terça-feira, 14 de outubro de 2025

FRIEDRICH NIETZSCH: ASSIM FALOU ZARATUSTRA

 




Primeira Parte

 

(Síntese:Paolo Cugini )

(Digitação: Neilka Vieira)

 

O prólogo de Zaratustra

 

1

 

Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago da sua terra natal e foi para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão, sem deles se casar. No fim, contudo, seu coração mudou; e, certa manhã, levantou-se ele com a aurora, foi para diante do sol e assim lhe falou:

“Queria a tua felicidade, ó grande astro, se não tivesses aqueles que iluminas!

São dez anos que sobes à minha caverna; e já se te haveriam tornado enfadonhos a tua luz e este caminho, sem mim, a minha águia e a minha serpente.

Mas nós te esperávamos todas as manhãs, tomávamos de ti o teu supérfluo e por ele te abençoávamos.

Vê! Aborreci-me da minha sabedoria, como a abelha do mel que ajuntou em excesso; preciso de mãos que para mim se estendam.

Eu desejaria dar e distribuir tanto, que os sábios dentre os homens voltassem a alegrar-se de sua loucura e os pobres, de sua riqueza.

Por isso, é preciso que eu baixe às profundezas, como fazes tu à noite, quando desapareces atrás do mar, levando ainda a luz ao mundo ínfero, ó astro opulento!

Como tu, devo ter o meu acaso, segundo dizem os homens para junto dos quais quero descer.

Abençoa-me pois, olho tranqüilo, que pode, sem inveja, contemplar uma ventura ainda que demasiado grande!

Abençoa a taça que quer transbordar, a fim de que sua água escorra dourada, levando por toda a parte o reflexo da tua bem-aventurança!

Vê! Esta taça quer voltar a esvaziar-se e Zaratustra quer voltar a ser homem”.

Assim começou o acaso de Zaratustra.

 

2

 

Zaratustra desceu a montanha sozinho e sem encontrar ninguém. Mas, quando chegou às floretas, deparou repentinamente com um velho, que deixava a sua sagrada choupana para ir à procura de raízes no mato. E assim falou o velho a Zaratustra:

“Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.

Naquele tempo, levavas a tua cinza para o monte; queres, hoje, trazer o fogo para o vale? Não receias as penas contra os incendiários?

Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar e não há em sua boca nenhum laivo de náusea. Não será por isso que caminha como um dançarino?

Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem?

Vivias na solidão como num mar e o mar te transportava. Ai de ti, queres novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?”

Zaratustra respondeu: “Amo os homens”.

“E por que foi, então”, disse o santo, “que eu me recolhi à floresta e ao ermo? Não foi porque amei demais os homens?

Agora, amo Deus, não amo os homens. Coisa por demais imperfeita é, para mim, o ser humano. O amor aos homens me mataria.”

Zaratustra respondeu: “Por que fui falar de amor! Trago aos homens um presente.”

“Não lhes dês nada”, disse o santo. “Tira-lhes, de preferência, alguma coisa de cima e ajuda-os a lavá-la; será o que de melhor poderás fazer por eles, se for bom para ti.

E, se queres dar-lhes alguma coisa, que não seja mais do que uma escola; e, mesmo assim, só depois que a mendiguem.”

“Não”, respondeu Zaratustra e falou assim: “Trata, então, de que aceitem os teus tesouros! Eles desconfiam dos solitários e não acreditam que os procuremos para presenteá-los.

Por demais desacompanhados, para eles, ecoam nossos passos nas ruas. E, quando, à noite, em suas camas, ouvem alguém caminhar muito antes que o sol desponte, perguntam a si mesmos: ‘Aonde irá esse ladrão?’

Não vás para junto dos homens, e fica na floresta! Vai ter, antes, com os animais! Por que não queres ser como eu – um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”

“E o que faz o santo na floresta?”, indagou Zaratustra.

O santo respondeu: “Faço canções e as canto; e, quando faço canções, rio, choro e falo de mim para mim: assim louvo Deus.

Cantando, chorando, rindo e falando de mim para mim, louvo o Deus que é o meu Deus. Mas tu, que nos trazes de presente?”

Ao ouvir essas palavras, despediu-se Zaratustra do santo, dizendo: “Que teria eu para dar-vos? Mas deixa-me ir embora depressa, antes que vos tire alguma coisa!” E assim se separaram, o velho e o homem, rindo como dois meninos.

Mas, quando ficou só, Zaratustra falou assim ao seu próprio coração: “Será possível: Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!”

 

3

 

Ao chegar à cidade mais próxima , encontrou Zaratustra grande quantidade de povo reunido na praça do mercado; pois lhes fora prometido que iriam ver um funâmbulo. E Zaratustra assim falou ao povo: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?

Todos os seres, até gora, criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?

Que é o macaco para o homem? Um motivo de risco ou de dolorosa vergonha. E é justamente isso o que o homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa vergonha.

 Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, mas ainda tendes muito do verme. Fostes macacos, um tempo, e, também agora, o homem é ainda mais macaco do que qualquer macaco.

Mas o mais sábio dentre vós não passa de uma discrepância e de um híbrido de planta e de fantasma. Mas vos mando eu, porventura, tornar-vos fantasmas ou plantas?

Vede, eu vos ensino o super-homem!

O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’

Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadoras, são eles, que o saibam ou não.

Desprezadores da vida, são eles, e moribundos, envenenadores por seu próprio veneno, dos quais a terra está cansada; que desapareçam, pois, de uma vez!

Outrora, o delito contra Deus era o maior dos delitos; mas Deus morreu e, assim, morreram também os delinqüentes dessa espécie. O mais terrível, agora, é delinqüir contra a terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra!

Outrora, a alma olhava desdenhosamente o corpo; e esse desdém era o que havia de mais elevado; - queria-o magro, horrível, faminto. Pensava, assim, escapar-se dele e da terra.

Oh, essa alma era, ela mesma, ainda magra, horrível e faminta; e a crueldade era a sua volúpia!

Mas, também ainda vós, meus irmãos, dizei-me: que vos informa vosso corpo a respeito da vossa alma? Não é ele miséria, sujeira e mesquinha satisfação?

Em verdade, um rio imundo, é o homem. E é realmente preciso ser um mar, para absorver, sem sujar-se, um rio imundo.

Vede, eu vos ensino o super-homem: é ele o mar onde pode submergir o vosso grande desprezo.

Que podeis experimentar de mais excelso? A hora do grande desprezo. A hora em que também a vossa felicidade se converte em náusea, do mesmo modo que a vossa razão e a vossa virtude.

A hora em que dizeis: ‘Que me importa a minha felicidade! Não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação. Mas, justamente, é a minha felicidade que deveria justificar a existência!’

A hora em que dizeis: ‘Que me importa a minha razão! Acaso cobiça ela o saber, como o leão o seu alimento? Não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação!’

A hora em que dizeis: ‘Que me importa a minha virtude! Ainda não me fez delirar. Como estou farto daquilo que, para mim, é o bem e o mal! Tudo isso não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação!’

A hora em que dizeis: ‘Que me importa a minha justiça! Não vejo que por ela eu me tornasse carvão em brasa. Mas o justo torna-se carvão em brasa!’

A hora em dizeis: ‘Que me importa a minha compaixão! Não é a compaixão a cruz na qual se prega aquele que ama os homens? Mas a minha compaixão não é crucificação.’

Já falaste assim? Já gritastes assim? Ah, se eu vos tivesse ouvindo, algum dia, gritar assim!

Não o vosso pecado, a vossa moderação brada aos céus, a vossa avareza até no pecado brada aos céus!

Onde está o raio que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados?

Vede, eu vos ensino o super-homem: porque é ele esse raio e essa loucura! –”

Depois que Zaratustra assim falou, alguém no meio do povo gritou: “Já basta de ouvirmos falar do funâmbulo; agora, queremos também vê-lo!” e o povo todo riu-se de Zaratustra. Mas o funâmbulo, julgado que o discurso se houvesse referido a ele, preparou-se para o seu trabalho.

 

4

 

Mas Zaratustra olhou, admirado, para o povo. Depois, falou assim: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo.

É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar.

O que há de grande, no homem, é ser uma transição e um acaso.

Amo os que não sabem viver senão no acaso, porque estão a caminho do outro lado.

Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio pela outra margem.

Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem.

Amo aquele que vive para adquirir o conhecimento e quer o conhecimento para que, algum dia, o super-homem viva. E quer, assim, o seu próprio ocaso.

Amo aquele que trabalha e faz inventos para construir a casa do super-homem e preparar para ele a terra, os animais e as plantas: porque, assim, quer o seu próprio ocaso.

Amo aquele que ama a sua própria virtude: porque a virtude é vontade de ocaso e uma flecha do anseio.

Amo aquele que não guarda para si uma só gota de espírito, mas quer ser totalmente o espírito da sua virtude: assim transpõe, como espírito, a ponte.

Amo aquele que da sua virtude faz o seu próprio pendor e destino: assim, por amor à sua virtude, quer ainda e não quer mais viver.

Amo aquele que não deseja ter demasiadas virtudes. Uma só virtude é mais virtude do que duas, porque é uma nó mais forte ao qual se agarra o destino.

Amo aquele que prodigaliza a sua alma, não quer que lhe agradeçam e nada devolve: pois é sempre dadivoso e não quer conservar-se.

Amo aquele que sente vergonha se o dado cai a seu favor e que, então, pergunta: “Sou, acaso, um trapaceiro?’ – porque quer perecer.

Amo aquele que atira palavras de ouro precedendo deus atos e, ainda assim, cumpre sempre mais do que promete: pois quer o seu ocaso.

Amo aquele que justifica os seres futuros e redime os passados: porque quer perecer dos presentes.

Amo aquele que pune o seu deus, porque o ama: pois deverá perecer da ira do Deus.

Amo aquele cuja alma é profunda também na mágoa e pode perecer de uma pequena ocorrência pessoal: assim transpõe a ponte de bom grado.

Amo aquele cuja alma é tão transbordante, que se esquece de si mesmo e que todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas tornam-se o seu ocaso.

Amo aquele cujo espírito e coração são livres: assim, nele, a cabeça é apenas uma víscera do coração, mas o coração o arrasta para o ocaso.

Amo todos aqueles que são  como pesadas gotas caindo, uma a uma, da negra nuvem que paira sobre os homens: prenunciam a chegada do raio e perecem como prenunciadores.

Vede, eu sou um prenunciador do raio e uma pesada gota da nuvem; mas esse raio chama-se super-homem.” –

 

5

 

Depois de proferir essas palavras, tornou Zaratustra a olhar para o povo e guardou silêncio. “Lá estão eles rindo”, disse ao seu coração; “não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos.

Será preciso, primeiro, partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso retumbar como tambores e pregadores de sermões quaresmais? Ou acreditarão somente nos que gaguejam?

Possuem alguma coisa da qual se orgulham. Como chamam, mesmo, àquilo que os torna orgulhosos? Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos pastores de cabras.

Por isso ouvem com desagrado, a seu respeito, a palavra ‘desprezo’. Vou, portanto, falar-lhes ao orgulho.

Vou, portanto, falar0lhes do que há de mais desprezível: ou seja, do último homem.”

“Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da sua mais alta esperança.

Seu solo ainda é bastante rico para isso. Mas, algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele.

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além do homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar!

Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós.

Ai de nós! Aproximar-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.

Vede! Eu vos mostro o último homem.

‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?’ – assim pergunta o último homem, piscando o olho.

A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextirpável como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais longa.

‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.

Abandonaram as regiões onde era duro viver: porque o calor é necessário. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: porque o calor é necessário.

Adoecer e desconfiar é pecado, para eles: deve-se andar com toda a atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou homens!

De quando em quando, um pouco de veneno: gera sonhos agradáveis. E muito veneno, no fim, para um agradável morrer.

Ainda trabalham, porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam de que o passatempo não canse.

Mais ninguém torna-se rico ou pobre: por demais penosas são ambas as coisas. Quem, ainda, deseja governar? Quem, ainda, obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas.

Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio.

‘Outrora todo o mundo era doido’ – dizem os mais sutis, piscando o olho.

São inteligentes e sabem tudo o que aconteceu: assim, sua chacota não tem fim. Zangam-se, ainda, mas logo reconciliam-se – para não estragar o estômago.

Têm seus pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite; mas respeitam a saúde.

‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.” –

E aqui terminou o primeiro discurso de Zaratustra, também chamado “o prólogo”: pois, nesse ponto, foi ele intErrompido pela algazarra e o júbilo da multidão. “Dá-nos esses últimos homens, ó Zaratustra!”, gritavam. – “Transforma-nos nesses últimos homens! E nós te damos de presente o super-homem!” E o povo todo soltava gritos de alegria e fazia estalar a língua. Mas Zaratustra entristeceu-se e disse ao seu coração:

“Eles não me compreendem: eu não sou a boca para esses ouvidos.

Demasiado tempo, decerto, vivi na montanha, por demais escutei os córregos e as árvores: falo com eles, agora, como os pastores de cabras.

Serena está minha alma e clara como a montanha pela manhã. Mas eles me acham frio e julgam-me um zombador que diz sinistras pilhérias.

E olham para mim rindo e, rindo, ainda me odeiam. Há gelo no seu riso.”

 

6

 

Mas então, aconteceu uma coisa que fez todas as bocas calarem-se e os olhos se esbugalharem. É que, entrementes, o funâmbulo pusera mãos à obra: saíra de uma pequena porta e caminhava na corda, entendida entre duas torres, e que assim, portanto, se achava suspensa sobre a praça e o povo. Estava ele, justamente, na metade de seu percurso, quando a pequena porta abriu-se de novo e um tipo, todo sarapintado a modo de palhaço, saiu por ela pulando e, em passos rápidos foi atrás do primeiro. “Para a frente, perneta”, gritou em voz terrível, “para a frente, moleirão, tratante, cara pálida! Para que eu não te comiche com o meu calcanhar! Que fazes aqui, entre as torres? Dentro da torre é teu lugar! É la que deveriam trancar-se, a ti, que impedes a passagem de alguém melhor que tu!” – E, a cada palavra, mais se aproximava do outro; quando, porém, se achou somente um passo atrás dele, aconteceu a coisa horrível que fez todas as bocas calarem-se e os olhos se esbugalharem: - soltou um grito diabólico e pulou por cima daquele que lhe estorvava o caminho. Este, ao ver, assim, o rival triunfar, perdeu a cabeça e o pé; deitou fora a maromba e, mais depressa do que esta, num remoinho de braços e pernas, despencou no vazio. A praça e o povo, então, pareceram um mar revolto pela tempestade: todos fugiam em debandada e atropelo, principalmente no lugar onde o corpo iria espatifar-se.

Zaratustra, no entanto, não se moveu, e foi justamente perto dele que o corpo caiu, gravemente ferido e com os ossos partidos, mas ainda vivo. Após algum tempo, o infeliz recuperou os sentidos e viu Zaratustra de joelhos a seu lado. “Que fazes aqui?”, disse, por fim. “Desde muito eu sabia que o Diabo me daria uma rasteira. Agora, ele me arrasta para o inferno; pretendes impedi-lo?”

“Pela minha honra, amigo”, respondeu Zaratustra, “não existe nada daquilo que disseste: não existe o Diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto, não receies nada!”

O homem ergueu os olhos desconfiado. “Se o que dizes é verdade”, falou depois, “eu, então, nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais do que um bicho, que ensinaram a dançar à força de pancadas e pouca comida.”

“Oh, não”, retrucou Zaratustra; “fizeste do perigo o teu ofício, nada há nisso de desprezível. Morres, agora, vítima do teu ofício; por isso, quero sepultar-te com minhas próprias mãos”.

Depois que Zaratustra disse essas palavras, o moribundo não respondeu mais; mas moveu a mão como se procurasse, para agradecer, a mão de Zaratustra.

 

7

 

Entrementes, anoiteceu e a praça do mercado ficou envolta na escuridão; e o povo dispersou-se, porque também a curiosidade e o terror cedem ao cansaço. Mas Zaratustra permaneceu sentado no chão, junto do morto, engolfado em pensamentos; e, assim, esqueceu-se do tempo. Por fim, contudo, chegou a noite, e um vento frio soprou sobre o solitário. Levantou-se, então, Zaratustra, e disse ao seu coração:

“Em verdade, uma linda pescaria fez hoje Zaratustra! Não pescou nenhum homem, mas um cadáver.

Assombra é a existência humana e ainda sem qualquer sentido: pode um palhaço tornar-se-lhe fatal.

Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: que é o super-homem, o raio que rebenta da negra nuvem chamada homem.

Mas estou ainda longe deles e o sentido do que eu falo não diz nada aos seus sentidos. Ainda sou, para os homens, um posto intermédio entre um doido e um cadáver.

Escura é a noite, escuros são os caminhos de Zaratustra. Vem, rígido e frio companheiro! Vou levar-te para onde te sepulte com minhas mãos.”

 

8

 

Após dizer isso ao seu coração, carregou Zaratustra o cadáver às costas e pôs-se a caminho. Mas, nem bem tinha dado cem passos, um homem se lhe acercou de mansinho e murmurou alguma coisa ao seu ouvido – e eis que quem falava era o palhaço da torre. “Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra”, dizia; “muitos são os que, aqui, te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e chamam-te seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, e chamam-te um perigo para a multidão. A tua sorte foi que riram de ti; e, na verdade, falaste como um palhaço. A tua sorte foi que te acamaradaste com esse cão morto; ao rebaixar-te assim, salvaste-te, por hoje. Mas vai-te embora desta cidade; - ou, amanhã, eu pulo por cima de ti, um vivo por cima de um morto.” E, após dizer isso, o homem desapareceu; Zaratustra, porém, prosseguiu seu caminho pelas ruas escuras.

Na porta da cidade, encontrou-se com os coveiros, que iluminaram seu rosto com os archotes, reconheceram Zaratustra e riram muito dele. “Zaratustra está levando embora o cão morto; que bom que Zaratustra se tornasse coveiro! Porque nossas mãos são demasiado limpas para essa carne assada. Acaso Zaratustra pretende roubar ao Diabo o bocado que lhe cabe? Pois muito bem! Bom apetite, e que lhe faça bom proveito! Contamos que o Diabo não seja um ladrão melhor que Zaratustra – e roube e coma os dois!” E riam, cochichando entre si.

Zaratustra não lhes deu resposta e continuou seu caminho. Após andar duas horas, perlongando florestas e brejos, tinha ouvido bastante o faminto uivar dos lobos, e ele mesmo sentiu fome. De sorte que parou diante de uma casa solitária, onde havia um lume aceso.

“A fome me assalta como um bandido”, disse Zaratustra. “A minha fome me assalta em meio a floresta e brejos e no coração da noite.

Singulares caprichos, tem minha fome. Vem-me, amiúde, somente depois da refeição e, hoje, não a senti o dia todo: por onde está andando?”

E, assim falando, bateu Zaratustra. “Dai-me de comer e beber, esqueci-me de fazê-lo durante o dia. Quem dá de comer ao faminto regala a sua própria alma: assim fala a sabedoria.”

O velho retirou-se, mas, logo depois, voltou, oferecendo a Zaratustra pão e vinho. “Mas paragens são estas para os famintos”, disse; “por isso eu moro aqui. Bichos e homens procuram por mim, o eremita. Mas manda também o teu companheiro comer, ele está mais cansado do que e tu.” Zaratustra respondeu: “O meu companheiro é um morto, vai ser-me difícil convencê-lo a comer”. “Não tenho nada com isso”, disse o velho, enfezado; “quem bate a minha porta deve, também, aceitar o que lhe ofereço. Comei e passei bem.”

Depois disso, andou Zaratustra mais duas horas, confiando-se ao caminho e à luz das estrelas: pois tinha por hábito caminhar à noite e gostava de olhar no rosto tudo o que dorme. Mas, ao alvorecer, encontrou-se numa floresta espessa, onde não se via mais nenhum caminho. Então pousou o morto numa árvore oca, em um ponto mais alto do que a sua própria cabeça (pois queria protegê-la contra os lobos), e deitou-se no musgo do solo. E logo adormeceu, com o corpo cansado, mas a alma tranqüila.

 

9

 

Longamente dormiu Zaratustra, e não somente a aurora passou sobre seu rosto, mas, também, a manhã toda. Finalmente, seus olhos se abriram: admirado, olhou Zaratustra a floresta e o silêncio, e, admirado, olhou a si mesmo. Levantou-se, então, depressa, como um navegador que vê repentinamente terra, e exultou: porque viu uma nova verdade. E assim, então, falou ao seu coração:

“Uma luz raiou em mim: de companheiros, eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres, que levo comigo aonde quero.

Preciso, sim, de companheiros vivos, que me sigam porque querem seguir-se a si mesmos – e para onde eu queira.

Uma luz raiou em mim: não à multidão fale Zaratustra, mas a companheiros! Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um rebanho!

Atrair muitos para fora do rebanho – foi para isso que vim. Deverá irar-se comigo a multidão e o rebanho: ‘ladrão1, quer chamar-se Zaratustra para os pastores.

Pastores, digo eu, mas eles se dizem os bons e os justos. Pastores, digo eu, mas eles se dizem os crentes da verdadeira fé.

Olhai-os, os bons e os justos! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.

Olhai-os, os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.

Companheiros, procura o criador, e não cadáveres; nem , tampouco, rebanhos e crentes. Participantes na criação, procura o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas.

Companheiros, procura o criador, e participantes na colheita: porque nele tudo está maduro para a colheita. Mas faltam-lhe as cem foices e, assim, irritado, vai arrancando espigas.

Companheiros, procura o criador, e tais que saibam afiar suas foices. Destruidores, serão chamados, e desprezadores do bem e do mal. Mas são eles que farão a colheita e a festejarão.

Participantes na criação, procura Zaratustra, participantes na colheita e festejadores, procura Zaratustra; que tem ele a ver com rebanhos, pastores e cadáveres!

E tu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Estás bem sepultado em tua árvore oca, estás bem protegido contra os lobos.

Mas separo-me de ti, o tempo acabou. Entre uma aurora e outra, uma nova verdade apareceu-me.

Não pastor, devo ser, nem coveiro. Não quero mais, sequer, falar novamente ao povo; pela última vez, falei a um morto.

Quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhe o arco-íris e todas as escadas do super-homem.

Cantarei minha canção aos que vivem solitários ou em solidão a dois; e, quero que, quem ainda tem ouvidos para o que nunca se ouviu, sinta minha ventura oprimir-lhe o coração.

Quero atingir a minha meta, quero seguir o meu caminho; e pularei por cima dos hesitantes e dos retardatários. Que a minha jornada seja a sua ruína!”.

 

10

 

Isso dissera Zaratustra ao seu coração quando o sol estava no meio-dia; volveu, então, para o alto um olhar indagador – pois ouvia sobre sua cabeça o grito agudo de uma ave. E eis que viu uma águia voando em amplos círculos no ar e dela pendia uma serpente, não como presa, mas como amiga, pois se segurava enrolada em seu pescoço.

“São os meus animais!”, disse Zaratustra, regozijando-se de todo o coração.

“O animal mais altivo debaixo do sol e o animal mais prudente debaixo do sol – saíram em exploração.

Querem saber de Zaratustra ainda está vivo. Em verdade, estou eu ainda vivo?

Encontrei mais perigos entre os homens do que entre os animais, perigosos são os caminhos de Zaratustra. Possam guiar-me os meus animais!”

Após dizer isso, lembrou-se Zaratustra das palavras do santo na floresta, suspirou e assim falou ao seu coração:

“Pudesse eu ser mais prudente! Pudesse eu ser prudente por natureza, como a minha serpente!

Mas estou pedindo o impossível; assim, peço à minha altivez que acompanhe sempre a minha prudência.

E se, algum dia, a minha prudência me abandonar – ah, como gosta de bater asas! -, possa a minha altivez, então, voar ainda em companhia da minha loucura!”

Assim começou o ocaso de Zaratustra.

 

Os discursos de Zaratustra

 

Das três metamorfoses

 

Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança.

Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua força.

“O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo e quer ficar bem carregado.

“O que há de mais pesado, ó heróis”, porque o espírito de suportação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?

Não será isto: humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a própria loucura, para escarnecer da própria sabedoria?

Ou será isto: apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos montes, a fim de tentar o tentador?

Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à verdade, padecer fome na alma?

Ou será isto: estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de amizade aos surdos, que não ouvem nunca o que queremos?

Ou será isto: entrar na água suja, se for a água da verdade, e não enxotar de si nem as frias rãs nem os ardorosos sapos?

Ou será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele nos quer assustar?”

Todos esses pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ela para o próprio deserto.

Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito torna-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto.

Procura, ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão.

Qual é o grande dragão , ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus? “Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero.”

“Tu deves” barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouros; animal de escamas, em cada escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves!”

Valores milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim.

Todo o valor já foi criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais haver nenhum ‘Eu quero’!”. Assim fala o dragão.

Meus irmãos, para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?

Crias novos valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer.

Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso, meus irmãos, precisa-se do leão.

Conquistar o direito de criar novos valores – essa é a mais terrível conquista para o espírito de suportação e de respeito. Constitui pra ele, na verdade, um ato de rapina e tarefa de animal rapinante.

Como o que há de mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é forçado a encontrar quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a fim de arrebatar a sua própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal de rapina, precisa-se do leão.

Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?

Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”.

Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo.

Nomeei-vos três metamorfoses do espírito: como o espírito tornou-se camelo e o camelo,leão e o leão, por fim, criança. - -

Assim falou Zaratustra. E achava-se, nesse tempo, na cidade chamada A Vaca Pintalgada.

 

Dos desprezadores do corpo

 

Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem,a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e, destarte, emudecer.

“Eu sou corpo e alma” – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?

Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo.”

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão.

“Eu”, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.

Aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem seu fim em si mesmo. Mas sentidos e espíritos desejariam persuadir-te de que são eles o fim de todas as coisas: tamanha é sua vaidade.

Instrumentos e brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser próprio. O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito.

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu.

Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo.

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria?

O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. “Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?”, diz de si para si. “Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos..”

O ser próprio diz ao eu: “Agora, sente dor!” E, então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e para isto, justamente, deve pensar.

O ser próprio diz ao eu: “Agora, sente prazer!” E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar.

Quero dizer uma palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Mas quem criou o apreço e o desprezo e o valor e a vontade?

O ser próprio criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade.

Mesmo em vossa  estultície e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida.

Não consegue mais o que quer acima de tudo: - criar para além de si. Isto ele quer acima de tudo; é o seu fervido anseio.

Mas achou que, agora, era tarde demais para isso; - e, assim, o vosso ser próprio quer perecer, ó desprezadores da vida.

Perecer, quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós.

E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo.

Não sigo o vosso caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao super-homem! –

Assim falou Zaratustra.

 

Dos pregadores da morte

 

Há pregadores da morte; e a terra está repleta de gente à qual deve pregar-se que abandone a vida.

Repleta está a terra de gente supérflua, estragada está a vida pelos muitos-demais. Possa a “vida eterna” atraí-los para fora desta vida!

“Amarelos”: assim são chamados os pregadores da morte; ou, então, “negros”. Mas eu quero mostrá-los noutras cores.

Aí estão os seres terríveis, que trazem a fera dentro de si e para os quais não há escolha senão entre os prazeres e a maceração. E também seus prazeres ainda são maceração.

Ainda nem se quer se tornaram homens, esses seres terríveis; oxalá preguem o abandono da vida e eles mesmos se sumam!

Aí estão os tísicos da alma: mal nasceram, já começam a morrer e suspiram por doutrinas do cansaço e da renúncia.

Gostariam de estar mortos; e nós deveríamos, realmente, aprovar-lhes a vontade! Guardemo-nos de despertar esses mortos e bater nesses ataúdes!

Se deparam com um enfermo ou um velho ou um cadáver, dizem logo: “A vida está confutada!

Mas só eles estão confutados, e os seus olhos, que vêem apenas essa face da existência.

Envoltos em espessa melancolia e sequiosos dos pequenos acasos que ocasionam a morte: é assim que a esperam, cerrando os dentes.

Ou, então, recorrem a confeitos que os consolem, motejando, ao mesmo tempo, da sua própria criancice; agarram-se à tênue palha de suas vidas, motejando de que ainda se agarram a uma palha.

Assim reza a sua sabedoria: “Insensato é quem continua vivo, mas nós somos tão insensatos! E é esta, justamente, a maior insensatez da vida!”

“A vida é somente sofrimento”, - dizem outros, e não mentem; tratai, portanto, de que cesse essa vida que é somente sofrimento!

E que a doutrina da vossa virtude assim reze: “Deves matar-te a ti mesmo! Deves tu mesmo subtrair-te à existência!”

“A volúpia é pecado”, - dizem alguns dos que pregam a morte; - “vamos conservar-nos apartados e não procriar filhos!”

“O parto é uma coisa penosa” – dizem outros, - “para que mais partos? Só nascem infelizes!” E estes também são pregadores da morte.

“É preciso ter compaixão”, - dizem ainda outros. “Tomai o que tenho! Tomai o que sou! Tanto menos, assim, estarei a sua verdadeira bondade.

Mas querem é soltar-se da vida;  que lhes importa, se com suas correntes e dádivas, acabam prendendo mais solidamente os outros!

E vós também, para quem é árduo trabalho e inquietação: não estais cansados da vida? Não estais maduros para a pregação da morte?

Vós todos, que gostais do trabalho árduo e do que é rápido, novo, estranho – vós suportais mal vossas próprias pessoas: o vosso zelo é uma fuga e uma vontade de esquecer-vos de vós mesmos.

Se acreditásseis mas na vida, não vós abandonaríeis tanto ao momento presente. Mas não tendes em vós conteúdo suficiente para esperar – e nem sequer para a indolência.

Por toda a parte, ecoa a voz dos que pregam a morte – e a terra está repleta de gente à qual deve pregar-se a morte.

Ou “a vida eterna”: para mim, tanto faz – contanto que se suma depressa!

Assim falou Zaratustra.

 

Da castidade

 

Amo a floresta. Ruim é a vida nas cidades: há ali demasiados libidinosos.

Não é melhor ir parar nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher libidinosa?

E olhai um pouco para esses homens: seus olhos o dizem – nada de melhor conhecem, na terra, do que dormir com uma mulher.

Há lodo, no fundo de sua alma; e ai de nós se o lodo ainda tiver espírito!

Se, ao menos, fôsseis perfeitos como animais! Mas do animal é própria a inocência.

Aconselho-vos, porventura, a matar os vossos sentidos? Eu vos aconselho a inocência dos sentidos.

Aconselho-vos a castidade? A castidade é uma virtude, em alguns, mas, em muitos, quase um vício.

Esses, sem dúvida, praticam a abstenção; mas a cadela sensualidade lança olhares de inveja através de tudo o que fazem.

Mesmo no cume da sua virtude e até pelo frio espírito adentro, segue-os esse bicho, com sua inquietação.

E com que bons modos sabe a cadela sensualidade mendigar um pedaço de espírito, quando lhe negam um pedaço de carne!

Gostais de tragédias e de tudo o que despedaça o coração? Mas a vossa cadela me inspira desconfiança.

Olhos por demais cruéis, tendes, para o meu gosto, e vos vejo andar ávidos à procura de sofredores. Não será apenas a vossa volúpia que se disfarçou e se fez chamar compaixão?

E também esta parábola eu vos dou: não poucos, que queriam expulsar seus demônios, acabaram eles mesmos entrando nos porcos.

Àquele para quem a castidade é difícil, deve-se desaconselha-la; a fim de que não se torne, para ele, o caminho do inferno – ou seja, do lodo e da lascívia da alma.

Falo de coisas sujas? Não é, a meu ver, o que há de pior.

Não quando a verdade é suja, mas quando é pouco profunda, desce a contragosto em sua água aquele que busca o conhecimento.

Em verdade, há os castos no fundo de seu ser: são mansos de coração, riem mais de bom grado e mais abundantemente do  que vós.

Riem também da castidade e indagam: “Que vem a ser a castidade?

Não será a castidade uma loucura? Mas essa loucura veio a nós e não nós fomos a ela.

A essa visitante oferecemos a nossa hospitalidade e o nosso coração; agora, mora conosco – e que fique o tempo que quiser!”

Assim falou Zaratustra.

 

Do amor ao próximo

 

Sois pressurosos em acudir ao próximo e tendes bonitas palavras para isto. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é o vosso mau amor por vós mesmos.

Fugis para junto do próximo a fim de fugir de vós mesmos e desejaríeis fazer disto uma virtude; mas eu vejo claro em vosso “altruísmo”.

O tu é mais antigo do que o eu; o tu foi santificado, mas o eu ainda não: assim, o homem se apressa em acudir ao próximo.

Aconselho-vos o amor do próximo? Ainda prefiro aconselhar-vos a fuga do próximo e o amor do distante!

Mais alto do que o amor do próximo está o amor do distante e futuro; mais alto, ainda, do que o amor ao homem, reputo o amor às coisas e aos fantasmas.

Esse fantasma que corre à tua frente, meu irmão, é mais bonito do que tu; por que não lhe dás a tua carne e os teus ossos? Mas tens medo e corres para o teu próximo.

Não vos suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro.

Eu desejaria que não suportásseis qualquer espécie de próximo e seu vizinho; seríeis forçados, destarte, a criar o vosso amigo, com seu coração transbordante, tirando-o de vós mesmos.

Quando quereis falar bem de vós, convidais uma testemunha; e, quando a aliciastes a pensar bem de vós, vós mesmos pensais bem de vós.

Não mente apenas aquele que fala contrariamente ao que sabe, mas, principalmente, aquele que fala contrariamente ao que não sabe. E é assim que falais de vós no trato com o vizinho, mentindo a vós do mesmo passo que a ele.

Assim falou o louco: “A convivência com os homens perverte o caráter, especialmente quando não se tem caráter.”

E este vai ter com o próximo, porque está à sua própria procura, e aquele, porque desejaria perder-se. O vosso mau amor por vós mesmos transforma, para vós, a solidão em cárcere.

São os distantes que pagam pelo vosso amor do próximo; e, já quando cinco de vós estão juntos, há sempre um sexto que deve morrer.

Também não gosto de vossas festas: demasiados comediantes encontrei nelas e mesmo os espectadores portavam-se, amiúde, como comediantes.

Não o próximo, eu vos ensino, mas o amigo. Que seja o amigo, para vós, a festa da terra e um presságio do super-homem.

Eu vos ensino o amigo e o seu transbordante coração. Mas é preciso que saiba ser uma esponja, quem quer ser amado por corações transbordantes.

Eu vos ensino o amigo, que traz dentro de si o mundo pronto, um invólucro do bem – o amigo criador, que tem sempre um mundo pronto para dar de presente.

E, tal como se lhe desenrolou todo, enrola-se de novo, o mundo, para ele, em voltas sucessivas, como o nascer do bem pelo mal, como os fitos surgindo do acaso.

Que o futuro e distante sejam, para ti, a razão de ser do teu hoje: no amigo, deves amar o super-homem como a tua razão de ser.

Meus irmãos, eu não vos aconselho o amor do próximo aconselho-vos o amor do distante.

Assim falou Zaratustra.

 

Do caminho do criador

 

Queres, meu irmão, refugiar-te na solidão? Queres procurar o caminho de ti mesmo? Detém-te mais um pouco e escuta-me:

“Quem procura, facilmente se perde a si mesmo. Todo isolar-se é culpa”, assim fala o rebanho. E, durante muito tempo, pertenceste ao rebanho.

A voz do rebanho ainda ecoará também em ti. E, quando disseres: “Não tenho mais a mesma consciência que vós”, as tuas palavras serão lamento e mágoa.

Mas vê: essa mesma mágoa ainda foi gerada por aquela consciência; o derradeiro vislumbre dessa consciência ainda arde na tua angústia.

Queres, porém, seguir o caminho da tua angústia, que é caminho no rumo de ti mesmo? Mostra-me, pois, que tens direito e força para tanto!

Oh, há tanta cobiça das alturas! Há tantas crispações dos ambiciosos! Mostra-me que não és dos cobiçosos, nem dos ambiciosos!

Oh, tantos grandes pensamentos que não obram mais do que um fole: produzem vento e tornam mais vazio.

Dizes-te livre? Teus pensamentos dominantes, quero ouvir, e não que escapaste de um jugo.

És tal que tinhas direito a escapar de um jugo? Há os que, ao deitarem fora sua condição de servos, deitaram fora seu derradeiro valor.

Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra! Mas claramente deve teu olho informar-me: livre para quê?

Podes dar a ti mesmo o teu mal e o teu bem e suspender a tua vontade por cima de ti como uma lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?

Terrível é estar a sós com o juiz e vingador da própria lei. Assim uma estrela é arremessada no espaço vazio e no gélido respiro da solidão.

Hoje, ainda sofres dos muitos, tu, que és um; hoje, ainda tens toda a tua coragem e as tuas esperanças.

Mas, algum dia, sentirás o cansaço da solidão, algum dia, sentirás a tua altivez dobrar-se e a tua coragem ranger os dentes. Algum dia, gritarás: “Estou só!”

Algum dia , não mais verás o que em ti é elevado, mas verás perto demais o que é baixo; a tua própria excelsitude te fará tremer como se fosse um fantasma. Algum dia, gritarás: “Tudo é falso!”

Há sentimentos que querem matar o solitário; se não o conseguem, eles mesmos, então, devem morrer! Mas és tu capaz disto: ser um assassino?

Já conheces, meu irmão, a palavra “desprezo”? E o tormento da tua justiça em ser justa com os que te desprezam?

Muitos compeles a reformar o seu juízo a teu respeito; disto  eles te fazem grave imputação. Chegaste perto deles e, no entanto, passastes além, isto não te perdoarão nunca.

Tu os sobreexcedes; mas, quanto mais alto sobes, tanto menor te vê o olho da inveja. Mais que todos, porém, é odiado quem voa.

“Como pretenderíeis ser justo comigo!” – deves dizer. – “Escolho a vossa injustiça como o quinhão que me cabe.”

Injustiça e lama atiram contra o solitário; mas, meu irmão, se queres ser uma estrela, nem por isso deves brilhar menos para eles.!

E guarda-te dos bons e dos justos! Eles gostam de crucificar os que inventam a sua própria virtude – odeiam o solitário.

Guarda-te, também, da santa simplicidade! Para ela, tudo é ímpio, aquilo que não é simples; e gosta, também, de brincar com o fogo – o das fogueiras.

E guarda-te, ainda, dos arroubos do teu amor! Por demais rápido é o solitário em entender a mão a quem encontra.

A muita gente não deves dar a mão, mas sim, somente a pata; e quero que a tua pata tenha, também, garras.

Mas o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo; tu mesmo estás à tua espreita em cavernas e florestas.

Solitário, percorres o caminho de quem ama: amas-te a ti mesmo e, por isso, te desprezas, como sabem desprezar somente os que amam.

Criar, quer o que ama, porque despreza! Que sabe do amor quem não teve de desprezar, justamente, aquilo que amava!

Vai para a tua solidão com o teu amor, meu irmão, e com a tua atividade criadora; e somente mais tarde a justiça te seguirá capengando.

Vai para a tua solidão com as minhas lágrimas, meu irmão. Amo aquele que quer criar para além de si e, destarte, perece. –

Assim falou Zaratustra.

 

 

Das mulheres, velhas e jovens

 

“Por que, Zaratustra, te esquivas sorrateiro no lusco-fusco? E que escondes tão cuidadosamente debaixo do manto?

Será um tesouro com que te presentearam? Ou um filho que te nasceu? Ou segues tu mesmo, agora, porventura, os caminhos dos ladrões, tu, o amigo dos malvados?” –

Na verdade, meu irmão – falou Zaratustra -, é um tesouro que me deram de presente: é uma pequena verdade, isto que traga comigo.

Mas é rebelde como uma criancinha; e, se não lhe tapasse a boca, gritaria com toda a força.

Caminhava eu, hoje, sozinho, quando, na hora em que o sol se põe, encontrei-me com uma velhinha, que assim se dirigiu à minha alma:

“Muitas coisas Zaratustra disse também a nós, mulheres, mas nunca nos falou da mulher.”

E eu lhe respondi: “Da mulher, só se deve falar aos homens.”

“Fala da mulher a mim também”, disse ela; “sou velha bastante para esquecer logo as tuas palavras.”

E eu fiz a vontade à velhinha e assim lhe falei:

Tudo, na mulher, é enigma e tudo, na mulher, tem uma única solução: chama-se gravidez.

O homem, para a mulher, é um meio: o fim é sempre o filho. Mas que é a mulher para o homem?

Duas espécies de coisas, quer o verdadeiro homem: perigo e divertimento. Quer, por isso, a mulher, como o mais perigoso dos brinquedos.

É preciso que o homem seja educado para a guerra e a mulher, para o descanso do guerreiro; tudo o mais é estultície.

Não gosta o guerreiro – de frutos demasiadamente doces. Por isso, gosta da mulher; há ainda um travo amargo na mais doce das mulheres.

A mulher compreende a criança melhor do que o homem, mas o homem é mais criança do que a mulher.

No verdadeiro homem está oculta uma criança, que quer brincar. Ânimo, mulheres, descobri, pois, a criança no homem!

Um brinquedo, seja a mulher, puro e delicado, semelhante à pedra preciosa, iluminada pelas virtudes de um mundo que ainda não nasceu.

Que a luz de uma estrela brilhe em vosso amor! Que a vossa esperança seja: “Possa eu dar à luz o super-homem!”

Que haja coragem em vosso amor! Deveis investir com o vosso amor contra aqueles que vos inspiram medo.

Que a vossa honra consista em vosso amor! No mais, pouco a mulher entende de honra. Mas que a vossa honra seja sempre amar mais do que sois amadas e, nisso, nunca ficar atrás.

Que o homem tema a mulher, quando ela ama: é capaz de todo o sacrifício e qualquer outra coisa não tem, para ela, valor.

Que o homem tema a mulher, quando ela odeia: porque, no fundo da alma, o homem é apenas malvado, mas a mulher é ruim.

Que odeia a mulher mais que tudo? – Assim falou o ferro ao ímã: “Eu te odeio, mas que tudo, porque atrais, mas não és suficientemente forte para atrair-me a ti.”

A felicidade do homem chama-se: eu quero. A felicidade da mulher chama-se: ele quer.

“Vê! O mundo acaba de atingir a perfeição!” – assim pensa toda mulher, quando obedece com a força inteira do seu amor.

E obedecer, deve a mulher, e achar uma profundidade para a sua superfície. Superfície é o gênio da mulher, uma epiderme movediça e borrascosa numa água pouca funda.

Mas a alma do homem é profunda, seu caudal ressoa em cavernas subterrâneas; a mulher adivinha-lhe a força, mas não a compreende. –

Respondeu-me, então, a velhinha: “Muitas coisas gentis disse Zaratustra, especialmente para as que são bastante jovens para isso.

Estranho é que Zaratustra pouco conhece as mulheres e, ainda assim, tem razão a seu respeito! Será que isto acontece porque, à mulher, nada é impossível?

E agora, como agradecimento, recebe uma pequena verdade! Afinal, sou suficientemente velha para dá-la.

Enrola-a e tapa-lhe a boca, senão essa pequena verdade gritará com toda a força.”

“Dá-me a tua pequena verdade, mulher!”, disse eu. E assim falou a velhinha:

“Vais ter com mulheres? Não esqueças o chicote!” –

Assim falou Zaratustra.

 

Do casamento e dos filhos

 

Tenho uma pergunta somente para ti, meu irmão; e a lanço como uma sonda na tua alma, para que eu aprenda quão profunda ela é.

És jovem e desejas filhos e casamento. Mas pergunto-te: és um ser com o direito de desejar um filho?

És o vitorioso, o vencedor de ti mesmo, o dominador dos sentidos, o senhor das tuas virtudes? Isso eu te pergunto.

Ou não será que, em teu desejo, falam o animal e a necessidade? Ou a solidão? Ou a discórdia contigo mesmo?

Quero que a tua vitória e a tua liberdade anseiem por um filho. Monumentos vivos, deves construir, à tua vitória e libertação.

Deves construí-los acima e para além de ti mesmo. Mas, antes, precisas tu mesmo ser construído, quadrado de corpo e de alma.

Não somente para a frente, deves propagar-te, mas para o alto! Que a isso te ajude o jardim do casamento!

Um corpo mais elevado, deves criar, um movimento inicial, uma roda que gira por si mesma – um criador, deves criar.

Casamento: assim chamo a vontade a dois de criar um ser que seja mais do que aqueles que o criaram. Respeito mútuo, chamo ao casamento, respeito por aquele que quer com essa vontade.

Seja este o sentido e a verdade do teu casamento. Aquilo, porém, que os supérfluos chamam casamento – como hei de chamá-lo?

Ah, essa pobreza de alma a dois! Ah, essa sujeira de alma a dois! Ah, essa mesquinha satisfação a dois!

Casamento, chamam a isto tudo; e dizem que seus casamentos foram decididos no céu![1]

Bem, não gosto desse céu dos supérfluos! Não gosto desses animais emaranhados numa rede celeste!

Fique longe de mim, também, esse Deus que chega coxeando para abençoar quem ele não levou a unir-se.

Não zombeis desses casamentos! Que filho não teria motivo para lamentar-se de seus pais?

Digno pareceu-me esse homem, e maduro para o sentido da terra; mas, quando vi sua mulher, a terra pareceu-me um manicômio.

Sim, eu desejaria que a terra tremesse em convulsões, quando um santo e uma burrega se unem para a procriação.

Este saiu como um herói em busca de verdades e acabou caçando uma pequena mentira enfeitada.

Este outro era esquivo, em suas relações, e exigente, ao fazer uma escolha. Mas, de uma só vez, estragou para sempre a sua companhia: chama a isso o seu  casamento.

Aquele procurava uma serva com as virtudes de um anjo. De golpe, porém, tornou-se o servo de uma mulher e, agora, seria preciso, ainda por cima, que se tornasse um anjo.

Sempre cautelosos achei os compradores e, todos, com olhos espertos. Mas também o mais esperto deles ainda compra sua mulher como nabos em saco.

Muitas breves tolices – a isso chamai amor. E vosso casamento acaba com as muitas breves tolices numa única e longa estupidez.

O vosso amor pela mulher e o amor da mulher pelo homem: ah, pudessem ser compaixão por deuses sofredores e encobertos! Nas mais das vezes, contudo, são dois animais que mutuamente se farejam.

Mas também o vosso melhor amor não passa de uma arroubada metáfora e de uma dolorosa chama. É uma tocha que deveria iluminar-vos os caminhos mais elevados.

Para além de vós, devereis amar, algum dia! Logo, aprendei a amar. E por isto é que tivestes de beber o amargo cálice do vosso amor.

Há um sabor amargo até no cálice do melhor amor; assim, produz anseio pelo super-homem, assim, produz sede em ti, criador!

Sede do criador, flecha e anseio no rumo do super-homem: fala, meu irmão, é esta a tua vontade de casamento?

Sagrados são, para mim, tal vontade e tal casamento. –

Assim falou Zaratustra.

 

 

Segunda Parte

 

O menino com o espelho

 

Depois disso, voltou Zaratustra para a montanha e a solidão da sua caverna, furtando-se aos homens: à espera, como um semeador que lançou a semente. A alma, no entanto, se lhe enchia de impaciência e desejo daqueles que ele amava; porque muito, ainda, tinha para dar-lhes. E isto, justamente, é o mais difícil: fechar, por amor, a mão aberta e, como dispensador de dádivas, guardar o pudor.

Luas e anos passaram-se, assim, para o solitário; mas a sua sabedoria crescia e o fazia sofrer com sua plenitude.

Certa manhã, porém, acordou ele antes mesmo da aurora, refletiu demoradamente, em seu leito, e, por fim, falou ao seu coração:

“O que me assustou tanto, em meu sonho, que acordei? Não vinha ter comigo um menino, trazendo um espelho?

‘O Zaratustra’ – falou-me o menino – ‘olha-te no espelho!’

Quando, porém, me olhei no espelho, dei um grito e o meu coração alvoroçou-se: porque não a mim, vi nele, mas a carantonha e o riso escarninho de um diabo.

Em verdade, bem demais compreendo o sentido e o aviso do sonho: minha doutrina corre perigo, o joio quer chamar-se trigo!

Meus inimigos tornaram-se poderosos e desfiguraram a imagem da minha doutrina, de tal sorte que aqueles que mais amo devem envergonhar-se das dádivas que lhes dei.

Perdidos estão, para mim, os meus amigos; chegou, para mim, a hora de procurar os que perdi!” –

Com essas palavras, levantou-se Zaratustra de um salto, mas não como um homem assustado à procura de ar, senão, antes, como um vidente e um vate do qual se aposse o espírito. Admiradas, olharam para ela a sua águia e a sua serpente: porque, semelhante à aurora, seu rosto irradiava uma sobrevinda felicidade.

Que me aconteceu, afinal, meus animais? – disse Zaratustra. Acaso, não estou transformado? Acaso, não veio a mim a aventura como um vento de procela?

Néscia é a minha ventura e falará necedades: é ainda demasiado jovem – tende, pois, paciência com ela.

Ferido estou pela minha ventura: que todos os sofredores me sejam médicos!

Posso descer novamente para junto dos meus amigos e, também, dos meus inimigos! Pode Zaratustra novamente falar e dar presentes e fazer o melhor para os que ama.

Meu impaciente amor jorra em torrentes, descendo para levante e poente. Da silenciosa montanha e das barrascas da dor, corre a minha alma murmurejando nos vales.

Tempo demais ardi em anseios, olhando ao longe. Tempo demais pertenci à solidão; destarte, desaprendi o silêncio.

Uma boca, tornei-me por inteiro, e o estrugir de um riacho caindo de altas fragas; quero precipitar minha palavra nos vales.

E ainda que a minha torrente de amor se despenhe em terreno impérvio! Como poderia uma torrente não encontrar, por fim, o caminho do mar?

Decerto, há um lago, em mim, um lago solitário, que se basta a si mesmo; mas a minha torrente de amor o arrasta consigo para baixo – para o mar!

Novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga: como todos os criadores, cansei-me das velhas línguas. Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.

Lentos demais, para mim, correm todos os discursos: - vou pular para o teu carro, furacão! E, mesmo a ti, quero fustigar-te com a minha maldade!

Com um grito e uma explosão de júbilo, quero navegar por amplos mares, até encontrar as ilhas bem-aventuradas onde vivem os meus amigos –

E, entre eles, os meus inimigos! Como amo, agora, todo aquele a quem possa falar! Também os meus inimigos são parte da minha ventura.

E, quando quero cavalgar o meu corcel mais selvagem, o que sempre melhor me ajuda a monta-lo é o meu dardo: é o estribeiro sempre pronto para o meu pé –

O dardo que arremesso contra os meus inimigos! Como sou grato a meus inimigos de que posso, por fim, arremessá-lo!

Grande demais era a tensão da minha nuvem; por entre as risadas dos coriscos, quero atirar nas profundezas bátegas de granizo.

Poderoso, então, se inflará meu peito, poderoso assoprará sua tormenta sobre os montes: assim lhe virá alívio.

Na verdade, a uma tormenta semelham a minha ventura e a minha liberdade! Mas os meus inimigos deverão pensar que o Maligno anda à solta sobre suas cabeças.

Sim, também, vós, meus amigos, ficareis assustados da minha selvagem sabedoria; e, talvez, fugireis dela juntamente com os meus inimigos.

Ah, se eu soubesse atrair-vos de volta com flautas de pastores! Ah, se a minha leoa sabedoria aprendesse a rugir com ternura! Já tantas coisas aprendemos juntos!

A minha selvagem sabedoria ficou preenche em solitários montes; em ásperas pedras, deu à luz o mais novo de seus filhotes.

Pelo duro deserto, corre, agora, desvairada, à procura de relvados macios – a minha velha e selvagem sabedoria!

Nos relvados macios dos vossos corações, meus amigos! – no vosso amor, desejaria ela deitar o seu predileto!

Assim falou Zaratustra.

 

O canto noturno

 

É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante.

É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.

Há qualquer coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz. Um anseio de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor.

Eu sou luz; ah, fosse eu noite! Mas esta é a minha solidão: que estou circundando de luz.

Ah, fosse eu escuro e noturno! Como desejaria sugar os seios da luz!

E até vós desejaria abençoar, pequenos astros cintilantes e vaga-lumes, lá no alto! – e ser feliz com as vossas dádivas de luz.

Mas eu vivo na minha própria luz, sorvo de volta em mim as chamas que de mim rompem.

Não conheço a felicidade dos que recebem; e muitas vezes sonhei que roubar deve ser ventura ainda maior que receber.

É esta a minha pobreza: que minha mão nunca pára de dar presentes; é esta a minha inveja: que vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio.

Ó desventura de todos os dadivosos! Ó obscurecimento do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome insaciável na saciedade!

Eles recebem os meus presentes; mas tocarei ainda a sua alma? Há um abismo entre dar e receber; e também o menor dos abismos precisa ser transposto.

Nasce uma fome da minha beleza: desejaria magoar aqueles que ilumino; desejaria roubar aqueles que presenteio: - assim tenho fome de maldade.

Retirar a mão, quando já a outra mão se lhe entende; hesitar como a cachoeira, que ainda hesita ao precipitar-se: assim tenho fome de maldade.

Tal vingança medida minha plenitude, tal perfídia brota da minha solidão.

Minha ventura em dar extinguiu-se ao dar, minha virtude cansou-se de si mesma pela sua superabundância!

Quem sempre dá corre o perigo de perder o pudor; quem sempre reparte cria calos, de tanto repartir, em suas mãos e coração.

Meus olhos não choram mais ante o pudor dos pedintes; demasiado endureceu minha mão, para sentir o tremor das mãos satisfeitas.

Para onde foram as lágrimas dos meus olhos e o frouxel do meu coração? Ó – solidão de todos os dadivosos! Ó silêncio de todos os que espargem luz!

Muitos sóis gravitam nos espaços vazios: falam, com sua luz, a tudo o que é luminoso: implacável percorre ela sua órbita.

Injusto, no fundo do seu coração, com tudo o que é luminoso; frio para com os outros sóis – assim segue, cada sol, o seu próprio caminho.

Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é esse o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza.

Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres da luz!

Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!

É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede do que é noturno. E solidão!

É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale.

É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante.

É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama. –

Assim falou Zaratustra.

 

O canto de dança

 

Certo dia, à noitinha, caminhava Zaratustra no bosque com seus discípulos; e, ao procurar uma fonte, eis que chegou a um verde prado, circundado de silenciosas árvores e moitas; nele, algumas jovens dançavam umas com as outras. Assim que as jovens reconheceram Zaratustra, interromperam a dança; Zaratustra, porém, delas se aproximou, com gestos amigáveis, e falou-lhes estas palavras:

“Não pareis de dançar, amáveis jovens! Não é um desmancha-prazeres de mau-olhado, que aqui chegou, nem um inimigo dos jovens.

Intercessor de deus sou eu junto ao Diabo: mas este é o espírito de gravidade. Como poderia eu ser inimigo da vossa graciosa, divina dança? Ou de pés de jovens com lindos tornozelos?

Eu sou uma floresta, sem dúvida, e uma noite de árvores escuras; mas quem não teme minha escuridão, encontra também roseiras, debaixo dos meus ciprestes.

E encontra, também, o pequeno deus que é o preferido dos jovens: está deitado junto da fonte, em silêncio, de olhos fechados.

Em verdade, adormeceu em pleno dia, o preguiçoso! Terá andado demais caçando borboletas?

Não vos zangueis comigo, lindas dançarinas, de que eu castigue um pouco o pequeno deus! Gritará, certamente, e chorará – mas dá vontade de rir, ainda quando chora!

E, com lágrimas nos olhos, deverá pedir-vos uma dança; e eu mesmo quero acompanhar sua dança com um canto.

Um canto de dança e de mofa ao espírito de gravidade, ao meu altíssimo e poderosíssimo diabo, do qual dizem que é ‘o senhor do mundo’.” –

E este é o canto que Zaratustra entoou, enquanto Cupido e as jovens dançavam juntos.

 

Em teus olhos olhei, recentemente, ó vida! E pareceu-me, então, que me afundava no imperscrutável.

Mas tiraste-me para fora com um anzol de ouro; e riste, zombeteira, quando te chamei imperscrutável.

“Assim falam todos os peixes”, disseste; “aquilo que eles não perscrutam é imperscrutável.

Mas eu sou apenas mutável e selvagem e, em tudo, mulher, e não precisamente uma mulher virtuosa.

Muito embora vós, homens, me chameis ‘a profunda’, ‘a fiel’, ‘a eterna’, ‘a misteriosa’.

Mas vós, homens, nos presenteais sempre com vossas próprias virtudes – ai de mim, [o virtuosos!”

Assim ela ria, a enganadora; mas eu nunca acredito nela e em seu riso, quando fala mal de si mesma.

E, quando conversei a sós com a minha selvagem sabedoria, disse –me esta, zangada: “Tu queres, desejas, amas; e somente por isso louvas a vida!”

Quase lhe respondi mal e disse a verdade àquela zangada; e nunca podemos responder pior do que quando “dizemos a verdade” à nossa sabedoria.

Tais são, com efeito, as relações entre nós três. Do fundo do meu ser, amo somente a vida -. e, na verdade, nunca a amo tanto como quando a detesto!

Que, porém, eu seja condescendente com a sabedoria, e muitas vezes condescendente demais: isto provém de que ela me lembre demasiado a vida!

Tem os seus olhos, o seu sorriso e até, mesmo, o seu pequeno caniço com o anzol de ouro; é minha culpa se as duas são tão parecidas?

E quando, certa vez, a vida me perguntou: “Que vem a ser a sabedoria?” – respondi solícito: “Pois é, ai de mim, a sabedoria!

Tem-se sede dela e não se fica saciado, olha-se para ela através de véus, procura-se caçá-la com redes.

É bonita? Sei lá! Mas é uma isca que as mais velhas carpas ainda se deixam fisgar.

Mutável, é ela, e voluntariosa; vi-a, frequentemente, morder os lábios e passar o pente no cabelo a contrapelo.

Talvez seja má e falsa e, em tudo, feminina; mas, quando fala mal de sim mesma, é então que mais seduz.”

Depois que disse isto à vida, esta riu maldosamente e fechou os olhos. “De quem estiveste falando?”, indagou. “De mim, não é verdade?

E ainda que tivesses razão – isso lá se diz na minha cara! Mas, agora, vamos, fala, também, da tua sabedoria!”

Ah, voltasse a abrir os olhos, então, ó amada vida! E pareceu-me que, de novo, eu me afundava no imperscrutável. –

 

Assim cantou Zaratustra. Mas quando a dança acabou e as jovens foram embora, sentiu-se triste.

O sol já há muito se pôs – disse por fim -; a relva está úmida, dos bosques chega um ar frio.

Qualquer coisa desconhecida há a meu redor, olhando, pensativa.

Como? Ainda vives, Zaratustra?

Por quê? Para quê? De quê? Para onde? Onde? De que modo? Não é loucura, viver ainda? –

Ah, meus amigos, é a noite que assim pergunta dento de mim. Perdoai-me a minha tristeza!

Fez-se noite: perdoai-me que se fez noite!

Assim falou Zaratustra.

 

O canto do túmulo

 

“Lá está a silenciosa ilha dos túmulos; lá estão, também, os túmulos da minha juventude. Para lá quero levar uma sempre verde coroa da vida.”

Tendo assim decidido em meu coração, fiz-me ao mar. –

Ó vós, visões e aparições da minha juventude! Ó vós todos, olhares amorosos, momentos divinos! Como me morrestes tão depressa! Rememoro-vos, hoje, como meus mortos.

De vós, meus mortos queridos, vem a mim um doce perfume, que derrete o coração e solta as lágrimas. Em verdade, ele abala e enternece o coração do solitário navegante.

Ainda sou o mais rico e o mais invejável – eu, o mais solitário dos solitários! Porque eu vos tive e vós ainda me tendes. Dizei: para quem, como para mim, caíram da árvore tais sumarentos frutos?

Ainda sou o vosso herdeiro e o solo do vosso amor, florindo, em vossa memória, de agrestes e multicores virtudes, ó amados!

Nascêramos, ai de nós, para ficar perto uns dos outros, ó fascinantes, estranhas maravilhas; e não como pássaros ariscos viestes a mim e ao meu desejo – mas confiantes naquele que confiava!

Sim, nascidos, como eu, para a felicidade e meigas eternidades; e se, agora, devo chamar-vos de acordo com a vossa infidelidade, ó olhares e momentos divinos: ainda não aprendi nenhum outro nome.

Em verdade, morrestes-me demasiado depressa, ó fugitivos. Mas não fugistes de mim eu fugi de vós: inocentes somos uns e outros, em nossa infidelidade.

Para matar-me a mim, estrangularam a vós, ó aves canoras das minhas esperanças! Sim, contra vós, meus queridos, sempre a maldade desferiu flechas – para atingir meu coração!

E o atingiu! Porque sempre fostes o meu bem mais querido, aquilo que eu possuía e que me possuía: por isso tivestes de morrer jovens e demasiado cedo!

Contra o que eu possuía de mais vulnerável, foi desferida a flecha: e isso éreis vós, cuja epiderme é como um frouxel e, mais ainda, como o sorriso, que morre a um simples olhar!

Mas esta palavra quero dizer aos meus inimigos: o que são todos os homicídios, comparados com o que me fizestes!

Um mal pior, me fizeste, do que todo o homicídio; tirastes-me algo irrecuperável – é isto o que eu vos digo, meus inimigos!

Assassinastes as visões e as mais queridas maravilhas da minha juventude! Tirastes-me os meus companheiros, os espíritos bem-aventurados. Em sua memória deponho esta coroa e esta maldição.

Esta maldição contra vós, meus inimigos! Não abreviastes o que eu tinha de eterno, como um som que se extingue na noite fria? Mal chegara até mim como um brilhar de olhos divinos – um momento fugido!

Assim, em boa hora, falou, noutro tempo, a minha pureza: “Divinos deverão ser, para mim, todos os seres.”

Então vós me assaltastes com imundos avantesmas. Ai de mim, para onde fugiu aquela boa hora?

“Todos os dias, para mim, deverão ser sagrados” – assim falou, noutro tempo, a sabedoria da minha juventude: em verdade, a linguagem de uma alegre sabedoria.

Mas então, ó inimigos, roubastes minhas noites e as mudastes em insone angústia. Ai de mim, para onde fugiu aquela alegre sabedoria?

Noutro tempo, anelei por felizes presságios: então, pusestes no meu caminho uma monstruosa e repelente coruja. Ai de mim, para onde fugiu o meu anelo?

Noutro tempo, jurei abandonar toda a repugnância; então, transformastes em pústulas a minha vizinhança e o meu próximo. Ah, para onde fugiu, então, o mais nobre dos meus juramentos?

Como cego percorri, noutro tempo, caminhos felizes; então, atirastes imundície no caminho do cego e, agora, causa-lhe repugnância o velho atalho.

E quando realizei o que me era mais difícil e festejava as vitórias das minhas superações: então, fizeste os que me amavam gritar que nunca eu os magoara tanto.

Em verdade. Foi sempre este o vosso modo de proceder: amargastes-me o meu melhor mel e o labor de minhas melhores abelhas.

Em busca da minha caridade, mandastes sempre os mais insolentes mendigos; em torno de minha compaixão, aglomerastes sempre os despudorados incorrigíveis. Assim feristes a minha virtude em sua fé.

E, se eu oferecia em sacrifício o que tinha de mais sagrado, logo a vossa “devoção” lhe acrescentava suas mais gordas oferendas: de modo que o que eu tinha de mais sagrado sufocava na fumaça da vossa gordura.

E, noutro tempo, eu quis dançar como ainda não dancei nunca: quis dançar para além de todos os céus. Então, aliciastes o meu cantor preferido.

E, então, ele entoou uma tétrica e horripilante nênia, buzinando, ai de mim, nos meus ouvidos como lúgubre trompa!

Oh, cantor assassino, instrumento da malvadez, e mais inocente que todos! Já estava eu preparado para a melhor das danças: com o teu canto, então, assassinaste o meu enlevo!

Somente dançando, eu sei falar em imagens das coisas mais elevadas – e, assim, ficou-me silenciada nos membros a minha mais elevada imagem!

Silenciada e irredenta, ficou-me a mais elevada esperança! E morreram-me todas as visões e consolações da minha juventude!

Como pude suporta? Como sobrevivi a tais feridas e as superei? Como, desses túmulos, ressuscitou a minha alma?

Sim, qualquer coisa invulnerável e que não pode tumular-se há em mim, qualquer coisa que fende rochas: chama-se a minha vontade. Silenciosa e inalterada, procede através dos anos.

Quer caminhar, no seu passo, com meus pés, a minha vontade; inabalável, é seu ânimo, e invulnerável.

Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar. Ali continuas vivendo e sempre igual a ti mesma, ó pacientíssima! Continuas abrindo caminho por entre todos os túmulos!

Em ti ainda vive o que ficou irredento da minha juventude; e, como vida e juventude, estás aqui sentada, esperançosa, nos amarelados escombros dos túmulos.

Sim, ainda és, para mim, a destruidora de todos os túmulos; salve, ó minha vontade! E só há ressurreição onde há túmulos.

Assim falou Zaratustra! –

 

Do superar a si mesmo

 

“Vontade de conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os sábios, àquilo que vos impele e inflama?

Vontade de que todo o existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa vontade!

Quereis, primeiro, tornar todo o existente possível de ser pensado; pois, com justa desconfiança, duvidais de que já o seja.

Mas ele deve submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa vontade. Liso, deve tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo.

É essa a vossa vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de poder, e também quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor.

Quereis ainda criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos: tal é a vossa derradeira esperança e embriaguez.

Os ignorantes, sem dúvida, o povo – são como um rio onde um barco continua boiando; e no barco estão sentadas, solenes e mascaradas, as apreciações de valor.

Colocastes a vossa vontade e os vossos valores no rio do devir; uma velha vontade de poder revela-me aquilo em que o povo acredita como sendo o bem e o mal.

Fostes vós, ó os mais sábios dentre os sábios, que mandastes tais convidados sentarem-se no barco, dando-lhes nomes pomposos e altaneiros; vós e a vossa vontade dominadora!

Agora, o rio leva o barco: deve levá-lo. Pouco importa que a onda, ao romper-se, espumeje e, furiosa, se oponha à quilha!

Não o rio é o vosso perigo e o fim do vosso bem e mal, ó os mais sábios dentre os sábios, mas aquela mesma vontade, a vontade de poder – a inesgotável e geradora vontade de viver.

Mas, para que compreendais minhas palavras do bem e do mal, quero acrescentar , ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser de todo o vivente.

O vivente, eu segui, percorrendo os maiores e menores caminhos, a fim de conhecer seu modo de ser.

Com um espelho de cem faces, colhi seu olhar quando ele ainda guardava a boca fechada: para que seus olhos me falassem. E seus olhos falaram-me.

Mas, onde quer que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar em obediência. Todo o vivente é um obediente.

E, em segundo lugar: manda-se naquele que não sabe obedecer a si mesmo. É este o modo de ser do vivente.

E foi esta a terceira coisa que ouvi: que mandar é mais difícil que obedecer. E não somente porque quem manda carrega o peso de todos os que obedecem, e é fácil que este peso o esmague. –

Um tentame e uma ousadia, parece-me haver em todo mando; e, quando manda, sempre o vivente põe a si mesmo em risco.

Sim, até quando manda em si mesmo: também em tal caso deve ele expiar o seu mandar. Deve tornar-se juiz, víndice e vítima da sua própria lei.

Como se dá isto? – assim me interroguei. Que induz o vivente a obedecer e a mandar e, ao mandar, praticar, ainda, a obediência?

Ouvi a minha palavra, agora, ó os mais sábios dentre os sábios! Verificai seriamente se não me insinuei no coração da própria vida e até às raízes do seu coração!

Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor.

Que o mais fraco sirva o mais forte, a isto o induz a sua vontade, que quer dominar outros mais fracos: esse prazer é o único de que ela não quer prescindir.

E, tal como o menor se abandona ao maior, para conseguir prazer e poder no menor de todos, assim também o maior se abandona a si mesmo e, por amor do poder – põe em risco sua vida.

É esta a abnegação do maior: de que é risco e perigo e um lance de dados com a morte.

E onde há sacrifícios e serviços prestados e olhares amorosos: ali, também, há vontade de ser senhor. Por caminhos oblíquos, introduz-se o mais fraco na fortaleza e até no coração do mais forte – e, ali, furta poder.

E este segredo a própria vida me confiou: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo.

Sem dúvida, vós lhe chamais vontade de procriação ou impulso no rumo da finalidade, do mais elevado, do mais distante, do mais multíplice; mas tudo isso é uma coisa só e um único segredo.

Ainda prefiro o meu ocaso a renunciar a essa única; e, em verdade, onde há ocaso e cair folhas, sim, é ali que a vida se sacrifica – pelo poder!

Que eu deva ser luta e devir e finalidade e contradição das finalidades: ah, quem adivinha a minha vontade, certamente adivinha, também, que caminhos tortuosos ela deve percorrer.

O que quer que eu crie e de que modo quer que o mãe – breve terei de ser seu adversário, bem como o do meu amor: assim quer a minha vontade.

E tu também, que buscas o conhecimento, és apenas uma senda e uma pegada da minha vontade; em verdade, a minha vontade de poder caminha com os pés da tua vontade de conhecer a verdade!

Certamente não encontrou a verdade aquele que lhe desfechou a expressão ‘vontade de existência’: essa vontade – não existe!

Porque: o que não existe não pode querer; mas, o que é existente, como poderia ainda querer existência!

Onde há vida também há vontade: mas não vontade de vida, senão – é o que te ensino – vontade de poder!

Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto do que a própria vida; mas, através mesmo da avaliação, o que fala é – a vontade de poder!” –

Assim, um dia, me ensinou a vida; e destarte, ó os mais sábios dentre os sábios, resolvo também o enigma de vossos corações.

Em verdade, eu vos digo: um bem e um mal que fossem imperecíveis – isso não existe! Cumpre-lhes sempre superar a si mesmos.

Com os vossos valores e palavras do bem e do mal, exerceis poder, ó vós que estabeleceis valores; e este é o vosso amor oculto e o esplendor e o frêmito e o transbordamento de vossa alma.

Mas um poder mais forte, uma nova superação nasce dos vossos valores: faz ela romperem-se o ovo e a casca do ovo.

E aquele que deva ser um criador no bem e no mal: em verdade, primeiro, deverá ser um destruidor e destroçar valores.

Assim, o mais alto mal faz parte do mais alto bem: mas é este o criador. –

Falemos nisso, ó os mais sábios dentre os sábios, ainda que seja tarefa espinhosa. Silenciar é pior: todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas.

E que se despedace tudo o que possa despedaçar-se – despedaçar-se – de encontro às nossas verdades! Ainda há muitas casas por construir!

Assim falou Zaratustra.

 

Da redenção

 

Certo dia em que Zaratustra passava pela grande ponte, cercaram-no os aleijados e os mendigos; e um corcunda assim lhe falou:

“Vê, Zaratustra! Também o povo aprende de ti e adquire fé na tua doutrina; mas, para que acredite em ti totalmente, uma coisa ainda se faz necessária – deves, primeiro, convencer-nos também bem a nós, os aleijados! Aqui tens, agora, um bom sortimento deles e, na verdade, uma ocasião com mais de uma trança de cabelos! Podes sarar cegos e fazer caminhar paralíticos; e bem que podereis, também, tirar um pouco de cima de alguém que tem alguma coisa demais nas costas. Penso que este seria o modo certo de fazer os aleijados acreditarem em Zaratustra!”

Zaratustra, porém, assim respondeu àquele que falara:

Se ao corcunda tiramos a corcunda, tiramos-lhe o espírito – é o que ensina o povo. E, se ao cego se dá a vista, vê ele demasiadas coisas ruins na terra: a tal ponto que amaldiçoa aquele que o sarou. Aquele, porém, que faz caminhar um paralítico, causa-lhe o maior dos danos: porque, mal pode ele caminhar, pegam seus vícios a correr, arrastando-o consigo – é o que povo ensina a respeito dos aliejados. E por que não deveria Zaratustra aprender também do povo, se o povo aprende de Zaratustra?

Mas, para mim, desde que estou entre os homens, de tudo o que vejo, o menos é isto: “a este falta um olho e àquele, uma orelha, e um terceiro, uma perna, e outros há que perderam a língua ou o nariz ou a cabeça.”

Vejo e vi coisas piores, e várias tão abomináveis, que não desejaria falar de cada uma delas, mas, a respeito de algumas, tampouco silenciar: homens, precisamente, aos quais falta tudo, salvo que têm demais de alguma coisa – homens que não passam de um grande olho ou de uma grande boca ou de um grande ventre ou de qualquer outra coisa grande – aleijados às avessas, chamo tal gente.

E, quando saí da minha solidão e passei, pela primeira vez, nesta ponte, não acreditava nos meus olhos e olhei e voltei a olhar e, por fim, disse: “Isso aí é uma orelha! Uma orelha grande como um homem! “Olhei melhor: e, realmente, debaixo da orelha, movia-se alguma coisa, que dava pena, de tão pequena e grácil e mirrada. E, na verdade, a monstruosa orelha achava-se sobre um pequeno, fino caule – mas o caule era um homem! Quem pusesse uma lente diante do olho poderia, até, reconhecer ainda um pequeno rosto invejoso; e, também, que uma túmida alminha balançava no caule. O povo me disse, porém, que a grande orelha não era somente um homem, mas, sim, um grande homem, um gênio. Mas eu nunca acreditei no povo, quando ele falava em grandes homens – e guardei minha persuasão de que aquele era um aleijado às avessas, que tinha pouquíssima de tudo e demais de uma só coisa.

Depois de ter assim falado ao corcunda e àqueles dos quais este era porta-voz e intercessor, voltou-se Zaratustra para os discípulos, com profundo pesar e disse:

Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre fragmentos e membros avulsos de seres humanos. E o mais terrível para os meus olhos é que encontro o homem feito em pedaços e esparso como num campo de batalha ou num matadouro.

E, se fogem do presente par o passado, sempre os meus olhos encontram a mesma coisa: fragmentos e membros avulsos e horrendos acasos – mas não homens!

O presente e o passado na terra – ah, meus amigos, é isso, para mim, o mais insuportável; e não saberia viver, se eu não fosse, também, um vidente, daquilo que deve vir.

 

Um vidente, um voluntário, um criador, um futuro e uma ponte para o futuro – e, ai de mim, de certo modo, também um aleijado, nessa ponte: tudo isso é Zaratustra.

E vós, também, muitas vezes vos perguntastes: “Quem é Zaratustra, para nós? Como deveremos chamá-lo?” E, tal como eu mesmo, vos destes, como respostas, perguntas.

Será um prometedor? Ou um cumpridor de promessas? Um conquistador? Ou um herdeiro? Um outono? Ou uma relha de arado? Um médico? Ou um doente que sarou?

Será um poeta? Ou um assertor da verdade? Um libertador? Ou um forjador de grilhões? Um bom ou um mau?

Eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro : daquele futuro que descortino.

E isso é tudo a que aspira o meu poetar: juntar e compor em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso.

E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse, também, poeta e decifrador de enigmas e redentor do acaso!

Redimir os passados e transformar todo “Foi assim” num “Assim eu o quis!” – somente a isto eu chamaria redenção!

Vontade – é este o nome do libertador e trazedor de alegria: assim vos ensinei, meus amigos! Mas, agora, aprendi também isto: a própria vontade ainda se acha em cativeiro.

O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém em cadeias também o libertador?

“Foi assim”: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angústia da vontade. Impotente contra o que está feito – é ela um mau espectador de todo o passado.

Não pode a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é esta a mais solitária angústia da vontade.

O querer liberta; e que inventa a própria vontade, para livrar-se da angústia e zombar da sua prisão?

Doido, ai de nós, torna-se todo o prisioneiro! E pela doidice redime-se, também, a vontade prisioneira.

Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; “Aquilo que foi” – é o nome da pedra que ela não pode rolar.

E assim, de raiva e despeito, vai rolando pedras e vinga-se naquilo que não sente, como ela, raiva e despeito.

Destarte, a vontade libertadora torna-se causa de dor; e em tudo o que pode sofrer, vinga-se de não poder retroceder.

Isso, sim, só isso já é vingança: a aversão da vontade pelo tempo e seu “Foi assim”.

Em verdade, uma grande loucura habita a nossa vontade: e tornou-se maldição para tudo o que é humano, que essa loucura aprendesse a ter espírito!

Espírito de vingança, foi esta até agora, meus amigos, a melhor reflexão dos homens: e que onde havia sofrimento deveria sempre haver um castigo.

“Castigo”, precisamente, chama a própria vingança a si mesma; com uma palavra mendaz, atribui-se hipocritamente, ante seus próprios olhos, uma consciência limpa.

E já que no próprio querer há sofrimento, por isso que não pode querer para trás – assim o próprio querer e a vida inteira deviam – ser um castigo!

E eis que uma nuvem após outra entrou a rolar sobre o espírito; até que a loucura, por fim, pregou: “Tudo perece, tudo, portanto, merece perecer!”

“E é a própria justiça, aquela lei do tempo, pela qual este deve devorar seus filhos”, assim pregou a loucura.

“Pelo ângulo moral, acham-se as coisas ordenadas segundo o direito e o castigo. Oh, onde está a nossa redenção do caudal das coisas e do castigo da ‘existência’?” Assim pregou a loucura.

“Pode haver redenção, se há um direito eterno? Ah, impossível de rolar-se é a pedra ‘Foi assim’: eternos devem, também, ser todos os castigos!” Assim pregou a loucura.

“Nenhum ato pode ser destruído: como poderia ser desfeito pelo castigo! É isto p que há de eterno no castigo da existência: que a existência deve de novo e sempre tornar-se ato e culpa!

A não ser que a vontade, finalmente, se redimisse a si mesma e o querer se tornasse em não querer” – mas vós conheceis, meus irmãos, essa cantiga da loucura!

Para longe eu vos levei dessas cantigas quando vos ensinei: “A vontade é criadora.”

Todo o “Foi assim” é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis!”

- Até que a vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo!”

Mas já falou de tal maneira? E quando isso se dará? Já a vontade se desatrelou da sua própria loucura?

Já a vontade se tornou o seu próprio redentor e trazendo de alegria? Desaprendeu o espírito da vingança e todo o ranger de dentes?

E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação?

Alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação, deve querer a vontade que é vontade de poder, - mas como chega lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?

 

- Nesse ponto de seu discurso, contudo, aconteceu que Zaratustra, de repente, calou-se e parecia alguém amedrontado ao extremo. Com olhos assustados, olhava os discípulos, perfurando, como com flechas, seus pensamentos e segundas intenções. Após breve instante, porém, tornou a rir, tranqüilizando, e disse:

“É difícil viver com os homens, porque é tão difícil o silêncio. Especialmente para um tagarela.” –

Assim falou Zaratustra. Mas o corcunda escutara seu discurso escondendo o rosto; quando, porém, ouviu Zaratustra rir, ergueu, o curioso, os olhos e disse lentamente:

“Mas por que Zaratustra fala conosco de maneira diferente do que com seus discípulos?”

Zaratustra respondeu: “que há nisso de entranho! A um corcunda pode-se perfeitamente falar de modo torto.”

“Bem”, disse o corcunda; “e, aos alunos, pode-se perfeitamente falar de cadeira, deitado segredos à rua.

Mas por que Zaratustra fala com seus discípulos de modo diferente do que consigo mesmo?” –

 

Terceira Parte

 

O viandante

 

Por volta da meia-noite, enveredou Zaratustra para a serrania da ilha, a fim de chegar de manhã cedo à outra costa: porque ali queria embarcar. É que havia por lá um bom ancoradouro, onde também navios estrangeiros gostavam de deitar ferro; e tomavam a bordo quem quisesse fazer-se ao mar abandonado as ilhas bem-aventuradas.

Enquanto, pois, assim subia o monte, recordou Zaratustra, no caminho, suas muitas peregrinações solitárias desde a juventude e os numerosos montes e lombas e cumes aos quais ascendera.

Eu sou um viandante e um escalador de montanhas, disse ao seu coração; não gosto das planícies e, ao que parece, não posso ficar muito tempo parado.

E seja lá o que me for reservado como destino ou experiência – sempre o será a um viandante e escalador de montanhas: afinal, só se vive a experiência de si mesmo.

Passou o tempo em que ainda me acontecia deparar-me com acasos; e o que poderia caber-me em sorte, agora, que já não seja meu?

Está somente voltado par trás, está somente voltado para mim – o meu próprio eu e o que dele, de há muito, se achava em terras estranhas, disperso em meio a todas as coisas e acasos.

E também isto eu sei: encontra-me, agora, diante do meu último cume e daquele que por mais tempo me foi poupado. Ai de mim, que devo galgar o meu caminho mais árduo! Ai de mim, que iniciei a minha mais solitária peregrinação!

Mas, quem é da minha espécie, não se furta a uma hora destas, a hora que lhe diz: “Somente agora percorres o teu caminho da grandeza! Cume e abismo – resolveram-se numa única coisa!

Percorres o teu caminho da grandeza: tornou-se o teu derradeiro refúgio, agora, aquilo que, até aqui, era o teu derradeiro perigo!

Percorres o teu caminho da grandezas; que seja, agora, a tua melhor coragem não teres mais nenhum caminho atrás de ti!

Percorres o teu caminho da grandeza; aqui, mais ninguém te seguirá às escondidas! O teu próprio pé apagou a trilha atrás de si e nela está escrito: ‘impossibilidade’.

E se, agora, já te falam todas as escadas, tens de aprender a trepar sobre a tua própria cabeça; de outra maneira poderias ainda subir?

Sobre a tua própria cabeça e por cima e além do teu próprio coração! O que há em ti de mais suave deve, agora, tornar-se o que haverá de mais duro.

Aquele que sempre muito se poupou, acaba adoecendo de seu muito poupar-se. Louvado seja aquilo que enrijece! Não louvo a terra onde escorrem – manteiga e mel!

É preciso aprender a desviar o olhar de si, para ver muitas coisas; - tal dureza é necessária a todo o escalador de montanhas.

Mas quem busca o conhecimento com olhos impudentes, como poderia ver mais do que as razões exteriores das coisas!

Mas tu, Zaratustra, quiseste olhar a razão e o fundo de todas as coisas; assim, deves subir para além de ti mesmo – para cima, para o alto, até teres as tuas próprias estrelas debaixo de ti!”

Sim! Olhar do alto para mim mesmo e, ainda, para as minhas estrelas: somente a isto eu chamo cume, é isto o que ainda me resta por atingir como meu último cume! –

 

Assim falou Zaratustra de si para si enquanto subia, consolando seu coração com breves e duras sentenças: porque tinha o coração ferido como nunca o tivera até então. E, quando chegou ao cimo da serrania, eis que lá estava outro mar estendido à sua frente; e ele permaneceu longamente parado e em silêncio. Mas a noite era fria, naquelas alturas, e clara e estrelada.

Reconheço o meu destino, disse ele, por fim, com tristeza. Pois muito bem! Estou pronto. Começou, agora, a minha última solidão.

Ah, esse negro e triste mar embaixo de mim! Ah, essa pejada opressão noturna! Ah, destino e mar! Para vós cumpre-me, agora, descer!

Eis-me diante do mais alto dentre os meus montes e da mais longa das minhas peregrinações; por isso, preciso descer, primeiro, mais fundo do que algum dia já desci.

- mais fundo na dor do que algum dia já desci, e até dentro de sua mais negra vaga! Assim quer o meu destino. Muito bem! Estou pronta.

“De onde vêm os montes mais altos?”, perguntei-me outrora. Aprendi, então, que vêm do mar.

O testemunho está escrito em suas rochas e nas escarpas dos seus píncaros. Desde o mais fundo, devo o mais alto atingir o seu cimo. –

 

Assim falou Zaratustra no cume do monte onde fazia frio; mas, quando chegou à proximidade do mar e, por fim, esteve sozinho entre os rochedos, sentiu-se cansado do caminho e, mais do que antes, ardendo em desejos.

Tudo dorme, agora, disse; também o mar dorme. Tonto de sono, olha para mim com estranho olhar.

Mas cálido é seu respiro, isto eu sinto. E sinto, também, que sonha: resolve-se, sonhando, sobre duros travesseiros.

Ouve! Ouve! Como geme, agitado por más lembranças! Ou será por más expectativas?

Ah, partilho a tua tristeza, monstro sombrio, e sinto eu mesmo angústia por tua causa.

Ai de mim, que não tem minha mão bastante força! De bom grado, na verdade, desejaria livrar-te dos teus maus sonhos! –

 

E, enquanto assim falava, ria Zaratustra de si mesmo, com tristeza e amargura. Como, Zaratustra!, disse; pretenderias cantar consolações também para o mar?

Ah, Zaratustra, afável louco transbordante de confiança! Mas sempre foste assim: sempre confiante te acercaste de tudo o que é terrível.

Todo e qualquer monstro, querias acariciar. Um sopro de quente bafo, um pouco de pêlo macio na pata – e logo estavas pronto para amá-lo e atraí-lo.

O amor é o perigo do grande solitário, o amor por tudo, desde que viva! Fazem realmente rir, a minha loucura e modéstia no amor! –

 

Assim falou Zaratustra, rindo pela segunda vez. Mas, então, lembrou-se dos amigos que deixara – e, como se com seus pensamentos houvesse procedido mal com eles, zangou-se consigo mesmo desses pensamentos. E logo sucedeu que o riso se lhe mudou em pranto; - de raiva e de saudade, chorou Zaratustra amargamente.

 

Do passar além

 

Dando, assim, voltas e passando lentamente por muito povo e várias cidades, regressava Zaratustra para a sua montanha e a sua caverna. E eis que, no caminho, chegou também, de repente, à porta da grande cidade; mas, ali, um louco, com espuma nos lábios, pulou de mãos abertas à sua frente, barrando-lhe a passagem. Era esse, porém, o mesmo louco a que o povo chamava “o macaco de Zaratustra”: pois aprendera a arremedar um pouco o fraseado e as inflexões de seus discursos e tirava também bom proveito do tesouro da sua sabedoria. O louco, porém, assim falou a Zaratustra:

“Ó Zaratustra, esta é a grande cidade; aqui, nada tens a procurar e tens tudo a perder.

Por que pretendias vadear este lodaçal? Tem pena dos teus pés! Cospe, de preferência, na porta da cidade – e volta atrás!

Aqui é o inferno para pensamentos de eremitas; aqui, os grandes pensamentos são refogados vivos e cozidos picadinhos.

Aqui procedem todos os grandes sentimentos; só pequenos sentimentos de estalante secura têm direito a estalar aqui!

Não sentes já o cheiro a matadouro e casas de pasto do espírito? Não fumega esta cidade os vapores do espírito abatido como uma rês?

Não vês as almas penduradas, inertes, como trapos sujos?

- E ainda fazem jornais, com esses trapos!

Não ouves como o espírito, aqui, foi transformando em jogo de palavras? Repugnante lavadura de palavras jorra dele! – E ainda fazem jornais, com essa lavadura de palavras!

Açulam-se uns aos outros sem saber contra quê. Excitam-se uns aos outros sem saber para quê. Retinem seu latão, tilintam seu ouro.

São frios, e buscam calor nas aguardentes; estão acalorados, e buscam refrigério em espíritos regelados; ardem todos em febre e tresvariam pela pública opinião.

Todos os apetites e vícios estão aqui em sua casa; mas há aqui, também virtuosos, há muitas virtudes aproveitáveis e aproveitadas –

Muitas aproveitáveis virtudes com dedos para escrever e rijas carnes para ficarem sentadas, à espera, santificadas por numerosas estrelinhas penduradas no peito e por filhas sem traseiro, bem estofadas de enchimento.

Aqui há, também, muita religiosidade e muito devoto a lamber os pés e servir de capacho aos deus dos exércitos.

‘De cima’ pinga a estrela e vêm os pés para lamber; para cima volta-se o anseio de todo o peito sem estrelas.

A lua tem a sua corte e a corte tem os seus aluados; mas o povo dos pedintes e toda a virtude aproveitável dos pedintes reza a tudo o que vem da corte.

‘Eu sirvo, tu serves, nós servimos’ – assim reza ao príncipe, lá em cima, toda a virtude aproveitável: para que a merecida estrela seja, finalmente, cosida no mirrado peito!

Mas a lua também gira em torno de tudo o que é terrestre; do mesmo modo, gira também o príncipe em torno de tudo o que há de mais terrestre: - e isso é o ouro dos merceeiros.

O deus dos exércitos não é um deus das barras de ouro; o príncipe põe, mas o merceeiro – dispõe!

Por tudo o que tens de luminoso e bom e forte, Zaratustra! Cospe nesta cidade de merceeiros e volta atrás!

Aqui, em todas as veias, circula apenas um sangue corrompido, tíbio, espumoso, cospe na grande cidade, que é o esgoto onde toda a escumalha escuma de cambulhada!

Cospe na cidade das almas deformadas e dos peitos mirrados, dos olhos aguçados e dos dedos pegajosos –

- na cidade dos importunos, dos descarados, dos escrevinhadores e berradores, dos ambiciosos demasiado sôfregos –

- onde fermenta, em confusão, tudo o que é podre, deletério, lascivo, tenebroso, carunchento, tumoroso, conspirativo –

- cospe na grande cidade e volta atrás!” - -

 

Nesse ponto, porém, Zaratustra o louco com espuma nos lábios, tapando-lhe a boca.

“Cala-te de uma vez!”, exclamou Zaratustra; “há muito que tuas palavras e tuas ações me causam náusea!

Por que o moraste tanto tempo no pântano, a ponto de tornar-te, tu mesmo, rã e sapo?

Não corre, acaso, nas tuas próprias veias, um sangue corrompido e escumoso de pântano, para que aprendesses assim a coaxar e imprecar?

Por que não foste para a floresta? Ou não araste o solo? Não está o mar cheio de verdes ilhas?

Eu desprezo; e, se me acautelaste – por que não te acautelaste a ti mesmo?

Somente do amor deve alçar vôo o meu desprezo e o meu pássaro acautelador; não de um pântano! –

Chamam-te o meu macaco, ó louco de espuma nos lábios; mas eu te chamo o meu porco grunhidor; - com teu grunhido, ainda acabas por estragar o meu elogio da loucura.

O que te fez grunhir, em primeiro lugar? Foi que ninguém te lisonjeasse bastante; - por isso foste sentar-te junto dessa imundície: para teres motivo de grunhir muito –

- para teres motivo de muita vingança! Porque é vingança, ó louco vaidoso, todo o teu espumar, bem o adivinhei!

Mas a tua palavra de louco me prejudica, mesmo nos pontos em que tens razão! E, ainda que a palavra de Zaratustra tivesse, até, cem vezes razão: tu, com a minha palavra, farias sempre – uma injustiça!”

Assim falou Zaratustra; e olhou a grande cidade e suspirou e ficou longamente em silêncio. Por fim, disse:

 

Também a mim me causa náusea esta grande cidade, e não somente a esse louco. Nem nela nem nele, nada mais há que possa melhora-se ou piorar-se.

Ai desta grande cidade! – E eu gostaria de ver desde já as colunas de fogo em que arderá!

Porque essas colunas de fogo deverão preceder o grande meio-dia. Mas isto tem o seu tempo e o seu destino próprios. –

Este ensinamento, porém, ó louco, eu te dou, como despedida: daquilo que não pode mais mar, deve-se – passar além! –

Assim falou Zaratustra, e passou além do louco e da grande cidade.

 

Quarta e última parte

 

O sanguessuga

E Zaratustra prosseguiu, pensativo, seu caminho em descida, internando-se em florestas e perlongando terrenos pantanosos; mas, como sucede a todos os que meditam em coisas profundas, pisou involuntariamente, caminhando, num homem. E eis que, de um jacto, atingiram-no em rosto um grito de dor, duas pragas e vinte graves insultos; de tal modo que, em seu susto, ainda ergueu o bastão e bateu com ele no homem que havia pisado. Logo em seguida, porém, caiu em si; e seu coração riu da tolice que acabara de fazer.

“Perdoa-me”, disse ao homem que pisara, o qual, após soerguer-se furioso, estava sentado no chão, “perdoa-me e ouve, antes, uma parábola.

Tal como um caminhante, que, numa rua solitária, sonha em coisas remotas e, sem querer, tropeça num cachorro, um cachorro deitado ao sol,

- tal como ambos, então, se sobressaltam e mutuamente se ameaçam, como dois inimigos mortais, essas duas criaturas mortalmente assustadas: assim aconteceu conosco.

E, contudo! E, contudo – quão pouco faltou para que os dois se fizessem festas, esse cachorro e esse solitário! Pois não são ambos – solitários?”

- “Quem quer que tu sejas”, disse logo, ainda furioso, o homem pisado, “pisaste-me com a tua parábola e não somente com o teu pé!

Olha-me! Então, porventura, sou um cachorro?” – E, assim dizendo, levantou-se e retirou o braço nu do pântano. Porque, de início, estivera entendido no solo, oculto e irreconhecível, tal como os que ficam à espreita de caça de brejo.

“Mas que fazes!”, exclamou Zaratustra assustado, ao ver que do braço nu escorria muito sangue – “Que te aconteceu? Mordeu-te, talvez, algum bicho mau?”

Riu, ainda zangado, o homem do braço ensangüentado. “Que tens com isso?”, disse, fazendo menção de ir embora. “Aqui estou em minha casa e nos meus domínios. Qualquer um pode interrogar-me; mas não respondo a um idiota.”

“Enganas-te”, disse Zaratustra, apiedado e retendo-o, “enganas-te; aqui não estás na tua casa, mas no meu reino, onde não quero que aconteça mal a ninguém.

Mas podes chamar-me como bem entendes – eu sou quem devo ser. A mim mesmo, eu me chamo Zaratustra.

Bem! Por ali sobre o caminho que leva à caverna de Zaratustra, mudou por completo. “Que se passa comigo!”, exclamou. “De quem ainda me importo na vida, senão deste único homem, precisamente, Zaratustra, e daquele único bicho que vive de sangue, a sanguessuga?

Por causa da sanguessuga, estava eu deitado, como um pescador, à margem deste pântano, e já o meu braço mergulhado fora mordido dez vezes: pois não é que ainda me morde, querendo meu sangue, uma sanguessuga mais bonita, Zaratustra em pessoa?

Oh, ventura! Oh, milagre! Louvado seja o dia de hoje, que me atraiu a este pântano! Louvada seja a melhor e mais viva ventosa hoje existente, louvado seja Zaratustra, a grande sanguessuga das consciências!” –

Assim falou o homem pisado; e alegrou-se Zaratustra das suas palavras e do modo fino e reverente em que as dissera. “Quem és?”, indagou, estendendo-lhe a mão. “Muita coisa ainda falta esclarecer e serenar entre nós; mas já o dia me parece mais puro e luminoso.”

“Eu sou o homem consciencioso do espírito”, respondeu o interrogado, “e, em questões de espírito, não é fácil alguém ser mais severo, escrupuloso, preciso e intransigente do que eu, excetuado aquele de quem isso aprendi, o próprio Zaratustra.

Antes de não saber nada do que saber muito pela metade! Antes ser um parvo com a cabeça própria do que um sábio ao sabor dos outros! – Eu vou até o fundo;

- e que importa se ele é grande ou pequeno? Se seu nome é pântano ou céu? Um fundo do tamanho de um palmo me é suficiente: contanto que seja realmente terreno firme!

- um palmo de terreno firme: nele se pode ficar em pé. Para a verdadeira consciência do saber, nada há de grande nem nada de pequeno.”

“Então és, talvez, o pesquisador do sanguessuga?, perguntou Zaratustra, “e acompanhas a sanguessuga até os últimos fundamentos, ó homem consciencioso?”

“Ó Zaratustra”, foi a resposta, “isso seria uma tarefa enorme, como poderia eu atrever-me a tanto?

Do que, porém, sou mestre e conhecedor é o cérebro da sanguessuga; - é esse o meu mundo!

E é realmente, um mundo! Mas perdoa que, neste ponto, eu dê a palavra ao meu orgulho, porque, em tal matéria, não há quem me iguale. Por isso eu disse: ‘Aqui estou em minha casa.’

Há quanto tempo acompanho de perto esta única coisa, o cérebro da sanguessuga, para que essa escorregadia verdade não me escapula mais! Este é o meu reino!

- por ele, atirei fora tudo o mais, por ele, tudo o mais, para mim, tornou-se indiferente; e, bem pegada ao meu saber, acampa a minha negra ignorância.

É o que de mim exige minha consciência do espírito: que eu saiba uma coisa e, de tudo o mais, não saiba nada; repugnam-me todos os meios-termos do espírito, todas as mentes nebulosas, oscilantes, exaltadas!

Além do ponto em que termina a minha honestidade, sou cego e, também, quero ser cego. Naquilo que quero saber, porém, quero, também, ser honesto, ou seja, duro, severo, escrupuloso, preciso, cruel, implacável.

Falaste, certa vez, Zaratustra: ‘O espírito é a vida que corta na própria vida’; foi o que me seduziu na tua doutrina e me levou a ela. E, em verdade, com o meu próprio sangue aumentei o meu saber!”

- “Como o demonstra a evidência”, interrompeu Zaratustra; já que o sangue continuava a escorrer do braço do homem consciencioso. Dez sanguessugas, com efeito, tinham-se pegado nele.

“Ó singular companheiro”, acrescentou, “quantas coisas me ensina essa evidência, precisamente, tu mesmo! E nem tudo, talvez, teria eu o direito de derramar em teu severo ouvido.

Muito bem! Separemo-nos aqui! Mas gostaria de encontra-te de novo. Passa ali em cima o caminho que leva à minha caverna; hóspede querido desejo-te, por lá, esta noite.

De bom grado desejaria, também, compensar teu corpo de que o pisasse o pé de Zaratustra; pensarei no assunto. Mas, agora, um grito de socorro me chama com urgência para longe de ti.”

Assim falou Zaratustra.

 

O mendigo voluntário

 

Depois que deixara o mais feio dos homens, Zaratustra teve frio e sentiu-se só: é que uma grande sensação de gelo e solidão se apoderara da sua alma, a tal ponto que lhe regelava também os membros. Mas continuou a caminhar, ora subindo, ora descendo, ora passando por verdes pastos, ora também, porém, por selvagens e pedregosos barrancos, onde, um dia, algum córrego impaciente fizera seu leito; e, de súbito, voltou a sentir-se interiormente aquecido e reconfortado.

“Que se passa comigo?”, perguntou a si mesmo. “Há qualquer coisa quente e viva que me reanima; deve achar-se na minha vizinhança.

Já me sinto menos só: desconhecidos companheiros e irmãos vagueiam a meu redor, seu cálido respiro penetra-me a alma.”

Quando, contudo, olhou em derredor, procurando os consoladores da sua solidão – eis que deparou com algumas vacas reunidas numa encosta: a sua proximidade e cheiro haviam-lhe aquecido o coração. Mas essas vacas pareciam escutar atentamente alguém que falava e não repararam naquele que se aproximava. Assim que Zaratustra, porém, chegou bem perto delas, ouviu distintamente uma fala humana vir do meio das vacas; e era visível que todas estas tinham a cabeça voltada para o orador.

Então, aos pulos, subiu Zaratustra rapidamente a encosta, abrindo caminho por entre as vacas, pois receava que houvesse, ali, acontecido uma desgraça a alguém, ao qual a compaixão das vacas dificilmente seria de auxílio. Nisso, contudo, enganara-se; porque lá estava um homem sentado no chão e parecia exortar as vacas a não terem medo dele; e era um homem pacífico, um pregador de sermões na montanha, de cujos olhos pregava a própria bondade. “Que procuras aqui?”, exclamou Zaratustra, surpreso.

“Que procuro eu aqui?”, respondeu ele. “O mesmo que tu, intrometido! Ou seja, a felicidade na terra.

Mas isso, justamente, eu queria aprender destas vacas. Pois, fica-o sabendo, é meia manhã que insto com elas a esse propósito e já estavam para dar-me a resposta. Por que as incomodas?

Pois, até quando não voltarmos atrás e não nos tornamos como as vacas, não entraremos no reino dos céus. E uma coisa, precisamente, delas deveríamos aprender: a ruminar.

E, na verdade, ainda que o homem conseguisse o mundo inteiro, mas não aprendesse esta única coisa, ruminar: que lhe aproveitaria? Não ficaria livre da sua aflição,

- da sua grande aflição; mas esta, hoje, chama-se náusea. Quem não tem, hoje, o coração, a boca e os olhos cheios de náuseas? Tu também! Mas olha para estas vacas!”

Assim falou Zaratustra – pois, até ali, o conservara carinhosamente pousado nas vacas; - nesse momento, porém, mudou completamente. “Mas com quem falo?”, exclamou, assustado, levantando-se do chão num pulo.

“Esse é o homem sem náusea, esse é Zaratustra em pessoa, o vencedor da grande náusea, esses são os olhos, essa é a boca, esse é o coração do próprio Zaratustra.”

E, assim falando, beijou a mão daquele a quem falava, com os olhos transbordantes de contentamento e todos os gestos de alguém a cujos pés, inesperadamente, como preciosa dádiva, caiu um tesouro do céu. As vacas, porém, olhavam admiradas aquilo tudo.

“Não fales de mim, singular e amável criatura!”, disse Zaratustra, defendendo-se daquela ternura. “Fala-me, primeiro, de ti! Não és p mendigo voluntário, que, um dia, atirou para longe de si uma grande riqueza –

- que se envergonhou da sua riqueza e dos ricos e fugiu para o meio dos pobres, afim de doar-lhes a sua abundância e o seu coração? Mas eles não o aceitaram.”

“Mas eles não me aceitaram”, disse o mendigo voluntário, “tu bem o sabes. Assim, por fim, fui ter com os animais e com estas vacas.”

“Desse modo aprendeste”, interrompeu-o Zaratustra, “que é mais difícil dar bem do que receber bem e que presentear alguém é uma arte e a suprema e mais sutil mestria da bondade.”

“Especialmente hoje em dia”, respondeu o mendigo voluntário; “hoje, precisamente, quando tudo o que é baixo rebelou-se, tornando-se arisco e, a seu modo, orgulhoso; precisamente, ao modo plebeu.

Porque, bem o sabes, chegou a hora da grande, pérfida, longa, lenta rebelião da plebe e dos escravos: que cresce e continua a crescer!

Ora, todo o bem-fazer e pequena esmola revoltam a arraia-miúda: e os ricaços que abram o olho!

Quem, hoje em dia, como bojudas garrafas, deixa cair somente gotas por gargalos demasiado estreitos – a tais garrafas, hoje, dá prazer partir o colo.

Lúbrica cobiça, biliosa inveja, exacerbada sede de vingança, altivez plebéia: tudo isto recebi em rosto. Não é mais verdade que os pobres são bem-aventurados. Mas o reino dos céus está entre as vacas.”

“E por que não entre os ricos?”, indagou Zaratustra, para pô-lo à prova, enquanto afastava as vacas, que farejavam familiarmente aquele homem pacífico.

“Por que me tentas?”, respondeu este. “Sabes disso ainda melhor do que eu. Que foi que me levou para os pobres, ó Zaratustra? Não foi a repugnância aos nossos ricaços?

- a esses grilhetas da riqueza, que, com olhos frios e pensamentos torpes, vão à cata de vantagens em todo o monturo, a essa canalha cujo fedor sobe até o céu –

- a essa plebe revestida de ouro, falsificada, cujos pais eram ladrões ou abutres ou trapeiros, casada meretrizes, em verdade, pouco falta a todas elas. –

- plebe em cima, plebe embaixo! Que ainda significa, hoje em dia, ‘pobre’ e ‘rico’! Desaprendi a diferença – e, então, fugi para longe, cada vez mais longe, até que cheguei a estas vacas.”

Assim falou o pacífico, fungando e suando ao pronunciar tais palavras; de sorte que as vacas tornaram a admirar-se. Zaratustra, porém, enquanto ele assim duramente falava, continuou a olha-lo em rosto, sorrindo e meneando silenciosamente a cabeça.

“Exerces violência contra ti mesmo, ó pregador da montanha, a usures tão duras palavras. Para tal dureza não nasceu a tua boca; nem os teus olhos –

E tampouco, ao que me parece, o teu estômago: que é contrário a todo esse espumejar de raiva e de ódio. Teu estômago quer coisas mais tenras; não és um carnívoro.

Mais parece-me, ao contrário, homem de ervas e raízes. Talvez esmoas grãos. Certamente, porém, és avesso aos prazeres da carne e gostas de mel.”

“Adivinhaste bem o que eu sou”, respondeu o mendigo voluntário, com o coração aliviado. “Gosto de mel e, também, esmôo grãos, pois sempre procurei aquilo que tem sabor agradável e faz o hálito puro,

- e, ainda, aquilo que requer muito tempo, um dia de trabalho para a boca de pacatos vadios e mandriões.

Nisso, contudo, ninguém foi mais longe do que estas vacas: inventaram para si o ruminar e o quedar-se deitadas ao sol. Também abstêm-se de todos os pensamentos difíceis, que incham o coração.”

- “Muito bem!”, disse Zaratustra; “deverias ver, também, os meus animais, a minha águia e a minha serpente – eles não têm iguais, hoje, na terra.

Olha, ali em cima, o caminho leva à minha caverna: sê meu hóspede, esta noite. E fala com os meus animais sobre a felicidade dos animais –

- até que eu mesmo chegue lá. Porque, agora, um grito de socorro me chama com urgência para longe de ti. Também encontrarás mel novo, na caverna, dourado e geladinho mel de colméia; come-o!

Agora, no entanto, despede-te logo das tuas vacas, ó singular e amável criatura, por mais tristeza que isto te cause. Porque são os teus mais fervidos amigos e mestres!” –

- “Com exceção de um só, que me é ainda mais dileto”, respondeu o mendigo voluntário. “Tu mesmo és bondoso e ainda melhor do que uma vaca, ó Zaratustra!”

“Fora, fora daqui, grande bajulador!”, exclamou, zangado, Zaratustra. “Por que pretendes corromper-me com esse mel do elogio e da bajulação?

Fora, para longe de mim!”, gritou novamente, brandido o bastão na direção do terno mendigo; o qual, porém, fugiu ligeiro dali.  

A sombra

 

Mal, no entanto, fugira o mendigo voluntário e estava outra vez Zaratustra a sós consigo, quando ouviu, atrás de si, uma nova voz; esta exclamava: “Alto, Zaratustra! Espera, homem! Sou eu, Zaratustra, a tua sombra!” Mas Zaratustra não esperou, tomado de repentina irritação por essa excessiva afluência de pessoas e invasão de seus montes. “Que é feito da minha solidão?”, disse.

“Começo a achar isso, realmente, demais; esta, montanha pulula de gente, o meu reino não é mais deste mundo, preciso de novos montes.

Minha sombra me chama? Que importa a minha sombra! Corra atrás de mim, se quiser! Eu – fujo dela.”

Assim falou Zaratustra ao seu coração e desatou a fugir. Mas aquele que estava atrás dele o seguiu; de sorte que já havia três correndo um atrás do outro e, precisamente, primeiro, o mendigo voluntário, depois Zaratustra e, terceiro e mais atrás de todos, a sua sombra. Não correram assim durante muito tempo; Zaratustra deu-se conta da sua loucura e, de um só golpe, sacudiu de si todo o mau humor e irritação.

“Como!”, exclamou. “Porventura não aconteceram desde sempre, entre nós, velhos eremitas e santos, as coisas mais ridículas?

Em verdade, muito alta cresceu a minha insânia, nos montes! Agora, ouço seis velhas pernas de doidos pateando umas atrás das outras!

Mas terá Zaratustra o direito de temer uma sombra? Além de que, por fim de contas, parece-me que ela tem pernas mais compridas do que as minhas.”

Assim falou Zaratustra, rindo com os olhos e as vísceras, parou e voltou-se rapidamente – e eis que, destarte, quase atirou ao solo aquele que era a sua sombra e perseguidor: tão de perto este o seguia e tão fraco era, também. Quando, com efeito, o examinou com os olhos, assustou-se com ante súbita visão de um fantasma: tão mirrado, fusco, oco e enfermiço era o aspecto desse perseguidor.

“Quem és tu?”, perguntou Zaratustra, em tom enérgico. “Que andas fazendo por aqui? E por que te dizes a minha sombra? Não gosto de ti.”

”Desculpa-me de que o seja”, respondeu o indivíduo que se dizia sombra; “e, se não gostas de mim, muito bem, Zaratustra! Só me cabe louvar-te, por isso, e ao teu bom gosto.

Um viandante, sou eu, que, já desde muito, te acompanha pegado aos teus calcanhares: indo sempre caminho, mas de nenhum lugar e, tampouco, de casa, que não tenho; de modo que, realmente, para o eterno judeu errante pouco me falta, salvo que não sou nem eterno nem judeu.

Como? Terei sempre de estar a caminho de nenhum lugar? Remoinhado por todas os ventos, erradio, arrastado por aí? Ó Terra, demasiado redonda te tornaste para mim!

Já sentei em todas as superfícies, já adormeci, como cansada poeira, em espelhos e vidros de janelas; tudo tira alguma coisa de mim, ninguém me dá nada, estou cada vez mais mirrado – pareço quase uma sombra.

Mas foi atrás de ti que voei e a ti que segui por mais tempo, ó Zaratustra; e, embora escondendo-me de ti, fui, por fim de contas, a tua melhor sombra: onde quer que mal te detivesses, também me detive.

Contigo vagueei pelos mundos mais frios e distantes, qual um fantasma a caminhar, por sua vontade, sobre telhados invernais e neve.

Contigo almejei por tudo o que é proibido, pelo que há de pior, de mais remoto; e, se alguma virtude possuo, é a de que não temi nenhuma proibição.

Contigo destrocei tudo aquilo que, algum dia, meu coração venerara, derribei todos os marcos de fronteira e ídolos, deixei-me atrair pelos mais perigosos desejos – em verdade, não há delito sobre o qual eu não passasse uma vez.

Contigo desaprendi a fé nas palavras, nos valores e nos grandes nomes. Quando o Diabo muda de pele, não perde, com a pele velha, também o nome? Porque também esse é pele. O próprio Diabo talvez seja – pele.

‘Nada é verdade, tudo é permitido’: assim eu dizia, para animar-me. Nas mais gélidas águas me atirei, com a cabeça e o coração. Ah, quantas vezes não fiquei, por causa disso, nu e vermelho como um camarão!

Ah, onde foram para todo o bem e todo o pudor e toda a fé nos bons! Ah, para onde foi aquela mendaz inocência que, antigamente, eu possuía, a inocência dos bons e das suas nobres mentiras!

Com demasiada freqüência, corri atrás da verdade, colado aos teus pés; e, então, ela pisou minha cabeça. Às vezes, eu pensava mentir e eis que, somente então, encontrava – a verdade.

Coisas demais se me tornaram claras; agora, nada mais me importa. Nada mais existe que eu ame – como ainda haveria de amar-me a mim mesmo?

‘Viver como me apraz ou não viver de todo’: assim quero, assim quer também o ser mais santo. Mas, sai de mim! como posso ainda, eu, ter alguma coisa – que me apraza?

Tenho, eu, por ventura – ainda um frio? Um porto para o qual ruma a minha vela?

Um bom vento? Ah, somente quem sabe para onde vai sabe, também, que vento é bom e favorável à sua navegação.

Que me restou, ainda? Um coração cansado e atrevido; uma vontade inconstante; asas de vôo rasteiro; um espinhaço partido.

Esta procura do meu lar, ó Zaratustra, tu bem o sabes, esta procura foi a minha provação; e me consome.

Onde está – o meu lar? Por ele pergunto e o procuro e o procurei e não o encontrei. Ó Eterno em toda a parte, é eterno em parte alguma, ó eterno – inutilmente!”

 

Assim falou a sombra, enquanto o rosto de Zaratustra se carregava ante essas palavras. “ÉS a minha sombra”, disse por fim, triste.

“Não é pequeno o perigo que corres, ó espírito livre e errante! Tiveste um mal dia; cuida de que não te colha uma noite ainda pior!

Para criaturas sem pouso, como tu, até uma prisão, no fim, parece ventura. Já viste, algum dia, como dormem os criminosos encarcerados? Dormem tranqüilos, gozam a sua nova segurança.

Toma cuidado com que, no fim, ainda não te aprese uma fé mais acanhada, uma ilusão mais dura, mais severa! Porque a ti, agora, te seduz e tenta o que seja acanhado e firme.

Perdeste a meta; ai de ti, como irás refazer-te e consolar-te da perda? Com isso – perdeste, também, o caminho!

Minha pobre vagante, erradia, cansada borboleta! Queres, esta noite, uma trégua e uma pousada? Sobe para minha caverna!

Ali em cima, o caminho leva à minha caverna. E, agora, vou depressa fugir novamente de ti. Sinto já como que uma sombra estender-se sobre mim.

Preciso caminhar sozinho, afim de que tudo, a meu redor, volte a ser claro. Para isso, devo continuar a caminhar lepidamente ainda por muito tempo. À noite, porém, lá na minha moradia – vai dançar-se!’ - -

Assim falou Zaratustra.

 

Do homem superior

1

 

Na rimeira vez que fui para o meio dos homens, pratiquei a estultície do eremita, a grande estultície: fui à praça do mercado.

E, como falasse a todos, não falei a ninguém. À noite, porém, eram funâmbulos, os meus companheiros, e cadáveres e, eu mesmo, quase um cadáver.

Com a nova manhã, contudo, uma nova verdade veio a mim; comecei, então, a dizer: “Que me importam a praça do mercado e a plebe e o estardalhaço da plebe e as orelhas compridas da plebe!”

Aprendi isto de mim, ó homem superiores: na praça do mercado, ninguém acredita em homens superiores. E, se quiserdes discursar por lá, pois não, à vontade. Mas a plebe piscará o olho: “Somos todos iguais.”

“Ó homens superiores” – assim piscará o olho a plebe -, “não há homens superiores, somos todos iguais, um homem é um homem: diante de Deus – somos todos iguais!”

Diante de Deus! – Agora, porém, esse Deus morreu. Mas, diante da plebe, nós não queremos ser iguais. Ó homens superiores, ide embora da praça do mercado!

 

2

 

Diante de Deus! – Agora, porém, esse Deus morrei! Esse Deus, ó homens superiores, era o vosso maior perigo.

Somente desde que ele jaz no túmulo, vós ressuscitastes. Somente agora chega o grande meio-dia, somente agora o homem superior se torna – o senhor!

Compreendestes estas palavras, meus irmãos? Estais assustados: sente vertigens o vosso coração? Escancara-se diante de vós, neste ponto, o abismo? Late contra vós, neste ponto, o cão infernal?

Vamos! Coragem, homens superiores! Somente agora a montanha do futuro humano sente as dores do parto. Deus morreu; nós queremos, agora, - que o super-homem viva.

 

3

 

Os mais preocupados hoje indagam: “Como se conservará o homem?” Zaratustra, porém, foi o primeiro e único que indagou: “Como se superará o homem?”

Pelo super-homem, almeja o meu coração, é ele o meu primeiro e único anseio – e não o homem: não o próximo, não o mais pobre, não o mais sofredor, não o melhor. –

O que posso amar no homem, ó meus irmãos, é que ele é uma transição e um acaso. E também em vós há muita coisa que em mim suscita amor e esperança.

Que sentísseis desprezo, ó homens superiores, é o que me dá esperança. Porque os grandes desprezadores são os grandes veneradores.

Que desesperásseis, muito há nisso que honrar. Porque não aprendestes a resignar-vos, não aprendestes as pequenas espertezas.

É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores; pregam todos a resignação e a desambição e a cordura e a consideração pelos outros e o longo etecétera das pequenas virtudes.

O que é de natureza feminina, o que provém da condição servil e, especialmente, a mixórdia plebéia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de todo o destino humano. – Oh, nojo! nojo! nojo!

Isso pergunta e não cessa de perguntar: “Como poderá o homem conservar-se melhor, mais longamente, mais agradavelmente?” Com tal pergunta – eles são os senhores de hoje.

Superai, meus irmãos, esses senhores de hoje – esses pequenos homens: ele são o maior perigo do super-homem!

Superai, ó homens superiores, as pequenas virtudes, as pequenas espertezas, as considerações dos grãos de areia, a azáfama das formigas, a sórdida satisfação de si, a “felicidade do maior número”! –

E desesperai-vos, de preferência a dar-vos por vencidos. E, em verdade, por isto eu vos amo, ó homens superiores: porque não sabeis viver nos dias de hoje. Já que é esse o melhor modo – de continuardes, vós, vivo!

 

4

 

Tendes coragem, meus irmãos? Sois animosos? Não a coragem diante de testemunhas, mas a coragem do solitário e da águia, aquela que não tem mais, sequer, um Deus para presenciá-la?

Não as almas frias, os muares, os cegos, os bêbados, chamo eu animosos. Ânimo tem quem conhece o medo, mas vence o medo; quem vê o abismo, mas com altivez.

Quem vê o abismo, mas com olhos de águia, quem deita a mão ao abismo com garras de águia, esse tem coragem. - -

 

5

 

“O homem é mau” – assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá isso fosse verdade ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.

“O homem deve tornar-se melhor e pior” – isto ensinou eu. O pior que tudo é necessário para o maior bem do super-homem.

Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele pregador do povinho. Eu, porém, me rejubilo como grande pecado como a minha grande consolação.

Tal não se diz, contudo, para orelhas compridas. Nem toda a palavra é própria para toda a boca. São coisas sutis e distantes: não tentem agarrá-las os cascos de carneiros!

 

6

 

Julgais, acaso, ó homens superiores, que estou aqui para fazer bem o que vós fizestes mal?

Ou que queira ajeitar-vos melhor, doravante, em vosso leito de sofredores? Ou indicar-vos, viandantes extraviados e perdidos na montanha, novos e mais fácies atalhos?

Não! Não! Três vezes não! Cada vez mais, cada vez melhores homens da vossa espécie terão de perecer – pois devereis ter vida cada vez pior e mais dura. Somente assim –

- somente assim cresce o homem para o alto, onde o raio o atinge e destrói: cresce a altura suficiente para o raio!

A poucas coisas, demoradas e distantes, visam o meu pensamento e o meu anseio; que poderia importar-me a vossa pequena, numerosa, breve miséria!

Ainda, a meu ver, não sofreis bastante! Pois sofreis de vós mesmos, não sofreis do que é o homem. Mentiríeis, se dissésseis o contrário! Nenhum de vós sofre daquilo que eu sofri. - -

 

7

 

Não me basta que o raio não cause mais danos. Não é desviá-lo que eu quero: ele deve aprender – a trabalhar para mim.

De há muito se adensa a minha sabedoria como uma nuvem, tornando-se mais lenta e sombria. Assim faz toda a sabedoria que, algum dia, deverá dar à luz – raios.

Para esses homens de hoje, não quero ser luz, não quero chamar-me luz. Quero, a esses – cegá-los. Raio da minha sabedoria, fura seus olhos!

 

8

 

Que o vosso querer não exceda as vossas capacidades; há uma maligna hipocrisia nos que querem o que está além das suas capacidades.

Especialmente se querem grandes coisas! Pois suscitam desconfiança contra as grandes coisas, esses trapaceiros e histriões –

- até que, no fim, se enganam a si mesmos, em sua vesguice, caiada podridão encoberta por altissonantes palavras, por alardeadas virtudes, por obras vistosas e falsas.

Muito cuidado com eles, ó homens superiores! Porque nada é mais raro e precioso, aos meus olhos, do que a honestidade.

Não pertence o dia de hoje à plebe? A plebe, porém, não sabe o que é grande, o que é pequeno, o que é reto e honesto; ela é torta, com toda a inocência, e mente sempre.

 

9

 

Cultivai, hoje, uma sadia desconfiança, ó homens superiores, ousados e sinceros! E guardai secretas as vossas razões. Porque o hoje pertence à plebe.

Aquilo que, um dia, a plebe aprendeu, sem razões, a acreditar, quem conseguirá – derrubá-lo, com razões, dentro dela?

E, na praça do mercado, a persuasão se obtém com gestos. Mas as razões deixam a plebe desconfiada.

E se a verdade, alguma vez, chegou, ali, a triunfar, perguntai a vós mesmos, com sadia desconfiança: “Que poderoso erro terá lutado por ela?”

Guardai-vos também dos doutos! Esses vos odeiam? Pois são estéreis! Ante seus olhos frios e ressequidos, toda a ave jaz depenada.

Gabam-se de não mentir; mas a impotência para mentir ainda está longe de ser amor à verdade. Tende cautela!

Ter-se livrado da febre ainda está longe de ser conhecimento! Não creio nos espíritos regelados. Quem não sabe mentir, não sabe o que é a verdade.

 

10

 

Se quereis atingir as alturas, usai as vossas próprias pernas! Não vos deixeis levar para cima, não vos senteis nas costas e cabeças alheias!

Tu, porém, montaste a cavalo? Cavalgas ligeiro, agora, subindo para a tua meta? Muito bem, meu amigo! Mas o teu pé aleijado também está montado contigo!

Quando chegares à tua meta, quando já desceres do cavalo, justamente na tua eminência, ó homem superior – tropeçarás!

 

O despertar

 

1

 

Após o canto do viandante e sombra, encheu-se subitamente a caverna de alarido e risadas; e, visto que os convidados ali reunidos falavam todos ao mesmo tempo e que também o burro, com tamanho encorajamento, não ficava mais quieto, foi tomado Zaratustra de um leve sentimento de aversão e sarcasmo para com suas visitas; muito embora se regozijasse de vê-las alegres. Porque isso parecia-lhe um sinal de cura. Assim, saiu sorrateiramente ao ar livre e falou aos seus animais.

“Que é feito, agora, da sua angústia!”, disse; e já se sentia aliviado da pequena contrariedade. – “Comigo, ao que parece, desaprenderam a gritar por socorro!

- se bem que ainda, infelizmente, não desaprendessem a gritar.” E Zaratustra tapou os ouvidos, porque, nesse momento, foi o “I-A” do burro misturar-se curiosamente com a jubilosa algarraza daqueles homens superiores.

“Divertem-se”, recomeçou ele, “e, quem sabe!, talvez à custa do seu anfitrião; e mesmo se foi de mim que aprenderam a rir, não foi o meu riso que aprenderam.

Mas que importa! São gente velha: saram a seu modo, riem a seu modo; coisas piores já suportaram os meus ouvidos sem se tornarem grosseiros.

Hoje é dia de vitória: já recua, já foge e o espírito de gravidade, o meu velho e mortal inimigo! Como promete acabar bem, este dia, que começou tão mal e tão carregado!

E quer acabar. Eis que já vem o anoitecer: vem cavalgando sobre o mar, o bom cavaleiro! Como balança na purpúrea, sela, o felizardo que regressa ao lar!

Mira-o o céu com límpido olhar, o mundo deita-se na profundeza; ó vós todos, singulares criaturas que a mim viestes, vale a pena viver junto de mim!”

 

Assim falou Zaratustra. E de novo chegaram da caverna a vozearia e as gargalhadas dos homens superiores; então, ele recomeçou:

“Mordem no anzol, a minha isca tem efeito, também deles foge o seu inimigo, o espírito de gravidade. Já estão aprendendo a rir de si mesmos: ouvi bem?

Tem efeito o meu varonil alimento, as minhas suculentas e vigorosas máximas; e, em verdade, não os nutri de flatosos legumes! Mas com alimento de guerreiros, com alimento de conquistadores: despertei novos desejos.

Há novas esperanças em seus braços e pernas, seu coração se distende. Encontram palavras novas, breve o seu espírito respirará afoiteza.

Tal alimento, sem dúvida, não será próprio para crianças, nem, tampouco, para mulheres, velhas e jovens, ardendo em desejos. Dessas, outro é o modo de convencer as entranhas; delas não sou eu nem médico nem mestre.

A náusea retira-se desses homens superiores; ótimo! É esta a minha vitória. No meu reino, tornam-se seguros de si, todo o tolo pudor vai-se embora, e desabafam.

Desabafam seus corações, voltam-lhes os bons momentos, folgam e ruminam – tornam-se agradecidos.

Isso eu reputo o melhor sinal: que se tornem agradecidos. Não tardará muito para que inventem festas e ergam estelas à memória das suas velhas alegrias.

São convalescentes!” Assim falou Zaratustra alegremente ao seu coração, com os olhos fitos na distância; mas os seus animais achegaram-se dele, respeitando-lhe a felicidade e o silêncio.

 

2

 

De súbito, porém, assustou-se o ouvido de Zaratustra: porque na caverna, até ali reboante de gritos e risadas, fizera-se, de xofre, um silêncio mortal; - seu nariz, todavia, sentiu o aroma de uma fumaça como que de incenso: dir-se-ia de pinhas queimando.

“Que aconteceu? Que fazem eles?”, perguntou a si mesmo, acercando-se a furto da entrada, para poder, sem ser notado, observar seus hóspedes. E, maravilha das maravilhas! O que não teve de ver com seus próprios olhos!

“Voltaram todos a ser devotos, estão rezando, enlouqueceram!” – falou, sobremaneira admirado. E, em verdade, todos aqueles homens superiores, os dois reis, o papa sem ofício, o pérfido feiticeiro, o mendigo voluntário, o viandante e sombra, o velho adivinho, o homem consciencioso do espírito e o mais feio dos homens – estavam todos de joelhos, como crianças e velhas beatas, rezando ao burro. E, justamente nesse momento, começou o homem mais feio do mundo a gorgolejar e a bufar, como se qualquer coisa inexprimível quisesse sair dele; mas, quando pôde realmente traduzi-la em palavras, eis que se tratava de uma piedosa e estranha ladainha em louvor do burro adorado e incensado. Mas essa ladainha soava assim:

 

Amém! E honra e louvor e sabedoria e gratidão e glória e força sejam ao nosso Deus, de eternidade em eternidade!

- Mas a isto o burro disse: “I-A”.

Que oculta sabedoria é essa, de ter orelhas compridas e dizer somente sim e não dizer nunca não! Não criou ele um mundo à sua imagem, ou seja, o mais estúpido possível?

- Mas a isto o burro disse: “I-A”.

Percorres caminhos direitos e tortos e pouco te importa o que a nós homens parece direito ou torto. O teu reino está além do bem e do mal. A tua inocência está em não saberes o que é inocência.

- Mas a isto o burro disse: “I-A”.

Vê como não repeles ninguém, nem os mendigos nem os reis. Mandaste vir a ti as criancinhas e, quando os rapazes mal-intencionados procuram atrair-te, dizes singelamente “I-A”.

- Mas a isto o burro disse: “I-A’.

Gostas de burras e de figos frescos, não desdenhas comida. Um cardo comicha-te o coração, quando tens fome. Há nisso a sabedoria de um deus.

- Mas a isto o burro disse: “I-A”.

 

O sinal

 

Mas, na manhã que seguiu essa noite, saltou Zaratustra de seu leito, cintou os flancos e saiu da caverna, ardente e forte como um sol matinal surgindo detrás de escuros montes.

“Ó grande astro”, falou, como já uma vez falara outrora, “ó profundo olho de felicidade, que seria toda a tua felicidade, se não tivesse aqueles que iluminas!

E se permanecessem eles em seus quartos, quando tu já estás acordado e surges e dás e distribuis presentes: como se encolerizaria o teu altivo pudor!

Pois muito bem! Ainda dormem esses superiores, quando eu já estou acordado: não são esses os companheiros próprios para mim! Não por eles esperei aqui, nos meus montes.

Quero começar o meu trabalho, o meu dia; mas eles não compreendem quais são os sinais da minha manhã, o meu passo – não é, para eles, um toque de alvorada.

Ainda dormem na minha caverna, ainda seu sonho bebe os meus ébrios cantos. O ouvido que fica à minha escuta – o ouvido aplicado falta entre seus órgãos.”

- Isso falara Zaratustra ao seu coração, quando o sol nascia; volveu, então, para o alto um olhar indagador, pois ouvia sobre sua cabeça o grito agudo da águia. “Muito bem!”, exclamou para cima, “isso me agrada e me é devido. Os meus animais estão acordados, pois eu estou acordado.

A minha águia está acordada, e como eu, presta homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia para a nova luz. Sois os animais certos para mim; eu vos amo.

Mas faltam-me, ainda, os meus homens certos!” –

 

Assim falou Zaratustra. Mas, então, aconteceu que ele se sentiu rodeado como que por um inumerável e revoluteante bando de pássaros – todavia, o ruflar de tantas asas e o atropelo em torno de sua cabeça eram tamanhos, que fechou os olhos, e, em verdade, era como se uma nuvem caísse sobre ele, uma nuvem de flechas desferidas contra um novo inimigo. Eis, porém, que ali se tratava de uma nuvem de amor e envolvia um novo amigo.

“Que se passa comigo?” pensou Zaratustra em seu admirável coração; e sentou-se lentamente na grande pedra que havia perto da entrada da caverna. Mas, enquanto estendia as mãos a seu redor e por cima e em baixo de si, para defender-se dos meigos pássaros, eis que lhe sucedeu coisa ainda mais estranha: sua mão penetrou, sem querer, numa basta e quente madeixa de cabelos; ao mesmo tempo, porém, ecoou à sua frente um rugido – um brando e longo rugido de leão.

“Chegou o sinal”, disse Zaratustra; e seu coração transformou-se. E, na verdade, quando tudo clareou em derredor, lá estava deitada a seus pés uma fulva e poderosa fera, que conchegava a cabeça ao seu joelho e não queria, de tanto amor, afastar-se dali e procedia como um cão que volte a encontrar o velho dono. Mas não menos solícitos do que o leão eram, em seu amor, as pombas; e, toda a vez que uma pomba resvalava pelo nariz do leão, sacudia o leão a cabeça e ria, admirado.

Diante disso tudo, falou Zaratustra somente estas palavras: emudeceu de todo. Seu coração, porém, sentia-se aliviado e seus olhos gotejavam lágrimas, que lhe caíam sobre as mãos. E não cuidou de mais nada e ali ficou sentado, imóvel e, mesmo, sem mais defender-se dos animais. Revoaram, então, as pombas de um lado para o outro, pousaram em seu ombro, acariciaram seu alvo cabelo, não se cansando, jubilosas, de prodigalizar-lhe ternura. O forte leão, porém, continuava a lamber as lágrimas que caíam sobre as mãos de Zaratustra, emitindo tímidos rugidos e rosnadelas. Assim procediam esses animais. –

Tudo isso durou muito tempo ou pouco: pois, a bem dizer, não há na terra nenhum tempo para tais coisas. – Entrementes, porém, na caverna de Zaratustra, tinham acordado os homens superiores e ordenavam-se em cortejo para ir ao encontro de Zaratustra e apresentar-lhe a saudação matinal; porque, ao acordar, haviam notado que não estava mais entre eles. Mas, ao chegarem à entrada da caverna onde os precedera o ruído de seus passos, enorme foi o assombro do leão, que, de chofre, afastou-se de Zaratustra e arremeteu, num pulo, contra a caverna, rugindo furiosamente; ao ouvi-lo rugir, porém, os homens superiores entraram todos a gritar, como por uma só boca, e, fugindo para trás, desapareceram num abrir e fechar de olhos.

O próprio Zaratustra, no entanto, aturdido e surpreso, levantou-se de seu assento, olhou em redor, quedou-se ali em pé, pasmado, interrogou o seu coração, refletiu e viu que estava sozinho. “Que ouvi”? disse  por fim, lentamente, “o que acaba de passar-se comigo?”

E logo lembrou-se de tudo e compreendeu, num relance, o que acontecera entre a véspera e esse dia. “Eis a pedra”, disse, afagando a barba; “nela estava eu sentado ontem de manhã; e foi aqui que se acercou de mim o adivinho e foi aqui que ouvi, pela primeira vez, o grito que acabei de ouvir, o grande grito de socorro.

Ó homens superiores, era a vossa miséria que me profetizava, ontem de manhã, aquele velho adivinho –

- era para a vossa miséria que, tentando-me, queria arrastar-me: ‘Ó Zaratustra’, falou-me, vim para tentar-te e induzir-te ao teu derradeiro pecado.’

Ao meu derradeiro pecado?”, exclamou Zaratustra, rindo, furioso, das suas próprias palavras. “O quê, afinal, me ficou reservado como meu derradeiro pecado?”

- E, mais uma vez, absorveu-se Zaratustra em si mesmo e voltou a sentar-se na grande pedra e refletiu. De repente, levantou-se num pulo –

“Compaixão! Compaixão pelo homem superior!”, exclamou; e seu semblante converteu-se em bronze. “Pois muito bem! Isso – já teve o seu tempo!

O meu sofrimento e a minha compaixão – que importam? Viso, acaso, à felicidade? Eu vivo à minha obra!

Pois muito bem! O leão chegou, os meus filhos estão próximos, Zaratustra amadureceu, a minha hora chegou: -

Esta é minha manhã, o meu dia raiou; sobe, agora, sobe no céu, ó grande meio-dia!” - -

Assim falou Zaratustra, e abandonou sua caverna, ardoroso e forte, como um sol matinal surgindo detrás de escuros montes.

 

 

 

 

m, pornuou a caminhar, ora subindo, ora descendo, ora passando por verdes pastos, ora tambm isso aprendi, o preraas: assim

           

 

 

 

o

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Há, nesse sentido, um popular provérbio alemão: “Ehen werden im Himmel geschlossen”, “os casamentos são decididos no céu”. (N. do T.)

 

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