LOYOLA, São Paulo, 2006
Síntese: Paolo Cugini
Digitação: Jaciara Souza Pereira
A esperança e a estrutura dos sistemas filosóficos
Esse em
busca de uma relação que encontra sua expressão no movimento e no “ela” do
discurso: em outros temas, estou em busca de uma relação que diz respeito a
finalidade do discurso, cumprimento do desejo que o impele para frente. (pag.
102)
Essa
oposição entre o Nome e o Ídolo é a chave de uma série da história: ao Ídolo,
uma visão cosmológica. A segunda é que o tipo de história que é coerente com
uma teologia do Nome, não é, por sua vez, uma história dada, centrada em um
presente dado: é uma história dirigida para um cumprimento. Nesse sentido, a
própria história é a esperança da história; cada realização, cada cumprimento,
é compreendido como o restabelecimento de uma promessa – o “ainda não” da
promessa dá sua tensão á História.(pag. 103)
O
primeiro pensamento que a esperança suscita, desde que se aplique ao campo da
experiência humana, é, paradoxalmente, a irracionalidade da própria esperança.
(pag. 104)
A
primeira expressão dessa lógica absurda da esperança deve encontrar-se na
concepção antropológica de S. Paulo. Paulo
foi o primeiro que tentou elaborar uma interpretação existencial dos
dois acontecimentos cristológicos centrais: a Cruz e a Ressurreição. E essa
interpretação existencial é fundamentalmente antinômica: morte de homem velho,
renascimento do homem novo. Esse segundo nascimento é o acontecimento
escatológico em termos existenciais. Contudo, esse acontecimento escatológico
não se pode exprimir por meio de uma lógica da identidade. Devemos exprimi-lo
como uma ruptura, como um salto, com uma nova criação, como um totalmente
outro.
A
expressão mais chocante dessa antropologia antinômica pode achar-se no famoso
capitulo 5º da epistola aos Romanos (5, 18- 19): (pag. 104)
A
significação existencial dessa lei de superabundância é rica e complexa. Há
varias maneiras de viver segundo esse acontecimento escatológico da nova
criação. Varias maneiras: pessoal e coletiva, ética e política. Todas essas
maneiras são irredutíveis á pura sabedoria do eterno presente: trazem a marca do futuro do
“ainda não” e do “quanto mais”: nos termos de Kierkegaard, a esperança faz da
liberdade a paixão pelo possível, contra a triste meditação do irrevogável.
Essa paixão pelo possível é a resposta da esperança a todo amor nietzscheano do
destino, a toda adoração do destino, a
todo Amor fati. (pag. 105)
A critica
kantiana da teologia clássica, quer medieval quer luterana, deve ser tomada a
sério e considerada como uma contribuição positiva ao que podemos chamar de
critica da esperança nos limites da pura razão. Quero agora concluir esta
comunicação com as proposições seguintes:
- O
problema da esperança, em comparação com o da fé, é menos o problema de um
objeto especifico que o da finalidade do discurso filosófica e teológica. A
filosofia e a teologia são concernidas pela esperança na maneira com ambas
estão ligadas no ponto respectivo de do encerramento de seu horizonte.
- A
tarefa especifica da teologia, sob esse aspecto, é ligar a pregação da
esperança e da ação humana – ética e política – á pregação central da
Igreja, a do Senhor ressuscitado. Em outros termos, a teologia compreende
a esperança como a antecipação através da história da ressurreição de
todos os homens dentre os mortos.
- Enquanto
tal, a esperança é ao mesmo tempo irracional, como sendo “a despeito” da
morte e “além” do desespero, e racional, como afirmado uma lei nova, a lei
da superabundância, da superabundância do sentido sobre o não-sentido.
- O
equivalente filosófico da esperança e de sua lei da superabundância deve
encontrar-se na forma de dialética que rege a relação entre a liberdade e
a plena atualização. Enquanto a dialética hegeliana, que é uma dialética
conclusiva, é o equivalente filosófico de uma teologia especulativa
centrada no eterno Agora da verdade, a dialética kantina, que é uma
dialética não conclusiva, tem mais afinidade com uma teologia da
esperança, i.é., com uma interpretação do cristianismo para a qual a
esperança não pode ser resolvida pela gnosis e para a qual, portanto, a
esperança abre o que o conhecimento pretende fechar.
- Entre
uma filosofia da esperança e essa espécie de dialética não conclusiva há
não só uma relação de correspondência, que permanece ainda uma relação
estática, mas uma relação dinâmica que chamo de relação de aproximação.
Por aproximação entendo o esforço do pensamento para aproximar-se cada vez
mais do acontecimento escatológico que constitui o centro de uma teologia
da esperança. Graças e essa ativa aproximação da esperança pela dialética,
a filosofia sabe algo e diz algo da pregação pascal. Mas o que ela sabe e
diz permanece nos limites da pura razão. É nessa auto-restrição que se
residem ao mesmo tempo a responsabilidade e a modéstia da filosofia. (pag.
115 e 116)
Procederei
de modo seguinte. Reagruparei minhas
observações em torno de quatro proposições centrais ou teses, que tomadas em
conjunto são destinadas a definir o que eu gostaria de chamar de identidade
dinâmica.
- Minha
primeira tese é
que o tecer intriga é o paradigma de toda “síntese de heterogêneo” no
campo narrativo.
Como podem ter notado, digo “tecer da intriga”
antes que “intriga” a fim de sublinhar o caráter de processo da própria
intriga. Já na Poética de Aristóteles, todas as definições que concernem ao
mythos (quer dizer, a fábula, a história ficcional) da tragédia e da epopeia
são substantivos derivados de verbos: a fábula – a intriga – diz Aristóteles é
“o arranjo [systasis, synthesis] de acontecimentos em uma ação inteira e
complexa”. Para isso, desejo primeiro sublinhar a função de mediação da
intriga. É essa função mediadora que está subentendida no conceito de uma
“síntese do heterogêneo”. Esse conceito resumia, de fato, muitos traços
singulares que tocam o ato configuracional que faz da história contada um todo
temporal.
Ficando
perto da definição de Aristóteles do mythos da tragédia e da epopeia, podemos
dizer que a intiga, como “tecer das intriga”, serve de mediação entre os
acontecimentos ou peripéciais dispersas (ta pragmata na Poética de Aristóteles) e a
história inteira. (pag. 118)
Por
conseguinte, um acontecimento deve ser mais do que uma ocorrência singular e
deve caracterizar-se como um acontecimento por sua contribuição á progressão da
intriga. Por outro lado, uma historia deve ser mais do que uma simples
enumeração de acontecimento postos em uma ordem sucessiva: deve organizá-los em
um todo inteligível que permite a quem o deseje perguntar qual é o “tema” da
história. (pag. 119)
- Minhas
segunda tese refere-se ao estatuto epistemológico da inteligibilidade
apresentada pelo ato configuracional do tecer da intriga. Minha tese,
aqui, é que essa inteligibilidade narrativa possui mais afinidade com a
sabedoria prática, ou com o julgamento moral, que com a razão teoria. Esta tese
possui um importante corolário que diz respeito á relação entre a
narrativa contemporânea e a inteligibilidade própria ao tecer da intriga.
Vejo a narratologia como uma simulação da inteligência narrativa por meio
de um discurso de segunda ordem pertencem ao mesmo nível de racionalidade
que as outras ciências da linguagem. Essa prioridade da inteligência
narrativa sobre a narratologia como disciplina racional é o núcleo de
minha segunda tese. Antes de considerar essa dependência da narratologia
cientifica em relação á inteligência narrativa, desejo centrar-me no termo
mesmo de inteligível. Aristóteles foi o primeiro a sublinhar a capacidade
da poesia de “ensinar”, de veicular significações revestidas de uma certa
forma de universalidade. O próprio ato de configuração da intriga torna-a
típica e compreensível, apesar da singularidade de seus “heróis”
designados por nomes próprios – ou outra forma de inteligibilidade, á da
ética, que Aristóteles chamava a phronēsis. Phoronēsis diz-nos que a
felicidade é o coroamento por excelência da vida e do agir, mas ela não
nos diz como obter esse estado de fato. É a poesia que nos mostra como as
mudanças da fortuna, principalmente a virada de fortuna para infortúnio,
alimenta-se da pratica concreta. Mas mostra-nos isso sob a modalidade
hipotética da ficção. No entanto, é por nossa familiaridade com esses
tipos de tessitura da intriga que aprendemos como ligar experiência e
felicidade. (pag. 119 e 120)
- Minha
terceira tese é que o esquematismo
narrativo narrativo é por sua vez constituído por uma história que
participa de todas as características de uma tradição. Com isso não aludo
á transmissão inerte de algum depósito morto, mas á transmissão viva de
uma inovação que pode sempre ser reativada pela volta aos momentos mais
criativos da composição poética. Esse fenômeno da tradicionalidade é a
chave do funcionamento dos paradigmas narrativos e, por conseguinte, sua
identificação. A constituição de uma tradição repousa no jogo entre
inovação e sedimentação. É á sedimentação que podemos atribuir os
paradigmas que constituem a tipologia do tecer da intriga de que acima
falamos. Eles – ou antes, sua esquematização – provêm de uma história
sedimentada cuja gênese foi apagada.
A
sedimentação está em vigor em muitos níveis, que requerem que se distinga com
cuidado nosso uso do termo “paradigma”. Assim, Aristóteles desenvolve sua
análise do tecer da intriga em três níveis, que são por assim dizer,
“nivelados” na Poética. Apresenta primeiro um conceito formal da intriga, como
a concordância discordante de toda história que engloba peripécias, i. é.,
contingencias em uma ordem temporal de qualquer tipo em seguida, desenvolve o
conceito genérico da tragédia grega, especificado pela reversão da fortuna em
infortúnio, por causa de incidentes lamentáveis e terríveis pela falta trágica
de um personagem, senão distinto pela excelência e a ausência de vícios ou de
malevolência etc. Esse “gênero” mais ou menos regulou o desenvolvimento
posterior da literatura dramática no Ocidental. Em terceiro lugar, há algo de
paradigmático em obras singulares como a Ilíada ou o Édipo-Rei. Na medida em
que o laço causal supera a pura sucessão – o “um por causa do outro” – antes do
que “um depois do outro” – o arranjo das peripécias torna-se um tipo que produz
um universal. Dessa maneira, nossa tradição narrativa foi modelada não só pela
sedimentação da forma de concordância discordante, mas pela do gênero trágico
e, finalmente, pela dos tipos engendrados no nível de obras singulares tratadas
como paradigmáticas. Se admitimos como paradigmáticos a forma, os gêneros e os
tipos, obtemos uma hierarquia de paradigmas que nasceram do trabalho da
imaginação produtiva em diversos níveis.
(pag. 124)
- Quarta
tese. A identidade do texto narrativo não
se limita ao que se chama o “dentro” do texto. Como identidade dinâmica,
emerge para a interseção entre o mundo do texto e o mundo do leitor. É
nesse ato de leitura que a capacidade que tem a intriga de transfigurar a
experiência é atualizada. O ato de leitura pode desempenhar esse papel
porque seu dinamismo próprio enxerta-se no do ato configuracional e conduz
a seu acabamento.
Há três
etapas nesta quarta tese. Primeiro, fala de uma “interseção” entre dois tipos
de mundos. Por mundo de texto, entende o mundo apresentado pela ficção diante
dela mesma, por assim dizer, como o horizonte da experiência possível no qual a
obra desloca seus leitores. Por mundo do leito, entendo o mundo efetivo em que
a ação real se desvela. É um mundo no sentido em que a ação se produz no meio
de circunstancia que, como o termo sugere, “rodeiam” a ação; ou, para utilizar
a expressão de Hannah Arendt na Condição humana, a ação passa-se em uma “rede
de relações” no meio das quais o agente é desvelado em palavras e ações. É o
desvelamento de quem é o atuante”, que implica um mundo como o horizonte das
circunstâncias e das interações que constituem a rede próxima de relações de
cada agente. Para a crítica literária, o mundo da ação é o “fora” do texto,
como esposto ao “dentro” do texto. Enquanto “fora” do texto, é estranho a seu
mundo de investigação. Minha opinião é que essa distinção não dialética entre “
dentro” e “fora” não é óbvia, mas resulta da extrapolação de traços que convêm
ás entidades inferiores á frase, como as palavras, lexemas e fonemas, ás obras
do discurso – isto é, a expressões verbais de tamanho da frase ou mais longas
que ela. É para a linguística, como ciência dessas entidades menores, que o
dito mundo efetivo que chamamos mundo real, é uma entidade extra-linguística. O
mundo “fora” só é “fora” para um tratamento da linguagem que a estabelece como
uma série auto-suficiente de entidades a qual são imanentes todas as relações.
Isso porém é uma decisão metodológica, constitutiva da linguística como
ciência, tratar a linguagem como um “dentro”sem “fora”, o que torna sem
pertinência qualquer exame desse “fora”. Para uma hermenêutica que não toma
como assegurada essa separação não dialética entre um “dentro” e um “fora”, o
problema é antes compreender como a linguagem continua a servir de mediação
entre o homem e o mundo, mesmo quando a função poética, como o faz notar Roman
Jakobson, aumenta o fosso entre os signos e o mundo. Essa tripla mediação de
referencialidade (o homem e o mundo), de comunicabilidade (o homem e o homem) e
de compreensão (o homem e ele mesmo)constitui o problema mais importante de uma
hermenêutica de textos poéticos. O que denomino interseção entre o mundo do
texto e o mundo do leitor é somente um dos aspectos desse problema
hermenêutica. (pag. 126 e 127)
A
abordagem poética
Vou
tentar aqui identificar o elo intermediário entre uma explicação formal e uma
explicação existencial, como sendo o processo metafórico em obra na estrutura
do relato. A parábola, parece-me, é a conjunção de uma forma narrativa e de um
processo metafórico. Acrescentarei mais tarde um terceiro traço decisivo.
A explicação
dessa estrutura complexa pode ser abordada de dois lados:
- Chamar
uma certa narrativa de “parábola” é dizer que a história se refere a algo
alem do que é dito; ela “quer dizer...” algo além. Mas como o “sentido” de
uma história enquanto história está ligado á sua “referência” enquanto
referencia parabólica? O problema é muito mais difícil do que perece. Se é
verdade que a estrutura interna da narrativa “fecha” a história sobre ela
mesma, e fez dela uma “unidade auto-suficiente” (N. Frye), como sabemos
que a historia quer dizer...alguma outra coisa? Sem já discutir o conteúdo
teológico da expressão “o Reino de Deus é como...”, como a similitude, a
semelhança trabalham em conjunção com a estrutura “interna”? há, no
interior do próprio texto algumas “marcas” de sua referencia “interior”?
ou devemos nos apoiar apenas no fato
de que as parábolas são narrativas no interior de uma narrativa (o
evangelho), na medida em que a forma evangelho é uma forma narrativa? Ou
há traços “interiores” que já estão implicitamente dirigidos para
significações existenciais, e que só se tornam explícitos quando colocados
na convergência com outros modos de discursos no resto do evangelho? Em
outros termos, como o relato começa, dele mesmo, o processo que faz dele
uma parábola?
- Partindo
do outro lado – quer dizer do processo metafórico – pode-se perguntar como
uma metáfora pode tomar a forma mediadora de uma narrativa. A teoria
moderna da metáfora só resolve em parte o problema. Torna compreensível o
funcionamento dos enunciados metafóricos na base de algumas “tensões”
internas que são resolvidas através de uma “inovação semântica”. Mas esses
enunciados metafóricos limitam-se a frases, e são as expressões
transitórias e vivas que se tornam
triviais e, depois, mortas. A teoria da parábola exige um desenvolvimento
especifico a fim de ser aplicada a um “obra” de discurso, que tem uma
composição por sua própria conta em nível mais elevado que o da frase, a
valores metafóricos que se tornam tradicionais sem se tornarem triviais ou
mortos (ao menos não muito depressa!). (pag. 134 e 135)
Parábolas
e discurso religioso
Se
as parábolas são espécies de textos “poéticos”, o que faz delas, de fato,
formas de discursos especificamente “religiosos”? Essa questão levanta o
problema da significação da frase “Reino de Deus” na parábolas de expressão do Reino. Proponho
uma hipótese baseada na comparação entre as maneiras como vários modos de
discurso apontam em direção á expressão “Reino de Deus”: os ditos
proclamatórios, os ditos proverbiais e os ditos parabólicos. Há nesses diversos
modos de discurso um procedimento comum, uma estratégia comum, apesar do fato
de que um dito proclamatório não é um dito proverbial e que a parábola é a
única forma narrativa metafórica? Norman Perrin mostrou como, pela maneira como
Jesus dele se serve, o quadro mítico do discurso apocalíptico explode, e o
poder simbólico das significações temporais mediatizadas pelo mito é liberado,
devido á mediação mítica e apesar dela. Da mesma maneira Beardslee mostra que
os ditos proverbiais utilizados por Jesus sofrem uma espécie de intensificação,
baseada na hipérbole e no paradoxo. Buscando um traço correspondente para a
parábola, fique impressionado com o contraste entre o realismo da narrativa e a
extravagância do desfecho e dos principais personagens. A “extravagância” não
seria um traço especificamente “religioso” da parábola, semelhante á
“intensificação” no provérbio e a liberação de símbolos temporais, além da
interpretação literal, nos mitos escatológicos? (pag. 136)
Não
poderíamos dizer que a linguagem poética, tal como a das parábolas, provérbios
e ditos proclamatórios, redescreve a realidade humana segundo a “qualificação”
trazida pelo símbolo “Reino de Deus”? Isso significaria que o referente ultimo
da linguagem parabólica (proverbial e proclamatória) é a experiência humana
centrada em torno das experiências-limite que correspondem ás expressões-limite
do discurso. (pag. 137)
O
referente da parábola, poderíamos dizer (e o dos outros modos de discurso) é a
experiência humana, concebida como experiência de todo o homem e de todos os
homens, enquanto interpretada á luz dos recursos mimeticos de algumas ficções
realistas e extravagantes, por sua vez enquadradas em estruturas narrativas
especificas. (pag. 138)
1.
Antes de tudo, o discurso
religioso mesmo não é um modo de discurso unidimensional. Comporta uma tensão
entre “imagem” e “sentido” que pode uma interpretação. Em parte alguma, o
discurso religioso é desprovido de um esforço mínimo de interpretação. Kērygma e hermēneia vão de mãos dadas. Nesse
sentido, a conexão entre a forma narrativa e o processo mataforico prepara o
caminho para uma série infinita de ensaios de interpretações. (pag. 138)
2.
Da interpretação passamos á
“tradução”, em que o conteúdo significante é explorado na base de conceitos e
de noções pertencentes a uma cadeia de pensamento distinta da base simbólica.
As traduções de uma linguagem para outra não são só traduções para uma língua
estrangeiras, mas também traduções “internas”. Tomarei como exemplo o genero de
relação que Jϋngel
estabelece entre o conceito paulino da “justiça de Deus” e o símbolo de “Reino
de Deus” em Jesus.
3.
Gostaria em seguida de resumir o
problema dos “qualificadores” já operando em um discurso religioso. Não nos
orietam eles para uma certa forma de conceito, ou para um certo uso do
pensamento conceitual, que preservaria a tensão entre “imagem” e
“significação”? não poderíamos dizer que a relação entre as expressões-limite e
as experiências-limite pede a mediação de conceitos-limites. (pag. 138 e 139)
Um
passo novo foi dado quando alguns estruturalistas franceses combinaram o método
estrutural com a ideologia estruturalista. Por esse termo, entendo uma
concepção geral quanto ao estatuto filosófico do discurso como “texto”.
1.
Para esses autores, a autonomia
do texto é não só um fator de distanciamento na comunicação humana mas
significa a abolição completa da dimensão referencial da linguagem. (pag. 150)
2.
Esse segundo passo é encorajado
por toda a obra de Claude Lévi-Strauss, que toma a segunda via aberta depois de
Propp. Em lugar de formalizar episódios e de preservar um fator diacrônico
(como Greimas faz ainda), procede-se a uma radical descronologização da
narrativa, estendendo ás unidades do discurso maiores do que a frase, as regras
de combinação que foram aplicadas com tanto sucesso no nível das unidades de
linguagem menores do que a frase, os fonemas e os lexemas. Em outros termos,
tratam-se os textos de maneira análoga ao sistema de signos que Saussure chama
de língua em oposição á palavra. (pag. 151)
3.
Damos agora um exemplo dessa
abordagem ultra-estruturalista que combina Greimas, Lévi-Strause e Berthes. O
exemplo proposto é o da parábola do semeador (Mt 13, 1- 23) tal como a explica
Louis Marin (1971 a). A escolha dessa parábola parece provocação. Por razoes
que vão aparecer no momento devido, a tentativa de isolar um texto primitivo
dessa parábola tal como foi pronunciada por Jesus é intencionalmente ignorada.
Interpretação chamada alegórica faz parte do texto porque o texto é o último
texto (de um ponto de vista histórico-crítico), i. é., o que lemos no evangelho
de Mateus como sendo o próprio texto dado. Se o texto é inconsistente de um
ponto de vista histórico-crítico, ele é altamente significante para uma
abordagem estrutural: suas partes não são simplesmente colocadas em uma ordem
sucessiva, mas apresentam muitos níveis de discurso ligados um ao outro,
segundo as leis de transformações especificas. O sistemas de transformações é o
referente para a própria analise. Veremos adiante por que o autor pensa que
essa abordagem convém particularmente aos textos bíblicos. (pag. 153)
O
estruturalismo: uma fase intermediário ou uma via alternativa?
O
estruturalismo levanta duas questões interligadas: é um tipo de abordagem que
não pode, de modo algum, ser conectado com a hermenêutica e que deve ser
negligenciado pela hermenêutica existencial como uma via alternativa de fazer
hermenêutica? E se é um modo de abordagem radicalmente estranho, é ele novo
começo ou uma situação sem saída, o melhor meio de matar os textos? Sei que
pensadores da corrente existencialista tomaram essas duas posições firmes
contra o estruturalismo. Desenvolverei as razões que poderiam justificar uma
dicotomia pura e simples entre estruturalismo e hermenêutica, mas essa não será
minha posição pessoal. A análise das parábolas vais dar-nos uma nova
possibilidade de tentar o caminho mais difícil, segundo o qual uma análise
estrutural – desconectada da ideologia estruturalista – pode enriquecer uma
enriquecer uma hermenêutica existencial. (pag. 160)
Dois
problemas principais estão englobados aqui, cada um deles englobando por sua
vez duas questões subordinadas.
*O
primeiro problema concerne á importância de uma teoria da metáfora para o
estudo do discurso bíblica. Duas afirmações serão feitas: (a) que a metáfora é
mais do que uma figura de estilo, mas contém uma inovação semântica; (b) que a
metáfora inclui uma dimensão denotativa ou referencial, a saber, o poder de
redefinir a realidade.
*
O segundo problema refere-se á articulação entre a estrutura narrativa e o
processo metafórico. O problema pode ser abordado de dois ângulos: (a) do
processo á estrutura: que queremos dizer quando dizemos que nas parábolas a
narrativa deve ser tomada metaforicamente e não liberalmente? (b) da estrutura
ao processo: que indícios internos ou externos nos levam a interpretar uma
narrativa como parábola, se isso que dizer interpretá-la metaforicamente? (pag.
168)
É
porque temos mais ideias do que palavras que precisamos estender o sentido
dessas palavras de que dispomos além de seu uso ordinário. (pag. 169)
A
metáfora é uma dessas figuras. Nela, a semelhança serve de razão á substituição
de uma palavra figurativa por uma palavra literal, seja que falte, seja que se
omita. A metáfora distingue-se de outras figuras de estilo tais como a
metonímia na qual a contiguidade desempenha o papel da semelhança na metáfora.
(pag. 169)
O
que permanece constante nessa tradição pode resumir-se nas seis proposições
seguintes: (1) a metáfora é um tropo, i. é. Uma figura do discurso que concerne
á nominação. (2) A metáfora é uma extensão da nominação por um desvio do
sentido literal das palavras (3) A razão desse desvio na metáfora é a
semelhança. (4) A função da semelhança é fundar a substituição da significação
figurativa de uma palavra ao sentido literal de uma palavra que poderia ter
sido usada no mesmo lugar (5) A significação substituída não inclui inovação
semântica: podemos então traduzir uma metáfora restabelecendo a palavra literal
no lugar da palavra figurativa que lhe foi substituída. (6) Porque não comporta
inovação, a metáfora não dá nenhuma informação sobre a realidade: é só um
ornamento do discurso e, por conseguinte, pode ser categorizada como uma função
emocional do discurso. (pag. 169)
A
metáfora provém da tensão entre os termos de um enunciado metafórico. (pag.
170)
Se
a metáfora só concerne ás palavras porque se produz primeiro no nível da frase
toda, então o primeiro fenômeno não é o desvio da significação literal ou
própria das palavras, mas o funcionamento mesmo da predicação no nível de todo
o enunciado. (pag. 170)
O
que está em jogo, no enunciado
metafórico, é fazer aparecer uma similitude onde a visão ordinária não percebe
adequação nenhuma. (pag. 171)
Através
desse erro calculado a metáfora revela uma relação de significação que até
então não se tinha percebido, entre termos impedidos de comunicar-se entre si
pelas classificações anteriores. (pag. 171)
Nesse
sentido Aristóteles diz com razão que “fazer boas metáforas é perceber as
semelhanças”. Mas esse ver é ao mesmo tempo uma construção: as boas metáforas
são mais as que instituem uma semelhança do que aquelas que só fazem registrar
uma. (pag. 171)
A
substituição é uma operação estéril, mas na metáfora, ao contrário, a tensão
entre as palavras, especialmente a tensão entre duas interpretações, uma
literal e outra metafórica, no conjunto da frase, dá lugar a uma verdadeira
criação de significação de que a retórica só percebia o resultado final. Em uma
teoria de tensão – que oponho aqui a uma teoria da substituição – uma nova
significação emerge, que tem a ver com o conjunto do enunciado. Sob esse
aspecto, a metáfora é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não
tem estatuto na linguagem estabelecida e que só existe pela atribuição de
predicados inabituais. (pag. 171 e 172)
Primeiro,
as verdadeiras metáforas são intraduzíveis. Só as metáforas de substituição
podem receber uma tradução que restaure sua significação própria. As metáforas
de tensão são intraduzíveis porque criam significação. Dizer que são
intraduzíveis não significa que não podem ser parafraseadas, mas a paráfrase é
infinita e não esgota a inovação da significação
6.A
segunda consequência é que a metáfora não é um ornamento do discurso. A
metáfora tem mais do que um valor emocional. Comporta uma informação nova.
(pag. 172)
A
linguagem poética fala também da realidade, mas faz isso em nível totalmente
diferente da linguagem cientifica. Não nos mostra um mundo já presente, como o
fazem as linguagens descritiva e a didática. Com efeito, como vimos, a
referencia ordinária da linguagem é abolida pela estratégia natural do discurso
poético. Mas na medida mesma em que essa referencia de primeira ordem é
abolida, é liberado um outro poder de dizer o mundo, embora em outro nível de
realidade. Esse nível é o que a fenomenologia husserliana designou como “o
mundo do vivo” (Lebenswelt) e que Heidegger chamou “ser no mundo”. É um mundo que eclipsa os
objetos manipuláveis, um mundo que esclarece a vida, um “ser no mundo” não
manipulável, que me parece ser a contribuição ontológica fundamental da
linguagem poética. (pag. 177 e 178)
Concluirei
essa segunda parte da seção com três observações: (a) As funções retórica e
poética da linguagem são reciprocamente invertidas. A primeira tenta persuadir
os homens conferindo ao discurso ornamentos agradáveis; a segunda visa a
re-descrever a realidade pelo caminho tortuoso da ficção heurística. (b) A
metáfora é essa estratégia de discurso pela qual a linguagem despoja-se de sua
função descritiva ordinária a fim de servir-se de sua função extraordinária de
re-descrição. (c) Podemos falar com precaução de verdade metafórica para
designar a pretensão de atingir a realidade que está ligada ao poder de
re-descrição da linguagem poética. Quando o poeta diz: “A natureza é um templo
onde pilares vivos...” o verbo ser não se limita a correlacionar o predicado
“templo” ao sujeito “natureza”. A cópula não é só relacional. Implica que essa
relação re-descreve o que é de certa maneira. Diz que tal é o o caso. (pag. 178)
Tentamos
definir a parábola como o modo de discurso que aplica a uma forma narrativa um
processo metafórico. Essa definição exprime em linguagem mais técnica a
convicção espontânea do leitor profano de estar lidando, ao mesmo tempo, com
uma historia livremente criada e com uma transferência de significação que não
afeta essa ou aquela parte da história, mas a narrativa como um todo, e que se
torna desse modo uma ficção capaz de re-descrever a vida. Para uma retórica do
discurso bíblico, a dificuldade principal consiste em articular de maneira
adequada a forma narrativa e o processo metafórico e, portanto, em combinar
corretamente a teoria dos gêneros que rege a forma narrativa e a teoria dos
“tropos” que rege a transferência de significação da história, tomada como um
todo, para a esfera existencial á qual é aplicada. Nossa tentativa de definição
da parábola como funcionamento metafórico de uma narrativa só faz exprimir a
tarefa a cumprir no quadro de uma retórica do discurso bíblico. (pag. 179)
A
metáfora é o dispositivo retórico que uma interpretação alegórica descobre nas
parábolas. (pag. 179)
Mas se há
indícios internos para uma compreensão metafórica das parábolas, eles são
demasiado evasivos e duvidosos para serem identificadas somente na base de uma
só parábola. Minha aposta é que as parábolas fazem sentido se, e somente se,
são tomadas em conjunto. Uma parábola isolada é uma construção artificial do
método histórico-crítico. As parábolas constituem uma coleção, um “corpus”, que
só é plenamente significante tomado como um todo. Certamente, não conservamos
todas as parábolas de Jesus, mas a seleção que foi operada pela tradição da
Igreja parece bastante para fazer aparecer um esquema de sentido comum. Nesse
sentido, Crossan tem razão de tomar toda a coleção das parábolas como um campo
de articulação ao qual aplica uma sequencia temporal tirada da ontologia
heideggeriana: espera, reversão e ação. (pag. 187 e 188)
Próxima
da proposição precedente, uma nova hipótese vem ao espírito. Não temos só de
tomar o corpus das parábolas como um todo, mas também o corpus dos dizeres
atribuídos a Jesus pelos sinópticos. Como o expõe Noman Perrin (1974, 277-303)
os dizeres escatológicos, os dizeres proverbiais, os dizeres parabólicos
apontam juntos na mesma direção. O símbolo “Reino de Deus” (ao qual voltarei
depois por ele mesmo) designa o horizonte comum a esses três modos de discurso.
Essa nota é de uma importância enorme: implica que os diferentes modos de
discurso podem ser traduzidos um no outro. Essa “traduzibilidade” de um modo de
discurso em outro, logo que percebida, livra o ouvinte de toda veleidade de
apegar-se á compreensão literal. Abre os olhos e os ouvidos. A convertibilidade
entre os dizeres proverbiais e os dizeres parabólicas tem uma importância
particular. Os dizeres proverbiais estendem aos dizeres parabólicos sua própria
ironia, sua textura paradoxal e hiperbólica, sua arte de desorientar o ouvinte.
Proponho dizer que uma narrativa pode ser compreendida como parábola se pode
também ser convertida em provérbios ou em dizer escatológico. A equivalência
entre parábola, proclamação e provérbio ajuda-nos a romper as estruturas
narrativas. Faz explodir o “fechamento”da estrutura. Assim, a estrutura
narrativa recua para o plano de trás, e o processo metafórico vem para o
primeiro plano. Essa inversão de propriedade entre estrutura e processo não
poderia ser realizada sem essas trocas mutuas entre vários modos de discurso,
porque a atenção deveria ser atraída para além da narrativa no momento mesmo em
que é captada pela própria intriga. O fato de pensar no interior como no
exterior da forma é possibilitado pela atração exercida por uma forma de
discurso sobre o outro. (pag. 188 e 189)
O
processo de “intersignificação” que se produz entre as parábolas tomadas como
um corpus distinto, depois entre esse corpus e as outras “palavras” de Jesus
deve ser prosseguido, um passo adiante, pela intersignificação entre as
“palavras” mesmas consideradas como um corpus maior e as “ações” de Jesus. Por
essa observação, fazemos justiça a uma ideia importante de Jeremias segundo a
qual algumas ou mesmo a maioria das parábolas [de Jesus] são apologias e
justificações de sua própria maneira de tratar publicamos, prostitutas e
fariseus. (pag. 189)
Os
milagres, na realidade, são histórias dadas como histórias verdadeiras As
parábolas são histórias dadas como ficção. Mas o que querem dizer é a mesma
coisa: o curso da vida ordinária é rompido, a surpresa jorra. O inesperado
acontece, os ouvintes são interpelados e levados a pensar o impensável. Se
pomos juntos as diferenças entre as duas afirmações concernentes á relação com
a realidade efetiva, e se nos concentramos na “significação” das palavras, das
ações ordinárias e das ações milagrosas, não poderíamos então dizer que as
parábolas atraem nossa atenção para a dimensão “milagrosa” do tempo, ao mesmo
que as narrativas dos milagres recebem da pregação sua dimensão “parabólica”?
não é por acaso que o evangelho de João chamará os milagre de semeia (sinais).
Nem tampouco é por acaso que podemos ler as parábolas da semente como
sinalizando o valor milagroso da messe: “Mas outros grãos caíram sobre a terra
boa; deram fruto brotando e desenvolvendo-se e produziram trinta, sessenta, cem
por um” (Mc 4, 8; Lc 8, 8; Mt 13, 8) (pag. 189 e 190)
Quero
aqui mostrar que não é tanto a função metafórica enquanto tal que constitui a
linguagem religiosa, quanto uma certa intensificação da função metafórica que
também se enquanto uma certa intensificação da função metafórica que também se
encontra em outros discursos não metafóricos, tais, como o discurso
proclamatório, especialmente os enunciados de caráter escatológico dos
evangelhos sinópticos e os dizeres proverbiais. Essas formas como tais não
constituem a linguagem religiosa, mas antes o que chamarei provisoriamente a
“transgressão” pela qual essas formas de discurso sinalizam, além de sua
significação imediata, para o Todo Outro. (pag. 193)
Assim
fica o problema: como o “Reino de Deus” funciona enquanto referente das
parábolas? Não podemos determiná-lo antes de ter colocado as parábolas em
relação com outros tipos de enuciados nos quais o Reino de Deus serve também de
ponto de convergência: proponho dizer que a expressão “Reino de Deus” é uma
expressão limite em virtude da qual as diferentes formas de discurso,
empregadas pela linguagem religiosa, são modificadas, e pelo fato mesmo
convergem para um ponto último que se torna seu ponto de encontro com o
infinito. (pag. 194)
Os
dizeres proclamatórios. A maneira de proceder mais apropriada parece-me que é
esquecer um momento as parábolas e começar por dois outros tipos de discurso,
que nos permitirão perceber melhor a detonação da forma do discurso sob a
pressão das expressões-limites. Começamos assim pelos dizeres proclamatórios. É
aqui que a singularidade da linguagem religiosa é a mais evidente, se é verdade
que a proclamação de Jesus foi essencialmente uma proclamação escatológica.
Consideramos as quatro fórmulas que Normam tinha por autenticas. “Os tempos
estão cumpridos” o Reino de Deus está perto: convertei-vos e crede na Boa Nova”
(Mc 1, 15). “Mas se é pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é então que o
Reino de Deus adveio para vós” (Lc 11, 20). “ O Reino de Deus não vem de uma
maneiro visível. Não se dirá: ‘Ei-lo, está aqui’ ou então: ‘Está ali’ Com
efeito, eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17, 20- 21). “Desde os
tempos de João Batista até ao presente,
o Reino dos céus sofre a violência e os violentos buscam apoderar-se dele” (Mt
11, 12)
O que é
importante nessas palavras não é tanto a forma apocalíptica do discurso, que é
uma forma de discurso tradicional, exatamente como o mashal o é em relação á
parábola. O fato importante para nós é que essa forma é simultaneamente
empregada, transgredida e revertida por seu uso novo. Podemos dizer que a forma
apocalíptica desempenha aqui o mesmo papel que a forma narrativa na parábola.
Aqui também a proclamação apocalíptica apresenta um caráter liberal que é
transgredido de maneira comparável á que transgride a forma de uma história na
parábola. Com efeito, há em seguida uma maneira liberal de compreender o
simbolismo apocalíptico.
É
compreendê-lo temporalmente, segundo uma ordem cronológica e perguntar: “Quando
vai acontecer? É para o fim ou agora, ou ainda não?” Devemos admitir que as
tentativas de solução oferecidas por intérpretes bem conhecidos como Schweitzer
(escatologia iminente), Dodd (escatologia realizada) e Jeremias (escatologia
realizando-se: sich-realisierende) ficam todas engessadas no esquema temporal
liberal. Quanto a isso, essas interpretações parecem encorajadas pela maneira
como o mito funciona em relação aos mitos fundamentais postos em obra por essa
forma de discurso. Como já mostrei na “Simbólica do mal” (La Simbolique Du
Mal), os símbolos primários funcionam somente por intermédio se símbolos de
segunda ordem, que põem em jogo personagens, acontecimentos, um drama etc. mas
o mito tem a função ambígua, de uma parte, de preservar a função simbólica de
maneira a torná-la operativa, em certa medida, num nível pré-conceitual e, de
outra parte, de canalizar e, em certo sentido, interceptar o movimento do
símbolo-fonte, dando-lhe uma expressão histórica, de maneira a impedir a
manifestação do que Philipp Wheelwright chama sua “vitalidade ancestral”. É a
razão pela qual a forma do mito encoraja e parece autorizar interpretações em
termos de “esteno-sistemas”. Na realidade, é desse modo que o discurso
apocalíptico funciona. Poe em jogo os grandes símbolos do “Senhor”, do “Reino”
e do “Poder” que falam do que Norman Perrin chama a “atividade régia” de Deus.
Afeta igualdade o símbolo da redenção, que Perrin diz ser talvez até mais rico
do que todos os símbolos do Reino. Mas esses símbolos funcionam num tempo
mítico que, embora não sendo o tempo das origens de que fala Mircea Eliade, não
é menos simétrico em relação ao tempo do fim, um tempo mítico em que o símbolo
desenvolve todas as suas potencialidades temporais, embora dissimulado-as em
representações que objetivizam a temporalidade fundamental significada pelo
mito.
Ora, que
faz Jesus? De novo, no primeiro texto, interpreta seus próprios exorcismos na
base das pragas do Egito, mas projeta sua significação em uma temporalidade que
escapa ás alternativas propriamente cronológicas (o Reino de Deus está “bem
perto”). O novo Êxodo para o qual aponta a reativação do símbolo incluído no
mito do êxodo, é um símbolo que opera ao mesmo tempo no mito, na medida em que
é fonte de força vital para o povo concernido, e contra o mito, subvertendo sua
interpretação literal. O segundo texto acima citado implica claramente a recusa
de calcular o tempo, i. é., de interpretar o símbolo do “reino que sobrevém” em
termos de temporalidade literal. O que é essencialmente discutido nesse texto
é, para citar Perrin, “a pratica apocalíptica da procura dos sinais”, i. é., o
tratamento do mito como alegoria e dos símbolos como esteno-símbolos. Dizendo
“O Reino de Deus está no meio de vós”, Jesus coloca seus ouvintes diante do
símbolo apocalíptico como diante de um símbolo verdadeiramente tensional, com
seu poder de evocar um conjunto de significação, assim como o mito da redenção
torna-se um verdadeiro mito, como seu poder de mediatizar a experiência da
realidade existencial.
Da mesma
maneira, no quarto texto, a linguagem é tirada dos mitos da guerra do Batista,
de Jesus e de seus discípulos. Esse mito significa seu destino. E não tenho
nenhuma dificuldade em segui Norman Perrin quando propõe discernir a mesma
preocupação existencial no pedido da prece do Senhor: “Venha o teu Reino”.
(pag. 194, 195 e 196)
Talvez
seja também necessário dizer da parábola o que dissemos aqui do provérbio, a
saber, que dele mesmo não fornece nem uma via prática, pela qual seria possível
re-inserir o modelo impossível no urso da existência, nem uma via de
incorporação dessa ruptura em uma visão unificante. (pag. 197)
Vou
concluir fazendo uma sugestão. O que é simbólico em uma história-metáfora? É
seu aspecto de realismo ou, ao contrário, a extravagância que interrompe o
curso da ação soberbamente pacifico e que constitui o que chamei o
extraordinário no meio do ordinário? Se essa hipótese é verdadeira, teremos
determinado o traço que transforma a poética da parábola em uma poética da fé.
(pag. 201)
Voltarei
a esse ponto na terceira parte desta seção. Bastará aqui fazer as afirmações
seguintes:
- As
diversas formas de discurso religioso – pelo menos as que os sinópticos
atribuem a Jesus – apresentam uma similitude de função, a saber, o tipo de
abuso que arruína a própria forma do discurso empregando. Tentei atrair a
atenção sobre isso, chamando-as “expressões-limite”.
- O
símbolo “Reino de Deus” pode ser designado como o referente comum desses
diferentes tipos de discurso é portanto, igualmente a seu funcionamento
como expressões-limite. Poderíamos arriscar-nos a chamar o símbolo “Reino
de Deus” de referente-limite dessas expressões-limite. É esse
referente-limite que preside ao que chamarei as expressões-limite, que a
linguagem religiosa tenta re-descrever, na segunda parte desta seção.
- O
funcionamento das expressões-limite e do símbolo “Reino de Deus” prefigura
a estrutura modelo-qualificador que caracteriza não só a linguagem
religiosa, mas também a linguagem propriamente teológica. Podemos fazer a
hipótese dessa constituição paradoxal da linguagem teológica na sua fonte
– i. é., ao mesmo tempo seu estimulo e sua estrutura pré-conceitual – no
funcionamento das expressões-limite da linguagem religiosa. (pag. 203)
Qual
é o referente último da linguagem religiosa? O poder poético de ficção,
dissemos no capitulo precedente, é o de re-descrever a realidade. É
precisamente nesse sentido que é uma espécie de modelo; mas o discurso
religioso, acabamos de dizer, não é uma ficção como as outras. É, poderíamos
dizer, uma metáfora-limite. Por conseguinte, a questão é saber que poder de
re-descrição está ligado á linguagem religiosa, na medida em que é o lugar das
metáforas-limite e de todas as outras expressões-limite ás quais as parábolas
de Jesus estão ligadas. Outra maneira de pôr o mesmo problema seria perguntar,
tomado em consideração o vocabulário introduzido acima, qual é o uso e a função
da ficção quando é levada ao extremo pela adição de qualificadores. (pag. 204)
Nosso
método regressivo nos levou de um encontro puramente extrínseco entre a
linguagem religiosa e os conceitos filosóficos, através da noção de correlação,
para um exame direto da linguagem religiosa, do ponto de vista de suas
potencialidades conceptuais. (pag. 211)
Da
interpretação á tradução. Um segundo degrau intermediário entre o discurso
figurativo e o conceitual pode encontrar-se em uma série de modos de discurso
semi-conceituais típicos da literatura didática, apologética e dogmática, donde
surgiu a teologia, em conjunção com as filosofias gregas. As primeiras
cristologias pertencem a esse grupo. Sua linguagem tem alguma afinidade com o
ramo da literatura de sabedoria, que Beardlee chama “especulativa” (ver G.
VON Rad) em contraposição a outra forma
mais popular, a que pertencem os dizeres proverbiais. Chamo essa linguagem de
linguagem de “tradução”, “em que o conteúdo significante é explorado como a
base de conceitos e de noções pertencentes a uma corrente de pensamento
distinto da base simbólica”. Reproduzo aqui um conceito utilizado pelo prof.
Fred Streng em curso dado diante da Associação Americana para o Estudo da
Religião, na Universidade de Vanderbilt (primavera 1973). Segundo esse
pesquisador, é um traço fundamental do cristianismo poder transmitir sua linguagem
criando uma série de linguagem de translação, i. é., linguagens capazes de uma
dupla historia, a da linguagem de onde vêm e da linguagem em que são
traduzidas. (Assim, palavra “religião” refere-se ao mesmo tempo á piedade
romana e á fé judaica e cristão.) A cada etapa do processo de translação, a
linguagem religiosa recolhe novas metáforas, novas instrumentos retóricos e,
também, novas dimensões conceituais, que tornam a linguagem original apta, ou
pelo menos não demasiado inadequada, para tratar com outras religiões, com as
culturas estrangeiras e com a própria filosofia.
Essa
análise bate perfeitamente com o exemplo especifico desenvolvido, em sua obra
magistral, por Eberhard Jungel. A obra trata da correlação entre o conceito
paulino de “justiça de Deus” e o símbolo “Reino de Deus” empregado por Jesus.
Ambos veiculam a mesma mensagem fundamental, são “ acontecimentos de palavra”
(Sprachereignise) semelhantes, mas em dois níveis diferentes em relação á
conceptualidade. (Os leitores anglófonos encontrarão uma comparação similar em
funk [124-133 e 224-250] entre a parábola e a carta como modo de discurso).
(pag. 213 e 214)
3.Limite
expressões, experiências e conceitos. A terceira etapa de uma pesquisa sobre a
relação entre o discurso “figurativo” e o “conceitual” leva-nos a discutir o
papel dos conceitos-limite em nosso quadro conceitual. Essa expressão,
“conceito limite”, e “conceito de linha fronteira”, é sugerida por nossa
discussão anterior das duas expressões paralelas: expressões-limite e
experiências-limite. Com essas duas categorias eu desejava sublinhar a
correspondência entre o papel dos “qualificadores” (no sentido de Ian Ramsey)
que operam na linguagem “estranha” dos dizeres parabólicos, proverbiais e
proclamatórios, e as experiências de vida “fronteiras” – no sentido de Karl
Jaspers. O problema é então determinar se não há um certo uso de pensamento que
preserve a tensão entre figura e significação, porque prolonga o papel dos
qualificadores no nível conceitual. (pag. 216)
*
A teologia especulativa está morta, dizíamos. E é essa a conclusão negativa da
primeira crítica em relação á noção de “ilusão transcendental”. Mas essa
destruição da teologia especulativa como ciência dos “objetos” não implica que
o próprio saber objetivo seja absoluto. Ao contrario, saber objetivo é o
trabalho do “entendimento” (Verstand) e o “entendimento” não esgota o poder da
“razão” (Vernunft) que permanece a função do incondicionado. Essa distancia,
essa tensão entre a “razão” como função do incondicionado e o “entendimento”
como a função do saber condicionado encontra sua expressão na noção de “limite”
(grenze) que Kant não identifica com a da “fronteira” (Schranke). O conceito de
“limite” não implica só – nem mesmo originariamente – que nosso saber seja
limitado, tenha fronteiras, mas que a busca do incondicionado ponha limite á
reivindicação do saber objetivo de tornar-se absoluto. O limite não é um fato,
mas um ato. (pag. 219)
Pregar
hoje sobre as parábolas de Jesus ou, melhor, pregar as parábolas, com efeito é
um desafio: desafio de que, apesar de todos os argumentos contrários, é sempre
possível escutar as parábolas de Jesus de tal maneira que fiquemos atônitos uma
vez mais, impressionados, renovados e postos em movimento. Foi esse desafio que
me levou a tentar pregar as parábolas e não só estudá-las de maneira erudita,
como um texto entre outros .
A
primeira coisa que pode impressionar-nos é que as parábolas são narrativas
radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos nem milagres, nem
tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação, nem mesmo acontecimentos
fundadores como na narrativa do Êxodo. Nada, mas precisamente gente como nós.
(pag. 226)
Encontra-se
aqui o paradoxo inicial: por um lado as histórias são – como disse um critico –
narrativas de normalidade, mas, por outro, é o Reino de Deus que se diz ser
assim o extraordinário é como o ordinário. (pag. 226)
O
segundo passo, além desse primeiro choque, será perguntar o que faz sentido na
parábola. Se é verdade, como mostra a exegese contemporânea, que o Reino de
Deus não é comparado ao homem que... á mulher que...ao fermento que...mas ao
que se passa na narrativa, devemos examinar mais de perto essa breve narração
mesma, a fim de identificar o que nela pode ser paradigmático. (pag. 227)
Mas
a arte da parábola é ligar dialéticamente o ato da descoberta aos dois outros
pontos cruciais. O homem que encontrou o tesouro foi vender tudo o que tinha e
o comprou: dois novos pontos críticos que poderíamos chamar, seguindo um
comentador moderno, por sua vez inspirado em Heidegger, conversão e decisão. A
decisão não vem sequer em segundo lugar: antes da decisão é a conversão. (pag.
227 e 228)
O
Reino de Deus é comparado ao encadeamento desses três atos: deixar o
acontecimento desenvolver-se; olhar em outra direção; e agir com todas as suas
focas de acordo com essa nova visão. (pag. 228)
E
se perguntemos: “E finalmente, que é o Reino dos céus?”. Devemos preparar-nos
para esta resposta: o evangelho nada diz sobre o Reino dos céus senão que é
semelhante a... Não diz o que é, mas a que se assemelha. Isso é difícil de
entender. Porque toda a nossa prática cientifica tende a utilizar as imagens só
como meios provisórios e a substituir as
imagens por conceitos. Somos convidados a seguir um outro caminho. E a pensar
segundo um modo de pensamento que não é metáfora por razões retóricas, mas por
causa do deve dizer. Só analogia é que se aproxima do que é totalmente prático.
(pag. 229)
Quais
as implicações dessa descoberta inquietamente, a saber, que as parábolas nunca
permitem uma tradução em linguagem conceitual? Primeiro, que esse estado de
fato revela a fraqueza desse modo de discurso. Mas olhando do mais de perto,
revela a força única desse modo. Como é possível? Consideremos que com as
palavras não lidamos com uma narrativa única apresentada em um longo discurso,
mas com uma multidão de pequenas parábolas reunidas na forma unificante do
evangelho. Esse fato significa alguma coisa. Significa que as parábolas formam
um todo, que devemos apreendê-las como um todo e compreender cada uma á luz das
outras. Constituem uma rede de intensificações, se ouso assim falar. (pag. 229)
Por
isso é que não basta afirmar que as parábolas nada dizem diretamente sobre o
Reino de Deus. Devemos dizer em termos mais positivos que, tomadas juntamente,
dizem mais do que qualquer teologia racional. No momento mesmo em que pedem uma
explicação teológica, começam a destruir as simplificações teológicas que
tentamos pôr em seu lugar. (pag. 230)
Essa
maneira de abordar o texto que chamo “orientada em um sentido sapiencial” é de
fato instrutiva e o resto da passagem convida-nos a tirar dele algumas lições:
que vantagem com efeitos teria um homem em ganhar o mundo inteiro se tem de
pegar com sua vida”? que soma poderá dar em troca de sua vida?” Podemos agora
perguntar o que está em jogo nesse jogo em que se perde o que se ganha e em que
se ganha o que se perde. Aqui a sabedoria parece, para alem, de costumes ou de
más compreensões locais ou ligadas ao tempo, visar a uma forma fundamental de
um falso cálculo que orienta o conjunto da vida até o ponto que constitui nossa
existência cotidiana. Não é preciso estender-se aqui sobre as duas
manifestações principais desse erro de calculo, que são as mais frequentemente
citadas e as mais próximas uma da outra, sem ser contudo de modo algum
superficiais. Quero dizer com isso que “ganhar o mundo” significa ter bens
materiais e poder. Com efeito, é difícil não ficar transtornado pelo círculo
vicioso provocado pela exploração desbragada da terra e o consumo sem freios
dos países industrializados. Alias, “tornar-se o senhor e o proprietário da
natureza” é a verdadeira divisa da modernidade anunciada por Descartes. É
também igualmente difícil não inquietar-se com espiral, a das armas nucleares.
Ganhar o mundo parece aqui implicar um domínio sem limite, com o risco de
destruir fisicamente o mundo. Não basta contentar-se com modalidade as
superpotências diante desse estado de coisas. Devemos admitir que o drama do exercício
do poder é o drama secreto de cada um de nós, mas simplesmente carecemos de
poder para pô-lo em execução. (pag. 234)
Assim,
para concluir, voltemos á condição particular do intelectual, do universitário
a quem dediquei a parte mais problemática de minha meditação na perspectiva da
sabedoria, contida no texto do evangelho de hoje. Ganhar o mundo disse eu, para
uma pessoa instruída, é buscar o domínio absoluto por intermédio do
conhecimento e das técnicas acadêmicas. É também, acrescentei, para quem faz
obra de teologia dentro de sua fé apagar-se a que Deus seja a garantia suprema
da solidez de nosso conhecimento.
É
precisamente essa tentativa de utilizar Deus como garantia de nosso desejo de
ter uma garantia que me parece pais posta em questão pela expressão “renunciar
a si mesmo”. Como disse Eberhard Jungel, um teólogo de Tubingen, a fé é a
reversão da garantia, é risco de uma vida colocada sob o signo de Cristo
sofredor. Nossa passagem acrescenta a essa “renuncia a si mesmo” o fato de
“tomaar s sua cruz”. Essa poderosa expressão leva-nos ao contexto
deliberadamente escolhido pelos autores sinópticos para os versículos que
estamos considerando, a saber, o anúncio feito por Jesus de sua Paixão
iminente. Que laço existe entre o convite dirigido aos cristãos, de tomar a sua
cruz, e o anúncio por Jesus da necessidade da Paixão? Que vínculo há para a
pessoa crente que adota a divisa de Anselmo, “Fides quarens intellectum” (a fé
que busca compreender)? Tomar uma cruz, é renunciar á representação de Deus
como o lugar do conhecimento absoluto, como a garantia de todo meu
conhecimento. É aceitar não saber senão uma coisa a respeito de Deus: é que
Deus estava presente em Jesus crucificado, e deve ser identificado com Jesus
crucificado. Deus tomou a cruz. Tal é a significação do hino cristológico aos
filipenses: “esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo, tornado semelhante
aos homens...humilhou-se a si mesmo e fez-se obediente até a morte e á morte em
uma cruz (Fl 2,7-8).
Tomar
a cruz de Jesus, para mim, membro da Universidade, dessa comunidade de saber,
significa não supervalorizar um conhecimento, prisioneiro como é de questões de
provas e de garantias, diante da necessidade seguinte – mais elevada do que
toda necessidade lógica – “Era necessário que o Filho do Homem sofresse e fosse
crucificado”. Como único poder divino Deus só dá aos cristãos o sinal da
fraqueza divina, que é o sinal do amor de Deus. Deixar-me ajudar pela fraqueza
desse amor é para a questão de dar sentido á minha fé, aceitar que Deus só pode
ser pensado por meio do símbolo do servo sofredor e pela encarnação desse
símbolo no acontecimento eminentemente contingente da cruz de Jesus. (pag. 237
e 238)
Uma
interseção ainda mais significativa entre o mito e a história foi posta á luz
pela extensão, familiar depois da antropologia contemporânea, da nação do mito
aos tipos de narrativas que são extremamente difundidos nas sociedades
arcaicas. Essas narrativas são caracterizadas pelo fato de serem anônimas e,
portanto, sem origem determinante. São recebidas pela tradição e aceitas como
dignas de fé por todos os membros do grupo sem outra garantia de autenticidade
que a crença dos que as transmitiram. A história marcará uma “ruptura
epistemológica” com esse modo de transmissão e de recepção, mas só depois de
uma evolução engloba muitas etapas intermediarias, como veremos mais tarde. Uma
fonte de conflitos ainda mais sérios entre o mito e a história e, portanto
também uma ocasião de formas mais complexas de transições ou de compromisso,
refere-se ao próprio mito, que designamos provisoriamente como narrativa das origens.
O interesse pelas origens estende-se bem além da história dos deuses, dos
heróis e dos antepassados. As questões que tocam a origem coisas estendem-se ao
conjunto das entidades da vida individual e social. Assim, os mitos podem
responder a cada um dos tipos de questões seguintes: Como uma sociedade
particular veio á existência? Qual o sentido dessa instituição? Por que esse
acontecimento e esse rito existem? Porque algumas coisas são proibidas? Que é
que legitima uma autoridade particular? Por que a condição humana é tão
miserável? Por que sofremos e morremos? O mito responde a essas questões contando
como as coisas começaram. Conta a criação do mundo e a aparição dos humanos em
sua condição presente, física, moral e social. Por conseguinte, com o mito,
tratamos com um tipo particular de explicação que manterá uma relação complexa
com a história. Esse tipo de explicação consiste essencialmente em uma função
fundadora dos mitos: o mito relata acontecimentos fundadores. Seu laço com a
história e o conflito que daí decorre resultam dessa função. Deuma parte, o
mito só existe quando o acontecimento fundador não tem lugar na história, mas
situa-se num tempo antes de toda história: in illo tempore, para usar a
expressão agora clássica de Mircea Eliade. De outra parte o que está em jogo em
cada uma dessa fundações é ligar nosso próprio tempo áquele outro tempo, seja
sob a forma de participação, imitação, decadência ou abandono. É precisamente
essa relação entre nosso tempo e o tempo do mito que é o fator constitutivo do
mito, mais do que os tipos de coisas fundadas por ele, seja que essas últimas
incluam a totalidade da realidade – o mundo – ou um fragmento da realidade –
uma regra ética, uma instituição política, ou mesmo a existência do homem em
uma condição particular, culposa ou inocente. (pag. 248)
O
primeiro testemunho que temos da ruptura da história com o mito foi fornecido
por Heródoto, no meio do século V antes de Cristo. Sua obra constitui uma etapa
literária decisiva. E seu titulo – Historiē, em dialeto jônico a – a partir
de então determinou não só o nome da disciplina que Heródoto inaugurava, mas
também a principal significação desse termo, a saber, a investigação. Essas
“histórias” são de fato investigações sobre as causas das guerras travadas
entre gregos e persas. Á diferença dos mitos das origens e dos contos heroicos
situados em épocas longínquas, as histórias de Heródoto ocupam-se de
acontecimentos recentes. Heródoto interessa-se pelo papel de causa exercido
pelos acontecimentos anteriores e pelo papel dos atores responsáveis nos
acontecimentos que ele explorava. Seus escritos são bem mais do que simples
descrições. São expressões de um modo de pensamento caracterizado pelo que se
chamou de “iluminismo jônico”, e que assim toma lugar em um conjunto mais vasto
de investigações em cosmologia, geográfica e etnografia. Encontram seu
equivalente especulativo na filosofia enquanto tal, em que a physis, termo que
traduzimos por “natureza”, constitui imediatamente o campo de exploração e a
palavra-chave. Na filosofia jônica, a nação de arkhē no sentido de “principio”
distinção na nação de origem é de grande importância para a compreensão da
separação entre a história e o mito.
A
ruptura epistemológica com o mito, que marca a emergência da história, da
geografia, etnologia, da cosmologia e da filosofia da natureza, nem por isso
nos deve autorizar a representar esse processo como simplesmente genético e
linear. (pag. 251 e 252)
Em
contraste com uma representação simplista do “milagre grego”, deveríamos em vez
disso estar atentos a esse fenômeno de transição que reserva um sentido para os
diversos elementos que contribuíram para promover o “acontecimento” do
iluminismo jônico. De fato, Heródoto foi precedido por toda uma série de
prosadores que lhe prepararam o caminho. O mais importante deles foi sem dúvida
Hecateu de Mileto, que só conhecemos por um pequeno numero de citações que nos
chegaram. (pag. 252)
A
ruptura entre mito e história, por conseguinte, não se produziu de uma só vez,
mas só gradualmente. As próprias Histórias de Heródoto não cortavam todo elo
com as narrativas da idade heroica, como se pode ver em suas tentativas de uma
cronologia geral remontando á guerra de Tróia. E se Heródoto interessava-se tão
particularmente pelas guerras persas, era porque, na sua opinião, mereciam ser
contada tanto como o tinha sido a guerra de Tróia. Enfim, a dimensão épica da
obra de Heródoto, que lhe permite manter os elos cronológicos e analógicos
entre as épocas heroica e histórica, deve ser atribuída á influência da epopeia
versificada de Homero.
A
dupla relação de ruptura e de filiação entre mito e história, no nível da forma
narrativa, torna-se mais clara se consideramos o fim ou a meta atribuídos a
esse gênero de literatura. Aqui passamos do primeiro ao segundo sentido de
história. O fim que Heródoto atribuía a suas investigações pode encontrar-se no
prólogo da Histórias: “Eis o começo das pesquisas (historiē) de Heródoto de Halicarnasso a
fim de que as ações humanas não possam ser esquecidas, nem as coisas grandes e
admiráveis, quer fossem realizadas pelos gregos quer pelos bárbaros, fiquem sem
relato, nem especialmente as causas (αitiē) das guerras entre uns e
outros”. (pag. 252 e 253)
Esse
culto da memória liga a história á autocompreensão que um povo adquire
entregando uma narrativa de seu passado. A memória que a história cultiva é a
de um povo tomado como um corpo único. Desse modo, a história toma lugar no
corpo das tradições que em conjunto constituem o que podia chamar-se a
identidade narrativa de uma cultura. (pag. 253)
O
terceiro traço do projeto de Heródoto aponta na mesma direção: o objeto de sua
pesquisa é descobrir a causa de um acontecimento essencialmente conflituoso, a
saber as guerras persas. (pag. 253)
Dessa
tríplice análise podemos constatar que a passagem do mito á historia não se
pode reduzir á pura substituição do primeiro pela segunda. No caso, com essa
evolução linear devemos dar lugar a uma acumulação de gêneros literários e de
modos de pensar ligados entre eles: os mitos teológicos escritos no estilo da
mitologia escolar e literária, os mitos da época heroica moldados no modo
literário da epopeia e da tragédia e, finalmente, a história. A história
substitui tão pouco o mito, que Platão faz ainda guerra aos mitos nos seus
diálogos, não sem incluir porém aqui e ali algum palaios logos recebido da
tradição órfica ou da sabedoria atribuída ao Egito. E até ele mesmo cria certos
mitos sob a forma de contos filosóficos. (pag. 254)
É
porque o tempo é uma confusão total para o observador humano, que o poeta apela
á Musa para uni-lo á mais alta visão dos deuses. Nos mitos de Hesíodo, as
idades e as raças que nele evoluem estão inseridos entre o tempo dos deuses e o
tempo dos homens, servindo tanto para separa-los como para pô-los em relação. É
uma história de decadência, interrompida somente pela quarta raça, a dos
heróis. O destino da raça da última idade, a idade de ferro, é sofrer a fadiga
e as tribulações e, portanto, viver sofridamente no tempo. O único remédio para
isso é a repetição monótona do trabalho nos campos. Contudo, o ciclo do tempo
já é o do tempo humano. (pag. 255)
É
só com Tucídides que um tempo lógico vai guiar a desordem do tempo histórico,
provinda da repetição das mesmas dissensões entre cidades, o que provoca a
“ocorrência e a recorrência sem fim” das desgraças inumeráveis e terríveis. O
segundo grande historiador grego está então pronto para definir sua obra como
um meio de “penetrar claramente no acontecimentos do passado e nos que devem
ainda vir, em razão do caráter humano que possuem, oferecendo semelhanças e
analogias” (História da guerra do Peloponeso, 1.22). é o sentido da famosa
expressão ktēma
eis aiei (aquisição para sempre): o tempo humano só toma consciência perante o
tempo dos deuses quando a narrativa é encarada em uma espécie de lógica da
ação. (pag. 256)
No
caso do cristianismo, talvez não existam textos sagrados, porque não é o texto
que é sagrado, mas Aquele de quem se fala. Por exemplo, não há privilegio para
a língua em que o texto foi escrito pela primeira vez: não há nenhuma
importância em lê-lo em grego, hebraico ou aramaico etc. aí já há algo que
permite o ato crítico: o ato crítico não é proibido pela natureza do texto,
porque não é um texto sagrado no sentido em que o Alcorão é sagrado (pois um
muçulmano diria que ler o Alcorão em inglês não é ler o Alcorão: tem de ser
lido em árabe). Mas para o cristianismo, a tradução é totalmente possível,
porque a tradução dos Setenta é uma espécie de dessacralização da língua
original, do momento em que se admitiu que a Bíblia podia ser posta em grego. E
uma certa atividade critica estava implicada nesse ato de tradução. Para seu
tempo, Jerônimo era um espírito crítico. (pag. 279 e 280)
Eu
era bastante reticente quanto a utilizar a palavra “sagrada” em meu ensaio
sobre a revelação ([² Ver P. RICOEUR, “Toward a Hermeneutic of the Idea of
Revalation” , em L.SMUDGE (Ed) essayas on Biblical interpretation, Filadélfia,
1980, 73-118; publicado em Frances o titulo de La Révélation, Bruxelles,
1977,15-54]). Tive de lutar muito duramente até dizer enfim, em que eu creio, o
que eu penso quando me sirvo da palavra “revelação”. Mas até um certo ponto estou
pronto a dizer que reconheço algo de revelador que não está fixado em todo
texto absoluto e imutável. Porque o processo de revelação é um movimento
permanente de abertura de alguma coisa que está fechada, a manifestação de
alguma coisa que estava oculta. A revelação é um processo histórico, mas a noção
de texto sagrado é algo anti-histórico. Sinto-me aterrorizado por esta palavra:
“sagrado”. (pag. 283)
Na
minha opinião, o projeto de uma teologia narrativa não é idêntico ao de uma
teologia da historia – se entendemos por teologia da história uma tentativa de
construir uma historia universal no sentido hegeliano, sob a conclusão de uma
“Heilsgeschchte” indo do Gênesis ao Apocalipse, pontuada por acontecimentos
salvíficos tais como o Êxodo e a
Ressurreição. A propósito, defendo que “o eclipse da narrativa bíblica”, que Hans
Frei descreve em seu livro magistral, aplica-se a um esquema de pensamento
proveniente da confusão de uma teologia que leva em conta a dimensão narrativa
da fé bíblica e uma teologia da história mais ou menos sofisticada. ([² Ver H. FREI, The Eclipse of Biblical Narrative: a
Study in Eighteenth and Niineteenhh Century Hermeneutics, New Haven, Yale
University Press, 1974]) (pag. 286)
Os
RESURSOS DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA
Os
principais recursos da teologia narrativa são as prodigiosas aquisições que
podemos constatar no campo da narratologia. Essas aquisições podem ser
colocadas sob quatro rubricas:
1.
Primeiro, encontramos na arte de
tecer a intriga a paradigma de todos os estratagemas literários empregados
pelos narradores de maneira a obter uma narrativa inteligível de uma série de
acontecimentos ou peripécias ou, reciprocamente, de modo a fazer que esses
eventos ou peripécias entrem na narrativa. Dessa maneira, o tecer da intriga
junta traços tão heterogênios quanto circunstancias, agentes, interações,
consequências, meios e resultados fortuitos. (pag. 288)
Essa
temporalidade mistura os dois componentes temporais: de um lado, a pura
sucessão abstrata e interminável que podemos chamar de peripécias da narrativa, o que constitui a
face episódica da narrativa; de outro lado, o aspecto de integração, de
culminação e de fechamento trazido pelo que Louis O. Mink chama “o ato
configuracional da narração”. Esse ato consiste em agrupar as peripécias da
narrativa e criar a configuração de uma sucessão. (pag. 288)
3.O
terceiro traço que uma teologia narrativa pode reter do estado atual da
discussão corrente no campo literário diz respeito ao papel da tradição, não só
na transmissão, mas igualmente na recepção e na interpretação das narrativas
recebidas. Esse fenômeno de tradicionalidade é muito complexo porque repousa na
dialética maleável entre inovação e sedimentação. É a sedimentação que
atribuímos aos paradigmas que permite que uma tipologia do tecer a intriga
surja e se estabilize. Mas o fenômeno oposto da inovação não é menos
importante. Por quê? Porque os paradigmas gerados por uma precedente inovação
servem de guias para uma experimentação ulterior no campo narrativo.nessa
dialética entre inovação e sedimentação, toda uma panóplia de soluções
desenvolveu-se entre os dois pólos da repetição servil e do desvio calculado,
potencialmente através de todos os graus da deformação regulada.
4. O
quarto traço que quero reter para nossa discussão ulterior da teologia
narrativa concerne á “significação de uma narração”. Esse tipo de
“significação” não está confinada em um suposto interior do texto. Ela advém na
interseção entre o mundo do texto e o mundo dos leitores. É sobretudo na
recepção do texto pelos leitores que a capacidade da intriga de transfigurar a
experiência é atualizada.
Por mundo
do texto, entendo o mundo desdobrado diante dele, por assim dizer como o
horizonte da experiência possível no qual a obra desloca seus leitores. Por
mundo do leitor, entendo o mundo efetivo em que a ação real é desenvolvida no
meio de uma “rede de relações”, para empregar uma expressão de Hannah Arendt em
The Human Condition [A condição humana]. (pag. 289 e 290)
A
DIFICULDADE DE UMA TEOLOGIA NARRATIVA
Tal é o
sentido em que se pode dizer que as narrações bíblicas intensificam a qualidade
narrativa da experiência. Mas há fortes razões para exprimir duvidas sobre a
continuidade entre as narrativas bíblicas e as narrativas em geral. Mencionarei
quatro delas.
Primeiro,
essas narrações pertencem á classe das narrativas “sagradas” enquanto opostas
ás narrativas “profanas” ([¹¹ S. CRITES, “The Narrative QuLITY Of Experience”,
Journal of American Academy of religion 39 (1971) 291-311]). Não é que façam
uso de uma linguagem diferente da linguagem de todos os dias: ao contrário,
essas narrativas enraízam o discurso teológico na linguagem ordinária. Não é
sua linguagem que é sagrada, mas sua função. Portamos do que acabamos de dizer
sobre a metanarrativa. Só falta acrescentar alguns traços decisivos de modo a
compreender a diferença entre narrativas sagradas e profanas. Primeiro, essas
narrativas são tradicionais no sentido em que o fato de terem sido no passado
narradas dessa maneira constitui uma razão para contá-las de novo. Segundo,
elas fazem autoridade, no sentido em que consistem em seleções e coleções que
separam os textos canônicos dos apócrifos. Terceiro, são litúrgicas no sentido
em que alcançam sua plena significação quando são reativadas em um contexto cultural.
(pag. 293)
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