura de um mundo que estava cercado e fragmentado, se esgota à medida em que as mudanças se intensificam e aumenta a densidade em homens, em capitais, em bens de consumo, em instrumentos de controle social e em armas. (p. 99 e 100)

     Este esgotamento da idéia de modernidade é inevitável, já que ela se define, não como uma nova ordem, mas como um movimento, uma destruição criadora, para retomar a definição de capitalismo de Schumpeter. O movimento atrai aqueles que durante muito tempo se fecharam na imobilidade; ele cansa, torna-se vertigem quando é incessante e não conduz senão à sua própria aceleração. Por ser a modernidade uma noção mais crítica que construtiva, ele requer uma crítica que seja por si mesma hipermoderna, o que protege contra as nostalgias que, sabemos, tomam facilmente uma aparência perigosa.

     O esgotamento da modernidade transforma-se com rapidez em sentimento angustiante do sem-sentido de uma ação que não aceita outros critérios que os da racionalidade instrumental. Horkheimer denunciou a degradação da “razão objetiva” na “razão subjetiva”, isto é, de uma visão racionalista do mundo em uma ação puramente técnica pela qual a racionalidade é colocada ao serviço das necessidades, sejam elas as de um ditador ou as dos consumidores, que não são mais submetidos à razão e a seus princípios de regulamentação da ordem social assim como da ordem natural. Essa angústia leva a uma inversão d perspectiva. Bruscamente a modernidade é denominada “o eclipse da razão” por Horkheimer e Adorno e todos aqueles por eles influenciados, bem além da escola de Frankfurt. Raciocínio que prolonga a inquietude de Weber, o maior analista da modernidade. (p. 100 e 101)

     Essas duas etapas da crise da modernidade, o esgotamento do movimento inicial de liberação e a perda de sentido de uma cultura que se sentia enclausurada na técnica e na ação instrumental, conduziram a uma terceira etapa, mais radical porque colocava em questão, não as carências da modernidade, mas seus próprios objetivos positivos. Desde o primeiro capítulo deste livro percebemos claramente que o desaparecimento dos fundamentos metassociais da moral ocasionaram o triunfo da moral social, do utilitarismo e do funcionalismo. É bom o que é útil à sociedade. Sejamos cada um de nós bom cidadão, bom trabalhador, com pai ou boa filha. (p. 102)

     A cultura que se poderia chamar pós-moderna, se essa palavra não servisse nos dias de hoje para denominar um conjunto mais delimitado de idéias, não possui princípio central detectável; ela associa orientações contrárias, ela parece puxada à direita e à esquerda. (p. 103 e 104)

     A reação antimoderna mais profunda é aquela que resiste com toda força ao voluntarismo dos poderes modernizadores. (p. 104)

     Não se pode reduzir a uma antropologia do desejo a economia de consumo, pois esta é indissociável da racionalização industrial. (p. 104)

     No campo da produção é a idéia de organização que ocupa o lugar central. (p. 105)

     A empresa como centro de decisão ocupa hoje em dia o lugar que era reconhecido anteriormente ao capitalismo como sistema de mobilização de recursos financeiros e humanos. E as lutas sociais têm lugar cada vez maior no seio da empresa até escolherem como arma suprema, nos Estados Unidos ou na Franca, a ocupação das empresas, por ocasião da Frente Popular. (p. 105)

     As lutas sociais se misturam constantemente com as lutas nacionais. (p. 106)

     Este rápido resumo das principais forças que denominam a cena social e cultural no decorrer do último século: a sexualidade, o consumo mercantil, a empresa, a nação, não pode trazer senão um primeiro ajuste, orientar nossa atenção sobre a aparente heterogeneidade desse cenário que não pode mais ser chamado de sociedade. (p. 106)

     O modelo pleno, global, da modernidade, ao mesmo tempo cultural, econômico e político, decompondo-se em sexualidade, consumo, empresa e nação, reduz a racionalidade a um resíduo: a racionalidade instrumental, a técnica consideradas como a procura dos meios mais eficazes para atingir os objetivos que escapam aos critérios da racionalidade na medida em que dependem dos valores sociais ou culturais, cujas escolhas às vezes são feitas segundo critérios distantes de toda a referência à racionalidade. O tecnicismo coloca-se a serviço da solidariedade social, mas também da repressão social; da produção em massa, mas também da agressão militar ou da propaganda e da publicidade, qualquer que seja o conteúdo das mensagens transmitidas. Esse tecnicismo é pouco discutido, uma vez que fica claro para a maioria que ele não impõe nenhuma escolha no que concerne aos fins da ação. (p. 109 e 110)


CAPÍTULO II: A DESTRUIÇÃO DO EGO

     O progresso não é mais pensado como o triunfo da razão ou a realização do Espírito absoluto, mas como a libertação de uma energia e de necessidades naturais às quais se opõem as construções institucionais e ideológicas. A separação entre o espiritual e o temporal, banida pelo idealismo, retorna fortemente, sob uma forma tão extrema que ela ultrapassa o domínio das instituições e o próprio cenário político; de uma lado as necessidades, do outro o lucro; entre os dois, mais do que um conflito que poderia desembocar em compromissos: a contradição, que não é superada senão pela convergência final da revolta libertadora e do desenvolvimento das forças produtivas, da socialização da produção e do socialismo para chegar à naturalização da sociedade e na eliminação dos obstáculos criados pela consciência. Para Marx, também, o adversário intelectual principal é a idéia de sujeito. Entre as necessidades e os lucros afrontados, tudo o que é figura da sociedade ou da personalidade, modelo de sociedade ou modelo humano, subjetividade individual ou coletiva, é astúcia da burguesia. (p. 113)

     Marx é o primeiro grande intelectual pós-moderno porque ele é anti-humanista e porque definiu o progresso como liberação da natureza, não como realização de uma concepção do homem. Sua concepção da totalidade varia de acordo com os textos e mesmo com as etapas da sua vida, mas existe uma unidade na sua obra que é o materialismo, e por conseguinte a luta contra o subjetivismo. (p. 114)

     Seu argumento central é apresentando em Genealogia da moral. Existem os fortes e os fracos, os dominadores e os dominados, as aves de rapina e os cordeiros. Entre eles há relações materiais das quais todo elemento moral está ausente e que são as da própria vida  e das relações de força que lhe são desfavoráveis, interpreta a força de seu adversário como má. Ele introduz, por trás de seus atos, uma vontade, uma essência. Assim nasce a noção do sujeito, tão irracional e artificial como a do raio que os ignorantes introduzem para explicar a descarga elétrica, que se torna também sujeito e toma mesmo a figura de Júpiter. (p. 117)

     Em além do bem e do mal, sua crítica se concentra sobre os filósofos do sujeito e em primeiro lugar sobre o cogito de Descartes. (p. 118)

     Só a renúncia ao ideal, a Deus, só o triunfo da vontade de vida sobre a vontade de morte permitem a libertação. Mas a luta é incessante entre essas duas forças opostas, pois todo desejo sonha com a sua realização, o que faz nascer o ideal. (p. 119)

     O super-homem é aquele que se eleva até o amor fati, aquele que, segundo a palavra de Zaratustra, sabe que “necessita do que há de pior nele se quiser conseguir o que há de melhor”. Nietzsche não apela seguramente para a liberação dos instintos, mas para a sua espiritualização, para a transformação da natureza em obra de arte, a subida ao Eterno Retorno. (p. 121)

     Todos os temas se resumem nestas palavras: a recusa da moral cristã, a alegria, o combate. O que os une é, antes de tudo, a crítica de uma modernidade identificada ao mesmo tempo com o utilitarismo e a subordinação do ser individual, e nele da vida, aos interesses da organização econômica e social. A crítica de Nietzsche não é tão radical porque ela é anti-social como o é a hostilidade de tantos artistas e intelectuais com respeito a uma sociedade civil e a uma democracia identificada com um capitalismo filisteu. (p. 122)

     Frente a um pensamento modernista transformado em crítica surge, a partir de Nietzsche, um pensamento antimoderno que concentra seus ataques contra a idéia de sujeito. Pensamento antropológico e filosófico oposto às ciências sociais que quase naturalmente têm parte com a modernidade. Pensamento que não é nostálgico do passado, mas que recusa a identificação entre o ator e suas obras. O pensamento nietzschiano sai do modernismo reintroduzindo o ser a-histórico; mas este não pode mais ser o mundo das idéias platônicas ou o Logos divino, ele é a relação como o Id, a consciência do desejo. O homem não ultrapassa sua história porque sua alma é a imagem de Deus, como queria Descartes, mas porque ela é habitada por Dioniso, força impessoal do desejo, sexualidade, natureza do homem. Contra o pensamento das luzes que colocava o universal na razão e apelava para o controle das paixões através da vontade posta a serviço da lucidez, o universal emerge com Nietzsche, e depois dele com Freud, no inconsciente e sua linguagem, no desejo que derruba as barreiras da interioridade. Essa demolição pode ser levada até o antimodernismo mais extremo ela é também a condição de criação de um sujeito que não seja nem o Ego individual, nem o si-mesmo (self) construído pela sociedade; um sujeito que se definisse pela relação a si-mesmo e não às normas culturais institucionalizadas, mas que não pode existir, a menos que se descubra o caminho que leva do Id ao Eu, caminho que deve contornar o Ego identificado com a razão. Nietzsche não se preocupa com o Eu: o amor do destino, amor fati, que ele proclama, quer livrar o homem de todas as tendências decadentes (cristã, democrática, feminina) na subjetivação. (p. 123 e 124)

     Nietzsche não é a única grande figura intelectual que tenha combatido a ideologia modernista. Os filósofos da história e da sociedade se identificaram grandemente com um ou outro aspecto da crise da modernidade. (p. 126)

     A destruição do Ego, definido pela interiorização das normas sociais, é levada até suas mais extremas conseqüências por Freud; sua obra é o ataque mais sistemático já dirigido contra a ideologia da modernidade. Ele substitui a unidade do ator e do sistema, da racionalidade do mundo técnico e da moralidade pessoal, pela ruptura entre o indivíduo e o social. De um lado o prazer, do outro a lei, mundos tão completamente opostos que é impossível imaginá-los juntos. De forma que a afirmação central de Freud pode ser interpretada de maneiras opostas: para uns Freud é um pessimista que julga indispensável a submissão das pulsões individuais às regras e às exigências da vida social; para outros, foi ele que revelou, e portanto libertou, a sexualidade. (p. 126)

     O pensamento de Freud está próximo do de Nietzsche, porém, mais ainda oposto a ele. (p. 132)

     A crítica da modernidade marcada por esses dois pensadores levou uma, a de Nietzsche, rumo a uma recusa da modernidade, a outra, a de Freud, rumo à procura da liberdade do indivíduo, oposição que não deve esconder seu comum pessimismo e sua rejeição das ilusões modernistas, sobretudo da perigosa pretensão de identificar a liberdade pessoal com a integração social. Nietzsche faz reviver o mundo anterior ao cristianismo; Freud faz nascer o sujeito pessoal num mundo secularizado onde ele corre o risco de ser esmagado por sua culpabilidade ou por identificações sociais e políticas alienantes. Reconheçamos que essas duas influências se conjugam freqüentemente e levam numerosos intelectuais a uma rejeição global da sociedade reduzida a um entrelaçamento de regras e exigências, em nome do desejo, palavra que por razões históricas eles preferem à de vontade de poder. Esse antimodernismo radical, estranho a toda escolha política e social, que pode conduzir às escolhas mais diversas, será, no século XX, a nova forma de oposição do “artista” ao mundo burguês. (p. 133) 

     A sociologia nascente rompe com o espírito das luzes. Mesmo Weber, que se liga certamente a Kant, insiste sobre o caráter não racional dos valores dos calvinistas e faz do profeta a figura central da vida social e política. E Simmel, que escreve em 1907 um texto sobre Schopenhauer e Nietzsche, confere mais fortemente ainda um papel central à vontade de vida como fonte primeira ao mesmo tempo da moralidade e da imoralidade.

     Por isso a sociologia não é estranha à consciência final-de-século do declínio do Ocidente, isto é, à crise do racionalismo da Ilustração que se desenvolve principalmente na Alemanha. 

     O triunfo do capitalismo impõe a ruptura da imagem racionalista do homem, o que é evidente tanto para os sociólogos como para os historiadores da economia, que a vontade de lucro e de poder, a guerra pelo mercado e as exigências impostas aos trabalhadores na empresa não se deixam reduzir à imagem suave da racionalização. (p. 137 e 138)

     Se o pensamento modernista, tanto na sua versão liberal quanto na sua versão marxista, repousa sobre a correspondência afirmada entre a libertação do indivíduo e o progresso histórico, o que se traduz pelo sonho de criar um homem novo numa sociedade nova, Nietzsche e Freud destruíram a idéia de modernidade. É exagero reconhecer que essa destruição do modernismo foi definitiva, que ela permanece tão completa hoje quanto no final do século XIX, e que, em particular, o grande período de crescimento do pós-segunda Guerra Mundial não provocou o ressurgimento de filosofias do progresso? A influência do partido comunista, em particular na França, explica a manutenção de um “progressismo” muito ideológico, mas não foi bastante forte para suscitar expressões originais de confiança no futuro. Ao contrário, ela foi exercida num sentido oposto, o da denúncia da crise geral do capitalismo e da pauperização relativa e mesmo absoluta, o que aniquilava o pensamento socialista para o qual a confiança na classe operária revolucionária não podia ser separada da crença no movimento natural da economia rumo a uma mais forte “socialização” da produção.

     A partir de Nietzsche e de Freud, o indivíduo deixa de ser concebido apenas como um trabalhador, um consumidor ou mesmo um cidadão, deixa de ser unicamente um ser social; ele se torna um ser de desejo, habitado por forças impessoais e linguagens, mas também um ser individual, privado. Isso obriga a redefinir o sujeito. Ele era o elo que ligava o indivíduo a um universal: Deus, a razão, a História; ora, Deus está morto, a razão se tornou instrumental e a História está dominada pelos Estados absolutos. (p. 139)


CAPÍTULO III: A NAÇÃO, A EMPRESA, O CONSUMIDOR

     À crítica intelectual do otimismo historicista freqüentemente se juntou uma crítica histórica, prática, das ilusões positivistas. A sociedade moderna ou industrial, diz ela, não se reduz ao triunfo do cálculo e da autoridade racional legal; ela é obra de empresas, ela é trazida pela consciência nacional, ela é cada vez mais arrastada pelas demandas dos consumidores. Nenhum desses três atores da modernização se reduz a         uma ação instrumental. (p. 143)

     É no caso da nação que a tese modernista se expressou com mais força, mas também se chocou com as maiores resistências. Essa tese foi amplamente adotada na França. (p. 144)

     Em outros lugares, notadamente na América Latina, a mistura entre nacionalismo e modernismo toma as formas mais variadas. (p. 145)

     Parece mais difícil não considerar a empresa como agente da modernidade, definida como racionalização. Produzir eficazmente, responder às demandas que se exprimem no mercado, buscar o lucro mais elevado, diversificar os investimentos, todos esses atos que constituem o essencial da gestão das empresas, não são também aplicações da racionalidade econômica? O que desperta a dúvida, porém, é antes de tudo o lugar pouco valorizado concedido à empresa nas análises da atividade econômica. Durante um primeiro período, falou-se sobretudo do capital, dos ciclos econômicos e, numa medida menor, dos efeitos da inovação técnica sobre a atividade econômica. O segundo período da história da análise da produção foi dominado pela idéia de racionalização. (p. 149)

     Este é domínio onde a ruptura entre o sistema e os atores parece ser mais difícil de se conceber. Nossas idéias sobre o consumo foram dominadas durante muito tempo por dois tipos de explicações: de acordo com o primeiro, o consumo tem a forma de uma escada que vai dos bens mais indispensáveis, a alimentação, aos que comportam nacordo com o segundo, o consumo é a linguagem do nível social, porque o que cada um de nós acredita ser seu gosto é determinado pelo lugar que ele ocupa na sociedade e sua tendência de subir ou de descer, de sorte que o consumo aparece estreitamente determinado pelo status social. (p. 151 e 152)

     Este mundo do consumo é tão estranho ao da empresa quanto ao da nação. Ele encontra mais facilmente o mundo da libido, se bem que ele esteja muito mais distanciado dele do que acreditam aqueles que falam de erotização do consumo. (p. 153)


CAPÍTULO IV: OS INTELECTUAIS CONTRA A MODERNIDADE

    Tanto os intelectuais de meados do século XIX foram levados por sonhos de futuro quanto os de meados do século XX foram dominados pelo sentimento da catástrofe, do sem-sentido, do desaparecimento dos atores da história. Eles haviam acreditado que as idéias conduziam o mundo; foram obrigados a denunciar o ascenso implacável da barbárie, do poder absoluto ou do capitalismo monopolista do Estado. 

     Foi assim que a vida intelectual e a vida social se separam e os intelectuais se fecharam numa crítica global da modernidade que os levou a um radicalismo extremo e a uma marginalidade crescente. Pela primeira vez desde muito tempo, as transformações sociais, culturais e políticas em curso no mundo não parecem mais pensadas, pois as informações dadas pelos experts, por mais indispensáveis que elas sejam, não produzem por si mesmas as interpretações que os intelectuais parecem incapazes de dar. É preciso descrever esta mudança de rumo dos intelectuais antimodernos antes de explorar as formas extremas da decomposição da ideologia modernista. (p. 160)

     Os intelectuais tinham anunciado o progresso a uma sociedade ainda imersa no costume, na tradição e nos privilégios, e eles encontraram muito facilmente aliados na nobreza ou na burguesia, como o mostrou Daniel Roche para a França do século XVIII. Durante o século XIX, e até a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Soviética, eles haviam acentuada cada vez mais seu progressismo, isto é, sua crítica da sociedade em nome de um futuro necessário, tanto do ponto de vista da ciência quanto da moral. O movimento comunista, depois os movimentos de libertação nacional, os entusiasmaram, mesmo se eles próprios se sentiam questionados pelos revolucionários que rejeitavam tanto as liberdades construídas pelo Ocidente quanto o poder da burguesia e das autoridades coloniais. Fazer avançar o conhecimento e defender a tolerância e a liberdade parecia-lhes objetivos associados aos da revolução social e das guerras anticoloniais. A idéia de modernidade, mesmo quando ela não era explicitamente invocada, unia lutas que não pareciam estranhas entre si, porque o planeta estava dividido entre ricos e pobres, colonizadores e colonizados. Este progressismo resistiu por longo tempo a uma realidade que ele cada vez mais obstinadamente recusou-e a ver.

     A experiência do totalitarismo que dominou o século XX, porém, explica a reação de um grupo importante de intelectuais que, inteligentes e corajosos o suficiente para recusar o estatuto de companheiros de fileiras dos partidos totalitários, não viram outra saída para as contradições que os ameaçavam senão passar a uma crítica generalizada. Eles romperam com a esperança progressista de reconciliar a história e a liberdade; eles voltaram as costas para o marxismo hegelianizado ou mesmo cristianizado e para todas as formas de historicismo e de filosofia da história. Louis Althusser exprime mais claramente, porque mais próximo da política, este anti-humanismo destinado a arrebatar ao poder político o direito de falar em nome do homem, e portanto de impor uma política repressiva. Se um governo se limitasse à administração das coisas em nome da ciência e da necessidade histórica, ele teria um papel de libertação dos privilégios e não arriscaria mais transforma-se em Igreja ou em Inquisição. Assim se desenvolve um fundamentalismo racionalista que elimina toda referência ao sujeito histórico por desconfiança do ensino totalitário e, instalando-se sobre o rochedo da ciência, pode condenar com uma só voz tanto os regimes totalitários como a sociedade de consumo. A história das idéias constata não apenas o vigor do movimento intelectual que acabo de descrever, mas também seu sucesso e mesmo seu poder no interior do mundo intelectual, tanto na universidade como nas editoras e na mídia.

     A segunda metade do século XX é dominada pela ruptura da teoria e da prática. Sobre as ruínas do progressismo se separam, de um lado os que colocam sua inteligência a serviço das empresas e dos governos, ou do seu sucesso pessoal; do outro lado, os que vêem antes de tudo na sociedade moderna, o crescimento e a difusão dos controles sociais. Não denuncia Marcuse, na tolerância das sociedades ocidentais, um sistema de manipulação tão repressivo quanto as proibições dos regimes totalitários? Cada vez mais a sociedade de produção e de consumo de massa se divide em duas fileiras (situs, dizem os sociólogos) que não são absolutamente classes sociais, mas universos sociais e culturais qualitativamente diferentes. De um lado, um mundo de produção, da instrumentalidade, da eficácia e do mercado; do outro; o da crítica social e da defesa de valores ou de instituição que resistem à intervenção da sociedade. A oposição entre os “tecno-econômicos” e os “socioculturais” não é somente profissional; ela tende a tornar-se geral, uma vez que os primeiros votam mais comumente na direita e os segundos na esquerda e, sobretudo, que o primeiro grupo é mais masculino e o segundo mais feminino. A história das idéias mudou de escala e de sentido com o desenvolvimento rápido do ensino universitário de massa, pois os intelectuais não são mais um grupo reduzido e influente; eles se transformaram em uma vasta intelligentsia. Certas revistas e grandes editoras se correspondem com esta intelligentsia que constitui seu público mais importante, da mesma maneira que na frança, o partido socialista não pode ignorar que seu apoio mais sólido se encontra nos socioculturais, em particular no corpo docente. Daí o isolamento relativo dos que se esforçam por refletir sobre a sociedade contemporânea, pois eles estão espremidos entre os pensadores críticos da modernidade e os atores inteiramente imersos nela. A sociologia quase sucumbiu a este ataque duplo e se enfraqueceu na maioria dos países devido a essa divisão cada vez mais completa do pensamento social legado pelo século XIX.

     Isto provocou dois tipos de reações intelectuais e políticas cuja mistura deu seu tom ao movimento de maio de 68. De uma parte, o pensamento social reagiu eficazmente contra o otimismo afetado dos ideólogos da modernização. Ele salvaguardou o espaço da recusa sem a qual formação de novos atores e de novos movimentos sociais não teria sido possível, e ele procurou desprender o sentido das mais novas reivindicações, em particular do movimento feminista, da crítica do centralismo jacobino, da recusa ecológica da destruição do meio ambiente. O antipositivismo e o antiprodutivismo preparam o sonho de uma sociedade que parecia absurdamente reduzida ao mercado de bens e de serviços. Paralelamente, porém, os intelectuais se fecharam cada vez mais na sua crítica “esquerdista” da sociedade moderna descrita como uma máquina a ser manipulada. O que não corresponde à realidade, pois se a sociedade moderna é uma rede cada vez mais densa de sinais, não se pode esquecer que estes sinais são menos imperiosos do que normas, e possuem, em particular, efeitos de socialização cada vez mais fracos. Uma convenção, uma regra de jogo não impõe ordens tão restritas quando artigos de catecismo ou formas de dependência pessoal e direta. (p.182, 183 e 184)

     Os intelectuais não são os únicos responsáveis pela situação da qual são vítimas. O apelo crescente do poder político à ideologia, como lugar invasor dos conhecimentos mais utilitários, transformou em áreas militares e em grandes áreas comerciais uma grande parte de terras onde se desenvolvia a vida intelectual. Por que, porém, esta se deixou arrastar tão maciçamente pela recusa da modernidade e pela crítica tão distante dos fatos observáveis? Por que os intelectuais escutam tão pouco e tão mal os barulhos da rua? Eu só vejo uma explicação para este retraimento: é que os intelectuais se identificam tão completamente com a imagem racionalista, iluminista da modernidade, e após terem triunfado juntos se decompuseram como ela, ao passo que as condutas sociais e culturais em todas as partes do mundo se deixam cada vez menos conduzir por esta representação. Redefinir a modernidade não é somente útil para as sociedades modernas ou em via de modernização; é também, para os intelectuais, um meio indispensável de escapar à perda de sentido que os leva a ver apenas controle a repressão na civilização técnica, e a negar a existência de atores sociais num mundo agitado por problemas e inovações, projetos e contestações. (p. 185)

CAPÍTULO V: SAÍDAS DA MODERNIDADE

     A idéia de modernidade só dominou o pensamento antes da construção da sociedade industrial. A luta contra o passado, o Antigo Regime e as crenças religiosas, a confiança absoluta na razão davam à imagem da sociedade moderna uma força e uma coerência que cedo desaparecem quando a experiência substitui a esperança, quando a sociedade nova se tornou realidade e não mais apenas o inverso daquela que se queria destruir ou ultrapassar. A história da modernidade é aquela da emergência de atores sociais e culturais que se desprendem cada vez mais da fé na modernidade como definição concreta do bem. Os intelectuais, seguindo a Nietzsche e Freud, são os primeiros a rejeitar a modernidade, e a corrente mais influente do pensamento moderno, de Horkheimer e de seus amigos de Frankfurt a Michel Foucault, conduziu sempre para mais longe uma crítica da modernidade que acaba por isolar completamente os intelectuais numa sociedade que eles designavam com desprezo como sociedade de massa. Ao lado deles, porém, um sentido algumas vezes próximo dessas críticas intelectuais, mas com freqüência muito distanciado delas, as nações e sua paixão por sua independência, sua histórias e sua identidade, adquirem uma importância crescente, ao ponto que o século XX tinha sido o das classes, pelo menos nos países modernizados. (p. 187)

     É fácil criticar a variedade de sentidos dados ao pós-modernismo, mas essas críticas não vão ao essencial. O pós-modernismo, tal como eu acabo de definir e do qual vou descrever as principais orientações, é muito mais que moda intelectual; ele prolonga diretamente a crítica destrutiva do modelo racionalizador lançada por Marx, Nietzsche e Freud. Ele é o resultado de um longo movimento intelectual; este se opôs quase que constantemente a uma modernização técnica e econômica que não foi interpretada por nenhuma obra intelectual maior durante o século passado, com exceção talvez da de Dewey, alimentada pelo darwinismo. Como não ver que, sob todas as suas formas, este pós-modernismo é incompatível com o essencial do pensamento social que nós herdamos dos dois séculos que precederam o nosso, em particular com noções como as de historicidade, de movimento social e de sujeito, que eu defenderei contra este pensamento pós-modernista na terceira parte deste livro.

     Ela une pelo menos quatro correntes de pensamento, cada uma representando uma forma de ruptura com a ideologia modernista:

     1. A primeira definiu a pós modernidade como uma hipermodernidade, da mesma maneira que Daniel Bell definia a sociedade pós-industrial como hiperindustrial. O movimento de modernidade não cessa de se acelerar, as vanguardas tornam-se cada vez mais efêmeras e toda a produção cultural, diz com justeza Jean-François Lyotard, torna-se vanguardista por um consumo cada vez mais rápido de linguagens e de signos. A modernidade anula a si mesma. (p. 197)

     2. Bem diferente – se bem que facilmente complementar – é a crítica, não mais do modernismo técnico, mas do modernismo social e político que inventou contramodelos de sociedades cuja realização clamava pela intervenção de um poder tanto mais absoluto quanto mais completa era a ruptura a ser efetuada. A idéia de revolução, eu já disse desde o início, sempre foi estreitamente associada à de modernidade. (p. 198)

     O neoliberalismo que triunfa na vida econômica e política durante os anos 80 e o pó-modernismo cultural são os produtos paralelos da decomposição do esquerdismo, forma extrema de modernismo, sobretudo para os trotskistas, que desde o início da Revolução Soviética cultivaram a utopia da máquina central, que tornada plano central, transformada mais recentemente em ordenar central, que se supunha que transformaria o governo dos homens em administração das coisas e assim os libertaria dos males do subjetivismo político de tipo stalinista ou hitlerista. (p. 198)

     Entramos na era da dissolução do social? Para muitos, de Baudrillard a Lipovetsky, tal é o sentido profundo de uma decomposição cuja idéia de pós modernidade só percebe o aspecto de ruptura com uma tradição intelectual e cultural. A situação do pós-social é o produto de uma completa separação entre a instrumentalidade e o sentido; a primeira é gerida por empresas, econômicas ou políticas, em concorrência entre elas nos mercados; o segundo, tornou-se puramente privado, subjetivo. (p. 198)

     3. Estes dois procedimentos, hipermodernista e antimodernista, podem sair completamente do âmbito da modernidade. Isto pode acontecer, porém, em duas direções opostas. A mais freqüentemente afirmada é a ruptura com o historicismo, portanto a substituição da sucessão das formas culturais pela sua simultaneidade. (p. 200)

     O pós-modernismo torna-se aqui o pós-historicismo, sendo este o seu sentido principal e o que lhe dá sua importância. (p. 200)

     4. Se as obras culturais, porém, estão separadas do conjunto histórico onde elas aparecem, seu valor não pode mais ser definido senão pelo mercado. Daí a nova importância no mercado da arte; enquanto que durante muito tempo as obras eram escolhidas, ou por principais ou amadores que representavam certas demandas culturais da aristocracia ou da burguesia. O que nos traz de volta à nossa análise da sociedade liberal onde triunfam dois dos fragmentos da modernidade dividida, a empresa e o consumo, sobre os dois dos fragmentos da modernidade dividida, a empresa e o consumo, sobre os dois outros, o eros e a nação; portanto, o movimento e a mudança sobre o Ser. (p. 201)

     O movimento pós-modernista conduz assim ao extremo a destruição da representação modernista do mundo. Ele rejeita a diferenciação funcional entre os domínios da vida social – arte, economia, política – e seu complemento, o uso por cada um deles da razão instrumental. Ele recusa também a separação entre a alta cultura, social e política tanto quanto estética, que se refere às garantias metassociais da ordem social – a razão a história, a modernização ou a libertação da classe operária – e a cultura de massa. (p. 201)

     O pós-modernismo marca o fim da parte introduzida por Nietzsche, a destruição do reino da técnica e da racionalidade instrumental. (p. 202)

     Como conciliar uma decomposição da visão racionalista clássica, que nós sabemos ser inevitável e mesmo libertadora, com princípios de organização da vida social, sem os quais a própria justiça e a própria liberdade tornam-se impossíveis? Existe uma maneira de escapar ao mesmo tempo do universalismo dominador e do multiculturalismo carregado de segregação e de racismo? Como escapar à destruição do sujeito que conduz ao domínio do interesse e da força, mas também à ditadura da subjetividade que produziu tantos totalitarismos?

     O mundo de hoje, que alguns espíritos apressados vêem unificar-se em torno dos valores “ocidentais” que triunfam sobre o fascismo, sobre o consumo e sobre o nacionalismo terceiro-mundista, está de fato dividido entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo, entre o sistema e os atores. Vemos insurgir-se, uma contra a outra, a lógica do mercado mundial e aquela dos poderes que falam em nome de uma identidade cultural. Por um lado, o mundo parece global; por outro, o multiculturalismo parece sem limites. Como não ver nessas divisões completas uma dupla ameaça para o planeta? Enquanto a lei do mercado esmaga sociedades, culturas e movimentos sociais, a obsessão da identidade se fecha numa política arbitrária tão completa que ela não pode se manter senão pela regressão e pelo fanatismo. Não é somente a reflexão sobre a história das idéias que nos incita a redefinir a modernidade: é o confronto nu de duas culturas e dois tipos de poder que nos obriga a reunir o que estava separado, mas sem ceder à nostalgia da unidade perdida do universo. Se nós não conseguirmos definir uma outra concepção da modernidade, menos orgulhosa que a do Iluminismo, mas capaz de resistir à diversidade absoluta das culturas e dos indivíduos, nós entraremos em tempestades ainda mais violentas que aquelas que acompanharam a queda dos antigos regimes e da industrialização. (p. 209)

TERCEIRA PARTE 

NASCIMENTO DO SUJEITO

CAPÍTULO I: O SUJEITO

     Não existe uma figura única da modernidade, mas duas figuras voltadas uma para a outra e cujo diálogo constitui a modernidade: a racionalização e a subjetivação. (p. 218)

     Racionalização e subjetivação aparecem ao mesmo tempo, como a Renascença e a Reforma, que se contradizem, mas se completam ainda mais. (p. 218)

     O que entendemos por sujeito? Antes de tudo a criação de um mundo regido por leis racionais e inteligíveis para o pensamento do homem. De modo que a formação do homem como sujeito foi identificada, como se vê melhor nos programas de educação, com a aprendizagem do pensamento racional e a capacidade de resistir às pressões do hábito e do desejo, para submeter-se somente ao governo da razão. (p. 218)

     A idéia de sujeito como princípio moral opõe-se tanto à idéia do controle das paixões pela razão, presente desde Platão até os ideólogos da rational choice, quanto à concepção do bem como cumprimento de deveres sociais. Poderíamos mesmo definir estas três concepções opostas como etapas sucessivas da história das idéias morais. Primeiro viria a idéia de que existe uma ordem do mundo e sua variante principal segundo a qual esta ordem é racional. A conduta mais elevada é então aquela que coloca o indivíduo em harmonia com a ordem do mundo. A secularização enfraquece esta concepção, já que ela reduz a razão objetiva a não ser mais que a razão subjetiva. É então a utilidade social das condutas que mede seu valor, a contribuição de cada um ao bem comum. E é somente quando este moralismo social foi denunciado pelos pensadores críticos, principalmente a partir de Marx e de Nietzsche, que a afirmação do indivíduo como sujeito pode ocupar um lugar central, mas este tem mais chances de ser dado ao individualismo segundo o qual não existe princípio de moralidade fora do direito de cada um a viver livremente seus desejos individuais, posição naturalista que leva a suprimir toda norma e, portanto, toda sanção e que, se fosse aplicada – se os assassinatos e os estupros não fossem mais condenados -, produziria reações violentas, mostrando como é artificial apelar aqui para a natureza. (p. 224)

     O homem moderno está constantemente ameaçado pelo poder absoluto da sociedade, e é porque o nosso século foi obscurecido pelo totalitarismo que ele é levado, mais diretamente que os precedentes, a reconhecer a idéia de sujeito como princípio central de resistência ao poder autoritário.

     A sociedade moderna nasce com a ruptura da ordem sagrada do mundo; no lugar desta aparece a separação, mas também a interdependência da ação racional instrumental e do sujeito pessoal. Se a primeira quer ignorar o segundo ela substitui o culto da sociedade e da funcionalidade das condutas; inversamente, se o segundo descarta a primeira, ele degenera em culto de identidade individual ou comunitária. (p. 228)

     Quando a racionalidade se reduz à técnica, à instrumentalidade, os fragmentos despedaçados da modernidade clássica não são mais reunidos uns aos outros senão pela busca da eficácia e do rendimento. Cada constrói ao redor de si um universo estranho para os outros; estamos falando de cultura e empresa como de sociedade de consumo ou de integrismo nacional e religioso. (p. 234)     

     Encontra-se no centro da sociedade o que eu chamei de movimentos culturais. Os mais importantes dentre eles são aqueles que visam reforçar um dos dois pólos de orientação da sociedade com relação ao outro. Na nossa sociedade, o movimento cultural mais visível, e de longe o mais poderoso, aquele que procura dar hegemonia à produção e ao consumo. Este movimento se identifica – como todo movimento, cultural, social ou histórico – com a modernidade e apela para a derrubada dos obstáculos à mudança, à modernização permanente. Apoiado por industriais e comerciantes, organizadores e publicitários, ele levanta a bandeira do liberalismo e mesmo do individualismo. Seus representantes só vêem à sua frente grupos de interesses hostis às mudanças que ameaçam seus direitos adquiridos. Mas o movimento cultural oposto, que defende a subjetivação, se afirma tão moderno quanto seu adversário. (p. 234 e 235)

     Se é preciso associar tão fortemente a emergência do sujeito no indivíduo à sua relação ao outro, é porque a consciência de si não permite o aparecimento do sujeito; ao contrário, ela o esconde. Porque o indivíduo nada mais é que o lugar de encontro entre o desejo e a lei, entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, o que produz recalques e reduz assim o sujeito ao contrário de si mesmo, à linguagem impessoal do inconsciente decifrada pelos psicanalistas. É certamente o anti-sujeito que descobre a consciência de si. A busca do mais individual, do mais íntimo só faz com que se descubra o mais impessoal. É somente quando o indivíduo sai de si mesmo e fala ao outro, não nos seus papéis, nas suas posições sociais, mas como sujeito, que ele é projetado fora do seu próprio si-mesmo, de suas determinações sociais, e se torna liberdade. (p. 239)

     Para descrever a modernidade é preciso acrescentar, ao tema da produção e do consumo de massa, o do nascimento do sujeito. Este se formou a partir do pensamento religioso monoteísta até à imagem contemporânea do sujeito, freqüente  nos novos movimentos sociais, passando por todas as formas intermediárias, burguesas ou operárias, de afirmação de um sujeito que inventa a sociedade civil frente ao estado. (p. 242 e 243)

CAPÍTULO III: EU NÃO É EGO

     Hoje nós não podemos simplesmente assumir representações elaboradas no momento em que triunfava na Alemanha e nos Estados Unidos com mais força ainda que na Inglaterra e na França, a grande industrialização do final do século XIX. Como não considerar em primeiro lugar a imagem completamente diferente que se impôs nas nossas sociedades de consumo e que parece se espalhar pela terra inteira a partir dos Estados Unidos? Hoje, a idéia de modernidade está associada, mais do que ao reino da razão, à liberação dos desejos e à satisfação das demandas. Essa rejeição das obrigações coletivas, das proibições religiosas, políticas ou familiares, a liberdade de movimento, de opinião e de expressão, são instâncias fundamentais que rejeitam como “ultrapassadas” ou mesmo reacionárias todas as formas de organização social e cultural que entravam a liberdade de escolha e de comportamento. Um modelo liberal tomou o lugar de um modelo técnico e mobilizador. Em particular, as imagens da juventude são, para a maioria, imagens de liberação dos desejos e dos sentimentos. Esse liberalismo define o sujeito – como a democracia – de maneira negativa, pela rejeição daquilo que é obstáculo para a liberdade individual e coletiva. Isso leva a substituir os pares de oposição que acabo de evocar, por aqueles aos quais Louis Dumont deu uma formulação que se tornou clássica, a do holismo e do individualismo. (p. 272)

     A sociedade protomoderna confundia o modo de funcionamento social com um modo de desenvolvimento histórico, portanto a sociedade civil com o Estado; é próprio da sociedade moderna ou hipermoderna separá-los. Isso proíbe reduzir a sociedade moderna ao mercado ou à planificação estatal que são modos de desenvolvimento. O individualismo, se fizermos dele um princípio geral de definição da sociedade moderna, reduz esta ao modo liberal, mercantil, de modernização. Isso leva a esquecer todas as realidades do trabalho, da produção, do poder e da política. Podemos destacar a superioridade do mercado sobre a política administrada, o que é hoje o objeto de um quase consenso, e recusar a redução da sociedade ao mercado. A sociedade moderna não é nem holista nem individualista; ela é uma rede de relações de produção e de poder. Ela é também o lugar onde o sujeito aparece, não para fugir das exigências da técnica e da organização, mas para reivindicar seu direito de ser ator. Mas aqui a oposição entre o moderno e o tradicional cede lugar a uma certa continuidade. Da mesma forma que o sujeito, em uma sociedade de produção, está ao mesmo tempo empenhado na racionalização e procura desprender-se da dominação das mercadorias e das técnicas, assim em uma sociedade de ordem, o sujeito não se perde inteiramente em papéis e classes, pois o indivíduo procura liberta-se do mundo social por meio de um contato tão direto quanto possível com o mundo do ser. A oposição que Luis Dumont apresentou com tanta tenacidade traduz sobretudo as inquietações de muitos modernos que temem ser arrastados numa sociedade puramente fluida, onde se desenvolvem por toda a parte a anomia e os comportamentos de desorganização social. Eis porque eu defendo aqui simultaneamente uma concepção “liberal” do desenvolvimento e uma concepção do sujeito completamente oposta a um individualismo que representa o homem com um ser não social, associando estreitamente, ao contrário, a idéia de sujeito à de movimento social, portanto à relação conflitual de que é feita a vida social. (p. 277 e 278)

     O pensamento racionalista é o mais abertamente antiindividualista, porque não se pode ao mesmo tempo apelar para um princípio universal, o da verdade demonstrada pelo pensamento racional, e defender o individualismo – salvo, uma vez mais, para defender a liberdade de cada um de buscar a de expor a verdade, o que conferiu ao pensamento racionalista uma grande força de resistência à opressão intelectual e política. O tema do individualismo, do qual eu procuro mostrar a confusão e mesmo a inexistência, oculta e grandeza dos pensamentos racionalista que convocam os seres humanos a se submeterem a um princípio, a verdade, que os eleva acima da dispersão dos divertimentos e da pressão das paixões. (p. 280 e 281)

     A idéia de sujeito está longe da submissão à lei ou ao superego. O sujeito não é mais um Ego; por isso eu desconfio da idéia de pessoa, porque ela supõe uma coincidência entre o Ego e o Eu que julgo irreal. O sujeito é uma vontade consciente de construção da experiência individual, mas ele é também adesão a uma tradição comunitária; ele é gozo de si, mas também submissão à razão. Ele não substitui o mundo desabrochado do pós-modernismo por um princípio todo-poderoso de unidade; é uma noção “fraca” que existe menos como afirmação central do que como entrelaçamento de relações entre empenho e desprendimento, entre indivíduo e coletividade. (p. 285)

     O pensamento liberal, mesmo se ele fala injustamente do individualismo, compreendeu o movimento geral de eliminação das essências. Ele chegou mesmo a encorajar, da mesma forma que o pensamento crítico mais radical, a destruição das ilusões da consciência e da intimidade. Destruição levada a efeito por tão longo tempo e com tanta força que hoje quase se é tentando a identificar a modernidade com Seus resultados: não se deve chamar de modernas a cultura e a sociedade que levaram ao extremo a secularização e o empirismo, que eliminaram radicalmente o apelo a todos os princípios centrais de explicação, a todos os sujeitos, sejam eles chamados Deus, alma, Ego, sociedade ou Nação? Eu aceito essas conclusões desde que possa acrescentar que não somente o nascimento do sujeito não tem nada a ver com a defesa do Ego, da consciência e da intimidade, mas ainda que somente a destruição do Ego permite a emergência do Eu. Isso está em pé de igualdade com a destruição da natureza humanizada antropomórfica. (p. 287)

     Quanto mais a modernidade se faz presente, mais se eclipsam as representações que a identificam com o desaparecimento do sujeito, como o sol substituído a lua no céu. A idéia de sujeito não pode ser separada da idéia de ator social. O ator, individual ou coletivo age para fazer penetra a racionalização e a subjetivação em uma rede de papéis sociais que tende a se organizar segundo a lógica da integração do sistema e do esforço do controle que ele exerce sobre os atores. O ator é o inverso do si-mesmo, aquele que, em vez de desempenhar os papéis que correspondem a status ou de se fechar na consciência de si, reconstrói o campo social a partir de exigências das quais a de subjetivação introduz na sociedade um princípio não social. Não existe ator sem sujeito, mas também não existe sujeito sem ator que o engage na vida social real, batalhe por ele contra os equilíbrios e as ideologias estabelecidas. (p. 303)

     A presença do sujeito no indivíduo deve ser percebida ao mesmo tempo como distanciamento do indivíduo com relação à ordem social e como vivência imediata. Os textos religiosos estão cheios de testemunhos sobre essa esperança ausente e a literatura procura constantemente reconstruir essa experiência, como por exemplo na obra de Bernanos, e sobretudo naquela que domina, junto com a de Malraux, a reflexão em francês sobre o nosso século, Le Soulier de Satin (O sapato de cetim), de Claudel, onde o amor impossível, mais atraído pela sublimação que pela posse, nunca é renúncia ao mundo, mas vive, no mundo, em suas aventuras assim como em sua trivialidade, sob a luz de Deus.

     Esta linguagem não está muito longe de outras que não fazem referência a Deus. A distância entre aqueles que acreditam no sujeito e aqueles que acreditam somente no interesse e nas normas sociais é muito maior do que entre duas imagens do sujeito, mesmo se um acredita no Céu e o outro não. A presença do sujeito sob todas as suas formas testemunha a satisfação que nasce do equilíbrio entre as expectativas de cada um e o que lhe oferece a situação na qual ele está colocado. (p. 308 e 309)

CAPÍTULO IV: A SOMBRA E A LUZ

     Quanto mais forte é a influência das sociedades modernas sobre a sua existência – tanto como conseqüência de um desenvolvimento econômico e de mudanças sociais aceleradas quanto como efeito de políticas cada vez mais mobilizadoras – mais se transtorna a relação entre dominantes e dominados. Nas sociedades quem entravam na modernidade, o terceiro estado se definia por sua atividade e as ordens superiores por privilégios. (p. 316)

     As relações contra o cristianismo e a modernidade se restringiram principalmente na França e nos países de tradição católica, a uma apresentação ideológica brutal. A religião era o passado, o obscurantismo; a modernidade era definida pelo triunfo das luzes da razão sobre a irracionalidade das crenças. Não era a sociedade rural quase sempre um universo estreito, mas preocupado com a continuidade do que com a mudança e onde a Igreja – apoiada principalmente nas mulheres – preocupava-se em manter seu controle cultural sobre os espíritos perturbados pelas seduções da cidade e do progresso? Esta visão caricatural foi reforçada pelo confronto entre clérigos e leigos que na verdade foi o caso geral de uma França tradicional com as classes médias e uma classe operária em ascensão. (p. 323)

     Ao entrar na modernidade a religião explode, mas seus componentes não desaparecem. O sujeito, cessando de ser divino ou de ser definido como a razão, torna-se humano, pessoal, torna-se uma certa relação do indivíduo ou do grupo a eles mesmos. (p. 324)

     A ameaça totalitária pode fazer cair na armadilha moralista. Esta consiste em só defender o sujeito dessocializando-o completamente. Erro contrário ao que causou tantos estragos à época moderna. Após ter aceitado opressões e escravidões piores que as do passado, em nome da necessária luta pela liberdade, após ter imposto um poder absoluto para se livrar dos privilégios, a sociedade moderna se atira numa defesa tão abstrata dos direito do homem, que ela não sabe mais apontar adversários concretos, substitui lutas reais por campanhas de opinião, e sobretudo substitui à participação ativa dos próprios interesses a pressão, que se acredita irresistível, do dinheiro e dos meios de comunicação dos países mais ricos. (p. 330 e 331)  

     O sujeito se afirma contra a dominação dos aparelhos políticos e sociais; sua liberdade está ligada ao fato de pertencer a uma cultura. Como todos os movimentos sociais realizados por categorias dominadas, sua defesa, às vezes, toma a forma de reivindicações positivas, herdeiras da defesa dos direitos dos trabalhadores e que hoje já fala dos direitos do doente, dos estudantes ou dos telespectadores, e a forma mais defensiva de ligação com a cultura que está ameaçada pela penetração de um poder econômico, político ou cultural vindo de fora. Em termos clássicos essas duas vertentes correspondem ao que foram as lutas capitalistas e as lutas antiimperialistas, mas elas se encontram tanto no interior de uma sociedade nacional quanto a nível internacional. O primeiro tipo de reivindicações corre o risco de ser absorvido pelo sistema político, de conduzir ao neocorporativismo próprio a muitos países industriais, ou de se reduzir a um conjunto de grupos de pressão formados por consumidores; inversamente, o segundo corre o risco, ao contrário, de se fechar numa recusa global de modernização, na aventura militar, ou em um populismo mais ou menos abertamente dedicado à devoção de um chefe. Mas esses riscos de ruptura e de degradação não impedem que a afirmação do sujeito esteja estreitamente associada à defesa de uma cultura assim como à afirmação de uma liberdade pessoal. (p. 333)

     A modernidade definiu-se durante muito tempo pelo que ela destruía, como questionamento constante das idéias e formas de organização social, como trabalho de vanguarda nas artes. Porém quanto mais o movimento de modernização se ampliou, mais a modernidade arremessou-se sobre culturas e sociedades incapazes de se adaptarem, que mais a suportavam do que a utilizavam. O que havia sido vivido como libertação tornou-se alienação e regressão até que triunfam, em muitas partes do mundo, primeiro o nacionalismo mais exclusivo, em seguida o encerramento das sociedades nos seus discursos e no seu aparelho de controle político, enfim os regimes identificados com uma nação, uma cultura, uma religião. O ocidente havia acreditado que a modernização não era mais que a modernidade em ato, ela era inteiramente endógena, produto da razão científica e técnica. O século XX, ao contrário, foi dominado por uma sucessão de modernizações cada vez mais exógenas, cada vez mais impostas por um poder, seja nacional ou estrangeiro, cada vez mais voluntaristas e menos racionalistas, a tal ponto que este século, que se havia iniciado sob o signo do cientificismo, parece se acabar com a volta das religiões e, em resposta, a afirmação ingenuamente orgulhosa do Ocidente, dominado pelos Estados Unidos, que a história chegou ao “fim”, que o modelo racionalista obteve uma vitória total tanto na ordem econômica como na ordem política. (p. 334 e 335)

CAPÍTULO V: O QUE É A DEMOCRACIA?

     A democracia é antes de tudo o regime político que permite aos atores sociais formar-se e agir livremente. São os seus princípios constitutivos que comandam a existência dos próprios atores sociais. Só há atores sociais se combinar a consciência interiorizada de direitos pessoais e coletivos, o reconhecimento da pluralidade dos interesses e das idéias, particularmente dos conflitos entre dominantes e dominados, e enfim a responsabilidade de cada um a respeito de orientações culturais comuns. Isso se traduz, na ordem das instituições políticas, por três princípios: o reconhecimento dos direitos fundamentais, que o poder deve respeitar; a representatividade social dos dirigentes e da sua política; a consciência de cidadania, do fato de pertencer a uma coletividade fundada sobre o direito. (p. 345)

     O século XX foi dominado por regimes que em nome do povo suprimiram as liberdades para atingir ou salvaguardar a independência e o poder econômico da nação. De sorte que os principais adversários da democracia não mais foram os antigos regimes, mas os novos regimes totalitários, sejam eles fascistas, comunistas ou racionalistas terceiro-mundistas. A concepção positiva da liberdade como realização da soberania popular cede lugar então a uma concepção negativa e a democracia é definida e definida como o regime que impede seja lá quem for, segundo as definições de Isaiah Berlin e Karl Popper, de se apoderar do poder ou de conservá-lo contra a vontade da maioria. (p. 346)

     Uma segunda condição da democracia é que os governados queiram escolher seus governantes, queiram participar da vida democrática, sintam-se cidadãos. O que supõe uma consciência de pertencer à sociedade política que por sua vez depende da integração política do país. Se este está fragmentado entre etnias estrangeiras ou hostis umas às outras, e mais simplesmente ainda, se as desigualdades sociais são tão grandes que os habitantes não possuem o sentimento de um bem comum, falta fundamento à democracia. Para que ela seja forte, é preciso que exista uma certa igualdade de condições, dizia Rousseau, e uma consciência nacional. Tanto a submissão da sociedade ao Estado enfraquece ou mesmo destrói a democracia quanto a integração e a unidade da sociedade política e reforça. Se os negócios públicos aparecem aos cidadãos como estranhos aos seus próprios interesses, porque se preocupariam eles? Eles aceitam facilmente relações de clientela sujeitando-se passivamente à obrigação. A consciência de cidadania, como mostrou T.H. Marshall, permite, sozinha, restabelecer a unidade da sociedade, despedaça pela distância e os conflitos entre as classes sociais. (p. 348)

     Não se deve separar esta consciência de pertença institucional da consciência dos relacionamentos e dos conflitos sociais para a qual ela contribui com uma resposta. A democracia não pode existir sem ser representativa, portanto sem que a escolha entre vários governantes corresponda à defesa de interesses e de opiniões diferentes. Para que a democracia seja representativa, certamente é preciso que a eleição dos governantes seja livre, mas é preciso também que os interesses sociais sejam representáveis, que eles tenham uma certa prioridade com relação às escolhas políticas. Se é o apoio dado a um partido que determina as posições tomadas diante dos principais problemas sociais, o sistema democrático é fraco, enquanto que ele é forte se os partidos políticos contribuem com respostas às questões sociais formuladas pelos próprios atores, e não apenas pelos partidos e pela classe políticos. (p. 349)

     A democracia não é somente um estado de sistema político, porém, mais que isso, um trabalho e um combate permanentes para subordinar a organização social e valores, sendo que nem um nem outro são propriamente sociais: a racionalidade e a liberdade. A democracia não é o triunfo do povo, mas a subordinação do mundo das obras, das técnicas e das instituições, à capacidade criadora a transformadora dos indivíduos e das coletividades. (p. 370)  

CONCLUSÕES

     A sociedade era, como à própria razão, uma expressão deísta do antigo espírito religioso, uma nova forma de aliança entre o homem e o universo. Esta aliança não pode mais existir e foi esta ruptura entre a ordem humana e a ordem das coisas que nos faz entrar em plena modernidade. A moral não pode mais ensinar a conformidade a uma ordem; ela deve convidar cada um a responsabilizar-se pela sua vida, a defender uma liberdade que está bem longe de um individualismo aberto a todos os determinados sociais, mas que gera as relações difíceis entre os fragmentos da modernidade racionalista, a sexualidade, o consumo, a nação e a empresa.

     Muitos permanecem presos ao modelo antigo da sociedade, sobretudo a uma época onde as trocas transnacionais, de um lado, os novos comunitarismos, do outro, se desprendem. Mas esta nostalgia da razão objetiva e da cidade, por mais respeitável que ela seja, não pode fornecer resposta aos problemas reais da vida pessoal e coletiva. O homem moderno não é um cidadão da sociedade das luzes, mas que uma criatura de Deus; ele só é responsável perante si mesmo. (p. 376)

     A resposta precisa que este livro dá é que a razão e o sujeito, que podem realmente tornar-se estranhos ou hostis um ao outro, podem também unir-se, e que o agente desta união é o movimento social, isto é, a transformação da defesa pessoal e cultural do sujeito em ação coletiva dirigida contra o poder que submete a razão aos seus interesses. Desta forma se encontra reanimado um espaço social que parecia esvaziado de todo o seu conteúdo, entre uma economia mundializada e uma cultura privatizada. Quanto mais a antiga definição da vida social como conjunto de correspondências entre instituições e mecanismos de socialização está definitivamente destruída pela modernidade triunfante, tanto mais os conteúdos reais desta dependem cada vez mais da capacidade que têm os movimento sociais, portadores de afirmação do sujeito, de recalcar ao mesmo tempo o poder dos aparelhos e a obsessão da identidade. Em torno desta identificação das noções de sujeito e de movimento social foi construída a terceira parte deste livro.

     A história da modernidade é a história da dupla afirmação da razão e do sujeito, desde a oposição entre a Renascença e a Reforma que o próprio Erasmo não conseguiu superar. Os movimentos sociais, os da burguesia revolucionária, depois do movimento operário, finalmente os novos movimentos sociais cujos objetivos são mais culturais que econômicos, apelam cada vez mais diretamente para a combinação entre a razão e o sujeito, separando de maneira crescente de um lado a razão da sociedade, do outro o sujeito do indivíduo.

     Essas conclusões excluem toda a volta a uma filosofia da ordem social ou da história, se bem que cada um sinta em si a pressão em favor da integração social, seja ela do tipo religioso, político ou jurídico. Mas esse é o preço a pagar ser protegido de todas as tentações totalitárias que se precipitaram sobre o mundo durante quase um século cobrindo-o de campos de concentração, de guerras santas e de propagandas políticas. A modernidade é refratária a todas as formas de totalidade, e é o diálogo entre a razão e o sujeito, que não pode ser rompido nem terminado, que mantém aberto o caminho da liberdade. (p. 394)

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