Paolo Cugini
1. Introdução
Piotr Kropotkin é um personagem
totalmente imerso nos problemas de seu tempo. Ocupado com mil compromissos,
entre conferências, redações de jornais, intrigas tempestuosas e muitas vezes
perigosas, ele sempre soube conciliar sua atividade de pesquisador científico
sério e profundo com a de ativista do movimento anarquista. Em suas páginas
buscamos, portanto, não apenas uma chave para melhor compreender a época em que
viveu, mas também e sobretudo uma resposta às atitudes morais do homem. Por que
o homem, numa sociedade que assumiu a ciência como único critério de
credibilidade e veracidade, ainda deve abaixar a cabeça diante de certos
princípios que escapam totalmente aos critérios da experimentação científica?
Esses princípios são herança do próprio homem, como afirma a tradição
metafísica ocidental, ou são impostos por entidades abstratas externas ao
indivíduo? É em torno dessas questões que as reflexões de Kropotkin se
desenvolvem.
2. Preâmbulo histórico
O século XIX deve ser
considerado decisivo para o que vivemos hoje. É verdade que cada época tem suas
características peculiares, mas se tentarmos olhar para todo o período da
história, perceberemos como o último século representa um momento crucial de transição
para toda a raça humana (Kropotkin, 2011, p. 34). Certamente este momento não
surgiu por acaso, mas é resultado de uma evolução lenta. Podemos considerar a
revolução industrial como a faísca que provocou a convulsão geral, convulsão
que vem assumir, pela forma eficaz como penetra e envolve a consciência do
indivíduo, o caráter de novidade emblemática. De fato, nasce uma nova maneira
de conceber a realidade. O homem não quer mais desempenhar o papel de um
espectador amorfo e indiferente, impassível diante de qualquer situação, mesmo
aquela de opressão contra ele. Não, ele quer se sentir totalmente envolvido e
mais do que nunca protagonista na jornada desta nova sociedade em que se
encontra vivendo. É justamente neste período que nasce nos cidadãos a consciência
de pertencimento a um povo. Podemos agora nos perguntar: como é possível que um
simples fenômeno de natureza técnica, como a inserção da indústria no mundo do
trabalho, possa influenciar de forma tão profunda e incisiva todo o aparato
social, perturbando radicalmente o elemento formador deste: o homem? Para
responder a essa pergunta, é necessário entender que a revolução industrial não
aconteceu em um dia específico. Essa transformação radical e total no modo de
produzir foi vivenciada por aqueles que se viram envolvidos, a cada instante do
dia, por sentimentos de espanto, desconforto e certamente também de forte
reprovação. Esta última atitude foi vivida por todos aqueles que, devido às
inovações tecnológicas, se encontravam vivendo em dolorosas situações de
pobreza e exploração e que não compreendiam onde a transformação havia
efetivamente ocorrido e em que sentido ela deveria ser considerada positiva.
Afinal, nós que lemos sobre
esses acontecimentos em documentos ou livros de história não devemos nos
surpreender, pois, desde o início dos tempos, quem detém o poder explora quem
não o tem, quem tem mais não reparte com quem tem menos, mas tenta a todo custo
acumular cada vez mais (diante daqueles pensadores "rousseaunianos"
que sustentam que o homem é bom por natureza). E assim, o século XIX também
teve seus tiranos, que souberam aproveitar a boa oportunidade para aumentar
ainda mais o fosso entre explorados e exploradores. Mas talvez este pudesse ter
sido o momento certo para criar igualdade de condições, para criar uma
sociedade capaz de dar a cada indivíduo as mesmas oportunidades, onde as únicas
diferenças entre os indivíduos seriam qualitativas e não mais quantitativas.
Poderíamos também perguntar: onde está a diferença entre o que descrevemos como
um novo fenômeno e o que existia antes? Se, de fato, o fruto dessa nova
situação é novamente a opressão, onde está a novidade, onde está a reversão? No
início mencionamos o lugar especial que a consciência do indivíduo ocupa neste
fenômeno. Bem, para nós é justamente neste nível que a verdadeira revolução
aconteceu. Foi justamente quando o homem, a mulher, o velho e a criança
perceberam que estavam sofrendo uma injustiça, quando falaram dessa injustiça
com seus amigos, que também estavam sofrendo as mesmas humilhações, quando
perceberam que muitas pessoas como eles, ao redor deles, estavam sofrendo uma
humilhação injusta e imerecida, que a verdadeira revolução nasceu. A revolução
industrial, um fato novo na história, havia produzido a divisão entre
capitalista e proletário, novos termos por trás dos quais, no entanto,
escondia-se um problema tão antigo quanto o mundo. Foi a consciência de ser
subjugado por seres potencialmente iguais que provocou a verdadeira virada na
história da humanidade, e não o simples fato. É claro que o homem demorou muito
tempo para acordar e perceber o que estava acontecendo ao seu redor. Pode-se,
no entanto, legitimamente perguntar se esse despertar, dado que a situação
histórica foi mais ou menos a mesma de outros períodos históricos, ocorreu por
si só. Se aceitássemos isso, poderia parecer que o processo de conscientização
já estava presente em embrião no início do mundo e, portanto, teria que
acontecer mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra. Aceitaremos assim,
mais ou menos conscientemente, uma posição dialéctica defendida por alguns
pensadores (ver a esquerda hegeliana),que desvaloriza totalmente a ação dos
indivíduos unidos na luta pela libertação da opressão, atribuindo à história,
uma entidade abstrata, a responsabilidade única.
Em vez disso, seria uma boa
ideia levar outros fatores novos em consideração. Acreditamos que uma maneira
diferente de refletir sobre os eventos que estavam ocorrendo contribuiu muito
para esse despertar. Nunca antes tantos pensadores se detiveram para elaborar
considerações sobre as possibilidades e modalidades de uma situação
historicamente datada. O mais surpreendente e inédito é o fato de que as
pessoas estavam preocupadas em como se livrar daquela situação absolutamente
dolorosa e insustentável. Tudo isso é espantoso porque não nos parece que
muitos filósofos ao longo da história tenham descido de seus castelos para se
curarem e, sobretudo, para usarem seus pensamentos a serviço daqueles que
estavam em pior situação. Evidentemente os acontecimentos foram de uma escala
tão colossal que realmente valeu a pena parar um momento para fazer algumas
considerações. Assim nasceram os sociólogos, ou melhor, uma nova maneira de
pensar a história e a sociedade voltada sobretudo para a compreensão do tipo de
relação existente entre o indivíduo e o grupo. Surge, assim, uma cultura que
não é mais apenas elitista, mas que em muitos casos tem como objetivo principal
incitar as massas a se rebelarem contra seus opressores. É aqui que ocorre um
novo ponto de virada. De uma forma instintiva e, portanto, momentânea de
rebelião, passamos para uma forma consciente de rebelião. Entretanto, não há
uma única maneira de ver o problema. Na verdade, comunismo, socialismo,
anarquia são manifestações da pluralidade de visões que giram em torno do mesmo
motivo. No início, estávamos procurando a faísca que iniciou o fogo, bem, agora
a encontramos. Que fique claro, no entanto, que não atribuímos o crédito por
esse despertar somente aos pensadores. De jeito nenhum. De fato, em nossa
opinião, é a união dessas duas forças teóricas e práticas que permitiu que o
fenômeno ocorresse em toda a sua complexidade. Como o significado do evento não
pode ser compreendido analisando-o de forma geral, vamos agora nos concentrar
na análise do momento histórico descrito acima do ponto de vista particular de
um autor: Kropotkin.
3. Uma resposta ao problema:
anarquia
O ponto de partida do discurso
de Kropotkin é uma análise da situação sociocultural de sua época. Ele pretende
chamar a atenção do interlocutor para a transformação colossal que ocorreu e
ainda está em desenvolvimento, que afeta todos os níveis do conhecimento
humano. Não é uma transformação do mundo, mas da maneira de vê-lo, de
considerá-lo; como? Era uma vez a ciência que estudava grandes resultados e
grandes somas; hoje estuda sobretudo o infinitamente pequeno, os indivíduos que
constituem individualidades ao mesmo tempo que sua agregação íntima (Kropotkin,
1994, p. 87). Trata-se, portanto, de uma nova orientação que não percebe mais o
objeto como uma totalidade, mas como composto de elementos particulares que
interagem. É uma forma de ver que não se limita à superfície, mas invade todos
os campos do conhecimento humano. Kropotkin analisa essa evolução primeiro na
astronomia, depois nas ciências físicas, nas ciências que tratam da vida
orgânica, na psicologia, na história, na jurisprudência, na economia política
e, finalmente, na filosofia. Mas o que é que é definitivamente minado por esta
nova concepção? Se o fenômeno não se explica mais pela invocação de uma vontade
divina, mas sim por uma série de choques e encontros, o conceito de
predestinação, de um plano pré-estabelecido, cai por terra. Não apenas isso,
mas se o homem nada mais é do que uma resultante, como afirma nosso autor
(Kropotkin, 1990, p. 116), sempre variável, de todas as diferentes faculdades,
que estão ligadas entre si de tal modo que cada uma reage sobre a outra
enquanto vive sua própria vida, para que serve então a alma, entendida como o
órgão central que regula o funcionamento das demais faculdades? É evidente que
essa observação leva a uma concepção de sociedade completamente diferente da
anterior. De fato, com o nome de anarquia nasce uma nova interpretação da vida
passada e presente da sociedade e, ao mesmo tempo, uma previsão sobre seu
futuro. Kropotkin, portanto, considera e apresenta a anarquia como uma chave
para a compreensão de seu tempo, uma interpretação que não se detém em um nível
meramente crítico, mas também propositivo.
Nosso autor especifica então
algumas linhas fundamentais dessa nova concepção: em primeiro lugar, não deixa
espaço para minorias dominantes (sacerdotes, generais, juízes); reconhece que
todos os seus membros têm direitos iguais a todos os tesouros acumulados no
passado; ele não conhece a divisão entre explorados e exploradores. Por fim,
ela busca a harmonia social não submetendo todos os homens a uma autoridade,
mas chamando-os ao livre desenvolvimento, à livre iniciativa, à livre ação e à
livre associação. «A anarquia busca o desenvolvimento mais completo da
individualidade, combinado com o mais alto desenvolvimento da associação
voluntária em todos os níveis» (Kropotkin, 1994, p. 92). Segundo Kropotkin,
esse ideal utópico de sociedade, sonhado por muitos séculos, agora pode ser
realizado em seus aspectos econômicos, políticos e morais, com base na
necessidade do comunismo. Um dos elementos mais originais do pensamento de
Kropotkin era certamente este, ou seja, que um ideal aparentemente utópico como
a anarquia precisava de uma roupagem política já testada há muito tempo, para
concretizar seus planos. O comunismo era perfeito para ele. Na verdade, assim
como a anarquia, seu objetivo era libertar as massas trabalhadoras da opressão.
Entretanto, enquanto o comunismo, uma vez destruído o opressor, teria se
organizado criando uma nova estrutura burocrática semelhante à anterior, a
anarquia, para ser consistente com seus ideais, certamente não teria construído
uma organização do tipo estatal uma vez que a revolução tivesse ocorrido.
Kropotkin identificou, portanto, no comunismo um forte companheiro de viagem,
mesmo que, em determinado momento do caminho, tivesse que dizer adeus a ele. O
que é que, segundo a anarquia e o comunismo, impede o desenvolvimento da tão desejada
nova sociedade? Eles são os escravos econômicos, são aqueles que se apropriam
de tudo o que é necessário para viver e produzir, impedindo continuamente a
produção do que é necessário para o bem-estar individual. Eles são os parasitas
do estado para quem os trabalhadores trabalham. Por absoluta necessidade, a
abundância de alguns é, portanto, baseada na pobreza de outros. A estreita
relação entre anarquia e comunismo leva nosso autor a tecer algumas
considerações típicas do pensamento de Marx. Ele afirma, de fato, que o sistema
empurra o indivíduo a vender sua força de trabalho a um preço muito baixo para
poder comer. Esta situação desastrosa, contudo, constitui também uma condenação
do próprio sistema.Criou-se uma série de situações em que o trabalhador, para
alimentar a si mesmo e a sua família, é obrigado a agir de acordo com a vontade
do capitalismo. Isso significa que para mudar esse sistema, precisamos atacar
sua essência, a compra e venda, e não seu efeito, que é o capitalismo. São as
novas relações de produção que causaram agitação social e é nesse nível que
devemos operar. Os trabalhadores agora têm uma compreensão vaga de tudo isso.
Kropotkin, para compreender a
estrutura social capaz de eliminar os males que a corroem, volta suas reflexões
para o Estado. Para a anarquia, o melhor dos homens se torna essencialmente mau
pelo exercício da autoridade. É importante destacar como o autor joga muito com
o contraste entre coerção e ajuda mútua, como contrapartida antitética do
dualismo Estado-anarquia. Por que o mesmo nunca pode ter sucesso em uma
sociedade anárquica? Porque suprime e esmaga a liberdade do indivíduo. Além
disso, o Estado não produz entreajuda, elemento fundamental da natureza humana,
mas sim competitividade, fruto aberrante de relações falaciosas. Kropotkin diz
que precisamos apenas abrir um pouco os olhos, sacudindo todos aqueles resíduos
metafísico-religiosos que não nos permitem ver claramente como as coisas são
(Kropotkin, 2015, p.74). Kropotkin então alerta aqueles que consideram a
anarquia como utópica, afirmando que o objetivo não é apenas demolir qualquer
forma de poder estabelecido. Se esta fosse a única tarefa da anarquia, ela
cairia no erro daqueles que, depois da revolução, deixaram a reconstrução da
sociedade nas mãos da burguesia. A anarquia, portanto, acompanha o trabalho de
demolição com o de manutenção e ampliação dos costumes de sociabilidade
realizados e garantidos pela ação contínua de todos (Kropotkin, 2015, p.112).
As instituições e os costumes comunistas, escreve o autor, impõem-se à
sociedade não apenas como solução para as dificuldades econômicas, mas também
para manter e satisfazer hábitos sociáveis, que colocam os homens em contato
uns com os outros, estabelecendo entre eles relações que fazem do interesse de
cada um o interesse de todos e os unem em vez de dividi-los (Kropotkin, 2015,
p.98). Para confirmar e sublinhar isso, Kropotkin lista três meios que servem
para manter um certo nível moral em uma sociedade humana ou animal: a repressão
de atos sociais, o ensino moral, a prática da ajuda mútua. Quanto ao primeiro
aspecto, pouco há a dizer, pois a importância dos métodos repressivos tem sido
bastante evidente ao longo dos séculos. Quanto ao ensinamento moral (que
resulta do conjunto de ideias e apreciações de cada um de nós sobre os fatos e
acontecimentos da vida cotidiana), ele afirma que ele pode atuar na sociedade
com apenas uma condição: que não seja obstaculizado por outra ordem de
ensinamentos morais derivados do uso das instituições. O último elemento, a
ajuda mútua,É considerado um instrumento de progresso, de aperfeiçoamento moral
e intelectual da raça humana. Sempre que a instituição interveio para congelar
relacionamentos entre indivíduos, isso causou um declínio no nível moral
(Kropotkin, 2011, p.132). Definidos esses elementos, Kropotkin repensa a
relação entre anarquia e comunismo, distorcendo-a completamente. Onde antes ele
identificava elementos conflitantes, agora ele encontra concordância. Em uma
sociedade comunista, ele diz, as relações sociais mudam porque a organização do
comunismo não pode ser confiada a órgãos legislativos, sejam eles parlamentos,
conselhos municipais ou comunais. Deve ser obra de todos, do gênio construtor
da grande massa (Kropotkin, 1994, p.63).
É claro que para conseguir
isso, é preciso criar uma rede fragmentada de associações para contato contínuo
entre todos. Mas, perguntamo-nos, qual é a diferença entre uma "teia de
associações fragmentadas" e "órgãos legislativos, conselhos municipais,
conselhos municipais"? Nestas palavras, Kropotkin parece perceber a
impossibilidade de garantir a liberdade dos indivíduos sem uma organização
superior. Na realidade, como a história nos dirá e de fato nos disse, colocar o
Estado nas mãos do povo significa reconstruir um novo organismo estatal
semelhante ao anterior, ainda que, em alguns aspectos, diferente. Esta
certamente não é a intenção de Kropotkin, especialmente em seu extremo esforço
para permanecer fiel à originalidade do ideal anarquista. Como, então,
Kropotkin acaba se confundindo e se misturando com o pensamento comunista? Isso
parece bastante evidente nas reflexões seguintes do autor. O maior
desenvolvimento da individualidade só pode ser alcançado no comunismo,
entendido como o garantidor das necessidades primárias de cada indivíduo. O
comunismo permite que o indivíduo realize seu próprio potencial e aproveite ao
máximo sua criatividade: esta é a interpretação de Kropotkin (2015, p.188).
Aparentemente, o comunismo permite que a anarquia se desenvolva como ideologia.
Mas o que acontece quando o comunismo quer desenvolver sua própria ideologia?
Conhecemos a resposta teórica e histórica para esta questão. Do ponto de vista
puramente teórico, as duas ideologias coexistem, pelo menos segundo a interpretação
do nosso autor, pois, em termos gerais, ambas sustentam a realização do
potencial do indivíduo. Do ponto de vista histórico, as coisas mudam muito. De
fato, enquanto a anarquia nunca teve a oportunidade de se ver realizada
historicamente, o comunismo teve, e é justamente aqui que os problemas surgem.
A história, de fato, tem sido sua inimiga, no sentido de que expôs as falácias
já contidas em suas suposições teóricas. Ela não compareceu a esse evento
importante, principalmente quando se esperava que ela não falhasse, ou seja, no
respeito ao indivíduo. Talvez Kropotkin estivesse certo quando disse que
comunismo e anarquia são complementos necessários um do outro. A anarquia teria
ajudado o comunismo a entender que a revolução tinha que acontecer não tanto para
salvar as massas (um termo ambíguo por trás do qual se esconde uma realidade
que nunca é totalmente definida), mas os indivíduos que a constituíam. Por seu
lado, o comunismo, com a sua leitura económica do facto social,poderia ajudar a
anarquia a permanecer mais fundamentada na realidade. Talvez uma das razões
pelas quais a anarquia como ideal nunca conseguiu se materializar seja
justamente essa evidente falta de concretude.2
Parece que entramos num
círculo vicioso: a anarquia se coloca como defensora máxima do indivíduo,
negligenciando qualquer garantia e proteção; por outro lado, o comunismo, ao
mesmo tempo em que fornece essa garantia burocrática, coloca o indivíduo em uma
posição bastante crítica. Absolvemos Kropotkin desse descuido teórico
simplesmente porque ele não foi capaz de testemunhar o evento do comunismo,
embora permanecesse inflexível em afirmar o absurdo do comunismo anarquista.
Como pode, de fato, a anarquia, a força destrutiva de tudo que tem a ver com
poder e comando, andar de mãos dadas com o comunismo, que em teoria ama o povo,
mas na prática é o opressor extremo daquela herança ontológica pertencente ao
indivíduo? 3 Continuando nossa análise, observemos como nosso autor concebe a
humanidade, isto é, como uma realidade em evolução. Ele afirma que cada fase do
desenvolvimento de uma sociedade é resultado de todas as atividades de cada uma
das inteligências que a compõem: ela traz a marca de todos esses milhões de
vontades. Kropotkin prossegue, assim, em sua linha sempre disposta a afirmar a
complementaridade entre o indivíduo e a sociedade, esta última entendida não
metafisicamente como uma entidade abstrata e autocontida, mas sim como um
conjunto de particularidades individuais (Kropotkin, 2011, p.142). Na anarquia,
o indivíduo está no centro do discurso com todas as suas faculdades. Justamente
por isso o autor é sempre muito cuidadoso em alertar contra qualquer atitude
superficial. De fato, se mal compreendidas e, sobretudo, mal aplicadas, as
ideias de liberdade individual podem levar a atos repugnantes aos sentimentos
sociais da humanidade.
4. Moralidade anarquista
Na base de uma nova visão da
realidade há uma nova teoria. Para nós, esta nova teoria é a moral que indica
uma nova maneira de entender o homem, suas ações, seu relacionamento com os
outros. Muitas vezes é observando a moralidade que identificamos o nível de
civilização de um povo. Para Kropotkin, assim como para muitos pensadores desse
período do século XIX, como Stirner 4 e Nietzsche, 5 uma sociedade que baseia todo o seu potencial na
tecnologia e, portanto, eleva a ciência como único critério de verdade, precisa
de uma moral que tenha os mesmos critérios de outros setores. É verdade que o
mundo está mudando? E então cada pequena parte deve passar por essa renovação.
Ao afirmar isso, Kropotkin se alinha aos novos pensadores e sociólogos como
Comte 6 e Durkheim 7 que , vendo a sociedade mudar tão radicalmente,
afirmaram que a moral e a religião também deveriam passar pela mesma
mudança. 8 Destacamos o verbo mutare, que não é de modo algum sinônimo de
eliminar, como alguns sustentam, mas que pressupõe um esforço não desprezível
de reflexão especulativa capaz de analisar a situação histórica para criar as
melhores condições de possibilidade em cada momento. Se não quisermos
considerar nenhuma realidade como absoluta, nem mesmo a ciência, que no período
que estamos examinando muitas vezes corre esse perigo, devemos ter a coragem de
descer do alto e caminhar com o homem comum, colocando à sua disposição
qualquer ferramenta que possa ajudá-lo na difícil luta da vida cotidiana. É
exatamente isso que Kropotkin quer dizer quando se propõe a escrever:
Moralidade e Ética Anarquistas . Quais são os pontos-chave
da nova moralidade? Antes de tudo, é preciso ressaltar que nosso autor procede
em suas análises tendo ao seu lado a velha moral, aquela de origem
religioso-cristã. Ele então se inspira no que considerava serem os erros
fundamentais dessa antiga moralidade, para refutá-los e, assim, lançar as bases
para a nova. Primeiro, identifica a atitude típica de uma mentalidade religiosa
que tende a dividir a humanidade em altruístas e egoístas. Os primeiros seriam
aqueles que entenderam e colocaram em prática os ensinamentos tradicionais, os
últimos, ao contrário, aqueles que não entenderam e seguiram seu próprio
caminho.
Kropotkin responde que todas
as ações humanas, boas ou más, úteis ou prejudiciais, derivam de um único
motivo: a busca do prazer (Kropotkin, 2011, p.52). No final das contas, ele
diz, se o homem que doou sua última camisa não encontrasse prazer nisso, ele
não faria isso. Então, se ele tivesse prazer em tirar o pão da criança, ele o
faria. Nosso autor, movendo os exemplos para o mundo animal, conclui que buscar
o prazer ou evitar a dor é o fator gerador do mundo orgânico, é a própria
essência da vida. Ao dizer isso, Kropotkin quer nos dizer que não há
absolutamente nenhuma necessidade de invocar deuses, demônios ou anjos para
explicar a natureza humana; basta prestarmos um pouco mais de atenção ao que
acontece ao nosso redor, especialmente no reino animal, para encontrar inúmeras
analogias e excelentes explicações. A natureza, portanto, em vez de ser um
espelho do divino, como afirma uma longa tradição filosófica, torna-se a chave
para a compreensão do fenômeno humano. A partir do binômio antitético egoísmo-altruísmo,
que define duas maneiras diferentes de se comportar, nosso autor passa a
analisar outro binômio antitético que está, ainda mais que o primeiro, na raiz
do problema moral: a relação entre o bem e o mal. Os teólogos, escreve o autor
(Kropotkin, 1990, p.236), não encontrando explicações para a distinção entre
essas duas realidades, perceberam uma inspiração divina. Eles não perceberam,
no entanto, que os animais, que vivem socialmente, são capazes de distinguir
entre o bem e o mal, assim como os humanos. O mais impressionante é que suas
concepções de bem e mal são do mesmo tipo que as do homem. O princípio que
governa o mundo natural é este: isto é útil para a sociedade? Então está bom. É
prejudicial? Então ela é má. Essas palavras marcam a passagem de uma moral
objetiva para uma moral subjetiva, ou melhor, de uma moral que reconhecia um
absoluto como ponto de referência a partir do qual avaliar cada detalhe, para
uma moral que vê o indivíduo, o eu, como o único e indiscutível árbitro de
escolhas e situações. Neste procedimento heurístico é preciso admitir que
Kropotkin é um filho de seu tempo. Esta é uma forma geral de pensar que tem
seus símbolos em nomes como: Feuerbach, Marx, Engels, Stirner, Nietzsche,
Kierkegaard, pensadores que foram paulatinamente levando a reflexão ao ponto de
minar definitivamente tudo o que representava um "superior" ao homem,
para finalmente dar espaço ao sujeito. 9É, portanto, nessa atmosfera cultural que Kropotkin amadurece essas
ideias e delineia as linhas fundamentais do movimento anarquista.
O autor que estamos
considerando, com premissas semelhantes, tenta descobrir as origens da
distinção entre o bem e o mal, tentando motivar a obediência que o homem deve à
moral. Kropotkin, em resposta, pede ajuda a Adam Smith, que afirma que a origem
está no sentimento de simpatia que lentamente passa para o estado de hábito.
Segundo nosso autor, Smith não consegue compreender um fator fundamental, a
saber, que o sentimento de simpatia não é típico do homem, mas existe também
entre os animais. De fato, o sentimento de solidariedade é a característica
predominante da vida de todos os animais que vivem em sociedade. Em toda a
sociedade animal, a solidariedade é uma lei da natureza, que entre outras
coisas causa os fatores fundamentais do progresso: coragem e livre iniciativa.
O sentimento moral é, portanto, para Kropotkin, uma necessidade natural, não
diferente da nutrição e dos órgãos digestivos. Por fim, sem essa solidariedade
do indivíduo com a espécie, o reino animal jamais se teria desenvolvido ou se aperfeiçoado
(Kropotkin, 2011, p.158). Kropotkin está longe de negar qualquer significado
moral à anarquia, como alguns gostariam. Ele quer esclarecer que a anarquia é
um movimento social que envolve o indivíduo, tentando oferecer novas respostas
para o relacionamento entre as pessoas que vivem em sociedade. É verdade que
anarquia é sinônimo de guerra contra o Estado, contra a religião, contra a
autoridade, mas isso não significa que o homem também deva se rebelar contra o
que lhe pertence. Na verdade, o senso moral é uma faculdade natural. Com isso,
Kropotkin afirma da moralidade o que os tomistas chamavam de pertencimento ao
status ontológico, com clara referência a um ser transcendente. Nosso autor,
como bom anarquista, recupera e renova o sentido moral, libertando-o totalmente
dos princípios religiosos. O humano e o natural parecem ser os critérios de
avaliação de cada elemento a ser levado em consideração. Assim, Kropotkin
contornou soberbamente o problema da fundação da moralidade e, para aqueles que
lhe perguntam por que certos princípios ainda devem ser obedecidos, ele
responde invocando a natureza. Este não é um esforço pequeno. Num clima como o
da segunda metade do século XIX, como escreveu o historiador britânico James
Joll, 10onde o movimento anarquista busca sua própria identidade, disputado
entre o contexto social e o indivíduo, onde em nome da anarquia se está
disposto a cometer qualquer crime contra qualquer representante da autoridade
constituída, 11 questionar e recuperar o senso moral pode parecer mais um gesto de
desafio do que um gesto esclarecedor. Ainda mais se considerarmos que Kropotkin
era um pensador totalmente imerso nos problemas de seu tempo. No entanto,
Kropotkin parece não estar interessado em tudo isso e segue seu caminho, pronto
para esclarecer, para aqueles que ainda não entenderam, que o anarquista não é
um rebelde sanguinário, mas sim alguém que quer a todo custo construir uma
ponte entre trabalhador e patrão, entre explorado e explorador, para lançar as
bases de uma sociedade igualitária. Esta nova sociedade é baseada em uma nova
moralidade que é a que estamos tentando descrever.
Para Kropotkin, um grande
obstáculo ao desenvolvimento dessa nova moralidade é colocado por padres,
juízes e autoridades. Quando estas não mais existirem, os princípios morais
perderão todo caráter de obrigação e serão considerados simples relações naturais
entre iguais. À medida que se estabelecem, uma concepção ainda mais elevada
surgirá na sociedade. A finalidade da ética é criar uma atmosfera social que
permita à maioria dos homens compreender, de maneira absolutamente habitual, os
atos que conduzem ao bem-estar de todos e à máxima felicidade de cada um.
Kropotkin pensava que a sociedade ideal seria o fruto da vigilância eterna.
Embora os instintos humanos sejam, em geral, bons, o problema fundamental da
ética é resolver a contradição entre os sentimentos que induzem o homem a
subjugar os outros para usá-los para seus próprios fins e aqueles que impelem
os seres humanos a se unirem para atingir fins comuns por meio de esforços
comuns. O primeiro apela àquela tendência fundamental que é o desejo de unidade
e simpatia mútua. Portanto, devem ser encorajados os instintos que conduzem à
solidariedade humana, ao apoio mútuo e à simpatia mútua. A humanidade poderá
assim dar mais um passo decisivo adiante.
1.
Piotr
Alexeievich Kropotkin (Moscou 1842, Dmitrov 1921) foi um revolucionário russo e
teórico do anarquismo. Nascido em uma família aristocrática, dedicou-se à
carreira militar. Durante sua estadia na Sibéria, ele contribuiu para a
exploração daquele território e adotou ideias anarquistas, influenciado por
Proudhon e Bakunin. Após a supressão da revolta polonesa em 1863, ele deixou o
exército e se dedicou à geografia, assumindo posições críticas contra o regime
czarista. Durante suas viagens pela Europa e Ásia, ele fez contato com
ativistas anarquistas. Em 1872, ele se juntou à Primeira Internacional (AIT),
onde apoiou a corrente anarquista de Bakunin contra a liderança de Marx. Quando
retornou à Rússia em 1874, foi preso por suas atividades revolucionárias; mas
conseguiu escapar para a França em 1876. Lá, participou de tentativas de
reunificação do movimento operário internacional e fundou a revista El Rebelde,
em cujas páginas defendeu as ideias anarquistas e a necessidade de torná-las
realidade por meio do uso da violência. Em 1882, ele foi preso pelas
autoridades francesas e se mudou para a Inglaterra após sua libertação em 1886.
As obras de Kropotkin incluem A Conquista do Pão (1888), Campos,
Fábricas e Oficinas (1899) e Memórias de um Revolucionário
(1906) . Esses textos definiram o comunismo libertário, a
ideologia dominante entre os anarquistas no final do século XIX e início do
século XX, que substituiu o coletivismo de Bakunin e Proudhon. O objetivo era
defender a organização coletiva de comunas autossuficientes, regidas por uma
concepção rigorosamente científica do mundo e por relações sociais baseadas no
apoio mútuo, na liberdade moral, na solidariedade e na justiça. ↩︎
2.
Isto
é apoiado em particular por: D. Guerin, Por um marxismo
libertário, Massari , Viterbo 2008. ↩︎
3.
Veja B. Mondin, Cultura, marxismo
e cristianismo, Massimo, Milão 2012. ↩︎
4.
M. Stirner, O Ego e sua
Propriedade, Adelphi, Milão 1999. ↩︎
5.
F. Nietzsche, Genealogia da Moral, Adelphi,
Milão 1977. ↩︎
6.
A. Compte, Curso de Filosofia
Positiva, La Scuola, Brescia 1987. ↩︎
7.
E.
Durkeim, As formas elementares da vida religiosa, Mimesis,
Milão 2013. ↩︎
8.
Ver
R. Aron, As etapas do pensamento sociológico, Mondadori, Milão
1989. ↩︎
9.
Ver a crítica oportuna de E.
Mounier, Il Personalismo, Ave, Roma 2004, p. 68. ↩︎
10.
Veja
J. Joll, Cem Anos de Europa: 1870-1970, Laterza, Bari
1975. ↩︎
11.
Veja
as teses defendidas por M. Stirner em sua obra mais famosa: O Ego e sua
Propriedade , cit. ↩︎
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