terça-feira, 11 de novembro de 2025

INTERCONEÇÕES E RELAÇÕES

 




Paolo Cugini

Não é possível caminhar sozinhos. Não podemos continuar na busca do sentido das coisas, no desvendamento do nome do Mistério, na indicação de novos caminhos existenciais e espirituais, sem recorrer ao que a ciência nos oferece hoje. Muitas vezes, quando falamos sobre religião, pensamos nela como algo separado de qualquer perspectiva científica. Além disso, desde o Humanismo, passando pela Era Moderna até o Iluminismo, a religião foi pensada como estando em oposição à ciência, quebrando definitivamente a harmonia criada pelo pensamento grego. Apesar de inúmeros esforços e tentativas louváveis, o clima cultural a esse respeito não mudou muito. Entretanto, navegando por algumas pesquisas em diferentes áreas do conhecimento, percebemos harmonias impressionantes, nunca antes hipotizadas, até porque caminhamos sempre individualmente, criando contrastes epistemológicos, que o contexto heurístico atual vem negando dia após dia. Foi o Papa Francisco, na encíclica Laudato si', que nos falou sobre interconexão, que nos disse que tudo está interligado. Esses são os dados que a física quântica, a astrofísica e a biologia surpreendentemente nos fornecem. Pela primeira vez na história do pensamento ocidental, dados científicos parecem confirmar as intuições do Evangelho, a necessidade intrínseca de um mundo interconectado, o que exige a necessidade de caminhar juntos. Ao mesmo tempo, porém, os mesmos dados evidenciam o desastre que uma forma de pensar caracterizada pelo individualismo tipicamente moderno, incentivada pela mentalidade competitiva neoliberal, causou no ecossistema. Quando falamos do Antropoceno, nos referimos àquele mundo criado para atender ao homem ocidental, um mundo caracterizado pela manipulação da natureza para satisfazer as próprias necessidades, pela subjugação de outras culturas, consideradas inferiores.

Nas páginas seguintes tentarei me aprofundar mais no assunto acompanhando pesquisas recentes, que têm caminhado nessa direção. No discurso que pretendo propor neste artigo, a reflexão sobre a interconexão da realidade é um passo fundamental para compreender a possibilidade de pensar de uma nova maneira tanto a teologia quanto a Igreja, não mais como bastiões que encontram sua razão de ser na defesa de valores absolutos, mas na possibilidade de se deixarem contaminar por outras culturas e teologias. Pensar o conceito de contaminação como positivo, na medida em que nos permite assimilar tudo o que há de bom que provém de caminhos externos a uma cultura específica, pode nos levar a conceber a verdade não como um monólito que deve ser defendido, mas como uma realidade dinâmica em contínua evolução, graças às possíveis contaminações. Uma discussão delicada, que vale a pena tentar delinear para abrir novos caminhos e, quem sabe, compreender a realidade de uma nova maneira, mais de acordo com a forma como ela se manifesta.

 

1.   Do Caos ao Cosmos

Como podemos descrever o caminho da cultura ocidental senão como um caminho de simplificação e endurecimento progressivo? Havia uma espécie de intuição original, que percebia a possibilidade de viver de forma pacífica organizando o universo, ordenando-o, para retirá-lo, isto é, do caos aparente. Poderíamos ler o nascimento da filosofia grega precisamente a partir desta perspectiva: a necessidade de trazer ordem ao caos aparente (Reale, 2003). Embora Heráclito tenha mostrado em seus aforismos de sabor místico, que era difícil colocar ordem em uma realidade em movimento contínuo e que escapa à possibilidade organizacional da mente, a direção tomada foi inteiramente na linha da busca de pontos fixos e esclarecedores.

Primeiramente, houve a busca de um primeiro princípio, que fosse a referência para toda a realidade, um princípio como esforço racional capaz de lançar um fundamento no mundo. Este também é um fato interessante. A cultura ocidental é estruturada com base na razão e não no sentimento, no cálculo e não na arte, no apolíneo e não no dionisíaco. São contrastes que excluem uma síntese, uma possibilidade de coexistência; contrastes que, portanto, indicam uma escolha muito específica, movida pelo instinto de sobrevivência, que evita complicações, perdas de energia e visa evidências imediatas.

O esforço para organizar a realidade produziu, ao longo do tempo, uma maneira rígida de ver o mundo. Se todo efeito tem uma causa, assim pensam os filósofos, então o centro desse processo racional não pode deixar de produzir uma série de princípios esclarecedores, cuja evidência força o pensamento a reconhecer sua validade. O princípio da não contradição está na direção do princípio da identidade: uma coisa não pode deixar de ser aquela coisa. É tudo muito simples e claro, é tudo muito lógico. Se chove significa que há nuvens e quando o sol nasce significa que a noite acabou e que todos os dias serão assim. São as conclusões deduzidas das causas, que permitem a certeza das afirmações. Há uma verdade que chega até nós através das sensações, que nos permitem abstrair da realidade ideias certas e seguras para sempre. Argumentos de natureza apodíctica estruturaram o conhecimento ocidental, seja qual for o ângulo em que se observe o fenômeno. De fato, tanto o conhecimento indutivo quanto o dedutivo fornecem o mesmo tipo de material cognitivo, ou seja, verdades necessárias para a vida.

Ao longo do tempo, a gramática, a lógica, a matemática, a dialética são as disciplinas ensinadas nas escolas, que se desenvolvem na Idade Média e que formam as primeiras gerações de estudantes universitários. Basta pensar na estruturação do Trivium e do Quadrivium primeiro por Boécio e depois por Alcuíno, para entender que tipo de cultura foi produzida na era medieval (Gilson, 1993). Aprender as regras de como observar o mundo de uma determinada maneira é essencial para aprender a se defender e se proteger da realidade.

Ordenar a realidade, dividi-la em compartimentos, determinar o que é maior e menor, importante e menos importante, levar a razão a compreender o mundo com categorias racionais pré-estabelecidas: esse é o caminho do pensamento ocidental, que há séculos aperfeiçoa uma maneira específica de se relacionar com o mundo, deixando de lado os sentimentos, promovendo caminhos de simplificação e organização. A cultura moderna produziu sistemas de pensamento tão sofisticados que acredita ter conseguido compreender toda a realidade. Ao ler essas tentativas, podemos sorrir e, ao mesmo tempo, ficarmos tristes porque percebemos a arrogância de um pensamento violento, que pretende entender o mundo, dizer em que direção ele deve ir e, sobretudo, a pretensão arrogante de defini-lo nos mínimos detalhes. O que impressiona é a audácia de um método estruturado não no desejo de conhecer o universo, mas de interpretá-lo.

Essa maneira de pensar o mundo e as coisas produz uma matéria cultural rígida, dura, estática e, ao mesmo tempo, forma pessoas rígidas, intolerantes, incapazes de aceitar pensamentos diferentes. O encontro do mundo ocidental com outras culturas pode ser lido a partir dessa perspectiva. A presunção de possuir a narrativa correta e verdadeira, fez com que todos aqueles povos que ao longo dos séculos elaboraram uma narrativa diferente, considerada menos racional e, portanto, ingênua, não à altura, caíssem no julgamento da ignorância. Esse julgamento negativo tem justificado caminhos de imposição, de violência brutal (Galeano, 2010) e, sobretudo, de destruição da cultura do outro (Todorov, 2014). O pensamento rígido é incapaz de adotar uma atitude de escuta e aceitação da verdade dos outros: é intolerante. Quando a cultura não é destruída, ela é manipulada, significa que, na sua base, não há apenas uma rejeição do mundo do outro, mas um julgamento de desprezo. Foi isso que a pesquisadora aborígene Linda Tuhiwai Smith (2021) nos descreveu recentemente sobre o que aconteceu com a narrativa cultural de seu povo. Não só não foi aceita, como até foi transformada. Os invasores tomaram posse da narrativa cultural que encontraram, modificando-a, transformando-a, em uma palavra: desfigurando-a.

Os problemas se complicam quando a narrativa forte se torna um sistema político no qual as leis têm a mesma espessura que o sistema cultural dominante. Quando, então, o sistema político forte se alia a uma religião, a mistura de poder e violência se torna imparável. Foi isso que o Ocidente pôde acompanhar durante o período do Sacro Império Romano, que, em nome de Deus, obrigou os povos a se converterem à única religião e a se prostrarem diante do único imperador, naturalmente cristão. Os processos de simplificação cultural implementados no Ocidente, por um lado, ofereceram uma segurança emocional em relação à realidade, por outro, produziram uma narrativa desrespeitosa dessa mesma realidade.

 

1.1.      Expansão

Os astrofísicos nos explicaram que o universo está muito longe de poder ser definido e compreendido com sistemas rígidos e fixos, porque está em movimento contínuo: está em expansão (Berry,1999; Hawking, 2015; Heyneman, 1993). Após a explosão inicial, de acordo com a teoria do Big Ben, o universo nunca mais parou de se expandir. Esta é a natureza da realidade: um movimento constante de expansão. Traduzido para a filosofia significa que, quem toma o caminho de desenvolver sistemas rígidos, está seguindo um caminho fadado ao fracasso. O que é rígido, num universo em expansão, quebra. Esta é a triste conclusão da história da narrativa ocidental da realidade. Seu fracasso, infelizmente, está à vista de todos. As crises repetidas do sistema econômico são o sintoma de uma interpretação equivocada, que se impôs apenas pela força, mas a força não determina a autenticidade de uma verdade. O mesmo vale para as mudanças climáticas em curso, fruto do Antropoceno (Green, 2021), daquele mundo criado à imagem e semelhança do homem ocidental que, felizmente, não é Deus. O que é rígido num universo em movimento se quebra. Esse discurso nos leva a entender que a realidade, tal como se manifesta e como a ciência a descreve, não requer um pensamento guiado pelo instinto de sobrevivência humano, que tende a consertar as coisas, a enrijecê-las para dominá-las, mas deve ir exatamente na direção oposta. É o caminho da escuta que a energia do universo nos sugere.

Caminhos de escuta, que se tornam caminhos de descoberta do desconhecido, daquilo que só podemos aprender. Nessa jornada descobrimos povos indígenas com uma visão de mundo oposta à ocidental. Embora, de fato, desde os primórdios do desenvolvimento do pensamento lógico-filosófico, o homem sempre se tenha considerado no centro de um mundo fechado, separado do resto, que ele considera estar à sua disposição, a perspectiva da cultura indígena, na qual o homem e a mulher se sentem parte do cosmos, é muito diferente (Dos Santos, 2020; Ribeiro, 2017). Diferentes visões de mundo que produzem diferentes caminhos, diferentes maneiras de estar no mundo. Quando nos sentimos parte de algo, nós o protegemos, nos importamos com isso, nos interessamos. Pelo contrário, quando a realidade é percebida como externa a nós, ela nos interessa na medida em que pode ser útil para nós. Concepções de mundo que abrem diferentes horizontes e perspectivas, que deixam uma marca profunda na história, para o bem ou para o mal. Bastaria reler as páginas da astronomia aristotélica no De Coelo ou na Física para entender como se movia Aristóteles, um dos protagonistas da formação do pensamento ocidental. Um mundo ordenado e finito, estruturado em 55 esferas, com a Terra no centro. O movimento só poderia ser esférico, porque a esfera, na mentalidade dos primeiros filósofos, é a forma mais perfeita. O universo é então finito, porque tem um centro, ou seja, o centro da Terra e, na lógica aristotélica, um corpo com um centro só pode ser finito. Um universo assim pode ser administrado pela mente humana, pode ser controlado e, acima de tudo, não gera surpresas. O homem Ocidental se considerava o centro de um universo finito com movimentos circulares perfeitos. Do caos desordenado,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        passamos para a ordem do cosmos. Como sabemos, a Igreja adotou esse modelo, que foi assimilado ao sistema teológico de Santo Tomás, que utilizou o sistema filosófico aristotélico para sistematizar, de forma clara e ordenada, os principais mistérios da revelação bíblica. Há uma necessidade de ordem que deixou sua marca no caminho da cultura ocidental, uma necessidade que moldou todas as formas de conhecimento ao longo do tempo, incluindo o conhecimento religioso. Nessa jornada do caos à ordem, a realidade foi compreendida e ordenada a partir de princípios a priori. O mundo ao redor do homem entrou no sistema concebido pelo homem e respondeu aos propósitos indicados pela cultura. Há, portanto, uma relação de poder que orienta o caminho da cultura ocidental em sua relação com um mundo que não é compreendido senão na medida em que é interpretado com base em esquemas pré-compressivos. Mais uma vez, é possível ler nessa perspectiva o sofrimento do planeta Terra, violentado por uma cultura que, antes de ouvir a realidade, a rotulou e a obrigou a se encaixar em padrões pré-definidos.

Nem todas as culturas percorreram o mesmo caminho. Permanecendo no território dos povos indígenas acima mencionados, sua visão de mundo, que não é movida pela necessidade de ordem e controle, mas pela percepção de ser parte do Todo, produziu uma maneira diferente de habitar a Terra. Um estudo recente de um grupo de antropólogos arqueólogos e pesquisadores brasileiros (Lopes, 2017), identificou, com as novas ferramentas oferecidas pela tecnologia, que no subsolo da chamada região da Pan-Amazônia, que envolve nove países, existem aproximadamente dez mil sítios arqueológicos, um indício de uma região altamente habitada, diferentemente das estimativas feitas por pesquisas anteriores, muitas vezes ditadas por razões ideológicas e políticas. A característica que permitiu aos arqueólogos identificar esses sítios é a biodiversidade. O fato surpreendente, de fato, é que a presença dos povos indígenas ao longo dos séculos, produziu a proteção e o desenvolvimento da biodiversidade no território habitado, exatamente o oposto do que ocorreu no Ocidente onde, aonde os homens chegaram, produziram não só a morte e a destruição de outras culturas, mas também a deterioração da biodiversidade local. Mais uma vez, fica claro que nossa maneira de pensar o mundo e a realidade ao nosso redor, determina um estilo de vida, uma maneira de habitar a realidade. Não se trata de contrastar culturas ou de elogiar umas e desprezar outras, mas simplesmente de destacar a diversidade de percursos culturais e as diferentes abordagens ao mundo que os rodeia. Há aqueles que se divertiram inventando sistemas, rabiscando doutrinas, forçando a realidade a se encaixar em suas próprias ruminações de mesa, e aqueles que, em vez disso, passaram tempo em contato com a natureza, tentando viver em harmonia, percebendo uma certa sacralidade nela, protegendo-a e respeitando-a. Caminhos diferentes que produziram mentalidades e sociedades diferentes.

 

1.2.      Tudo está interligado

E há outra descoberta astrofísica: os três primeiros minutos da história determinaram a composição atual do universo e toda a sua evolução subsequente. Em outras palavras, o que nos compõe e o que somos hoje, tudo o que existe, tudo o que existirá, tudo o que não existe e não existirá, foi produzido em apenas três minutos. Interessante. Essa descoberta também faz parte da relação de escuta e atenção à realidade.  A razão humana não é chamada a inventar a realidade, mas a ouvi-la. Após a explosão primordial, em apenas um centésimo de segundo o universo começou a esfriar rapidamente. Após três minutos, os primeiros núcleos de hélio começaram a se organizar e, assim, em trinta minutos, a maior parte da matéria primordial já havia sido formada. Como diz Leonardo Boff: “Nosso sistema solar e nós mesmos somos feitos de poeira cósmica antiga” (Boff-Hathaway, 2012, p. 169). Ouvindo atentamente essas teorias, que estão nos antípodas da física newtoniana, somos informados de uma unidade fundamental de todos os componentes da realidade. Somos feitos da mesma matéria e viemos de uma única origem. Não podemos tratar a realidade do mundo físico como algo estranho a nós, que pode ser descartado e manipulado conforme nossa vontade.

Essa origem comum revela outro elemento muito importante, que a física quântica nos deu: o holismo quântico. O universo-máquina de Newton e Descartes deu lugar a uma visão muito mais complexa e misteriosa do mundo. Esses poucos dados que estou mostrando nos dizem que a matéria não é uma realidade fixa e estática, como nos ensinaram, também pelas razões vistas acima, mas uma realidade dinâmica. Como nos lembrou o físico inglês David Peat:

A física nos diz que uma pedra é composta por um vasto número de átomos e que esses átomos conspiram e se envolvem em uma grande dança que se manifesta coletivamente na forma da pedra. A pedra é pura dança. Sua qualidade de pedra, de inércia, entre outras, é a manifestação de movimento e fluxo constantes (Peat, 1991, p.80).

 Adotar essa abordagem fascinante e revolucionária significa abandonar para sempre a visão de um universo finito e estático, para pensar sobre nossa relação com o mundo de uma maneira nova e mais dinâmica. Entrar em sintonia com o universo significa abandonar uma mentalidade estática e abraçar uma visão que nos vê dentro de um processo dinâmico - embora lento - e criativo. Estamos saindo de um individualismo exacerbado produzido pela cultura ocidental, que nos faz perceber o mundo como externo a nós e hostil, enquanto os dados científicos atuais nos dizem que somos parte de um todo, feito da mesma matéria primordial e proveniente da mesma origem. Esses dados simples já nos revelam os danos que uma forma abstrata de pensar produziu na mentalidade ocidental, que produziu caminhos de desigualdade entre homens e mulheres, entre pessoas de origens diferentes considerando, portanto, todo tipo de diversidade como problemática, muitas vezes fonte de conflito. Somos todos irmãos e irmãs, feitos da mesma matéria, vindos de poeira cósmica antiga. Pode parecer um discurso materialista apenas para aqueles que ainda estão prisioneiros da visão newtoniana da realidade, a ponto de ver o mundo dividido entre matéria e espírito, típico do dualismo cartesiano, e de considerar a matéria como inanimada e estática.

Entrar em uma visão não mecanicista da realidade também significa aprender a não contrastar a mente com a matéria, porque a mente não é mais considerada uma intrusa acidental no mundo da matéria. Como argumentou Kenneth Earl Wilber, um dos fundadores do pensamento integral:

Começamos a suspeitar que devemos aclamar a mente como a criadora e governante da matéria. Certamente não nos referimos às mentes individuais, mas à mente na qual os átomos que constituem nossas mentes surgiram como pensamentos (Wilber, 1985, p. 51).

É significativo notar como algumas tradições místicas produziram ao longo dos séculos uma visão cosmológica alinhada ao que Wilber afirma. Poder-se-ia dizer, forçando um pouco a questão, que o misticismo, justamente por sua característica específica de relação com a alma do cosmos, antecipou os dados que a astrofísica nos dá hoje, quando afirma que a realidade física deve ser considerada como uma projeção da consciência (Spangler, 1996). É como se a realidade fosse chamada à existência pela consciência. Segundo Spangler: “A mente não está acima da matéria e vice-versa. Mente e matéria se moldam e se influenciam mutuamente em uma dança universal que cria e destrói formas e tendências” (Spangler, 1996, p. 59) É interessante notar que, acompanhando os estudos da física e da astrofísica recentes, os discursos da metafísica são abandonados, e a reflexão sobre a estrutura da realidade é trazida do "céu" para a terra, naquele espaço onde é possível observar a realidade e não precedê-la de preconceitos abstratos.

Enquanto a cosmologia mecânica antiga era determinística e entendia o evento na grade conceitual de causa e efeito, no modelo holográfico a unidade do mundo mental e material assume sua importância: os sincronismos ocorrem quando a mente funciona dentro de seus próprios parâmetros e seu potencial criativo é realizado. Lentamente, a física quântica nos leva a uma visão holística do mundo, que nos ensina que o todo não pode ser reduzido à soma de suas partes. Segundo esse pensamento, um ser vivo, como tal, deve ser sempre considerado como uma unidade-totalidade complexa, não redutível a uma simples reunião de suas partes constituintes. Segundo Peat, quando argumentamos que: “tudo é causado por tudo, estamos sugerindo que os vários fenômenos no universo surgem do fluxo total e isso, talvez, possa ser mais bem descrito como a lei de tudo” Peat, 1991, p. 87). Embora a causalidade linear funcione bem em sistemas mecânicos limitados, algo mais sutil e complexo é necessário para descrever a riqueza e a fertilidade da natureza. Refletindo sobre esses aspectos, o teólogo brasileiro Leonardo Boff argumenta que: “num contexto holístico, os indivíduos são chamados a atingir seu próprio potencial e a se relacionar criativamente com a realidade” (Boff-Hathaway, 2012, p. 275). Para aqueles que desejam desenvolver um potencial criativo dentro do fluxo do universo, o ponto crucial não é ser capaz de dominá-lo e controlá-lo, mas ter intenções corretas e agir apropriadamente no momento certo.

1.3.      Rumo ao Holismo Quântico

O microcosmo quântico é onde o mundo dos objetos se dissolve em um mundo de processos e relacionamentos. O físico Harry Tap escreveu que “uma partícula elementar não é uma entidade que pode existir independentemente” (cf. Boff-Hathaway, 2012, p. 254). Segundo Tap, o átomo é descrito como uma rede de relações na qual nenhuma parte pode existir sozinha; cada parte extrai seu significado e existência do lugar que ocupa no todo. Alguns estudiosos argumentam que a teoria quântica implica que, quando medimos com base em um atributo de uma partícula, necessariamente recorremos a qualquer outro atributo que interaja com a partícula observada. Devido às interações anteriores, as conexões entre as partículas não transcendem apenas o espaço, mas também o tempo. Em vez de ser guiado por relações de causa e efeito, o mundo quântico parece ser governado pela probabilidade. A física quântica nos revela um verdadeiro holismo, em que o todo é maior que a soma das partes e onde as partes manifestam o todo. A nova maneira de entender a realidade é a de um universo profundamente relacional e, portanto, ecológico. Tudo, em todos os níveis, está conectado a tudo. A consciência também parece ser algo imanente no cosmos e, portanto, os humanos não conseguem se ver como entidades separadas do mundo ao seu redor. Somos desafiados a adotar essa nova, mas antiga maneira de entender e viver essas interconexões conscientemente em nossa vida diária.

Tudo o que vemos é gerado pela interação entre fótons e nossas retinas, de modo que podemos dizer que o mundo subatômico é provavelmente misterioso demais para ter um impacto direto em nossa percepção da realidade. A Cosmovisão do mundo quântico se infiltra em nossa consciência, infundindo-nos uma sensibilidade implícita de que nossas percepções da realidade sólida surgem da troca de tendências efervescentes de energia e da interação destas com a mente (Boff-Hathaway, 2012, p. 256).

 Segundo O’Murchu (1997), a Terra pode ser entendida como um sistema vivo e o próprio universo pode ser entendido dessa maneira. Os sistemas vivos são essencialmente dinâmicos, ou seja, não são estáticos (como os sistemas modernos), eles crescem, se transformam e se adaptam. O mundo quântico nos revela quão profundamente relacional é a natureza. Cada partícula está interligada com as outras e, dessa forma, não podemos considerar uma única partícula isolada das demais: é isso que a física quântica nos ensina. Tudo está interligado e, em um cosmos onde tudo está relacionado, só podemos entender uma parte em relação às outras. Essa interconexão também se aplica ao relacionamento entre objeto e observador, de modo que o observador não pode ser separado do observado. Boff ressalta (Boff-Hathaway, 2012, p. 277s) que esse aspecto do holismo do mundo quântico se assemelha à ideia de complementaridade do yin e yang do taoísmo ou do jemal e jelal do sufismo, em que a tensão de supostos opostos cria uma unidade dinâmica. Mais uma vez, há uma espiritualidade mística que se desenvolveu ao longo dos séculos em diferentes cantos do planeta, que captou o que a física quântica nos deu: tudo está interligado. Dessa perspectiva, pode-se dizer que o mundo da matéria morta e o determinismo cego da mecânica newtoniana, desapareceram para sempre. Há um profundo mistério que vê a mente e a matéria interconectadas. Segundo Boff, não é exagero argumentar que a própria consciência surge do mundo quântico (Boff-Hathaway, 2012, p. 278).

Se tudo está interligado com todo o resto, significa que os relacionamentos são a marca registrada da vida no universo. Não podemos nos ignorar e não podemos fechar os olhos para outros mundos. É exatamente o oposto do caminho traçado pela cultura ocidental. Precisamos retornar ou, melhor ainda, aprimorar aqueles caminhos que sempre capturaram a dimensão holística da realidade. A interconexão revela que cada parte do cosmos só pode ser entendida em relação às outras partes. Qualquer forma de encerramento é prejudicial ao desenvolvimento do conhecimento da realidade. Isto também se aplica à sociedade. Não é mais possível trabalhar com fatores compartimentados. O problema da desigualdade social não pode ser resolvido como se fosse um problema limitado a uma área específica do planeta, ou a alguns países. A desigualdade social coloca em questão o modelo econômico vigente e a exploração exacerbada dos recursos naturais. As mudanças climáticas em curso estão interligadas ao modelo econômico adotado pelo Ocidente, que deriva de uma forma específica de pensar e se relacionar com o mundo, que tem suas raízes na filosofia grega e que se desenvolveu na era moderna. Há uma política que atende aos interesses econômicos das grandes multinacionais e aos interesses dos super-ricos do planeta, que não têm muitos escrúpulos em explorar a natureza para atingir seus objetivos. Não é coincidência que a fonte do negacionismo das mudanças climáticas venha justamente daqueles que têm fortes interesses econômicos. A visão holística do universo está nos ensinando que não é possível lidar com as mudanças climáticas simplesmente plantando plantas, mas sim trabalhando em rede e envolvendo o maior número de entidades.

É interessante notar que, alguns filósofos, já intuíam esse aspecto de um mundo interconectado. Entre eles está o filósofo anarquista Piotr Kropotkin, que afirmou que: “Antigamente, a ciência estudava grandes resultados e grandes somas; hoje ela estuda sobretudo o infinitamente pequeno, os indivíduos que constituem as individualidades ao mesmo tempo que sua íntima agregação” (Kropotkin, 1994, p.87).

Trata-se, portanto, de uma nova orientação que não percebe mais o objeto como uma totalidade, mas como composto de elementos particulares que interagem. É uma forma de ver que não se limita à superfície, mas invade todos os campos do conhecimento humano. Kropotkin analisa essa evolução primeiro na astronomia, depois nas ciências físicas, nas ciências que tratam da vida orgânica, na psicologia, na história, na jurisprudência, na economia política e, finalmente, na filosofia. O homem é como um resultado em constante mudança de todas as diferentes faculdades, que estão ligadas umas às outras de tal forma que cada uma reage sobre a outra enquanto vive sua própria vida. Kropotkin pensava que a sociedade ideal seria o resultado da atenção mútua entre os seres vivos, atenção que poderia ser observada nos animais. Portanto, devem ser encorajados os instintos que conduzem à solidariedade humana, ao apoio mútuo e à simpatia mútua. A ajuda mútua está presente em todos os animais, com pouquíssimas exceções (Kropotkin, 2020). Todos os animais ajudam uns aos outros, porque é uma lei da natureza e um fator determinante na evolução. Os mais aptos ou adequados, portanto, não são os fisicamente mais fortes, mas aqueles que aprendem a se unir de tal maneira a apoiar uns aos outros, tanto os fortes quanto os fracos, pela vida da comunidade.

É interessante notar a harmonia de pensamento que pode ser percebida ao folhear as páginas de filósofos e cientistas, que elaboram um pensamento a partir da escuta da realidade. Ao ler estas páginas, podemos perceber quanto mal causamos a nós mesmos nos últimos séculos. Cada vez que construímos sistemas autônomos de pensamento com a pretensão de serem abrangentes, demos um passo na direção do conflito, da agressão àqueles que não se sentiam representados por uma narrativa uniforme. Nessa altura podemos nos perguntar: o que significa a intuição de que tudo está interligado e que implicações culturais, sociais e até religiosas ela pode ter?

 

2.   Rumo a uma teologia contaminada

Se tudo está interligado, significa, do ponto de vista cultural, que tudo pode ser contaminado. Não há mundos para defender, sistemas para construir, muros para erguer. Tudo está interligado com tudo o mais, o que significa que todos precisamos de todos, porque a interconexão é a matriz existencial, cultural e biológica da realidade. Neste parágrafo utilizo o termo contaminação no seu sentido positivo, ou seja, como portador de novos significados, que vale a pena acolher e, ao mesmo tempo, comunicar (Andreoli, 2022; Proietti, 2004; Xaeth, 2020). No novo contexto cultural, definido como pós-moderno ou pós-secularizado, ou mesmo pós-cristão e pós-teísta, que vem ganhando espaço no Ocidente a um ritmo vertiginoso há décadas, as estruturas rígidas estão destinadas a ser suplantadas. Uma estrutura cultural é rígida quando considera imutáveis ​​os princípios em que se baseia e os defende contra qualquer possível contaminação. Estruturas culturais rígidas foram formadas em uma época em que a vida presente era pensada como subsistindo em princípios metafísicos, situada em um mundo e em um tempo além da realidade temporal e, precisamente por essa razão, capaz de durar para sempre. Foi a estrutura metafísica da realidade que ofereceu significados existenciais para gerações inteiras. Existe toda uma arte, filosofia, política e religião que descreve esse estilo de vida baseado em valores metafísicos eternos. A velocidade das mudanças em curso, elemento característico do quadro cultural atual (Bauman, 2021), exige ao mesmo tempo a capacidade de questionar-se e de colocar as próprias ideias sobre a mesa e, em segundo lugar, a disponibilidade para dialogar, para comparar rapidamente. As estruturas sistemáticas e dogmáticas do pensamento, tão significativas nos períodos medieval e moderno, não funcionam mais, justamente porque não permitem a necessária modificabilidade exigida pelas estruturas do pensamento pós-moderno. É preciso muito mais do que isso.

O contexto atual, portanto, não permite que ninguém durma no sofá do hábito, do "sempre foi assim".  Buscam-se referências existenciais pela qualidade de vida que podem oferecer e, portanto, num nível quantitativo e não qualitativo. O que importa é o que é bom e eficiente no imediato, em vez de focar em significados eternos, aqueles que duram – ou parecem durar – para sempre. É, portanto, precisamente este aspecto do “para sempre” que entrou em crise e está a ser substituído pelo bem imediato. Precisamos estar em alertas, atentos e rápidos para entender as mudanças que estão ocorrendo, as novidades do momento. O que perdura no tempo é o que se adapta à mudança, o que sabe captar as harmonias com seus próprios paradigmas culturais e não aquele que se julga munido de estruturas metafísicas eternas e imutáveis. Essa realidade contaminada se torna viável, porque ela está disposta a crescer colocando à disposição suas habilidades e pontos fortes. As realidades que permanecem no mercado da vida são aquelas que compreenderam que a possibilidade de crescer e melhorar não está em defender com unhas e dentes o próprio patrimônio cultural de valores, mas em colocá-lo à disposição e em deixar-se contaminar pelos outros mundos que o cercam.

Essa primeira tomada de consciência nos leva a entender que não apenas estamos imersos em um contexto de rede – já sabíamos disso – mas que todo organismo tem a possibilidade de viver ou sobreviver aprendendo a acolher em si elementos dos mundos que encontra. Não há chance de sobrevivência para aquela cultura que pretende salvar sua suposta pureza. Pode sobreviver, sem dúvida, mas como uma relíquia do passado, uma relíquia histórica de um museu, sem possibilidade de ter qualquer impacto no presente. Também porque, uma característica específica da pós-modernidade, é a vida no presente como única dimensão em que há possibilidade de existência (Bauman, 2021). Se a característica do pensamento medieval, por um lado, e do pensamento moderno, por outro, com significados diferentes, consistia em sacrificar o presente por uma perspectiva positiva de futuro, a percepção do tempo na consciência do mundo interconectado é diametralmente oposta. Ninguém mais está disposto a sacrificar nada em prol de um futuro que não é mais considerado uma perspectiva existencial positiva. Só temos este mundo e esta vida à disposição e, consequentemente, só vale a pena o esforço que melhora qualitativa e quantitativamente o presente: o resto é tempo perdido.

2.1.      Princípios epistemológicos do processo de contaminação

Para adentrar significativamente neste novo paradigma cultural, são necessários alguns requisitos fundamentais, que poderíamos definir como princípios epistemológicos. O primeiro consiste na vontade de reconhecer como válidos e positivos alguns elementos do mundo que encontramos. Isso envolve perceber que, nosso mundo, não detém os direitos autorais da verdade e, ao mesmo tempo, que há bem e verdade nos mundos que encontramos. Do ponto de vista cristão, essa exigência se traduz na consciência de que o Espírito Santo atua em toda parte, não apenas na Igreja Católica. O Concílio Vaticano II nos lembrou disso quando afirmou que, as sementes da Palavra, estão disseminadas em todas as religiões e que todos aqueles que conduzem seus fiéis a uma experiência de amor dizem algo sobre a mensagem central do Evangelho. Justino, no século II, foi o primeiro a usar a imagem das sementes do Verbo, referindo-se não tanto às religiões, mas às culturas, às filosofias, a todos aqueles que, antes e depois de Cristo, trabalharam em favor do bem, da justiça e do amor, independentemente de pertencerem à Igreja ou conhecerem o Evangelho (Justino, 1995). Há tanto amor, tanta justiça, tanto bem no mundo, em tantos contextos, que não são controlados pela Igreja: graças a Deus. Há o Espírito Santo que age em todo lugar, que está sempre trabalhando para construir um mundo de amor, justiça e paz.

A segunda exigência, que é uma espécie de corolário da primeira, embora mais complexa e problemática, consiste na possibilidade de dar espaço à bondade, à positividade do mundo encontrado, a ponto de assimilá-lo e permitir uma mudança produzida por um elemento externo. Em outras palavras, é o processo de contaminação que exige a disposição de realizar essa operação. Assimilar um material que vem de fora significa não apenas reconhecer sua bondade, mas também perceber a possibilidade de novidade e melhoria para quem o acolhe. Contaminação, nessa perspectiva, significa disponibilidade para mudar, para se deixar modificar e, ao mesmo tempo, consciência de ter entrado em um processo capaz de modificar também a estrutura da qual se recebeu a contribuição. O processo de contaminação, em outras palavras, nunca é unívoco, em uma única direção: ele muda mudando. Ela se deixa contaminar por aquela estrutura que entendeu ser a única possibilidade de permanecer positivamente no plano da história presente. Deve-se acrescentar, no entanto, que o processo de contaminação muitas vezes ocorre independentemente da consciência subjetiva ou comunitária. Isso significa que é impossível ter controle sobre toda a realidade, especialmente quando uma pessoa e uma comunidade estão em uma jornada de mudança de perspectiva, de percepção da complexidade da realidade.

O processo de contaminação de quem aceita o desafio revela outro fato importante: há uma identidade que não é dada pela defesa de seus próprios redutos de valores, mas que se define progressivamente ao longo do tempo e está em contínua mutação. Para compreender esse aspecto, precisamos nos distanciar do conceito de identidade desenvolvido na era moderna (Taylor, 1993), que a identifica com modelos pré-estabelecidos que devem ser alcançados e salvaguardados. A ideia de contaminação convida a estrutura cultural a permanecer aberta, porque seu significado profundo não reside tanto nos valores herdados, mas na disposição de deixá-los ser modificados pelo que encontra. Existe a possibilidade de uma vida boa chegar até nós na medida em que estamos dispostos a acolhê-la e a nos permitir ser modificados por ela e, ao mesmo tempo, modificar os mundos que encontramos. O conceito de contaminação revela a ideia de um mundo em contínua mudança, em contínua transformação, que acompanha, em certo sentido, a expansão do universo. A identidade forte, nessa perspectiva contaminada, não está mais na defesa extrema de valores inegociáveis, mas em torná-los disponíveis. Essa estrutura é forte enquanto se deixa contaminar, e que, dessa forma, é ela própria um fator contaminante.

Metafísica da relação

 


Adriano Fabris

 

Tradução do Italiano: Paolo Cugini

 

Sumário: 1. Metafísica. 2. Sentido e explicação. 3. Relação. 4. Universalidade. 5. A ética da relação como metafísica.

1. Metafísica

Se a metafísica é o conhecimento, ou melhor, a experiência daquilo que está além do mundo cotidiano, e se na metafísica essa experiência deve, contudo, manter a diferença entre o que está além deste mundo e o próprio mundo, sem que, com isso, se elimine a relação constitutiva entre os dois níveis, então a elaboração da questão do sentido pode ser um modo adequado, hoje, de fazer metafísica.

Se a perspectiva do niilismo, entendida como predominância de uma atitude de indiferença, permanece como um desafio para o pensamento contemporâneo, e se é verdade que o surgimento do niilismo, desde o seu início, representa uma afirmação explícita do fim da metafísica, então recuperar a questão do sentido, e a possibilidade de dar a ela novas respostas, pode ser o caminho a seguir para contrastar posturas de pensamento excessivamente presentes na mentalidade comum. Por isso, neste contexto, e para desenvolver o tema do nosso congresso, pretendo antes de tudo retomar a questão do sentido.

2. Sentido e Explicação

Mas o que quero dizer com essa palavra? O que significa “sentido”? “Sentido” significa princípio de orientação, horizonte de referência a partir do qual o ser humano é capaz de agir e pensar. A dinâmica do sentido não pode, de fato, ser identificada com a da explicação. A explicação oferece os motivos, as causas pelas quais algo é o que é, e permite gerenciar instrumentalmente nossas relações com as coisas e com outros seres humanos. O sentido, por sua vez, fornece uma motivação, é capaz de envolver na adoção de certos comportamentos, na tomada de escolhas específicas.

O sentido, mais precisamente, tem uma espessura ética ineludível. A explicação busca sobretudo conhecer e controlar o mundo. É, aliás, um mundo que, em sua ordem bem definida, pode também nos ser indiferente, e, portanto, suscitar em nós justamente uma questão de sentido. A dimensão do sentido se contrapõe, com seu poder de envolvimento, à esfera da indiferença. Eis porque a referência ao sentido pode ser considerada um verdadeiro antídoto ao niilismo.

Mas, para desempenhar essa função, aquilo que dá sentido deve transcender o que o recebe, e assim interagir com ele. A explicação, por outro lado, explicita, desvenda, elimina as dobras, coloca tudo no mesmo nível. No caso da explicação, não há diferença de nível entre quem explica e o que é explicado. Não é assim no caso do sentido. Aquilo que orienta e motiva deve transcender aquilo que, justamente em relação a ele, se torna sensato: caso contrário, não pode exercer sua função. Eis porque a relação de sentido é uma relação de transcendência. Eis porque o problema do sentido é um problema metafísico.

3. Relação

Devemos, porém, compreender bem como funciona a dinâmica do sentido. Precisamos entendê-la para oferecer, como disse, um verdadeiro antídoto ao niilismo. Devemos, sobretudo, evitar aqueles erros que podem nos fazer cair novamente em uma dimensão de indiferença.

Para isso, é preciso ter em mente, e destacar constantemente, que a dinâmica do sentido é uma dinâmica de relação. O sentido, para ser tal, não pode ser isolado, concebido como autossuficiente, considerado apenas como objeto de contemplação. Não é desse modo que se realiza a transcendência do sentido: pois, se fosse assim, o sentido não seria capaz de envolver, de orientar realmente. Ele deve ser pensado e vivido em um contexto relacional.

Mas — atenção — trata-se de uma relação em que os termos conectados não anulam, nessa conexão, sua diferença. Ao contrário: é justamente na relação que os envolve que essa diferença é posta em prática, compreendida e levada à maturação. Sem, contudo, transformar-se em contraposição exclusiva e excludente.

A relação, em outros termos, não é realizada posteriormente, arbitrariamente, por algum sujeito que seja capaz, antes de tudo e de modo isolado, de afirmar a si mesmo. Não se parte de algo individual para, depois, talvez, conectá-lo a outros indivíduos. Pelo contrário: para captar a relação adequadamente, para pensá-la de modo sensato, devemos colocá-la como princípio. Mais ainda. Devemos pensar o princípio, o princípio motivador, como algo que é e que se faz enquanto relação. Só assim somos capazes de evitar a insensatez que permeia tanto o mecanismo da explicação quanto o exercício de uma vontade entendida como puro e simples arbítrio.

4. Universalidade

Por sua vez, o princípio da relação não é algo que pode ser simplesmente fixado, com o objetivo de ser contemplado ou teorizado. Se se quer que ele dê sentido e, ao fazê-lo, reafirme sua função metafísica de antídoto ao niilismo, deve ser considerado, sempre, em sua dinâmica relacional. Mas em que consiste propriamente, e de modo concreto, a realização dinâmica dessa relação? Consiste em reafirmar a si mesma justamente ao ser posta em prática. Consiste em um processo de extensão, em uma ampliação progressiva de sua própria atuação. Em outras palavras, a relação assim entendida envolve produzindo outras relações. Sua dinâmica produz universalidade.

Mas a universalidade de que falo deve ser corretamente entendida. Ela também não pode ser fixada e transformada em mero objeto de contemplação. Há, de fato, uma inquietação que atravessa a própria teoria e que a impulsiona a ir além de si mesma. Tal inquietação é devida ao movimento da relação em que estamos envolvidos e que a ética, ao elaborar a questão do sentido, é chamada a expressar e realizar.

Novamente: não estamos lidando aqui com um princípio que, em sua universalidade, se opõe ao particular para, depois, ser aplicado ao próprio particular. Pelo contrário. Na medida em que se trata de uma relação capaz de envolver, capaz de se expandir universalmente, ela se realiza justamente através daqueles elementos particulares que, no presente concreto em que vivemos, estão, de fato, em relação. É, portanto, desse modo de pensar a relação entre universal e particular que devemos partir, entre outras coisas, se quisermos compreender adequadamente a relação entre ética geral e éticas especiais.

Em uma palavra, a universalidade do princípio universal pode ser definida, de forma mais precisa, como universalizabilidade: como potencial de compartilhamento, como crescimento de um espaço comum, como dinâmica de difusão e de acréscimo do elemento particular que experimenta seu sempre já ser.

envolvido em relações sensatas com outros elementos particulares. Mas essas relações só fazem sentido porque remetem a uma orientação preliminar, a uma relação fundadora com aquilo que transcende o âmbito do cotidiano. A universalidade como universalizabilidade é, portanto, o modo pelo qual, ao se difundirem as relações que envolvem os elementos particulares, se coloca em prática e se experimenta a fidelidade ao próprio princípio da relação.

5. A ética da relação como metafísica

Nessa concretização, nessa experiência que podemos realizar, é convocada a responsabilidade de cada um. Cada um, ou seja, é colocado diante da escolha de ser ou não fiel ao princípio da relação que o caracteriza em seu ser. Com o surgimento dessa escolha, com a abertura de uma dimensão de liberdade, desdobra-se – justamente em referência ao princípio da relação, à sua efetivação dinâmica, à sua capacidade de dar sentido contrastando o niilismo, à sua difusão universal – o espaço da ética.

A ética, entendida como disciplina específica da filosofia, faz exatamente isso: estuda e realiza as formas da boa relação. A fórmula que expressa o caráter específico da ética, enquanto (repito) disciplina filosófica, é a fórmula em que se manifesta a condição de uma boa relação. O exercício de um comportamento ético é, de fato, sinal de uma abertura, é a concretização de uma dinâmica de abertura. A definição desse comportamento permite estabelecer da maneira mais precisa, no plano dos conteúdos, o que pode ser propriamente definido como ético e o que não pode. Eis, portanto, a fórmula: se o termo “ética” indica um campo de relações e pretende promover relações que possam ser definidas como boas, envolventes, então especificamente ética é aquela relação que resulta fecunda de outras relações, as quais podem se estender potencialmente ao infinito.

A relação ética, em outras palavras, atua como difusora de si mesma. Por isso é capaz de envolver. E somente assim realiza o universal. Mas o faz não instituindo-o, mas sim confirmando, nesse seu agir, a dinâmica relacional na qual estamos sempre envolvidos. Faz isso remetendo a uma dimensão ulterior, que sozinha pode dar sentido a esse agir. Realiza, assim, a referência à metafísica. Eis, em suma, de que modo a ética da relação aqui apresentada se configura como um modo, e um modo privilegiado, de realizar e de reconfirmar aquela estrutura metafísica que pertence a todo ser humano.

Pontos principais da metafísica relacional e seus autores

 




 

 

(Paolo Cugini, org.)

A metafísica relacional é uma corrente filosófica que considera a relação como elemento fundamental da realidade. Diferentemente das abordagens substancialistas, que enfatizam o indivíduo ou a substância como entidade primária, a metafísica relacional sustenta que as relações antecedem ou constituem a própria realidade dos entes. Nessa perspectiva, existir significa ser-em-relação.

Pontos principais da metafísica relacional

Primazia da relação sobre o indivíduo: “Não há ser senão em relação.” (Emanuele Severino)

Ontologia da relação: A realidade é constituída por redes de interconexões, e a identidade de cada ente deriva da sua conexão com os outros. (Paul F. Natorp: “O ser é ser-relação.”)

Superação da dicotomia sujeito-objeto: A relação não é apenas um vínculo entre dois entes, mas a estrutura originária que os constitui e os torna compreensíveis. (Gabriel Marcel: “Ser significa ser com.”)

Interdependência e processualidade: Os entes são processos em constante transformação, seu ser muda conforme as relações. (Alfred North Whitehead: “O processo é o princípio último da realidade.”)

Constitutividade da alteridade: O outro não é apenas o termo da relação, mas condição da minha identidade. (Martin Buber: “O homem torna-se eu apenas através do tu.”)

 

Principais autores da metafísica relacional

Alfred North Whitehead (1861–1947): Fundador da “filosofia do processo”, vê a realidade como um conjunto de eventos relacionais, onde o “tornar-se” é mais fundamental do que o “ser”. “A realidade é em todos os seus pontos processual e relacional.” (Process and Reality, 1929)

Martin Buber (1878–1965): Em sua obra-prima Eu e Tu, afirma que a vida autêntica ocorre apenas no diálogo e na reciprocidade. “Toda vida verdadeira é encontro.” (Ich und Du, 1923)

Gabriel Marcel (1889–1973): Filósofo francês do existencialismo cristão, para quem a relação é princípio ontológico. “O ser se dá como participação.” (Le mystère de l’être, 1951)

Paul F. Natorp (1854–1924): Apresenta uma metafísica da relação em seu pensamento neokantiano, destacando o entrelaçamento constitutivo entre sujeito e realidade. “A realidade está no seu ser-relação.” (Philosophie und Pädagogik, 1907)

Emanuele Severino (1929–2020): Em seus estudos sobre o ser, afirma que a relação é condição do próprio ser. “A relação não é entre seres, mas é o ser dos seres.” (Oltre il linguaggio, 1992)

 

Citações significativas

Whitehead: “A realidade é o processo das suas relações.”

Buber: “O mundo se realiza no diálogo.”

Marcel: “Não posso ser sem o outro.”

Severino: “Ser-relação é a verdade originária.”

 

A metafísica relacional representa uma mudança de paradigma: a relação deixa de ser um atributo acidental e passa a ser o princípio constitutivo da realidade. Os autores citados ofereceram diferentes formas de compreender e desenvolver essa perspectiva, que atualmente ganha nova vitalidade também nas ciências cognitivas, na filosofia da mente e na ecologia.


Ontologia relacional contemporânea

 




 

(Paolo Cugini, org.)

A ontologia relacional contemporânea tem vindo a ganhar destaque no campo da filosofia, especialmente nas últimas décadas, como uma abordagem alternativa às ontologias tradicionais centradas em substâncias ou entidades isoladas. Em vez de considerar os elementos do mundo como unidades independentes, a ontologia relacional propõe que o ser e a realidade se constituem fundamentalmente através das relações.

 

Origens e evolução histórica

A ideia de que as relações precedem as substâncias não é totalmente nova. Na filosofia clássica, Platão e Aristóteles abordaram a questão da relação, mas foi apenas com pensadores modernos, como Leibniz, Hegel e Whitehead, que as relações passaram a ocupar lugar central na compreensão do ser. No século XX, influências da física quântica, da biologia sistémica e da teoria da informação vieram reforçar a importância da relacionalidade, culminando numa abordagem ontológica que privilegia os processos e interações em detrimento das entidades fixas.

 

Fundamentos da ontologia relacional

Na ontologia relacional, o ser não é concebido como algo estático ou isolado, mas como resultado de uma rede de relações. Esta perspectiva implica que nada existe por si só, mas sim em função das suas ligações com outros elementos. Por exemplo, um átomo só é definido pelas suas interações com outros átomos; uma pessoa constrói a sua identidade a partir das relações sociais, culturais e afetivas que estabelece.

Processualidade: O ser é visto como processo dinâmico e não como substância fixa.

Dependência contextual: A existência de qualquer coisa depende do contexto relacional em que está inserida.

Emergência: Propriedades emergem das relações e não são inerentes aos elementos individuais.

 

Pensadores e correntes atuais

Entre os principais representantes da ontologia relacional contemporânea destacam-se Bruno Latour, Karen Barad e Manuel De Landa. Latour, com a Teoria do Ator-rede, propõe que tanto humanos quanto não-humanos participam em redes de ação, dissolvendo fronteiras rígidas entre natureza e sociedade. Karen Barad, inspirada pela física quântica, desenvolve a teoria do “intra-ação”, defendendo que entidades só existem na medida em que interagem. DeLanda, por sua vez, articula uma ontologia de assemblagens, onde as relações entre componentes são mais relevantes que as propriedades individuais.

Implicações filosóficas

A ontologia relacional desafia várias conceções clássicas, como o dualismo sujeito-objeto, o individualismo e o essencialismo. Ao colocar as relações no centro da realidade, obriga a repensar conceitos como identidade, causalidade e agência. Isto tem repercussões em áreas como a ética, a política, a ciência e a tecnologia, promovendo uma visão mais integrada e interdependente do mundo.

Ética relacional: A responsabilidade e o cuidado são entendidos como processos que emergem das relações, em vez de atributos individuais.

Política de redes: O poder e a influência circulam através das ligações e não apenas dos centros tradicionais de autoridade.

Ciência pós-positivista: O conhecimento é visto como resultado de práticas colaborativas e interativas, rejeitando o paradigma do observador externo.

 

Desafios e Críticas

Apesar dos avanços, a ontologia relacional enfrenta desafios significativos. Entre eles, destaca-se a dificuldade de operacionalizar relações complexas sem cair em abstrações excessivas ou perder a capacidade de análise detalhada. Alguns críticos apontam que, ao dissolver entidades em redes, corre-se o risco de negligenciar aspectos importantes da experiência individual e da agência pessoal. A articulação entre o local e o global, o singular e o coletivo, permanece um dos principais dilemas desta abordagem.

 

Aplicações interdisciplinares

O impacto da ontologia relacional pode ser observado em múltiplas disciplinas. Na sociologia, as redes sociais tornaram-se objeto central de estudo; na física, os sistemas quânticos desafiam a ideia de partículas isoladas; na biologia, a ecologia evidencia a interdependência dos seres vivos. Na tecnologia, a internet e os sistemas distribuídos ilustram como a relacionalidade redefine a comunicação e a organização.

 

A ontologia relacional contemporânea constitui uma resposta inovadora aos desafios do mundo atual, propondo uma visão dinâmica, integrada e interdependente da realidade. Embora enfrente críticas e obstáculos teóricos, o seu potencial para transformar a compreensão filosófica e prática da existência é inegável. O aprofundamento deste campo continua a ser fundamental para responder às questões emergentes numa sociedade cada vez mais conectada e complexa.

 

Metafísica Trinitária e ontologias relacionais

 

Dr Damiano Migliorini





Pensando no Filho de Deus 1700 Anos Depois de Niceia

 

Dr. Damiano Migliorini

 

 

Síntese e tradução : Paolo Cugini

 

Como devemos pensar sobre o mistério da Trindade?

Na tradição teológica clássica, um "mistério" é aquilo que está "além" da razão, mas não "contra" a razão. Isso significa que uma dada verdade de fé não é inteiramente explicável, mas, ao mesmo tempo, não parece evidentemente contraditória.

A Trindade — uma premissa indispensável para estabelecer a divindade de Cristo — no entanto, é uma verdade de fé que não parece estar meramente além da razão, mas contra ela, isto é, evidentemente contraditória.

É claro que, ao longo da história do pensamento teológico e filosófico, houve muitas tentativas de mostrar que a doutrina não é contraditória e, assim, tornar o ato de fé nela pelo menos "plausível".

Mesmo hoje, no renovado debate trinitário iniciado no âmbito da chamada "filosofia analítica da religião", não faltam explicações.

 

O Sintoma

Obviamente, não é possível analisar cada um desses relatos aqui, mostrando suas fragilidades.

Basta lembrar que a presença de um grande número de posições — cada uma das quais acusa as outras de serem inadequadas (isto é, heréticas!) em relação à riqueza do dogma — já é sintoma de um problema: parece que o chamado "problema lógico da Trindade" não pode ser resolvido.

A suspeita de que esta seja uma doutrina contraditória, portanto, ainda paira sobre nós.

 

O que fazer?

Existem três opções básicas:

(A) tentar mostrar que a doutrina não é contraditória, com alguma estratégia argumentativa ou analogia.

(B) tentar mostrar que podemos aceitar a contradição, porque nossa razão pode fazê-lo.

(C) tentar mostrar que existe uma correspondência entre a maneira como conhecemos o mundo e a maneira como conhecemos a Trindade.

 

Comparando Estratégias

A estratégia (A) é a "clássica", mas vamos supor que ela se mostrou ineficaz: ainda não temos provas de que a Trindade não seja contraditória!

A estratégia (B) pode ser atribuída a Hegel ou, hoje, àqueles que defendem o dialeteísmo. A limitação dessa posição é que ela nos força a entender a razão como a capacidade de contradição, ou a considerar lógicas não clássicas plausíveis (um ponto muito debatido).

Tentarei então mostrar por que (C) pode ser o melhor caminho (que também incorpora, mas de forma diferente, B).

As Pessoas Divinas como Relações Subsistentes

Para chegar a (C), no entanto, é necessária uma premissa adicional. Entre as várias tentativas de "explicar" a Trindade, como bem sabemos, encontramos a de Tomás de Aquino (que opera com base em uma tradição que remonta também a Agostinho) fundamentada na noção de relações subsistentes.

De acordo com essa abordagem, as pessoas divinas são relações transcendentais reais. Vejamos como é possível chegar a essa conclusão.

 


Relações Reais e Transcendentais

As relações reais têm pelo menos três características:

(1) o sujeito é real e o fundamento é real no sujeito;

(2) o termo é real e distinto do sujeito;

(3) os dois extremos são da mesma ordem ontológica. As relações reais estão, portanto, em um sujeito e podem ser acidentais.

As relações transcendentais são essenciais ao sujeito, mas são, de acordo com uma certa tradição, relações impróprias. Elas servem para definir entidades, mas seus extremos são entidades racionais, não existindo realmente como entidades separadas, mas apenas como correlativos.

Relações Divinas

Tomás de Aquino afirma a existência de relações transcendentais e argumenta que elas podem ser consideradas relações porque — mesmo na ausência de veri relata — implicam uma ordem em direção a algo.

Ele então restringe o significado de relação real ao caso em que "um sujeito procede de um princípio de igual natureza" (ponto 3). Cada pessoa divina possui uma propriedade relacional, tornando-a um correlativo verdadeiramente distinto (ponto 2). Isso é suficiente para descartar a possibilidade de que as relações divinas

sejam apenas transcendentais.

 

Então, visto que "as processões divinas são idênticas em natureza, [...] as relações que delas decorrem são também necessariamente relações reais." Tomás de Aquino admite então que as relações divinas são transcendentais, porque em Deus as Pessoas são a mesma coisa (NÃO ponto 1), isto é, a substância divina (as propriedades dos correlativos são da mesma substância).

 

 


Relações Transcendentais Reais

A transformação das relações reais em transcendentais, e das transcendentais em reais, está completa: agora temos uma nova categoria, as relações transcendentais reais. Agora basta dar a esta realidade misteriosa um nome, o nome herdado: relação subsistente.

Para Tomás de Aquino, Deus é relação (no singular), mas também é relações (no plural), e certos tipos de relação. A substância divina, portanto, tem entre suas características, juntamente com seus atributos, a relacionalidade, que se expressa na geração de subsistências: a substância é relação, é uma nova entidade em relação às relações e substâncias do mundo.

Problemas

Essa posição/estratégia tomista tem sido alvo de diversas críticas, tanto por outros teólogos medievais quanto por alguns neotomistas. De fato, ela apresenta várias aporias. Mencionarei apenas algumas:

Em Deus, uma relação se torna substância: substância e relação não coexistem distintamente em Deus. Mas as duas categorias ontológicas são opostas entre si! É surpreendente que, apesar dos esforços dos autores medievais para preservar a tese aristotélica de que nenhuma relação é substancial, em pelo menos um caso ela deva ser violada.

Os conceitos de substância e relação são tão transformados que coincidem. Temos, portanto, o "mistério" de uma distinção que não é uma divisão, em cujas profundezas a contradição pode ou não ser encontrada: depende da disposição de aceitar a ideia de que a "distinção" é uma "divisão por analogia" e que a analogia, mesmo que escape ao alcance da lógica e permaneça deliberadamente ambígua, é, no entanto, um procedimento argumentativo válido.

 

Quo vadis?

Se até mesmo a explicação baseada na noção de uma relação transcendental real (ou relação subsistente) apresenta várias aporias, onde reside sua força explicativa?

Na minha opinião, reside na "convergência" que podemos observar entre a explicação da natureza trinitária de Deus e a natureza relacional do mundo.

Isso significa que a violação da metafísica aristotélica que discutimos no slide anterior é, na verdade, encontrada em todas as ontologias!

Vejamos em que termos, pois até aqui a tese não seria particularmente original.

 

Nota Metodológica

Ao longo da história da filosofia, muitos argumentaram que a relação deve ser capaz de subsistir para dar conta do dogma trinitário.

A questão que deve ser feita, de um ponto de vista ontológico, é se a relação pode subsistir. É aqui que reside a possibilidade de inovar a ontologia.

Se, de fato, não fosse racionalmente possível definir a relacionalidade subsistente, é evidente que isso tornaria a Trindade aporética.

De fato, não se pode partir da Trindade para afirmar que a relacionalidade subsistente é ontologicamente aceitável: teríamos uma subordinação completamente inaceitável da ontologia à teologia.

 

Metafísica Analítica Contemporânea

No debate analítico contemporâneo, há três posições que considero de particular interesse:

(1) antirrealismo: as relações não existem, sendo projeções da razão;

(2) reducionismo: as relações são identificadas com aspectos não relacionais dos relata;

(3) hiper-realismo: as relações são ontologicamente fundamentais, são entidades com seu próprio estatuto ontológico.

Como se pode ver, essas posições remontam àquelas formuladas ao longo da história.

 


Ontologias Relacionais

Atualmente, diversas ontologias foram desenvolvidas cuja tese fundamental é a eliminação do conceito de substância: o que existe portanto, são apenas relações.

 

Entre essas ontologias, encontramos:

- ontologia processual

- realismo estrutural ôntico

- realismo estrutural informacional

Vamos analisar pelo menos as duas primeiras.

 

Filosofia do Processo

A Filosofia do Processo é o esforço para pensar sobre "a verdade óbvia de que nosso mundo e nossas vidas são processos dinâmicos e interconectados" e a tentativa de desafiar a ideia de que o mundo "é feito de coisas que existem independentemente de tais relações".

 

Na Filosofia do Processo, tudo é dinâmico e evolutivo, mas isso não significa que as entidades estáveis ​​que encontramos no dia a dia não existam: elas existem, mas são processos duradouros e repetitivos que emergem da natureza processual-relacional da realidade.

Em Whitehead, assim como em Leibniz, o microcosmo e o macrocosmo são coordenados, conectados entre si em uma rede perfeita de processos.

 

Realismo estrutural ôntico

As principais características desta ontologia (muito recente) são:

(1) eliminativismo: não existem indivíduos, mas apenas estruturas relacionais. O REO afirma a existência de relações sem relata. As estruturas tornam-se os relata de uma rede de relações estruturais.

(2) as relações (ou fatos relacionais) não surgem das propriedades intrínsecas dos relata; em vez disso, as estruturas determinam estes últimos. Introduz-se uma forma de causalidade descendente, de cima para baixo, onde a estrutura determina os valores físicos e propriedades dos "indivíduos" que fazem parte dela (indivíduos que já não são inteiramente tais, tendo-se dissolvido na estrutura).

(3) os objetos individuais não têm uma natureza intrínseca;

(4) da não-subsistência dos objetos, decorre a subsistência ontológica da estrutura: um holismo quântico (ou monismo).

(5) Os indivíduos são funções da nossa linguagem, dispositivos pragmáticos, que não correspondem a nada real.

 

Relacionalidade Subsistente: O Fenômeno

O que tentei hipotetizar no texto é que formas de relacionalidade subsistente são encontradas em todas as ontologias. Todas as ontologias devem, de alguma forma, afirmar a existência de relações subsistentes em diferentes níveis ontológicos.

 

Alguns exemplos:

- entre essência e existência

- entre forma e matéria

- entre tropo e tropo

- entre universal e particular

Acredito que a perspectiva, a conclusão que pode ser alcançada por vários caminhos, é, portanto, clara: a relacionalidade subsistente é encontrada em muitos "fenômenos", se não constitui a estrutura da realidade. Não é, portanto, um privilégio de Deus.

 

Relacionalidade Subsistente: O Problema

Todas as ontologias devem postular relações transcendentais reais, as mesmas usadas para descrever a Trindade. Portanto, elas são ou possíveis para ambos os domínios, ou impossíveis para ambos.

 

O cerne da questão, no entanto, reside aqui: relações subsistentes são impossíveis, mas inevitáveis. O conceito de relação subsistente é antinômico, contraditório.

 

Misterioso precisamente nesse sentido.

Ontologia hiperfática?

 

Chakravartty (2012) enfatiza que uma metafísica revisionista segundo a qual as relações são ontologicamente subsistentes ainda não surgiu.

Se isso for verdade, nossas ontologias são sempre, em certa medida, ontologias negativas, ontologias apofáticas.

As ontologias relacionais (para não mencionar as relacionalistas) têm uma dimensão misteriosa inescapável.

Os elementos que colocamos na base de nossas ontologias são conceitos que postulamos, sem jamais sermos capazes de compreender plenamente sua natureza. E aqui a estratégia (c) entra em jogo novamente.

 

O Mistério do Ser e a Revelação de Deus como Trindade

A aceitação da antinomia das relações abre caminho para o mistério do ser e para uma nova reconciliação entre fé e razão, baseada no reconhecimento de limites epistemológicos comuns: tanto a teologia quanto a metafísica estão imersas no mistério daquilo que é 'contrário' à razão, não apenas daquilo que está 'além' da razão.

Essa imersão nos leva de volta ao credo quia absurdum de uma nova maneira: não cremos em um absurdo porque ele é absurdo, mas em um absurdo entre absurdos.

Parece haver uma correspondência entre o mistério teológico do Deus Trinitário e o mistério ontológico das relações.

Fé e Razão

Nossa maneira de conhecer e falar sobre Deus reflete nossa maneira de conhecer e falar sobre o mundo.

Uma metafísica que nos permita repensar a Trindade dentro de uma nova estrutura filosófica, portanto, poderia expressar o mistério do mundo (isto é, o mistério da relacionalidade) como uma contraparte do mistério trinitário.

A fé, então, não exige um salto epistemológico inaceitável, uma vez que a relacionalidade subsistente se revela como uma dimensão misteriosa, mas inevitável, de toda a existência.

 

Metafísica Trinitária

Por metafísica trinitária, entendo uma teoria que parte de uma ontologia hiper-relacional englobada em uma visão teísta-trinitária de Deus como o significado último da relacionalidade. Não uma metafísica que parte da observação de estruturas ternárias na realidade do mundo ou do ser.

A substância divina é análoga à substância do mundo, pois possui seu próprio modo de subsistência relacional. O pré-requisito para falar de relações intra-trinitárias (relações transcendentais reais) é essa profunda, ainda que aporética, doação relacional da realidade.

Mas devemos estar cientes da dimensão misteriosa de cada um dos dois reinos.

Pensando o Filho de Deus, Pensando o Mundo

Dissemos no início que para "pensar o Filho de Deus" é necessário pensar a Trindade, e que ao fazê-lo percebemos que devemos redefinir nossos limites cognitivos. Além disso, se o Filho é o logos do mundo, Deus, a razão de sua criação, não podemos nos surpreender ao encontrar uma correspondência entre a Origem e o Originado.

Pensar no Filho de Deus e pensar no mundo, portanto, são operações convergentes: conduzem ao mesmo mistério.

INTERCONEÇÕES E RELAÇÕES

  Paolo Cugini Não é possível caminhar sozinhos. Não podemos continuar na busca do sentido das coisas, no desvendamento do nome do Mistério,...