Ontologização da
Cristologia
Texto de: Raniero Cantalamessa
Resumo e tradução: Paolo
Cugini
Pergunta: Como o querigma bíblico sobre Cristo é historicizado
na era patrística? Em que direção a teologia dos padres desenvolve os dados do
Novo Testamento?
O credo cristológico do Novo Testamento foi
definido como o núcleo central da fé. Nas diversas formas que o credo assume,
representa o lugar de condensação dos resultados alcançados pela teologia, o
espelho mais fiel do seu significado eclesial, também o mais autoritativo da fé
em Cristo. As tentativas de remontar à forma mais antiga e elementar do credo
cristológico do Novo Testamento parecem convergir com certa unanimidade para
aquelas fórmulas de aclamação em que a fé em Cristo se exprime através dos
títulos de Senhor, Senhor Deus, Deus. São títulos que, na verdade, expressam um
evento, a ressurreição, através do qual Cristo foi feito Senhor e filho de Deus.
“Se com a sua boca você
confessa que Jesus é senhor e com o seu coração você acredita que Deus o
ressuscitou dos mortos, você. serão salvos.” (Rm 10.9).
O mesmo vale para o título de Filho
de Deus, também conectado no início, como mostrado na carta aos Romanos 1,4
com a ressurreição. A crença cristológica começa, portanto, com a profissão de
fé num acontecimento histórico: a ressurreição de Jesus.
É precisamente nesta direção
que o primeiro credo se desenvolve numa série de proposições que contêm tantos
acontecimentos que marcam a ação salvífica de Cristo, a sua história. À menção
inicial da ressurreição acrescenta-se a da morte, as duas coisas já aparecendo
juntas em 1 Tessalonicenses 4.14.
Neste primeiro núcleo de morte
e ressurreição estão enxertados outros acontecimentos que ampliam e enriquecem
o horizonte da fé em Cristo, como a paixão, o sepultamento e as aparições (1
Cor 15, 4-5), a descida ao inferno (1 Pedro 3.19), a ascensão ao céu (1 Pedro
3.22). Quase nunca saímos do arco da história terrena de Jesus. Ainda falta a
menção ao nascimento de Maria.
A certa altura testemunhamos o
enriquecimento soteriológico expresso por esta expressão para nós,
para a nossa santificação, para os nossos pecados.
A fé em Cristo é, portanto,
expressa no credo do Novo Testamento como fé numa série de eventos através dos
quais Cristo trouxe a nossa salvação. Esta crença cristológica, encontrada no
Novo Testamento, consolida-se num modelo bem definido que reúne os principais
acontecimentos mencionados nas fórmulas bíblicas, paixão e morte sob Pôncio
Pilatos, ressurreição e ascensão, encontra-se com algumas variações em Inácio
de Antióquia no início de Justino em meados e em Melito da Sardi
no final do século II. Aqui está no texto de Melito:
este é aquele que se encarnou
na virgem, que foi pendurado no madeiro, que foi sepultado na terra e que foi
elevado às alturas do céu.
Desenvolvimento no
século IVo d.C.
Neste período o símbolo
cristológico primitivo já não existe isolado e autônomo, mas passa a viver
inserido como parte central da profissão de fé trinitária utilizada no rito
batismal. No Ocidente, a seção cristológica deste símbolo denominado símbolo apostólico,
na forma interrogativa usada no batismo, diz:
Acredite em Jesus Cristo,
filho de Deus vírgula que nasceu do Espírito Santo da virgem Maria, foi
crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu e foi sepultado, ressuscitou vivo dos
mortos ao terceiro dia, subiu ao céu e está sentado à direita mão de seu pai, e
virá julgar os vivos e os mortos?
Este texto, que nos foi
transmitido pela Tradição Apostólica de Hipólito, com muitas
poucas variações, permaneceu definitivo entre os latinos. Nele vale destacar a
forma sinótica com que se expressa o nascimento do Espírito Santo e de Maria,
a referência que acabamos de mencionar à pré-existência com o título de filho
de Deus
Muito mais profundas do que a
crença bíblica primitiva, são as diferenças que o símbolo dos orientais
apresenta, a partir do século III. Examinamo-lo no símbolo de Nicéia que, na
sua estrutura, segue o modelo dos símbolos já existentes em Cesaréia e
Jerusalém. Permite-nos ver como se concretiza a profissão de fé em Cristo
depois de dois séculos de intensa reflexão teológica. Está distribuído em dois
níveis que a estrutura do símbolo destaca com total clareza:
Creio em um só Senhor Jesus
Cristo, filho de Deus, nascido unigênito do pai, isto é, da substância do pai,
Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, nascido não
feito, consubstancial ( homoousios) com o pai, por quem todas as coisas se
fizeram vírgula no céu e na terra, que por nós homens e para nossa salvação
desceu, se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia e
subiu ao céu e virá julgar os vivos e os mortos.
O credo primitivo, baseado num
resumo do evento histórico salvífico de Cristo, permanece substancialmente, mas
apenas como equivalente a uma profissão de fé que tem como objeto a
pré-história de Cristo, a sua pré-existência e nascimento do Pai. Desde a
ressurreição o centro de gravidade da cristologia, já nas fórmulas do século
II, voltou para o nascimento de Maria, agora continuando nesta linha, passou
para o nascimento eterno do Pai. É uma espécie de regresso rio acima, às fontes
da realidade de Cristo, onde já não existe o acontecimento, mas apenas o seu
ser e o seu estar substancialmente com o Pai. A fé em Cristo, originalmente
expressa num esquema horizontal e histórico, desde o nascimento até à ascensão,
aparece agora organizada segundo um esquema vertical composto por dois planos:
o plano da pré-existência e o plano da encarnação. A novidade é que na parte
relativa à pré-existência os dados não são mais constituídos de acontecimentos,
mas de afirmações sobre a essência (ousia). O propter nos (por nós) que
originalmente constituía o elemento soteriológico, que qualificava todo o credo,
não se perdeu. Agora, intervém apenas a meio caminho e diz respeito a uma parte
da história cristológica, aquela que começa com a encarnação. O resultado
evidente é a justaposição correta, a sobreposição em Cristo para nós de um
Cristo em si mesmo, preso em sua homoousia com o Pai.
A evolução que se verifica na
expressão da fé cristológica aparece-nos com toda a sua clareza, passando da
partida de Nicéia à de Calcedónia. Enquanto o símbolo de Nicéia, apesar
dos desequilíbrios já ocorridos, ainda expressa fé no quadro de uma sucessão de
acontecimentos que vão desde o nascimento eterno do pai até à parusia, o
símbolo de Calcedónia abandonou completamente esta abordagem e os
acontecimentos de na história de Cristo substituiu afirmações sobre a natureza
ou, melhor, sobre as duas Naturezas de Cristo. Tudo se baseia no
esquema dos dois nascimentos, de Deus e de Maria, mas também este está separado
de qualquer perspectiva histórica ou temporal. A inovação que em Nicéia se
aplicava apenas ao plano da pré-existência (consubstancial ao Pai), agora se
estende também ao plano da encarnação (consubstancial a nós). A linguagem dos
acontecimentos foi substituída pela da essência, pela do devir, pela do ser de
Cristo em si mesmo na sua estrutura metafísica, e não mais pelo Cristo nascido,
morto do ressuscitado e ascendido por nós.
Esta análise da evolução do
símbolo cristológico permite-nos dar a primeira resposta ao problema que
colocamos no início: em que direção a cristologia patrística desenvolve o
Kerigma bíblico sobre Cristo? Na direção da ontologização do Kerigma.
O símbolo, porém, muitas vezes
apenas codifica, com considerável atraso, os resultados de um processo em curso
a todos os níveis e que tem o seu epicentro na teologia, e não no magistério. É
neste nível que o processo deve ser estudado. O esquema de dois tempos é a base
da chamada cristologia arcaica de rebaixamento e exaltação. A
expressão clássica nos é fornecida por Romanos 1.3-4 com o esquema segundo
a carne, segundo o espírito. Como mostram outros textos semelhantes de 1
Pedro 3:18 e Tim 3:16, este esquema constituiu uma das formas mais queridas de
expressar a fé em Cristo na comunidade cristã primitiva. Neste esquema, a
combinação histórica e funcional de carne e espírito também indica as duas
fases da história de Cristo. Com efeito, o Cristo segundo a carne e o Jesus que
nasceu da descendência de David, isto é, de Maria, manifestou-se semelhante aos
homens na forma de servo (Fl 2,7). Morreu na cruz. Cristo segundo o espírito e senhor
exaltado constituiu o filho de Deus em poder a partir da ressurreição dos
mortos, que, sentado à direita do pai, está presente e atua em sua igreja como
espírito. A perspectiva com a qual Cristo é percebido é a de se manifestar a
nós, e não a de estar em si mesmo. É na perspectiva do manifestar que Cristo
nos aparece primeiro como carne, depois como espiritual, e não na perspectiva
do ser, em que o espírito precede a carne, como mostra claramente a comparação
com o esquema do logos carne de João. O divisor de águas entre as duas fases é
constituído pela ressurreição, como é afirmado abertamente em Rm
1.4.
Acompanhemos agora a vida
deste esquema no período subapostólico. Em Inácio de Antioquia reaparece pela primeira vez
nos dois títulos carnais e espirituais:
único e o médico, carnal e espiritual,
gerado e não gerado, na carne Deus, na morte vida eterna e de Maria e de Deus,
primeiro passível depois impassível Jesus Cristo nosso Senhor.
A ordem primitiva e
respeitada. Diz-se que Cristo é primeiro passível e depois impassível, isto é,
primeiro segundo a carne e depois segundo o espírito. Porém, as duas realidades
já estão ancoradas nos dois nascimentos: a carne de Maria e o espírito de Deus,
Cristo é espiritual, ou seja, segundo o espírito, devido ao seu nascimento de
Deus. Mas em que momento esse nascimento é colocado? Na ressurreição como em
Paulo, na encarnação, no mesmo momento do nascimento de Maria, como para os
sinópticos, ou na pré-existência como para João?
É a partir deste ponto que
começa o desenvolvimento do esquema de Paulo, na forma de um recuo progressivo
desde o momento do nascimento de Cristo como espírito. A primeira etapa é o
batismo e quase todos os gnósticos permanecem presos a ela: Cristo é carne a
partir de Maria e espírito, isto é, Deus, a partir do batismo em que o espírito
desceu sobre ele.
A próxima etapa é o nascimento
do Espírito Santo na encarnação que predomina por um tempo entre os autores
eclesiásticos e na forma ocidental do símbolo. Temos, então uma abordagem à
perspectiva sinótica. A tendência de ler Romanos 1:3-4 à luz de Lucas 1:35
torna-se visível. A frase feito da semente de Davi segundo a carne é
tida como equivalente a encarnado da virgem Maria e a frase filho
predestinado de Deus impotência segundo o espírito de santificação como
equivalente a nascido do Espírito Santo.
No que diz respeito a Inácio,
a partir da comparação com outros de seus textos como Efésios 18.2: “nosso
Deus Jesus Cristo foi concebido segundo a economia de Deus por Maria, pela
semente de Davi vírgula e pelo Espírito Santo”, parece claro que o esquema
paulino já não está centrado na ressurreição, mas na encarnação.
O próximo passo, o recuo do
espírito para a pré-existência, é dado por um escritor apostólico um pouco mais
tarde, escrevendo: Cristo, que estava no princípio espírito, tornou-se carne
(2 Clemente 9.5). O esquema é, portanto, invertido numa direção vertical
e joanina. Afirma-se a perspectiva do ser e da distribuição da fé cristológica
em dois níveis. O Espírito já não designa Cristo no final da sua história, mas
no início dela. Neste novo local, o espírito está destinado a sofrer a atração
do logos, mais útil naquele momento, pelo seu valor cosmológico, no diálogo com
o mundo grego. E assim Justino e Taciano afirmam que o espírito de Deus que
desce em Maria não é outro senão o logos. Irineu estabelece o nivelamento
perfeito dos dois esquemas de Rm 1, 3-4 e João 1,14 ao escrever: o espírito de
Deus através do qual tudo foi feito se misturou e se uniu à carne.
Esta mudança de perspectiva é
acompanhada por uma evolução do conteúdo do regime. Espírito e carne não são
mais duas fases, mas duas substâncias, duas entidades. Como todo homem, também
Cristo é composto de duas substâncias incompletas, o espírito e a carne, que
formam nele a única natureza composta. A diferença é apenas que, no caso de
Cristo, é um espírito divino e vivificante. A antiga ideia das duas fases, ou
modos de ser do verbo, permanece de alguma forma em Apolinário, mas o elo entre
as duas fases não é mais a ressurreição, mas a encarnação. É a encarnação que
marca a passagem do estado de logos ou pneuma asarkos para o estado de logos ou
pneuma ensarkos.
Mesmo os acontecimentos e
ações típicos das duas fases passam por uma transposição para a nova chave
ontológica. Tornam-se respectivamente as paixões da carne e as virtudes do
espírito, isto é, a expressão das propriedades que qualificam e distinguem as substâncias
servindo como forma de traçar a ação do ser de Cristo.
Tertuliano, neste ponto, escreve: “Ele salva a tal ponto a
propriedade de cada uma das duas substâncias, que o espírito opera nele as
coisas que lhe são próprias, isto é, prodígios, obras e sinais, e a carne sofre
as paixões que lhe são próprias: sofre fome na tentação do diabo, sede no
episódio da samaritana, chora por Lázaro, fica triste até morrer e finalmente
morre”.
Todos os acontecimentos e
ações de Cristo que engrossaram a crença cristológica primitiva são
transfundidos na cristologia patrística carregada de uma nova função, a de
demonstrar a humanidade e a divindade de Cristo. Acima de tudo, o núcleo
original da morte e da ressurreição reaparece sob esta forma.
Meliton de Sardes escreve: “morto e sepultado como homem, ele
ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem”.
Efrém, o Sírio, escreve: “as duas
Naturezas expressaram umas suas próprias ações, de modo que através das ações
das duas Naturezas, os homens compreenderiam sua distinção "
Uma vez emergido claramente o
problema da unidade pessoal, esta linguagem correta e integrada, até à escola
alexandrina, com o conceito de operações comuns às duas Naturezas, que o
Pseudo Dionísio chamará de operações teândricas.
O Nisseno escreve: “mesmo
que as propriedades da carne e da divindade possam ser consideradas
separadamente, porém, devido à conjunção e união natural, são comuns a ambas”.
Há, portanto, uma diferença na
concepção das operações de Cristo na teologia do tipo desenvolvida em Antióquia,
as ações de Cristo são atribuídas à humanidade, as demais à divindade, e na
cristologia desenvolvida em Alexandria cada uma é atribuída a ambas. Mas a
diferença, do nosso ponto de vista, é menos intensa que a afinidade, pois em
ambos os casos são função da constituição de Cristo, das naturezas no primeiro
caso, da unidade da hipóstase no segundo caso.
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