terça-feira, 30 de julho de 2024

DO CRISTO DO NOVO TESTAMENTO AO CRISTO DA IGREJA

 




Ontologização da Cristologia

 

Texto de: Raniero Cantalamessa

Resumo e tradução: Paolo Cugini

 

Pergunta: Como o querigma bíblico sobre Cristo é historicizado na era patrística? Em que direção a teologia dos padres desenvolve os dados do Novo Testamento?

 O credo cristológico do Novo Testamento foi definido como o núcleo central da fé. Nas diversas formas que o credo assume, representa o lugar de condensação dos resultados alcançados pela teologia, o espelho mais fiel do seu significado eclesial, também o mais autoritativo da fé em Cristo. As tentativas de remontar à forma mais antiga e elementar do credo cristológico do Novo Testamento parecem convergir com certa unanimidade para aquelas fórmulas de aclamação em que a fé em Cristo se exprime através dos títulos de Senhor, Senhor Deus, Deus. São títulos que, na verdade, expressam um evento, a ressurreição, através do qual Cristo foi feito Senhor e filho de Deus.

Se com a sua boca você confessa que Jesus é senhor e com o seu coração você acredita que Deus o ressuscitou dos mortos, você. serão salvos.” (Rm 10.9).

O mesmo vale para o título de Filho de Deus, também conectado no início, como mostrado na carta aos Romanos 1,4 com a ressurreição. A crença cristológica começa, portanto, com a profissão de fé num acontecimento histórico: a ressurreição de Jesus.

É precisamente nesta direção que o primeiro credo se desenvolve numa série de proposições que contêm tantos acontecimentos que marcam a ação salvífica de Cristo, a sua história. À menção inicial da ressurreição acrescenta-se a da morte, as duas coisas já aparecendo juntas em 1 Tessalonicenses 4.14.

Neste primeiro núcleo de morte e ressurreição estão enxertados outros acontecimentos que ampliam e enriquecem o horizonte da fé em Cristo, como a paixão, o sepultamento e as aparições (1 Cor 15, 4-5), a descida ao inferno (1 Pedro 3.19), a ascensão ao céu (1 Pedro 3.22). Quase nunca saímos do arco da história terrena de Jesus. Ainda falta a menção ao nascimento de Maria.

A certa altura testemunhamos o enriquecimento soteriológico expresso por esta expressão para nós, para a nossa santificação, para os nossos pecados.

A fé em Cristo é, portanto, expressa no credo do Novo Testamento como fé numa série de eventos através dos quais Cristo trouxe a nossa salvação. Esta crença cristológica, encontrada no Novo Testamento, consolida-se num modelo bem definido que reúne os principais acontecimentos mencionados nas fórmulas bíblicas, paixão e morte sob Pôncio Pilatos, ressurreição e ascensão, encontra-se com algumas variações em Inácio de Antióquia no início de Justino em meados e em Melito da Sardi no final do século II. Aqui está no texto de Melito:

este é aquele que se encarnou na virgem, que foi pendurado no madeiro, que foi sepultado na terra e que foi elevado às alturas do céu.

 

Desenvolvimento no século IVo d.C.

Neste período o símbolo cristológico primitivo já não existe isolado e autônomo, mas passa a viver inserido como parte central da profissão de fé trinitária utilizada no rito batismal. No Ocidente, a seção cristológica deste símbolo denominado símbolo apostólico, na forma interrogativa usada no batismo, diz:

Acredite em Jesus Cristo, filho de Deus vírgula que nasceu do Espírito Santo da virgem Maria, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu e foi sepultado, ressuscitou vivo dos mortos ao terceiro dia, subiu ao céu e está sentado à direita mão de seu pai, e virá julgar os vivos e os mortos?

Este texto, que nos foi transmitido pela Tradição Apostólica de Hipólito, com muitas poucas variações, permaneceu definitivo entre os latinos. Nele vale destacar a forma sinótica com que se expressa o nascimento do Espírito Santo e de Maria, a referência que acabamos de mencionar à pré-existência com o título de filho de Deus

Muito mais profundas do que a crença bíblica primitiva, são as diferenças que o símbolo dos orientais apresenta, a partir do século III. Examinamo-lo no símbolo de Nicéia que, na sua estrutura, segue o modelo dos símbolos já existentes em Cesaréia e Jerusalém. Permite-nos ver como se concretiza a profissão de fé em Cristo depois de dois séculos de intensa reflexão teológica. Está distribuído em dois níveis que a estrutura do símbolo destaca com total clareza:

Creio em um só Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, nascido unigênito do pai, isto é, da substância do pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, nascido não feito, consubstancial ( homoousios) com o pai, por quem todas as coisas se fizeram vírgula no céu e na terra, que por nós homens e para nossa salvação desceu, se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia e subiu ao céu e virá julgar os vivos e os mortos.

O credo primitivo, baseado num resumo do evento histórico salvífico de Cristo, permanece substancialmente, mas apenas como equivalente a uma profissão de fé que tem como objeto a pré-história de Cristo, a sua pré-existência e nascimento do Pai. Desde a ressurreição o centro de gravidade da cristologia, já nas fórmulas do século II, voltou para o nascimento de Maria, agora continuando nesta linha, passou para o nascimento eterno do Pai. É uma espécie de regresso rio acima, às fontes da realidade de Cristo, onde já não existe o acontecimento, mas apenas o seu ser e o seu estar substancialmente com o Pai. A fé em Cristo, originalmente expressa num esquema horizontal e histórico, desde o nascimento até à ascensão, aparece agora organizada segundo um esquema vertical composto por dois planos: o plano da pré-existência e o plano da encarnação. A novidade é que na parte relativa à pré-existência os dados não são mais constituídos de acontecimentos, mas de afirmações sobre a essência (ousia). O propter nos (por nós) que originalmente constituía o elemento soteriológico, que qualificava todo o credo, não se perdeu. Agora, intervém apenas a meio caminho e diz respeito a uma parte da história cristológica, aquela que começa com a encarnação. O resultado evidente é a justaposição correta, a sobreposição em Cristo para nós de um Cristo em si mesmo, preso em sua homoousia com o Pai.

A evolução que se verifica na expressão da fé cristológica aparece-nos com toda a sua clareza, passando da partida de Nicéia à de Calcedónia. Enquanto o símbolo de Nicéia, apesar dos desequilíbrios já ocorridos, ainda expressa fé no quadro de uma sucessão de acontecimentos que vão desde o nascimento eterno do pai até à parusia, o símbolo de Calcedónia abandonou completamente esta abordagem e os acontecimentos de na história de Cristo substituiu afirmações sobre a natureza ou, melhor, sobre as duas Naturezas de Cristo. Tudo se baseia no esquema dos dois nascimentos, de Deus e de Maria, mas também este está separado de qualquer perspectiva histórica ou temporal. A inovação que em Nicéia se aplicava apenas ao plano da pré-existência (consubstancial ao Pai), agora se estende também ao plano da encarnação (consubstancial a nós). A linguagem dos acontecimentos foi substituída pela da essência, pela do devir, pela do ser de Cristo em si mesmo na sua estrutura metafísica, e não mais pelo Cristo nascido, morto do ressuscitado e ascendido por nós.

Esta análise da evolução do símbolo cristológico permite-nos dar a primeira resposta ao problema que colocamos no início: em que direção a cristologia patrística desenvolve o Kerigma bíblico sobre Cristo? Na direção da ontologização do Kerigma.

O símbolo, porém, muitas vezes apenas codifica, com considerável atraso, os resultados de um processo em curso a todos os níveis e que tem o seu epicentro na teologia, e não no magistério. É neste nível que o processo deve ser estudado. O esquema de dois tempos é a base da chamada cristologia arcaica de rebaixamento e exaltação. A expressão clássica nos é fornecida por Romanos 1.3-4 com o esquema segundo a carne, segundo o espírito. Como mostram outros textos semelhantes de 1 Pedro 3:18 e Tim 3:16, este esquema constituiu uma das formas mais queridas de expressar a fé em Cristo na comunidade cristã primitiva. Neste esquema, a combinação histórica e funcional de carne e espírito também indica as duas fases da história de Cristo. Com efeito, o Cristo segundo a carne e o Jesus que nasceu da descendência de David, isto é, de Maria, manifestou-se semelhante aos homens na forma de servo (Fl 2,7). Morreu na cruz. Cristo segundo o espírito e senhor exaltado constituiu o filho de Deus em poder a partir da ressurreição dos mortos, que, sentado à direita do pai, está presente e atua em sua igreja como espírito. A perspectiva com a qual Cristo é percebido é a de se manifestar a nós, e não a de estar em si mesmo. É na perspectiva do manifestar que Cristo nos aparece primeiro como carne, depois como espiritual, e não na perspectiva do ser, em que o espírito precede a carne, como mostra claramente a comparação com o esquema do logos carne de João. O divisor de águas entre as duas fases é constituído pela ressurreição, como é afirmado abertamente em Rm 1.4.

Acompanhemos agora a vida deste esquema no período subapostólico. Em Inácio de Antioquia reaparece pela primeira vez nos dois títulos carnais e espirituais:

 único e o médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, na carne Deus, na morte vida eterna e de Maria e de Deus, primeiro passível depois impassível Jesus Cristo nosso Senhor.

A ordem primitiva e respeitada. Diz-se que Cristo é primeiro passível e depois impassível, isto é, primeiro segundo a carne e depois segundo o espírito. Porém, as duas realidades já estão ancoradas nos dois nascimentos: a carne de Maria e o espírito de Deus, Cristo é espiritual, ou seja, segundo o espírito, devido ao seu nascimento de Deus. Mas em que momento esse nascimento é colocado? Na ressurreição como em Paulo, na encarnação, no mesmo momento do nascimento de Maria, como para os sinópticos, ou na pré-existência como para João?

É a partir deste ponto que começa o desenvolvimento do esquema de Paulo, na forma de um recuo progressivo desde o momento do nascimento de Cristo como espírito. A primeira etapa é o batismo e quase todos os gnósticos permanecem presos a ela: Cristo é carne a partir de Maria e espírito, isto é, Deus, a partir do batismo em que o espírito desceu sobre ele.

A próxima etapa é o nascimento do Espírito Santo na encarnação que predomina por um tempo entre os autores eclesiásticos e na forma ocidental do símbolo. Temos, então uma abordagem à perspectiva sinótica. A tendência de ler Romanos 1:3-4 à luz de Lucas 1:35 torna-se visível. A frase feito da semente de Davi segundo a carne é tida como equivalente a encarnado da virgem Maria e a frase filho predestinado de Deus impotência segundo o espírito de santificação como equivalente a nascido do Espírito Santo.

No que diz respeito a Inácio, a partir da comparação com outros de seus textos como Efésios 18.2: “nosso Deus Jesus Cristo foi concebido segundo a economia de Deus por Maria, pela semente de Davi vírgula e pelo Espírito Santo”, parece claro que o esquema paulino já não está centrado na ressurreição, mas na encarnação.

O próximo passo, o recuo do espírito para a pré-existência, é dado por um escritor apostólico um pouco mais tarde, escrevendo: Cristo, que estava no princípio espírito, tornou-se carne (2 Clemente 9.5). O esquema é, portanto, invertido numa direção vertical e joanina. Afirma-se a perspectiva do ser e da distribuição da fé cristológica em dois níveis. O Espírito já não designa Cristo no final da sua história, mas no início dela. Neste novo local, o espírito está destinado a sofrer a atração do logos, mais útil naquele momento, pelo seu valor cosmológico, no diálogo com o mundo grego. E assim Justino e Taciano afirmam que o espírito de Deus que desce em Maria não é outro senão o logos. Irineu estabelece o nivelamento perfeito dos dois esquemas de Rm 1, 3-4 e João 1,14 ao escrever: o espírito de Deus através do qual tudo foi feito se misturou e se uniu à carne.

Esta mudança de perspectiva é acompanhada por uma evolução do conteúdo do regime. Espírito e carne não são mais duas fases, mas duas substâncias, duas entidades. Como todo homem, também Cristo é composto de duas substâncias incompletas, o espírito e a carne, que formam nele a única natureza composta. A diferença é apenas que, no caso de Cristo, é um espírito divino e vivificante. A antiga ideia das duas fases, ou modos de ser do verbo, permanece de alguma forma em Apolinário, mas o elo entre as duas fases não é mais a ressurreição, mas a encarnação. É a encarnação que marca a passagem do estado de logos ou pneuma asarkos para o estado de logos ou pneuma ensarkos.

Mesmo os acontecimentos e ações típicos das duas fases passam por uma transposição para a nova chave ontológica. Tornam-se respectivamente as paixões da carne e as virtudes do espírito, isto é, a expressão das propriedades que qualificam e distinguem as substâncias servindo como forma de traçar a ação do ser de Cristo.

Tertuliano, neste ponto, escreve: “Ele salva a tal ponto a propriedade de cada uma das duas substâncias, que o espírito opera nele as coisas que lhe são próprias, isto é, prodígios, obras e sinais, e a carne sofre as paixões que lhe são próprias: sofre fome na tentação do diabo, sede no episódio da samaritana, chora por Lázaro, fica triste até morrer e finalmente morre”.

Todos os acontecimentos e ações de Cristo que engrossaram a crença cristológica primitiva são transfundidos na cristologia patrística carregada de uma nova função, a de demonstrar a humanidade e a divindade de Cristo. Acima de tudo, o núcleo original da morte e da ressurreição reaparece sob esta forma.

Meliton de Sardes escreve: “morto e sepultado como homem, ele ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem”.

 Efrém, o Sírio, escreve: “as duas Naturezas expressaram umas suas próprias ações, de modo que através das ações das duas Naturezas, os homens compreenderiam sua distinção "

Uma vez emergido claramente o problema da unidade pessoal, esta linguagem correta e integrada, até à escola alexandrina, com o conceito de operações comuns às duas Naturezas, que o Pseudo Dionísio chamará de operações teândricas.

O Nisseno escreve: “mesmo que as propriedades da carne e da divindade possam ser consideradas separadamente, porém, devido à conjunção e união natural, são comuns a ambas”.

Há, portanto, uma diferença na concepção das operações de Cristo na teologia do tipo desenvolvida em Antióquia, as ações de Cristo são atribuídas à humanidade, as demais à divindade, e na cristologia desenvolvida em Alexandria cada uma é atribuída a ambas. Mas a diferença, do nosso ponto de vista, é menos intensa que a afinidade, pois em ambos os casos são função da constituição de Cristo, das naturezas no primeiro caso, da unidade da hipóstase no segundo caso.

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