Primeira Parte
(Síntese:Paolo Cugini )
(Digitação: Neilka Vieira)
O prólogo de Zaratustra
1
Aos trinta anos
de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago da sua terra natal e foi
para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da
solidão, sem deles se casar. No fim, contudo, seu coração mudou; e, certa
manhã, levantou-se ele com a aurora, foi para diante do sol e assim lhe falou:
“Queria a tua
felicidade, ó grande astro, se não tivesses aqueles que iluminas!
São dez anos que
sobes à minha caverna; e já se te haveriam tornado enfadonhos a tua luz e este
caminho, sem mim, a minha águia e a minha serpente.
Mas nós te
esperávamos todas as manhãs, tomávamos de ti o teu supérfluo e por ele te
abençoávamos.
Vê! Aborreci-me
da minha sabedoria, como a abelha do mel que ajuntou em excesso; preciso de
mãos que para mim se estendam.
Eu desejaria dar
e distribuir tanto, que os sábios dentre os homens voltassem a alegrar-se de
sua loucura e os pobres, de sua riqueza.
Por isso, é
preciso que eu baixe às profundezas, como fazes tu à noite, quando desapareces
atrás do mar, levando ainda a luz ao mundo ínfero, ó astro opulento!
Como tu, devo
ter o meu acaso, segundo dizem os homens para junto dos quais quero descer.
Abençoa-me pois,
olho tranqüilo, que pode, sem inveja, contemplar uma ventura ainda que
demasiado grande!
Abençoa a taça
que quer transbordar, a fim de que sua água escorra dourada, levando por toda a
parte o reflexo da tua bem-aventurança!
Vê! Esta taça
quer voltar a esvaziar-se e Zaratustra quer voltar a ser homem”.
Assim começou o
acaso de Zaratustra.
2
Zaratustra
desceu a montanha sozinho e sem encontrar ninguém. Mas, quando chegou às
floretas, deparou repentinamente com um velho, que deixava a sua sagrada
choupana para ir à procura de raízes no mato. E assim falou o velho a Zaratustra:
“Não me é
desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se
Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo,
levavas a tua cinza para o monte; queres, hoje, trazer o fogo para o vale? Não
receias as penas contra os incendiários?
Sim, reconheço
Zaratustra. Puro é seu olhar e não há em sua boca nenhum laivo de náusea. Não
será por isso que caminha como um dançarino?
Mudado está
Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou, Zaratustra; que
pretendes, agora, entre os que dormem?
Vivias na
solidão como num mar e o mar te transportava. Ai de ti, queres novamente
arrastar tu mesmo o teu corpo?”
Zaratustra
respondeu: “Amo os homens”.
“E por que foi,
então”, disse o santo, “que eu me recolhi à floresta e ao ermo? Não foi porque
amei demais os homens?
Agora, amo Deus,
não amo os homens. Coisa por demais imperfeita é, para mim, o ser humano. O
amor aos homens me mataria.”
Zaratustra
respondeu: “Por que fui falar de amor! Trago aos homens um presente.”
“Não lhes dês
nada”, disse o santo. “Tira-lhes, de preferência, alguma coisa de cima e
ajuda-os a lavá-la; será o que de melhor poderás fazer por eles, se for bom
para ti.
E, se queres
dar-lhes alguma coisa, que não seja mais do que uma escola; e, mesmo assim, só
depois que a mendiguem.”
“Não”, respondeu
Zaratustra e falou assim: “Trata, então, de que aceitem os teus tesouros! Eles
desconfiam dos solitários e não acreditam que os procuremos para presenteá-los.
Por demais
desacompanhados, para eles, ecoam nossos passos nas ruas. E, quando, à noite,
em suas camas, ouvem alguém caminhar muito antes que o sol desponte, perguntam
a si mesmos: ‘Aonde irá esse ladrão?’
Não vás para
junto dos homens, e fica na floresta! Vai ter, antes, com os animais! Por que
não queres ser como eu – um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”
“E o que faz o
santo na floresta?”, indagou Zaratustra.
O santo
respondeu: “Faço canções e as canto; e, quando faço canções, rio, choro e falo
de mim para mim: assim louvo Deus.
Cantando,
chorando, rindo e falando de mim para mim, louvo o Deus que é o meu Deus. Mas
tu, que nos trazes de presente?”
Ao ouvir essas
palavras, despediu-se Zaratustra do santo, dizendo: “Que teria eu para dar-vos?
Mas deixa-me ir embora depressa, antes que vos tire alguma coisa!” E assim se
separaram, o velho e o homem, rindo como dois meninos.
Mas, quando
ficou só, Zaratustra falou assim ao seu próprio coração: “Será possível: Esse
velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!”
3
Ao chegar à
cidade mais próxima , encontrou Zaratustra grande quantidade de povo reunido na
praça do mercado; pois lhes fora prometido que iriam ver um funâmbulo. E
Zaratustra assim falou ao povo: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo
que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?
Todos os seres,
até gora, criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa
grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?
Que é o macaco
para o homem? Um motivo de risco ou de dolorosa vergonha. E é justamente isso o
que o homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa
vergonha.
Percorrestes o caminho que vai do verme ao
homem, mas ainda tendes muito do verme. Fostes macacos, um tempo, e, também
agora, o homem é ainda mais macaco do que qualquer macaco.
Mas o mais sábio
dentre vós não passa de uma discrepância e de um híbrido de planta e de
fantasma. Mas vos mando eu, porventura, tornar-vos fantasmas ou plantas?
Vede, eu vos
ensino o super-homem!
O super-homem é
o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o
sentido da terra!’
Eu vos rogo,
meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de
esperanças ultraterrenas! Envenenadoras, são eles, que o saibam ou não.
Desprezadores da
vida, são eles, e moribundos, envenenadores por seu próprio veneno, dos quais a
terra está cansada; que desapareçam, pois, de uma vez!
Outrora, o
delito contra Deus era o maior dos delitos; mas Deus morreu e, assim, morreram
também os delinqüentes dessa espécie. O mais terrível, agora, é delinqüir
contra a terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao
sentido da terra!
Outrora, a alma
olhava desdenhosamente o corpo; e esse desdém era o que havia de mais elevado;
- queria-o magro, horrível, faminto. Pensava, assim, escapar-se dele e da
terra.
Oh, essa alma
era, ela mesma, ainda magra, horrível e faminta; e a crueldade era a sua
volúpia!
Mas, também
ainda vós, meus irmãos, dizei-me: que vos informa vosso corpo a respeito da
vossa alma? Não é ele miséria, sujeira e mesquinha satisfação?
Em verdade, um
rio imundo, é o homem. E é realmente preciso ser um mar, para absorver, sem
sujar-se, um rio imundo.
Vede, eu vos
ensino o super-homem: é ele o mar onde pode submergir o vosso grande desprezo.
Que podeis
experimentar de mais excelso? A hora do grande desprezo. A hora em que também a
vossa felicidade se converte em náusea, do mesmo modo que a vossa razão e a
vossa virtude.
A hora em que
dizeis: ‘Que me importa a minha felicidade! Não passa de miséria, sujeira e
mesquinha satisfação. Mas, justamente, é a minha felicidade que deveria
justificar a existência!’
A hora em que
dizeis: ‘Que me importa a minha razão! Acaso cobiça ela o saber, como o leão o
seu alimento? Não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação!’
A hora em que
dizeis: ‘Que me importa a minha virtude! Ainda não me fez delirar. Como estou
farto daquilo que, para mim, é o bem e o mal! Tudo isso não passa de miséria,
sujeira e mesquinha satisfação!’
A hora em que
dizeis: ‘Que me importa a minha justiça! Não vejo que por ela eu me tornasse
carvão
A hora em
dizeis: ‘Que me importa a minha compaixão! Não é a compaixão a cruz na qual se
prega aquele que ama os homens? Mas a minha compaixão não é crucificação.’
Já falaste
assim? Já gritastes assim? Ah, se eu vos tivesse ouvindo, algum dia, gritar
assim!
Não o vosso
pecado, a vossa moderação brada aos céus, a vossa avareza até no pecado brada
aos céus!
Onde está o raio
que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados?
Vede, eu vos
ensino o super-homem: porque é ele esse raio e essa loucura! –”
Depois que
Zaratustra assim falou, alguém no meio do povo gritou: “Já basta de ouvirmos
falar do funâmbulo; agora, queremos também vê-lo!” e o povo todo riu-se de
Zaratustra. Mas o funâmbulo, julgado que o discurso se houvesse referido a ele,
preparou-se para o seu trabalho.
4
Mas Zaratustra
olhou, admirado, para o povo. Depois, falou assim: “O homem é uma corda
estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo.
É o perigo de
transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo
de tremer e parar.
O que há de
grande, no homem, é ser uma transição e um acaso.
Amo os que não
sabem viver senão no acaso, porque estão a caminho do outro lado.
Amo os grandes
desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio pela outra
margem.
Amo aqueles que,
para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das
estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do
super-homem.
Amo aquele que
vive para adquirir o conhecimento e quer o conhecimento para que, algum dia, o
super-homem viva. E quer, assim, o seu próprio ocaso.
Amo aquele que
trabalha e faz inventos para construir a casa do super-homem e preparar para
ele a terra, os animais e as plantas: porque, assim, quer o seu próprio ocaso.
Amo aquele que
ama a sua própria virtude: porque a virtude é vontade de ocaso e uma flecha do
anseio.
Amo aquele que
não guarda para si uma só gota de espírito, mas quer ser totalmente o espírito
da sua virtude: assim transpõe, como espírito, a ponte.
Amo aquele que
da sua virtude faz o seu próprio pendor e destino: assim, por amor à sua
virtude, quer ainda e não quer mais viver.
Amo aquele que
não deseja ter demasiadas virtudes. Uma só virtude é mais virtude do que duas,
porque é uma nó mais forte ao qual se agarra o destino.
Amo aquele que
prodigaliza a sua alma, não quer que lhe agradeçam e nada devolve: pois é
sempre dadivoso e não quer conservar-se.
Amo aquele que
sente vergonha se o dado cai a seu favor e que, então, pergunta: “Sou, acaso,
um trapaceiro?’ – porque quer perecer.
Amo aquele que
atira palavras de ouro precedendo deus atos e, ainda assim, cumpre sempre mais
do que promete: pois quer o seu ocaso.
Amo aquele que
justifica os seres futuros e redime os passados: porque quer perecer dos
presentes.
Amo aquele que
pune o seu deus, porque o ama: pois deverá perecer da ira do Deus.
Amo aquele cuja
alma é profunda também na mágoa e pode perecer de uma pequena ocorrência
pessoal: assim transpõe a ponte de bom grado.
Amo aquele cuja
alma é tão transbordante, que se esquece de si mesmo e que todas as coisas
estão nele: assim, todas as coisas tornam-se o seu ocaso.
Amo aquele cujo
espírito e coração são livres: assim, nele, a cabeça é apenas uma víscera do
coração, mas o coração o arrasta para o ocaso.
Amo todos
aqueles que são como pesadas gotas
caindo, uma a uma, da negra nuvem que paira sobre os homens: prenunciam a
chegada do raio e perecem como prenunciadores.
Vede, eu sou um
prenunciador do raio e uma pesada gota da nuvem; mas esse raio chama-se
super-homem.” –
5
Depois de
proferir essas palavras, tornou Zaratustra a olhar para o povo e guardou
silêncio. “Lá estão eles rindo”, disse ao seu coração; “não me compreendem, não
sou a boca para esses ouvidos.
Será preciso,
primeiro, partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os olhos? Será
preciso retumbar como tambores e pregadores de sermões quaresmais? Ou
acreditarão somente nos que gaguejam?
Possuem alguma
coisa da qual se orgulham. Como chamam, mesmo, àquilo que os torna orgulhosos?
Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos pastores de cabras.
Por isso ouvem
com desagrado, a seu respeito, a palavra ‘desprezo’. Vou, portanto, falar-lhes
ao orgulho.
Vou, portanto,
falar0lhes do que há de mais desprezível: ou seja, do último homem.”
“Já é tempo de o
homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da sua
mais alta esperança.
Seu solo ainda é
bastante rico para isso. Mas, algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e
nenhuma árvore poderá mais crescer nele.
Ai de nós!
Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio
para além do homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar!
Eu vos digo: é
preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante.
Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós.
Ai de nós!
Aproximar-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de
nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá
mais desprezar-se a si mesmo.
Vede! Eu vos
mostro o último homem.
‘Que é amor? Que
é criação? Que é anseio? Que é estrela?’ – assim pergunta o último homem,
piscando o olho.
A terra, então,
tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena.
Sua espécie é inextirpável como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais
longa.
‘Inventamos a
felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.
Abandonaram as
regiões onde era duro viver: porque o calor é necessário. Cada qual ainda ama o
vizinho e nele se esfrega: porque o calor é necessário.
Adoecer e
desconfiar é pecado, para eles: deve-se andar com toda a atenção. Um tolo, quem
ainda tropeça em pedras ou homens!
De quando em
quando, um pouco de veneno: gera sonhos agradáveis. E muito veneno, no fim,
para um agradável morrer.
Ainda trabalham,
porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam de que o passatempo não canse.
Mais ninguém
torna-se rico ou pobre: por demais penosas são ambas as coisas. Quem, ainda,
deseja governar? Quem, ainda, obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas.
Nenhum pastor e
um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro
modo vai, voluntário, para o manicômio.
‘Outrora todo o
mundo era doido’ – dizem os mais sutis, piscando o olho.
São inteligentes
e sabem tudo o que aconteceu: assim, sua chacota não tem fim. Zangam-se, ainda,
mas logo reconciliam-se – para não estragar o estômago.
Têm seus
pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite; mas
respeitam a saúde.
‘Inventamos a
felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.” –
E aqui terminou
o primeiro discurso de Zaratustra, também chamado “o prólogo”: pois, nesse
ponto, foi ele intErrompido pela algazarra e o júbilo da multidão. “Dá-nos
esses últimos homens, ó Zaratustra!”, gritavam. – “Transforma-nos nesses
últimos homens! E nós te damos de presente o super-homem!” E o povo todo
soltava gritos de alegria e fazia estalar a língua. Mas Zaratustra
entristeceu-se e disse ao seu coração:
“Eles não me
compreendem: eu não sou a boca para esses ouvidos.
Demasiado tempo,
decerto, vivi na montanha, por demais escutei os córregos e as árvores: falo
com eles, agora, como os pastores de cabras.
Serena está
minha alma e clara como a montanha pela manhã. Mas eles me acham frio e
julgam-me um zombador que diz sinistras pilhérias.
E olham para mim
rindo e, rindo, ainda me odeiam. Há gelo no seu riso.”
6
Mas então,
aconteceu uma coisa que fez todas as bocas calarem-se e os olhos se
esbugalharem. É que, entrementes, o funâmbulo pusera mãos à obra: saíra de uma
pequena porta e caminhava na corda, entendida entre duas torres, e que assim,
portanto, se achava suspensa sobre a praça e o povo. Estava ele, justamente, na
metade de seu percurso, quando a pequena porta abriu-se de novo e um tipo, todo
sarapintado a modo de palhaço, saiu por ela pulando e, em passos rápidos foi
atrás do primeiro. “Para a frente, perneta”, gritou em voz terrível, “para a
frente, moleirão, tratante, cara pálida! Para que eu não te comiche com o meu
calcanhar! Que fazes aqui, entre as torres? Dentro da torre é teu lugar! É la
que deveriam trancar-se, a ti, que impedes a passagem de alguém melhor que tu!”
– E, a cada palavra, mais se aproximava do outro; quando, porém, se achou
somente um passo atrás dele, aconteceu a coisa horrível que fez todas as bocas
calarem-se e os olhos se esbugalharem: - soltou um grito diabólico e pulou por
cima daquele que lhe estorvava o caminho. Este, ao ver, assim, o rival
triunfar, perdeu a cabeça e o pé; deitou fora a maromba e, mais depressa do que
esta, num remoinho de braços e pernas, despencou no vazio. A praça e o povo,
então, pareceram um mar revolto pela tempestade: todos fugiam em debandada e
atropelo, principalmente no lugar onde o corpo iria espatifar-se.
Zaratustra, no
entanto, não se moveu, e foi justamente perto dele que o corpo caiu, gravemente
ferido e com os ossos partidos, mas ainda vivo. Após algum tempo, o infeliz
recuperou os sentidos e viu Zaratustra de joelhos a seu lado. “Que fazes
aqui?”, disse, por fim. “Desde muito eu sabia que o Diabo me daria uma
rasteira. Agora, ele me arrasta para o inferno; pretendes impedi-lo?”
“Pela minha
honra, amigo”, respondeu Zaratustra, “não existe nada daquilo que disseste: não
existe o Diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do
que o teu corpo; portanto, não receies nada!”
O homem ergueu
os olhos desconfiado. “Se o que dizes é verdade”, falou depois, “eu, então,
nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais do que um bicho, que ensinaram
a dançar à força de pancadas e pouca comida.”
“Oh, não”,
retrucou Zaratustra; “fizeste do perigo o teu ofício, nada há nisso de
desprezível. Morres, agora, vítima do teu ofício; por isso, quero sepultar-te
com minhas próprias mãos”.
Depois que
Zaratustra disse essas palavras, o moribundo não respondeu mais; mas moveu a
mão como se procurasse, para agradecer, a mão de Zaratustra.
7
Entrementes,
anoiteceu e a praça do mercado ficou envolta na escuridão; e o povo
dispersou-se, porque também a curiosidade e o terror cedem ao cansaço. Mas
Zaratustra permaneceu sentado no chão, junto do morto, engolfado em
pensamentos; e, assim, esqueceu-se do tempo. Por fim, contudo, chegou a noite,
e um vento frio soprou sobre o solitário. Levantou-se, então, Zaratustra, e
disse ao seu coração:
“Em verdade, uma
linda pescaria fez hoje Zaratustra! Não pescou nenhum homem, mas um cadáver.
Assombra é a
existência humana e ainda sem qualquer sentido: pode um palhaço tornar-se-lhe
fatal.
Quero ensinar
aos homens o sentido do seu ser: que é o super-homem, o raio que rebenta da
negra nuvem chamada homem.
Mas estou ainda
longe deles e o sentido do que eu falo não diz nada aos seus sentidos. Ainda
sou, para os homens, um posto intermédio entre um doido e um cadáver.
Escura é a
noite, escuros são os caminhos de Zaratustra. Vem, rígido e frio companheiro!
Vou levar-te para onde te sepulte com minhas mãos.”
8
Após dizer isso
ao seu coração, carregou Zaratustra o cadáver às costas e pôs-se a caminho.
Mas, nem bem tinha dado cem passos, um homem se lhe acercou de mansinho e
murmurou alguma coisa ao seu ouvido – e eis que quem falava era o palhaço da
torre. “Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra”, dizia; “muitos são os que,
aqui, te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e chamam-te seu inimigo e
desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, e chamam-te um perigo para
a multidão. A tua sorte foi que riram de ti; e, na verdade, falaste como um
palhaço. A tua sorte foi que te acamaradaste com esse cão morto; ao rebaixar-te
assim, salvaste-te, por hoje. Mas vai-te embora desta cidade; - ou, amanhã, eu
pulo por cima de ti, um vivo por cima de um morto.” E, após dizer isso, o homem
desapareceu; Zaratustra, porém, prosseguiu seu caminho pelas ruas escuras.
Na porta da
cidade, encontrou-se com os coveiros, que iluminaram seu rosto com os archotes,
reconheceram Zaratustra e riram muito dele. “Zaratustra está levando embora o
cão morto; que bom que Zaratustra se tornasse coveiro! Porque nossas mãos são
demasiado limpas para essa carne assada. Acaso Zaratustra pretende roubar ao
Diabo o bocado que lhe cabe? Pois muito bem! Bom apetite, e que lhe faça bom
proveito! Contamos que o Diabo não seja um ladrão melhor que Zaratustra – e
roube e coma os dois!” E riam, cochichando entre si.
Zaratustra não
lhes deu resposta e continuou seu caminho. Após andar duas horas, perlongando
florestas e brejos, tinha ouvido bastante o faminto uivar dos lobos, e ele
mesmo sentiu fome. De sorte que parou diante de uma casa solitária, onde havia
um lume aceso.
“A fome me
assalta como um bandido”, disse Zaratustra. “A minha fome me assalta em meio a
floresta e brejos e no coração da noite.
Singulares
caprichos, tem minha fome. Vem-me, amiúde, somente depois da refeição e, hoje,
não a senti o dia todo: por onde está andando?”
E, assim
falando, bateu Zaratustra. “Dai-me de comer e beber, esqueci-me de fazê-lo
durante o dia. Quem dá de comer ao faminto regala a sua própria alma: assim
fala a sabedoria.”
O velho
retirou-se, mas, logo depois, voltou, oferecendo a Zaratustra pão e vinho. “Mas
paragens são estas para os famintos”, disse; “por isso eu moro aqui. Bichos e
homens procuram por mim, o eremita. Mas manda também o teu companheiro comer,
ele está mais cansado do que e tu.” Zaratustra respondeu: “O meu companheiro é
um morto, vai ser-me difícil convencê-lo a comer”. “Não tenho nada com isso”,
disse o velho, enfezado; “quem bate a minha porta deve, também, aceitar o que
lhe ofereço. Comei e passei bem.”
Depois disso,
andou Zaratustra mais duas horas, confiando-se ao caminho e à luz das estrelas:
pois tinha por hábito caminhar à noite e gostava de olhar no rosto tudo o que
dorme. Mas, ao alvorecer, encontrou-se numa floresta espessa, onde não se via
mais nenhum caminho. Então pousou o morto numa árvore oca, em um ponto mais
alto do que a sua própria cabeça (pois queria protegê-la contra os lobos), e
deitou-se no musgo do solo. E logo adormeceu, com o corpo cansado, mas a alma
tranqüila.
9
Longamente
dormiu Zaratustra, e não somente a aurora passou sobre seu rosto, mas, também,
a manhã toda. Finalmente, seus olhos se abriram: admirado, olhou Zaratustra a
floresta e o silêncio, e, admirado, olhou a si mesmo. Levantou-se, então,
depressa, como um navegador que vê repentinamente terra, e exultou: porque viu
uma nova verdade. E assim, então, falou ao seu coração:
“Uma luz raiou
em mim: de companheiros, eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e
cadáveres, que levo comigo aonde quero.
Preciso, sim, de
companheiros vivos, que me sigam porque querem seguir-se a si mesmos – e para
onde eu queira.
Uma luz raiou em
mim: não à multidão fale Zaratustra, mas a companheiros! Não deve Zaratustra
tornar-se pastor e cão de um rebanho!
Atrair muitos
para fora do rebanho – foi para isso que vim. Deverá irar-se comigo a multidão
e o rebanho: ‘ladrão1, quer chamar-se Zaratustra para os pastores.
Pastores, digo
eu, mas eles se dizem os bons e os justos. Pastores, digo eu, mas eles se dizem
os crentes da verdadeira fé.
Olhai-os, os
bons e os justos! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de
valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.
Olhai-os, os
crentes de todas as fés! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas
tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.
Companheiros,
procura o criador, e não cadáveres; nem , tampouco, rebanhos e crentes.
Participantes na criação, procura o criador, que escrevam novos valores em
novas tábuas.
Companheiros,
procura o criador, e participantes na colheita: porque nele tudo está maduro
para a colheita. Mas faltam-lhe as cem foices e, assim, irritado, vai
arrancando espigas.
Companheiros,
procura o criador, e tais que saibam afiar suas foices. Destruidores, serão
chamados, e desprezadores do bem e do mal. Mas são eles que farão a colheita e
a festejarão.
Participantes na
criação, procura Zaratustra, participantes na colheita e festejadores, procura
Zaratustra; que tem ele a ver com rebanhos, pastores e cadáveres!
E tu, meu
primeiro companheiro, repousa em paz! Estás bem sepultado em tua árvore oca,
estás bem protegido contra os lobos.
Mas separo-me de
ti, o tempo acabou. Entre uma aurora e outra, uma nova verdade apareceu-me.
Não pastor, devo
ser, nem coveiro. Não quero mais, sequer, falar novamente ao povo; pela última
vez, falei a um morto.
Quero unir-me
aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhe o arco-íris e todas
as escadas do super-homem.
Cantarei minha
canção aos que vivem solitários ou em solidão a dois; e, quero que, quem ainda
tem ouvidos para o que nunca se ouviu, sinta minha ventura oprimir-lhe o
coração.
Quero atingir a
minha meta, quero seguir o meu caminho; e pularei por cima dos hesitantes e dos
retardatários. Que a minha jornada seja a sua ruína!”.
10
Isso dissera
Zaratustra ao seu coração quando o sol estava no meio-dia; volveu, então, para
o alto um olhar indagador – pois ouvia sobre sua cabeça o grito agudo de uma
ave. E eis que viu uma águia voando em amplos círculos no ar e dela pendia uma
serpente, não como presa, mas como amiga, pois se segurava enrolada em seu
pescoço.
“São os meus
animais!”, disse Zaratustra, regozijando-se de todo o coração.
“O animal mais
altivo debaixo do sol e o animal mais prudente debaixo do sol – saíram em
exploração.
Querem saber de
Zaratustra ainda está vivo. Em verdade, estou eu ainda vivo?
Encontrei mais
perigos entre os homens do que entre os animais, perigosos são os caminhos de
Zaratustra. Possam guiar-me os meus animais!”
Após dizer isso,
lembrou-se Zaratustra das palavras do santo na floresta, suspirou e assim falou
ao seu coração:
“Pudesse eu ser
mais prudente! Pudesse eu ser prudente por natureza, como a minha serpente!
Mas estou
pedindo o impossível; assim, peço à minha altivez que acompanhe sempre a minha
prudência.
E se, algum dia,
a minha prudência me abandonar – ah, como gosta de bater asas! -, possa a minha
altivez, então, voar ainda em companhia da minha loucura!”
Assim começou o
ocaso de Zaratustra.
Das três metamorfoses
Três
metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o
camelo, leão e o leão, por fim, criança.
Muitos fardos
pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual
inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua força.
“O que há de
pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo e quer
ficar bem carregado.
“O que há de
mais pesado, ó heróis”, porque o espírito de suportação, “para que eu o tome
sobre mim e minha força se alegre?
Não será isto:
humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a própria loucura,
para escarnecer da própria sabedoria?
Ou será isto:
apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos
montes, a fim de tentar o tentador?
Ou será isto:
alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à verdade,
padecer fome na alma?
Ou será isto:
estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de amizade aos surdos,
que não ouvem nunca o que queremos?
Ou será isto:
entrar na água suja, se for a água da verdade, e não enxotar de si nem as frias
rãs nem os ardorosos sapos?
Ou será isto:
amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele nos quer
assustar?”
Todos esses
pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal como o
camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ela para o próprio deserto.
Mas, no mais
ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito torna-se leão,
quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio
deserto.
Procura, ali, o
seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do seu derradeiro
deus, quer lutar para vencer o dragão.
Qual é o grande
dragão , ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus? “Tu deves”
chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero.”
“Tu deves”
barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouros; animal de escamas, em cada
escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves!”
Valores
milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os
dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim.
Todo o valor já foi
criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais haver nenhum ‘Eu
quero’!”. Assim fala o dragão.
Meus irmãos,
para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta suficiente o
animal de carga, suportador e respeitador?
Crias novos
valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a
liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer.
Conseguir essa
liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso, meus irmãos,
precisa-se do leão.
Conquistar o
direito de criar novos valores – essa é a mais terrível conquista para o
espírito de suportação e de respeito. Constitui pra ele, na verdade, um ato de
rapina e tarefa de animal rapinante.
Como o que há de
mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é forçado a encontrar
quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a fim de arrebatar a sua
própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal de rapina, precisa-se do
leão.
Mas dizei, meus
irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que
o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?
Inocência, é a
criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si
mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”.
Sim, meus
irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito,
agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu
mundo.
Nomeei-vos três
metamorfoses do espírito: como o espírito tornou-se camelo e o camelo,leão e o
leão, por fim, criança. - -
Assim falou
Zaratustra. E achava-se, nesse tempo, na cidade chamada A Vaca Pintalgada.
Quero dizer a
minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem,a meu ver, mudar o que
aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e, destarte,
emudecer.
“Eu sou corpo e
alma” – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?
Mas o homem já
desperto, o sabedor, diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é
somente uma palavra para alguma coisa no corpo.”
O corpo é uma
grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor.
Instrumento de
teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas “espírito”,
pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão.
“Eu”, dizes; e
ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu
corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.
Aquilo que os
sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem seu fim em si
mesmo. Mas sentidos e espíritos desejariam persuadir-te de que são eles o fim
de todas as coisas: tamanha é sua vaidade.
Instrumentos e
brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser
próprio. O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também
com os ouvidos do espírito.
E sempre o ser
próprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é,
também, o dominador do eu.
Atrás de teus
pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio
desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo.
Há mais razão no
teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então,
precisaria logo da tua melhor sabedoria?
O teu ser
próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. “Que são, para mim, esses
pulos e vôos do pensamento?”, diz de si para si. “Um simples rodeio para chegar
aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos..”
O ser próprio
diz ao eu: “Agora, sente dor!” E, então, o eu sofre e reflete em como poderá
não sofrer mais – e para isto, justamente, deve pensar.
O ser próprio
diz ao eu: “Agora, sente prazer!” E, então, o eu se regozija e reflete em como
poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar.
Quero dizer uma
palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Mas
quem criou o apreço e o desprezo e o valor e a vontade?
O ser próprio
criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O
corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade.
Mesmo em
vossa estultície e desprezo, ó
desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é
justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida.
Não consegue
mais o que quer acima de tudo: - criar para além de si. Isto ele quer acima de
tudo; é o seu fervido anseio.
Mas achou que,
agora, era tarde demais para isso; - e, assim, o vosso ser próprio quer
perecer, ó desprezadores da vida.
Perecer, quer o
vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não
conseguis mais criar para além de vós.
E, por isso,
agora, vos assanhais contra a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no
vesgo olhar do vosso desprezo.
Não sigo o vosso
caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao
super-homem! –
Assim falou
Zaratustra.
Dos pregadores da morte
Há pregadores da
morte; e a terra está repleta de gente à qual deve pregar-se que abandone a
vida.
Repleta está a
terra de gente supérflua, estragada está a vida pelos muitos-demais. Possa a
“vida eterna” atraí-los para fora desta vida!
“Amarelos”:
assim são chamados os pregadores da morte; ou, então, “negros”. Mas eu quero
mostrá-los noutras cores.
Aí estão os
seres terríveis, que trazem a fera dentro de si e para os quais não há escolha
senão entre os prazeres e a maceração. E também seus prazeres ainda são
maceração.
Ainda nem se
quer se tornaram homens, esses seres terríveis; oxalá preguem o abandono da
vida e eles mesmos se sumam!
Aí estão os
tísicos da alma: mal nasceram, já começam a morrer e suspiram por doutrinas do
cansaço e da renúncia.
Gostariam de
estar mortos; e nós deveríamos, realmente, aprovar-lhes a vontade! Guardemo-nos
de despertar esses mortos e bater nesses ataúdes!
Se deparam com
um enfermo ou um velho ou um cadáver, dizem logo: “A vida está confutada!
Mas só eles
estão confutados, e os seus olhos, que vêem apenas essa face da existência.
Envoltos em
espessa melancolia e sequiosos dos pequenos acasos que ocasionam a morte: é
assim que a esperam, cerrando os dentes.
Ou, então,
recorrem a confeitos que os consolem, motejando, ao mesmo tempo, da sua própria
criancice; agarram-se à tênue palha de suas vidas, motejando de que ainda se
agarram a uma palha.
Assim reza a sua
sabedoria: “Insensato é quem continua vivo, mas nós somos tão insensatos! E é
esta, justamente, a maior insensatez da vida!”
“A vida é
somente sofrimento”, - dizem outros, e não mentem; tratai, portanto, de que
cesse essa vida que é somente sofrimento!
E que a doutrina
da vossa virtude assim reze: “Deves matar-te a ti mesmo! Deves tu mesmo
subtrair-te à existência!”
“A volúpia é
pecado”, - dizem alguns dos que pregam a morte; - “vamos conservar-nos
apartados e não procriar filhos!”
“O parto é uma
coisa penosa” – dizem outros, - “para que mais partos? Só nascem infelizes!” E
estes também são pregadores da morte.
“É preciso ter
compaixão”, - dizem ainda outros. “Tomai o que tenho! Tomai o que sou! Tanto
menos, assim, estarei a sua verdadeira bondade.
Mas querem é
soltar-se da vida; que lhes importa, se
com suas correntes e dádivas, acabam prendendo mais solidamente os outros!
E vós também,
para quem é árduo trabalho e inquietação: não estais cansados da vida? Não
estais maduros para a pregação da morte?
Vós todos, que
gostais do trabalho árduo e do que é rápido, novo, estranho – vós suportais mal
vossas próprias pessoas: o vosso zelo é uma fuga e uma vontade de esquecer-vos
de vós mesmos.
Se acreditásseis
mas na vida, não vós abandonaríeis tanto ao momento presente. Mas não tendes em
vós conteúdo suficiente para esperar – e nem sequer para a indolência.
Por toda a
parte, ecoa a voz dos que pregam a morte – e a terra está repleta de gente à
qual deve pregar-se a morte.
Ou “a vida
eterna”: para mim, tanto faz – contanto que se suma depressa!
Assim falou
Zaratustra.
Amo a floresta.
Ruim é a vida nas cidades: há ali demasiados libidinosos.
Não é melhor ir
parar nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher libidinosa?
E olhai um pouco
para esses homens: seus olhos o dizem – nada de melhor conhecem, na terra, do
que dormir com uma mulher.
Há lodo, no
fundo de sua alma; e ai de nós se o lodo ainda tiver espírito!
Se, ao menos,
fôsseis perfeitos como animais! Mas do animal é própria a inocência.
Aconselho-vos,
porventura, a matar os vossos sentidos? Eu vos aconselho a inocência dos
sentidos.
Aconselho-vos a
castidade? A castidade é uma virtude, em alguns, mas, em muitos, quase um
vício.
Esses, sem
dúvida, praticam a abstenção; mas a cadela sensualidade lança olhares de inveja
através de tudo o que fazem.
Mesmo no cume da
sua virtude e até pelo frio espírito adentro, segue-os esse bicho, com sua
inquietação.
E com que bons
modos sabe a cadela sensualidade mendigar um pedaço de espírito, quando lhe
negam um pedaço de carne!
Gostais de
tragédias e de tudo o que despedaça o coração? Mas a vossa cadela me inspira
desconfiança.
Olhos por demais
cruéis, tendes, para o meu gosto, e vos vejo andar ávidos à procura de
sofredores. Não será apenas a vossa volúpia que se disfarçou e se fez chamar
compaixão?
E também esta
parábola eu vos dou: não poucos, que queriam expulsar seus demônios, acabaram
eles mesmos entrando nos porcos.
Àquele para quem
a castidade é difícil, deve-se desaconselha-la; a fim de que não se torne, para
ele, o caminho do inferno – ou seja, do lodo e da lascívia da alma.
Falo de coisas
sujas? Não é, a meu ver, o que há de pior.
Não quando a
verdade é suja, mas quando é pouco profunda, desce a contragosto em sua água
aquele que busca o conhecimento.
Em verdade, há
os castos no fundo de seu ser: são mansos de coração, riem mais de bom grado e
mais abundantemente do que vós.
Riem também da
castidade e indagam: “Que vem a ser a castidade?
Não será a
castidade uma loucura? Mas essa loucura veio a nós e não nós fomos a ela.
A essa visitante
oferecemos a nossa hospitalidade e o nosso coração; agora, mora conosco – e que
fique o tempo que quiser!”
Assim falou
Zaratustra.
Sois pressurosos
em acudir ao próximo e tendes bonitas palavras para isto. Mas eu vos digo: o
vosso amor ao próximo é o vosso mau amor por vós mesmos.
Fugis para junto
do próximo a fim de fugir de vós mesmos e desejaríeis fazer disto uma virtude;
mas eu vejo claro em vosso “altruísmo”.
O tu é mais
antigo do que o eu; o tu foi santificado, mas o eu ainda não: assim, o homem se
apressa em acudir ao próximo.
Aconselho-vos o
amor do próximo? Ainda prefiro aconselhar-vos a fuga do próximo e o amor do
distante!
Mais alto do que
o amor do próximo está o amor do distante e futuro; mais alto, ainda, do que o
amor ao homem, reputo o amor às coisas e aos fantasmas.
Esse fantasma
que corre à tua frente, meu irmão, é mais bonito do que tu; por que não lhe dás
a tua carne e os teus ossos? Mas tens medo e corres para o teu próximo.
Não vos
suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o
próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro.
Eu desejaria que
não suportásseis qualquer espécie de próximo e seu vizinho; seríeis forçados,
destarte, a criar o vosso amigo, com seu coração transbordante, tirando-o de
vós mesmos.
Quando quereis
falar bem de vós, convidais uma testemunha; e, quando a aliciastes a pensar bem
de vós, vós mesmos pensais bem de vós.
Não mente apenas
aquele que fala contrariamente ao que sabe, mas, principalmente, aquele que
fala contrariamente ao que não sabe. E é assim que falais de vós no trato com o
vizinho, mentindo a vós do mesmo passo que a ele.
Assim falou o
louco: “A convivência com os homens perverte o caráter, especialmente quando
não se tem caráter.”
E este vai ter
com o próximo, porque está à sua própria procura, e aquele, porque desejaria
perder-se. O vosso mau amor por vós mesmos transforma, para vós, a solidão em
cárcere.
São os distantes
que pagam pelo vosso amor do próximo; e, já quando cinco de vós estão juntos,
há sempre um sexto que deve morrer.
Também não gosto
de vossas festas: demasiados comediantes encontrei nelas e mesmo os
espectadores portavam-se, amiúde, como comediantes.
Não o próximo,
eu vos ensino, mas o amigo. Que seja o amigo, para vós, a festa da terra e um
presságio do super-homem.
Eu vos ensino o
amigo e o seu transbordante coração. Mas é preciso que saiba ser uma esponja,
quem quer ser amado por corações transbordantes.
Eu vos ensino o
amigo, que traz dentro de si o mundo pronto, um invólucro do bem – o amigo
criador, que tem sempre um mundo pronto para dar de presente.
E, tal como se
lhe desenrolou todo, enrola-se de novo, o mundo, para ele, em voltas
sucessivas, como o nascer do bem pelo mal, como os fitos surgindo do acaso.
Que o futuro e
distante sejam, para ti, a razão de ser do teu hoje: no amigo, deves amar o
super-homem como a tua razão de ser.
Meus irmãos, eu
não vos aconselho o amor do próximo aconselho-vos o amor do distante.
Assim falou
Zaratustra.
Queres, meu
irmão, refugiar-te na solidão? Queres procurar o caminho de ti mesmo? Detém-te
mais um pouco e escuta-me:
“Quem procura,
facilmente se perde a si mesmo. Todo isolar-se é culpa”, assim fala o rebanho.
E, durante muito tempo, pertenceste ao rebanho.
A voz do rebanho
ainda ecoará também
Mas vê: essa
mesma mágoa ainda foi gerada por aquela consciência; o derradeiro vislumbre
dessa consciência ainda arde na tua angústia.
Queres, porém,
seguir o caminho da tua angústia, que é caminho no rumo de ti mesmo? Mostra-me,
pois, que tens direito e força para tanto!
Oh, há tanta
cobiça das alturas! Há tantas crispações dos ambiciosos! Mostra-me que não és
dos cobiçosos, nem dos ambiciosos!
Oh, tantos
grandes pensamentos que não obram mais do que um fole: produzem vento e tornam
mais vazio.
Dizes-te livre?
Teus pensamentos dominantes, quero ouvir, e não que escapaste de um jugo.
És tal que
tinhas direito a escapar de um jugo? Há os que, ao deitarem fora sua condição
de servos, deitaram fora seu derradeiro valor.
Livre de quê?
Que importa isso a Zaratustra! Mas claramente deve teu olho informar-me: livre
para quê?
Podes dar a ti
mesmo o teu mal e o teu bem e suspender a tua vontade por cima de ti como uma
lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?
Terrível é estar
a sós com o juiz e vingador da própria lei. Assim uma estrela é arremessada no
espaço vazio e no gélido respiro da solidão.
Hoje, ainda
sofres dos muitos, tu, que és um; hoje, ainda tens toda a tua coragem e as tuas
esperanças.
Mas, algum dia,
sentirás o cansaço da solidão, algum dia, sentirás a tua altivez dobrar-se e a
tua coragem ranger os dentes. Algum dia, gritarás: “Estou só!”
Algum dia , não
mais verás o que em ti é elevado, mas verás perto demais o que é baixo; a tua
própria excelsitude te fará tremer como se fosse um fantasma. Algum dia,
gritarás: “Tudo é falso!”
Há sentimentos
que querem matar o solitário; se não o conseguem, eles mesmos, então, devem
morrer! Mas és tu capaz disto: ser um assassino?
Já conheces, meu
irmão, a palavra “desprezo”? E o tormento da tua justiça em ser justa com os
que te desprezam?
Muitos compeles
a reformar o seu juízo a teu respeito; disto
eles te fazem grave imputação. Chegaste perto deles e, no entanto,
passastes além, isto não te perdoarão nunca.
Tu os
sobreexcedes; mas, quanto mais alto sobes, tanto menor te vê o olho da inveja.
Mais que todos, porém, é odiado quem voa.
“Como
pretenderíeis ser justo comigo!” – deves dizer. – “Escolho a vossa injustiça
como o quinhão que me cabe.”
Injustiça e lama
atiram contra o solitário; mas, meu irmão, se queres ser uma estrela, nem por
isso deves brilhar menos para eles.!
E guarda-te dos
bons e dos justos! Eles gostam de crucificar os que inventam a sua própria
virtude – odeiam o solitário.
Guarda-te,
também, da santa simplicidade! Para ela, tudo é ímpio, aquilo que não é
simples; e gosta, também, de brincar com o fogo – o das fogueiras.
E guarda-te,
ainda, dos arroubos do teu amor! Por demais rápido é o solitário em entender a
mão a quem encontra.
A muita gente
não deves dar a mão, mas sim, somente a pata; e quero que a tua pata tenha,
também, garras.
Mas o pior
inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo; tu mesmo estás à tua
espreita em cavernas e florestas.
Solitário,
percorres o caminho de quem ama: amas-te a ti mesmo e, por isso, te desprezas,
como sabem desprezar somente os que amam.
Criar, quer o
que ama, porque despreza! Que sabe do amor quem não teve de desprezar,
justamente, aquilo que amava!
Vai para a tua
solidão com o teu amor, meu irmão, e com a tua atividade criadora; e somente
mais tarde a justiça te seguirá capengando.
Vai para a tua
solidão com as minhas lágrimas, meu irmão. Amo aquele que quer criar para além
de si e, destarte, perece. –
Assim falou
Zaratustra.
“Por que,
Zaratustra, te esquivas sorrateiro no lusco-fusco? E que escondes tão
cuidadosamente debaixo do manto?
Será um tesouro
com que te presentearam? Ou um filho que te nasceu? Ou segues tu mesmo, agora,
porventura, os caminhos dos ladrões, tu, o amigo dos malvados?” –
Na verdade, meu
irmão – falou Zaratustra -, é um tesouro que me deram de presente: é uma
pequena verdade, isto que traga comigo.
Mas é rebelde
como uma criancinha; e, se não lhe tapasse a boca, gritaria com toda a força.
Caminhava eu,
hoje, sozinho, quando, na hora em que o sol se põe, encontrei-me com uma
velhinha, que assim se dirigiu à minha alma:
“Muitas coisas
Zaratustra disse também a nós, mulheres, mas nunca nos falou da mulher.”
E eu lhe
respondi: “Da mulher, só se deve falar aos homens.”
“Fala da mulher
a mim também”, disse ela; “sou velha bastante para esquecer logo as tuas
palavras.”
E eu fiz a
vontade à velhinha e assim lhe falei:
Tudo, na mulher,
é enigma e tudo, na mulher, tem uma única solução: chama-se gravidez.
O homem, para a
mulher, é um meio: o fim é sempre o filho. Mas que é a mulher para o homem?
Duas espécies de
coisas, quer o verdadeiro homem: perigo e divertimento. Quer, por isso, a
mulher, como o mais perigoso dos brinquedos.
É preciso que o
homem seja educado para a guerra e a mulher, para o descanso do guerreiro; tudo
o mais é estultície.
Não gosta o
guerreiro – de frutos demasiadamente doces. Por isso, gosta da mulher; há ainda
um travo amargo na mais doce das mulheres.
A mulher
compreende a criança melhor do que o homem, mas o homem é mais criança do que a
mulher.
No verdadeiro
homem está oculta uma criança, que quer brincar. Ânimo, mulheres, descobri,
pois, a criança no homem!
Um brinquedo,
seja a mulher, puro e delicado, semelhante à pedra preciosa, iluminada pelas
virtudes de um mundo que ainda não nasceu.
Que a luz de uma
estrela brilhe em vosso amor! Que a vossa esperança seja: “Possa eu dar à luz o
super-homem!”
Que haja coragem
em vosso amor! Deveis investir com o vosso amor contra aqueles que vos inspiram
medo.
Que a vossa
honra consista em vosso amor! No mais, pouco a mulher entende de honra. Mas que
a vossa honra seja sempre amar mais do que sois amadas e, nisso, nunca ficar
atrás.
Que o homem tema
a mulher, quando ela ama: é capaz de todo o sacrifício e qualquer outra coisa
não tem, para ela, valor.
Que o homem tema
a mulher, quando ela odeia: porque, no fundo da alma, o homem é apenas malvado,
mas a mulher é ruim.
Que odeia a
mulher mais que tudo? – Assim falou o ferro ao ímã: “Eu te odeio, mas que tudo,
porque atrais, mas não és suficientemente forte para atrair-me a ti.”
A felicidade do
homem chama-se: eu quero. A felicidade da mulher chama-se: ele quer.
“Vê! O mundo
acaba de atingir a perfeição!” – assim pensa toda mulher, quando obedece com a
força inteira do seu amor.
E obedecer, deve
a mulher, e achar uma profundidade para a sua superfície. Superfície é o gênio
da mulher, uma epiderme movediça e borrascosa numa água pouca funda.
Mas a alma do
homem é profunda, seu caudal ressoa em cavernas subterrâneas; a mulher
adivinha-lhe a força, mas não a compreende. –
Respondeu-me,
então, a velhinha: “Muitas coisas gentis disse Zaratustra, especialmente para
as que são bastante jovens para isso.
Estranho é que
Zaratustra pouco conhece as mulheres e, ainda assim, tem razão a seu respeito!
Será que isto acontece porque, à mulher, nada é impossível?
E agora, como
agradecimento, recebe uma pequena verdade! Afinal, sou suficientemente velha
para dá-la.
Enrola-a e
tapa-lhe a boca, senão essa pequena verdade gritará com toda a força.”
“Dá-me a tua
pequena verdade, mulher!”, disse eu. E assim falou a velhinha:
“Vais ter com
mulheres? Não esqueças o chicote!” –
Assim falou
Zaratustra.
Tenho uma
pergunta somente para ti, meu irmão; e a lanço como uma sonda na tua alma, para
que eu aprenda quão profunda ela é.
És jovem e
desejas filhos e casamento. Mas pergunto-te: és um ser com o direito de desejar
um filho?
És o vitorioso,
o vencedor de ti mesmo, o dominador dos sentidos, o senhor das tuas virtudes?
Isso eu te pergunto.
Ou não será que,
em teu desejo, falam o animal e a necessidade? Ou a solidão? Ou a discórdia
contigo mesmo?
Quero que a tua
vitória e a tua liberdade anseiem por um filho. Monumentos vivos, deves
construir, à tua vitória e libertação.
Deves
construí-los acima e para além de ti mesmo. Mas, antes, precisas tu mesmo ser
construído, quadrado de corpo e de alma.
Não somente para
a frente, deves propagar-te, mas para o alto! Que a isso te ajude o jardim do
casamento!
Um corpo mais
elevado, deves criar, um movimento inicial, uma roda que gira por si mesma – um
criador, deves criar.
Casamento: assim
chamo a vontade a dois de criar um ser que seja mais do que aqueles que o
criaram. Respeito mútuo, chamo ao casamento, respeito por aquele que quer com
essa vontade.
Seja este o
sentido e a verdade do teu casamento. Aquilo, porém, que os supérfluos chamam
casamento – como hei de chamá-lo?
Ah, essa pobreza
de alma a dois! Ah, essa sujeira de alma a dois! Ah, essa mesquinha satisfação
a dois!
Casamento,
chamam a isto tudo; e dizem que seus casamentos foram decididos no céu![1]
Bem, não gosto
desse céu dos supérfluos! Não gosto desses animais emaranhados numa rede
celeste!
Fique longe de
mim, também, esse Deus que chega coxeando para abençoar quem ele não levou a
unir-se.
Não zombeis
desses casamentos! Que filho não teria motivo para lamentar-se de seus pais?
Digno pareceu-me
esse homem, e maduro para o sentido da terra; mas, quando vi sua mulher, a
terra pareceu-me um manicômio.
Sim, eu
desejaria que a terra tremesse em convulsões, quando um santo e uma burrega se
unem para a procriação.
Este saiu como
um herói em busca de verdades e acabou caçando uma pequena mentira enfeitada.
Este outro era
esquivo, em suas relações, e exigente, ao fazer uma escolha. Mas, de uma só
vez, estragou para sempre a sua companhia: chama a isso o seu casamento.
Aquele procurava
uma serva com as virtudes de um anjo. De golpe, porém, tornou-se o servo de uma
mulher e, agora, seria preciso, ainda por cima, que se tornasse um anjo.
Sempre cautelosos
achei os compradores e, todos, com olhos espertos. Mas também o mais esperto
deles ainda compra sua mulher como nabos em saco.
Muitas breves
tolices – a isso chamai amor. E vosso casamento acaba com as muitas breves
tolices numa única e longa estupidez.
O vosso amor
pela mulher e o amor da mulher pelo homem: ah, pudessem ser compaixão por
deuses sofredores e encobertos! Nas mais das vezes, contudo, são dois animais
que mutuamente se farejam.
Mas também o
vosso melhor amor não passa de uma arroubada metáfora e de uma dolorosa chama.
É uma tocha que deveria iluminar-vos os caminhos mais elevados.
Para além de
vós, devereis amar, algum dia! Logo, aprendei a amar. E por isto é que tivestes
de beber o amargo cálice do vosso amor.
Há um sabor
amargo até no cálice do melhor amor; assim, produz anseio pelo super-homem,
assim, produz sede em ti, criador!
Sede do criador,
flecha e anseio no rumo do super-homem: fala, meu irmão, é esta a tua vontade
de casamento?
Sagrados são,
para mim, tal vontade e tal casamento. –
Assim falou
Zaratustra.
Segunda Parte
O menino com o espelho
Depois disso,
voltou Zaratustra para a montanha e a solidão da sua caverna, furtando-se aos
homens: à espera, como um semeador que lançou a semente. A alma, no entanto, se
lhe enchia de impaciência e desejo daqueles que ele amava; porque muito, ainda,
tinha para dar-lhes. E isto, justamente, é o mais difícil: fechar, por amor, a
mão aberta e, como dispensador de dádivas, guardar o pudor.
Luas e anos
passaram-se, assim, para o solitário; mas a sua sabedoria crescia e o fazia
sofrer com sua plenitude.
Certa manhã,
porém, acordou ele antes mesmo da aurora, refletiu demoradamente, em seu leito,
e, por fim, falou ao seu coração:
“O que me
assustou tanto, em meu sonho, que acordei? Não vinha ter comigo um menino,
trazendo um espelho?
‘O Zaratustra’ –
falou-me o menino – ‘olha-te no espelho!’
Quando, porém,
me olhei no espelho, dei um grito e o meu coração alvoroçou-se: porque não a
mim, vi nele, mas a carantonha e o riso escarninho de um diabo.
Em verdade, bem
demais compreendo o sentido e o aviso do sonho: minha doutrina corre perigo, o
joio quer chamar-se trigo!
Meus inimigos
tornaram-se poderosos e desfiguraram a imagem da minha doutrina, de tal sorte
que aqueles que mais amo devem envergonhar-se das dádivas que lhes dei.
Perdidos estão,
para mim, os meus amigos; chegou, para mim, a hora de procurar os que perdi!” –
Com essas
palavras, levantou-se Zaratustra de um salto, mas não como um homem assustado à
procura de ar, senão, antes, como um vidente e um vate do qual se aposse o
espírito. Admiradas, olharam para ela a sua águia e a sua serpente: porque,
semelhante à aurora, seu rosto irradiava uma sobrevinda felicidade.
Que me
aconteceu, afinal, meus animais? – disse Zaratustra. Acaso, não estou
transformado? Acaso, não veio a mim a aventura como um vento de procela?
Néscia é a minha
ventura e falará necedades: é ainda demasiado jovem – tende, pois, paciência
com ela.
Ferido estou
pela minha ventura: que todos os sofredores me sejam médicos!
Posso descer
novamente para junto dos meus amigos e, também, dos meus inimigos! Pode
Zaratustra novamente falar e dar presentes e fazer o melhor para os que ama.
Meu impaciente
amor jorra em torrentes, descendo para levante e poente. Da silenciosa montanha
e das barrascas da dor, corre a minha alma murmurejando nos vales.
Tempo demais
ardi em anseios, olhando ao longe. Tempo demais pertenci à solidão; destarte,
desaprendi o silêncio.
Uma boca,
tornei-me por inteiro, e o estrugir de um riacho caindo de altas fragas; quero
precipitar minha palavra nos vales.
E ainda que a
minha torrente de amor se despenhe em terreno impérvio! Como poderia uma
torrente não encontrar, por fim, o caminho do mar?
Decerto, há um
lago, em mim, um lago solitário, que se basta a si mesmo; mas a minha torrente
de amor o arrasta consigo para baixo – para o mar!
Novos caminhos
sigo, uma nova fala me empolga: como todos os criadores, cansei-me das velhas
línguas. Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.
Lentos demais,
para mim, correm todos os discursos: - vou pular para o teu carro, furacão! E,
mesmo a ti, quero fustigar-te com a minha maldade!
Com um grito e
uma explosão de júbilo, quero navegar por amplos mares, até encontrar as ilhas
bem-aventuradas onde vivem os meus amigos –
E, entre eles,
os meus inimigos! Como amo, agora, todo aquele a quem possa falar! Também os
meus inimigos são parte da minha ventura.
E, quando quero
cavalgar o meu corcel mais selvagem, o que sempre melhor me ajuda a monta-lo é
o meu dardo: é o estribeiro sempre pronto para o meu pé –
O dardo que
arremesso contra os meus inimigos! Como sou grato a meus inimigos de que posso,
por fim, arremessá-lo!
Grande demais
era a tensão da minha nuvem; por entre as risadas dos coriscos, quero atirar
nas profundezas bátegas de granizo.
Poderoso, então,
se inflará meu peito, poderoso assoprará sua tormenta sobre os montes: assim
lhe virá alívio.
Na verdade, a
uma tormenta semelham a minha ventura e a minha liberdade! Mas os meus inimigos
deverão pensar que o Maligno anda à solta sobre suas cabeças.
Sim, também,
vós, meus amigos, ficareis assustados da minha selvagem sabedoria; e, talvez,
fugireis dela juntamente com os meus inimigos.
Ah, se eu
soubesse atrair-vos de volta com flautas de pastores! Ah, se a minha leoa
sabedoria aprendesse a rugir com ternura! Já tantas coisas aprendemos juntos!
A minha selvagem
sabedoria ficou preenche em solitários montes; em ásperas pedras, deu à luz o
mais novo de seus filhotes.
Pelo duro
deserto, corre, agora, desvairada, à procura de relvados macios – a minha velha
e selvagem sabedoria!
Nos relvados
macios dos vossos corações, meus amigos! – no vosso amor, desejaria ela deitar
o seu predileto!
Assim falou
Zaratustra.
É noite: falam
mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma
fonte borbulhante.
É noite: somente
agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto
de alguém que ama.
Há qualquer
coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz. Um anseio de amor, há
em mim, que fala a própria linguagem do amor.
Eu sou luz; ah,
fosse eu noite! Mas esta é a minha solidão: que estou circundando de luz.
Ah, fosse eu
escuro e noturno! Como desejaria sugar os seios da luz!
E até vós
desejaria abençoar, pequenos astros cintilantes e vaga-lumes, lá no alto! – e
ser feliz com as vossas dádivas de luz.
Mas eu vivo na
minha própria luz, sorvo de volta em mim as chamas que de mim rompem.
Não conheço a
felicidade dos que recebem; e muitas vezes sonhei que roubar deve ser ventura
ainda maior que receber.
É esta a minha
pobreza: que minha mão nunca pára de dar presentes; é esta a minha inveja: que
vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio.
Ó desventura de
todos os dadivosos! Ó obscurecimento do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome
insaciável na saciedade!
Eles recebem os
meus presentes; mas tocarei ainda a sua alma? Há um abismo entre dar e receber;
e também o menor dos abismos precisa ser transposto.
Nasce uma fome
da minha beleza: desejaria magoar aqueles que ilumino; desejaria roubar aqueles
que presenteio: - assim tenho fome de maldade.
Retirar a mão,
quando já a outra mão se lhe entende; hesitar como a cachoeira, que ainda
hesita ao precipitar-se: assim tenho fome de maldade.
Tal vingança
medida minha plenitude, tal perfídia brota da minha solidão.
Minha ventura em
dar extinguiu-se ao dar, minha virtude cansou-se de si mesma pela sua
superabundância!
Quem sempre dá
corre o perigo de perder o pudor; quem sempre reparte cria calos, de tanto
repartir, em suas mãos e coração.
Meus olhos não
choram mais ante o pudor dos pedintes; demasiado endureceu minha mão, para
sentir o tremor das mãos satisfeitas.
Para onde foram
as lágrimas dos meus olhos e o frouxel do meu coração? Ó – solidão de todos os
dadivosos! Ó silêncio de todos os que espargem luz!
Muitos sóis
gravitam nos espaços vazios: falam, com sua luz, a tudo o que é luminoso:
implacável percorre ela sua órbita.
Injusto, no
fundo do seu coração, com tudo o que é luminoso; frio para com os outros sóis –
assim segue, cada sol, o seu próprio caminho.
Como uma
tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é esse o seu curso.
Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza.
Ó seres escuros,
noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos corpos luminosos! Somente
vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres da luz!
Ah, há gelo em
volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que
almeja pela vossa sede!
É noite; ai de
mim, que tenho de ser luz! E sede do que é noturno. E solidão!
É noite: como
uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale.
É noite: falam
mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma
fonte borbulhante.
É noite: somente
agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto
de alguém que ama. –
Assim falou
Zaratustra.
Certo dia, à
noitinha, caminhava Zaratustra no bosque com seus discípulos; e, ao procurar
uma fonte, eis que chegou a um verde prado, circundado de silenciosas árvores e
moitas; nele, algumas jovens dançavam umas com as outras. Assim que as jovens
reconheceram Zaratustra, interromperam a dança; Zaratustra, porém, delas se
aproximou, com gestos amigáveis, e falou-lhes estas palavras:
“Não pareis de
dançar, amáveis jovens! Não é um desmancha-prazeres de mau-olhado, que aqui
chegou, nem um inimigo dos jovens.
Intercessor de
deus sou eu junto ao Diabo: mas este é o espírito de gravidade. Como poderia eu
ser inimigo da vossa graciosa, divina dança? Ou de pés de jovens com lindos
tornozelos?
Eu sou uma
floresta, sem dúvida, e uma noite de árvores escuras; mas quem não teme minha
escuridão, encontra também roseiras, debaixo dos meus ciprestes.
E encontra,
também, o pequeno deus que é o preferido dos jovens: está deitado junto da
fonte, em silêncio, de olhos fechados.
Em verdade,
adormeceu em pleno dia, o preguiçoso! Terá andado demais caçando borboletas?
Não vos zangueis
comigo, lindas dançarinas, de que eu castigue um pouco o pequeno deus! Gritará,
certamente, e chorará – mas dá vontade de rir, ainda quando chora!
E, com lágrimas
nos olhos, deverá pedir-vos uma dança; e eu mesmo quero acompanhar sua dança
com um canto.
Um canto de
dança e de mofa ao espírito de gravidade, ao meu altíssimo e poderosíssimo
diabo, do qual dizem que é ‘o senhor do mundo’.” –
E este é o canto
que Zaratustra entoou, enquanto Cupido e as jovens dançavam juntos.
Em teus olhos
olhei, recentemente, ó vida! E pareceu-me, então, que me afundava no
imperscrutável.
Mas tiraste-me
para fora com um anzol de ouro; e riste, zombeteira, quando te chamei
imperscrutável.
“Assim falam
todos os peixes”, disseste; “aquilo que eles não perscrutam é imperscrutável.
Mas eu sou
apenas mutável e selvagem e, em tudo, mulher, e não precisamente uma mulher
virtuosa.
Muito embora
vós, homens, me chameis ‘a profunda’, ‘a fiel’, ‘a eterna’, ‘a misteriosa’.
Mas vós, homens,
nos presenteais sempre com vossas próprias virtudes – ai de mim, [o virtuosos!”
Assim ela ria, a
enganadora; mas eu nunca acredito nela e em seu riso, quando fala mal de si
mesma.
E, quando
conversei a sós com a minha selvagem sabedoria, disse –me esta, zangada: “Tu
queres, desejas, amas; e somente por isso louvas a vida!”
Quase lhe
respondi mal e disse a verdade àquela zangada; e nunca podemos responder pior
do que quando “dizemos a verdade” à nossa sabedoria.
Tais são, com
efeito, as relações entre nós três. Do fundo do meu ser, amo somente a vida -.
e, na verdade, nunca a amo tanto como quando a detesto!
Que, porém, eu
seja condescendente com a sabedoria, e muitas vezes condescendente demais: isto
provém de que ela me lembre demasiado a vida!
Tem os seus
olhos, o seu sorriso e até, mesmo, o seu pequeno caniço com o anzol de ouro; é
minha culpa se as duas são tão parecidas?
E quando, certa
vez, a vida me perguntou: “Que vem a ser a sabedoria?” – respondi solícito:
“Pois é, ai de mim, a sabedoria!
Tem-se sede dela
e não se fica saciado, olha-se para ela através de véus, procura-se caçá-la com
redes.
É bonita? Sei
lá! Mas é uma isca que as mais velhas carpas ainda se deixam fisgar.
Mutável, é ela,
e voluntariosa; vi-a, frequentemente, morder os lábios e passar o pente no
cabelo a contrapelo.
Talvez seja má e
falsa e, em tudo, feminina; mas, quando fala mal de sim mesma, é então que mais
seduz.”
Depois que disse
isto à vida, esta riu maldosamente e fechou os olhos. “De quem estiveste
falando?”, indagou. “De mim, não é verdade?
E ainda que
tivesses razão – isso lá se diz na minha cara! Mas, agora, vamos, fala, também,
da tua sabedoria!”
Ah, voltasse a
abrir os olhos, então, ó amada vida! E pareceu-me que, de novo, eu me afundava
no imperscrutável. –
Assim cantou
Zaratustra. Mas quando a dança acabou e as jovens foram embora, sentiu-se
triste.
O sol já há
muito se pôs – disse por fim -; a relva está úmida, dos bosques chega um ar
frio.
Qualquer coisa
desconhecida há a meu redor, olhando, pensativa.
Como? Ainda
vives, Zaratustra?
Por quê? Para
quê? De quê? Para onde? Onde? De que modo? Não é loucura, viver ainda? –
Ah, meus amigos,
é a noite que assim pergunta dento de mim. Perdoai-me a minha tristeza!
Fez-se noite:
perdoai-me que se fez noite!
Assim falou
Zaratustra.
O canto do túmulo
“Lá está a
silenciosa ilha dos túmulos; lá estão, também, os túmulos da minha juventude.
Para lá quero levar uma sempre verde coroa da vida.”
Tendo assim
decidido em meu coração, fiz-me ao mar. –
Ó vós, visões e
aparições da minha juventude! Ó vós todos, olhares amorosos, momentos divinos!
Como me morrestes tão depressa! Rememoro-vos, hoje, como meus mortos.
De vós, meus
mortos queridos, vem a mim um doce perfume, que derrete o coração e solta as
lágrimas. Em verdade, ele abala e enternece o coração do solitário navegante.
Ainda sou o mais
rico e o mais invejável – eu, o mais solitário dos solitários! Porque eu vos
tive e vós ainda me tendes. Dizei: para quem, como para mim, caíram da árvore
tais sumarentos frutos?
Ainda sou o
vosso herdeiro e o solo do vosso amor, florindo, em vossa memória, de agrestes
e multicores virtudes, ó amados!
Nascêramos, ai
de nós, para ficar perto uns dos outros, ó fascinantes, estranhas maravilhas; e
não como pássaros ariscos viestes a mim e ao meu desejo – mas confiantes
naquele que confiava!
Sim, nascidos,
como eu, para a felicidade e meigas eternidades; e se, agora, devo chamar-vos
de acordo com a vossa infidelidade, ó olhares e momentos divinos: ainda não
aprendi nenhum outro nome.
Em verdade,
morrestes-me demasiado depressa, ó fugitivos. Mas não fugistes de mim eu fugi
de vós: inocentes somos uns e outros, em nossa infidelidade.
Para matar-me a
mim, estrangularam a vós, ó aves canoras das minhas esperanças! Sim, contra
vós, meus queridos, sempre a maldade desferiu flechas – para atingir meu
coração!
E o atingiu!
Porque sempre fostes o meu bem mais querido, aquilo que eu possuía e que me
possuía: por isso tivestes de morrer jovens e demasiado cedo!
Contra o que eu
possuía de mais vulnerável, foi desferida a flecha: e isso éreis vós, cuja
epiderme é como um frouxel e, mais ainda, como o sorriso, que morre a um
simples olhar!
Mas esta palavra
quero dizer aos meus inimigos: o que são todos os homicídios, comparados com o
que me fizestes!
Um mal pior, me
fizeste, do que todo o homicídio; tirastes-me algo irrecuperável – é isto o que
eu vos digo, meus inimigos!
Assassinastes as
visões e as mais queridas maravilhas da minha juventude! Tirastes-me os meus
companheiros, os espíritos bem-aventurados. Em sua memória deponho esta coroa e
esta maldição.
Esta maldição
contra vós, meus inimigos! Não abreviastes o que eu tinha de eterno, como um
som que se extingue na noite fria? Mal chegara até mim como um brilhar de olhos
divinos – um momento fugido!
Assim, em boa
hora, falou, noutro tempo, a minha pureza: “Divinos deverão ser, para mim,
todos os seres.”
Então vós me
assaltastes com imundos avantesmas. Ai de mim, para onde fugiu aquela boa hora?
“Todos os dias,
para mim, deverão ser sagrados” – assim falou, noutro tempo, a sabedoria da
minha juventude: em verdade, a linguagem de uma alegre sabedoria.
Mas então, ó
inimigos, roubastes minhas noites e as mudastes em insone angústia. Ai de mim,
para onde fugiu aquela alegre sabedoria?
Noutro tempo,
anelei por felizes presságios: então, pusestes no meu caminho uma monstruosa e
repelente coruja. Ai de mim, para onde fugiu o meu anelo?
Noutro tempo,
jurei abandonar toda a repugnância; então, transformastes em pústulas a minha
vizinhança e o meu próximo. Ah, para onde fugiu, então, o mais nobre dos meus
juramentos?
Como cego
percorri, noutro tempo, caminhos felizes; então, atirastes imundície no caminho
do cego e, agora, causa-lhe repugnância o velho atalho.
E quando
realizei o que me era mais difícil e festejava as vitórias das minhas
superações: então, fizeste os que me amavam gritar que nunca eu os magoara
tanto.
Em busca da
minha caridade, mandastes sempre os mais insolentes mendigos; em torno de minha
compaixão, aglomerastes sempre os despudorados incorrigíveis. Assim feristes a
minha virtude em sua fé.
E, se eu
oferecia em sacrifício o que tinha de mais sagrado, logo a vossa “devoção” lhe
acrescentava suas mais gordas oferendas: de modo que o que eu tinha de mais
sagrado sufocava na fumaça da vossa gordura.
E, noutro tempo,
eu quis dançar como ainda não dancei nunca: quis dançar para além de todos os
céus. Então, aliciastes o meu cantor preferido.
E, então, ele
entoou uma tétrica e horripilante nênia, buzinando, ai de mim, nos meus ouvidos
como lúgubre trompa!
Oh, cantor
assassino, instrumento da malvadez, e mais inocente que todos! Já estava eu
preparado para a melhor das danças: com o teu canto, então, assassinaste o meu
enlevo!
Somente
dançando, eu sei falar em imagens das coisas mais elevadas – e, assim, ficou-me
silenciada nos membros a minha mais elevada imagem!
Silenciada e
irredenta, ficou-me a mais elevada esperança! E morreram-me todas as visões e
consolações da minha juventude!
Como pude
suporta? Como sobrevivi a tais feridas e as superei? Como, desses túmulos,
ressuscitou a minha alma?
Sim, qualquer
coisa invulnerável e que não pode tumular-se há em mim, qualquer coisa que
fende rochas: chama-se a minha vontade. Silenciosa e inalterada, procede
através dos anos.
Quer caminhar,
no seu passo, com meus pés, a minha vontade; inabalável, é seu ânimo, e
invulnerável.
Invulnerável eu
sou somente no meu calcanhar. Ali continuas vivendo e sempre igual a ti mesma,
ó pacientíssima! Continuas abrindo caminho por entre todos os túmulos!
Em ti ainda vive
o que ficou irredento da minha juventude; e, como vida e juventude, estás aqui
sentada, esperançosa, nos amarelados escombros dos túmulos.
Sim, ainda és,
para mim, a destruidora de todos os túmulos; salve, ó minha vontade! E só há
ressurreição onde há túmulos.
Assim falou
Zaratustra! –
“Vontade de
conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os sábios, àquilo que
vos impele e inflama?
Vontade de que
todo o existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa vontade!
Quereis,
primeiro, tornar todo o existente possível de ser pensado; pois, com justa
desconfiança, duvidais de que já o seja.
Mas ele deve
submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa vontade. Liso, deve
tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo.
É essa a vossa
vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de poder, e também
quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor.
Quereis ainda
criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos: tal é a vossa derradeira
esperança e embriaguez.
Os ignorantes,
sem dúvida, o povo – são como um rio onde um barco continua boiando; e no barco
estão sentadas, solenes e mascaradas, as apreciações de valor.
Colocastes a
vossa vontade e os vossos valores no rio do devir; uma velha vontade de poder
revela-me aquilo em que o povo acredita como sendo o bem e o mal.
Fostes vós, ó os
mais sábios dentre os sábios, que mandastes tais convidados sentarem-se no
barco, dando-lhes nomes pomposos e altaneiros; vós e a vossa vontade
dominadora!
Agora, o rio
leva o barco: deve levá-lo. Pouco importa que a onda, ao romper-se, espumeje e,
furiosa, se oponha à quilha!
Não o rio é o
vosso perigo e o fim do vosso bem e mal, ó os mais sábios dentre os sábios, mas
aquela mesma vontade, a vontade de poder – a inesgotável e geradora vontade de
viver.
Mas, para que
compreendais minhas palavras do bem e do mal, quero acrescentar , ainda, minha
palavra sobre a vida e o modo de ser de todo o vivente.
O vivente, eu
segui, percorrendo os maiores e menores caminhos, a fim de conhecer seu modo de
ser.
Com um espelho
de cem faces, colhi seu olhar quando ele ainda guardava a boca fechada: para
que seus olhos me falassem. E seus olhos falaram-me.
Mas, onde quer
que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar
E, em segundo
lugar: manda-se naquele que não sabe obedecer a si mesmo. É este o modo de ser
do vivente.
E foi esta a
terceira coisa que ouvi: que mandar é mais difícil que obedecer. E não somente
porque quem manda carrega o peso de todos os que obedecem, e é fácil que este
peso o esmague. –
Um tentame e uma
ousadia, parece-me haver em todo mando; e, quando manda, sempre o vivente põe a
si mesmo em risco.
Sim, até quando
manda em si mesmo: também em tal caso deve ele expiar o seu mandar. Deve
tornar-se juiz, víndice e vítima da sua própria lei.
Como se dá isto?
– assim me interroguei. Que induz o vivente a obedecer e a mandar e, ao mandar,
praticar, ainda, a obediência?
Ouvi a minha
palavra, agora, ó os mais sábios dentre os sábios! Verificai seriamente se não
me insinuei no coração da própria vida e até às raízes do seu coração!
Onde encontrei
vida, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a
vontade de ser senhor.
Que o mais fraco
sirva o mais forte, a isto o induz a sua vontade, que quer dominar outros mais
fracos: esse prazer é o único de que ela não quer prescindir.
E, tal como o
menor se abandona ao maior, para conseguir prazer e poder no menor de todos,
assim também o maior se abandona a si mesmo e, por amor do poder – põe em risco
sua vida.
É esta a
abnegação do maior: de que é risco e perigo e um lance de dados com a morte.
E onde há
sacrifícios e serviços prestados e olhares amorosos: ali, também, há vontade de
ser senhor. Por caminhos oblíquos, introduz-se o mais fraco na fortaleza e até
no coração do mais forte – e, ali, furta poder.
E este segredo a
própria vida me confiou: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a
si mesmo.
Sem dúvida, vós
lhe chamais vontade de procriação ou impulso no rumo da finalidade, do mais
elevado, do mais distante, do mais multíplice; mas tudo isso é uma coisa só e
um único segredo.
Ainda prefiro o
meu ocaso a renunciar a essa única; e, em verdade, onde há ocaso e cair folhas,
sim, é ali que a vida se sacrifica – pelo poder!
Que eu deva ser
luta e devir e finalidade e contradição das finalidades: ah, quem adivinha a
minha vontade, certamente adivinha, também, que caminhos tortuosos ela deve
percorrer.
O que quer que
eu crie e de que modo quer que o mãe – breve terei de ser seu adversário, bem
como o do meu amor: assim quer a minha vontade.
E tu também, que
buscas o conhecimento, és apenas uma senda e uma pegada da minha vontade; em
verdade, a minha vontade de poder caminha com os pés da tua vontade de conhecer
a verdade!
Certamente não
encontrou a verdade aquele que lhe desfechou a expressão ‘vontade de
existência’: essa vontade – não existe!
Porque: o que
não existe não pode querer; mas, o que é existente, como poderia ainda querer
existência!
Onde há vida
também há vontade: mas não vontade de vida, senão – é o que te ensino – vontade
de poder!
Muitas coisas o
ser vivo avalia mais alto do que a própria vida; mas, através mesmo da
avaliação, o que fala é – a vontade de poder!” –
Assim, um dia,
me ensinou a vida; e destarte, ó os mais sábios dentre os sábios, resolvo
também o enigma de vossos corações.
Em verdade, eu
vos digo: um bem e um mal que fossem imperecíveis – isso não existe!
Cumpre-lhes sempre superar a si mesmos.
Com os vossos
valores e palavras do bem e do mal, exerceis poder, ó vós que estabeleceis
valores; e este é o vosso amor oculto e o esplendor e o frêmito e o
transbordamento de vossa alma.
Mas um poder
mais forte, uma nova superação nasce dos vossos valores: faz ela romperem-se o
ovo e a casca do ovo.
E aquele que
deva ser um criador no bem e no mal: em verdade, primeiro, deverá ser um
destruidor e destroçar valores.
Assim, o mais
alto mal faz parte do mais alto bem: mas é este o criador. –
Falemos nisso, ó
os mais sábios dentre os sábios, ainda que seja tarefa espinhosa. Silenciar é
pior: todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas.
E que se
despedace tudo o que possa despedaçar-se – despedaçar-se – de encontro às
nossas verdades! Ainda há muitas casas por construir!
Assim falou
Zaratustra.
Da redenção
Certo dia
“Vê, Zaratustra!
Também o povo aprende de ti e adquire fé na tua doutrina; mas, para que
acredite em ti totalmente, uma coisa ainda se faz necessária – deves, primeiro,
convencer-nos também bem a nós, os aleijados! Aqui tens, agora, um bom
sortimento deles e, na verdade, uma ocasião com mais de uma trança de cabelos!
Podes sarar cegos e fazer caminhar paralíticos; e bem que podereis, também,
tirar um pouco de cima de alguém que tem alguma coisa demais nas costas. Penso
que este seria o modo certo de fazer os aleijados acreditarem em Zaratustra!”
Zaratustra,
porém, assim respondeu àquele que falara:
Se ao corcunda
tiramos a corcunda, tiramos-lhe o espírito – é o que ensina o povo. E, se ao
cego se dá a vista, vê ele demasiadas coisas ruins na terra: a tal ponto que
amaldiçoa aquele que o sarou. Aquele, porém, que faz caminhar um paralítico,
causa-lhe o maior dos danos: porque, mal pode ele caminhar, pegam seus vícios a
correr, arrastando-o consigo – é o que povo ensina a respeito dos aliejados. E
por que não deveria Zaratustra aprender também do povo, se o povo aprende de
Zaratustra?
Mas, para mim,
desde que estou entre os homens, de tudo o que vejo, o menos é isto: “a este
falta um olho e àquele, uma orelha, e um terceiro, uma perna, e outros há que
perderam a língua ou o nariz ou a cabeça.”
Vejo e vi coisas
piores, e várias tão abomináveis, que não desejaria falar de cada uma delas,
mas, a respeito de algumas, tampouco silenciar: homens, precisamente, aos quais
falta tudo, salvo que têm demais de alguma coisa – homens que não passam de um
grande olho ou de uma grande boca ou de um grande ventre ou de qualquer outra
coisa grande – aleijados às avessas, chamo tal gente.
E, quando saí da
minha solidão e passei, pela primeira vez, nesta ponte, não acreditava nos meus
olhos e olhei e voltei a olhar e, por fim, disse: “Isso aí é uma orelha! Uma
orelha grande como um homem! “Olhei melhor: e, realmente, debaixo da orelha,
movia-se alguma coisa, que dava pena, de tão pequena e grácil e mirrada. E, na
verdade, a monstruosa orelha achava-se sobre um pequeno, fino caule – mas o
caule era um homem! Quem pusesse uma lente diante do olho poderia, até, reconhecer
ainda um pequeno rosto invejoso; e, também, que uma túmida alminha balançava no
caule. O povo me disse, porém, que a grande orelha não era somente um homem,
mas, sim, um grande homem, um gênio. Mas eu nunca acreditei no povo, quando ele
falava em grandes homens – e guardei minha persuasão de que aquele era um
aleijado às avessas, que tinha pouquíssima de tudo e demais de uma só coisa.
Depois de ter
assim falado ao corcunda e àqueles dos quais este era porta-voz e intercessor,
voltou-se Zaratustra para os discípulos, com profundo pesar e disse:
Em verdade, meus
amigos, eu caminho entre os homens como entre fragmentos e membros avulsos de
seres humanos. E o mais terrível para os meus olhos é que encontro o homem
feito em pedaços e esparso como num campo de batalha ou num matadouro.
E, se fogem do
presente par o passado, sempre os meus olhos encontram a mesma coisa:
fragmentos e membros avulsos e horrendos acasos – mas não homens!
O presente e o
passado na terra – ah, meus amigos, é isso, para mim, o mais insuportável; e
não saberia viver, se eu não fosse, também, um vidente, daquilo que deve vir.
Um vidente, um
voluntário, um criador, um futuro e uma ponte para o futuro – e, ai de mim, de
certo modo, também um aleijado, nessa ponte: tudo isso é Zaratustra.
E vós, também,
muitas vezes vos perguntastes: “Quem é Zaratustra, para nós? Como deveremos
chamá-lo?” E, tal como eu mesmo, vos destes, como respostas, perguntas.
Será um
prometedor? Ou um cumpridor de promessas? Um conquistador? Ou um herdeiro? Um
outono? Ou uma relha de arado? Um médico? Ou um doente que sarou?
Será um poeta?
Ou um assertor da verdade? Um libertador? Ou um forjador de grilhões? Um bom ou
um mau?
Eu caminho entre
os homens como entre fragmentos do futuro : daquele futuro que descortino.
E isso é tudo a
que aspira o meu poetar: juntar e compor em unidade o que é fragmento e enigma
e horrendo acaso.
E como
suportaria eu ser homem, se o homem não fosse, também, poeta e decifrador de
enigmas e redentor do acaso!
Redimir os
passados e transformar todo “Foi assim” num “Assim eu o quis!” – somente a isto
eu chamaria redenção!
Vontade – é este
o nome do libertador e trazedor de alegria: assim vos ensinei, meus amigos!
Mas, agora, aprendi também isto: a própria vontade ainda se acha em cativeiro.
O querer
liberta: mas como se chama aquilo que mantém em cadeias também o libertador?
“Foi assim”: é
este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angústia da vontade.
Impotente contra o que está feito – é ela um mau espectador de todo o passado.
Não pode a
vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é esta
a mais solitária angústia da vontade.
O querer
liberta; e que inventa a própria vontade, para livrar-se da angústia e zombar
da sua prisão?
Doido, ai de
nós, torna-se todo o prisioneiro! E pela doidice redime-se, também, a vontade
prisioneira.
Que o tempo não
retroceda, é o que a enraivece; “Aquilo que foi” – é o nome da pedra que ela
não pode rolar.
E assim, de
raiva e despeito, vai rolando pedras e vinga-se naquilo que não sente, como
ela, raiva e despeito.
Destarte, a
vontade libertadora torna-se causa de dor; e em tudo o que pode sofrer,
vinga-se de não poder retroceder.
Isso, sim, só
isso já é vingança: a aversão da vontade pelo tempo e seu “Foi assim”.
Em verdade, uma
grande loucura habita a nossa vontade: e tornou-se maldição para tudo o que é
humano, que essa loucura aprendesse a ter espírito!
Espírito de
vingança, foi esta até agora, meus amigos, a melhor reflexão dos homens: e que
onde havia sofrimento deveria sempre haver um castigo.
“Castigo”,
precisamente, chama a própria vingança a si mesma; com uma palavra mendaz,
atribui-se hipocritamente, ante seus próprios olhos, uma consciência limpa.
E já que no
próprio querer há sofrimento, por isso que não pode querer para trás – assim o
próprio querer e a vida inteira deviam – ser um castigo!
E eis que uma
nuvem após outra entrou a rolar sobre o espírito; até que a loucura, por fim,
pregou: “Tudo perece, tudo, portanto, merece perecer!”
“E é a própria
justiça, aquela lei do tempo, pela qual este deve devorar seus filhos”, assim
pregou a loucura.
“Pelo ângulo
moral, acham-se as coisas ordenadas segundo o direito e o castigo. Oh, onde
está a nossa redenção do caudal das coisas e do castigo da ‘existência’?” Assim
pregou a loucura.
“Pode haver
redenção, se há um direito eterno? Ah, impossível de rolar-se é a pedra ‘Foi
assim’: eternos devem, também, ser todos os castigos!” Assim pregou a loucura.
“Nenhum ato pode
ser destruído: como poderia ser desfeito pelo castigo! É isto p que há de
eterno no castigo da existência: que a existência deve de novo e sempre
tornar-se ato e culpa!
A não ser que a
vontade, finalmente, se redimisse a si mesma e o querer se tornasse em não
querer” – mas vós conheceis, meus irmãos, essa cantiga da loucura!
Para longe eu
vos levei dessas cantigas quando vos ensinei: “A vontade é criadora.”
Todo o “Foi
assim” é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso – até que a vontade
criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis!”
- Até que a
vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis! Assim hei de
querê-lo!”
Mas já falou de
tal maneira? E quando isso se dará? Já a vontade se desatrelou da sua própria
loucura?
Já a vontade se
tornou o seu próprio redentor e trazendo de alegria? Desaprendeu o espírito da
vingança e todo o ranger de dentes?
E quem lhe
ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa mais elevada do que toda a
reconciliação?
Alguma coisa
mais elevada do que toda a reconciliação, deve querer a vontade que é vontade
de poder, - mas como chega lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?
- Nesse ponto de
seu discurso, contudo, aconteceu que Zaratustra, de repente, calou-se e parecia
alguém amedrontado ao extremo. Com olhos assustados, olhava os discípulos,
perfurando, como com flechas, seus pensamentos e segundas intenções. Após breve
instante, porém, tornou a rir, tranqüilizando, e disse:
“É difícil viver
com os homens, porque é tão difícil o silêncio. Especialmente para um
tagarela.” –
Assim falou
Zaratustra. Mas o corcunda escutara seu discurso escondendo o rosto; quando,
porém, ouviu Zaratustra rir, ergueu, o curioso, os olhos e disse lentamente:
“Mas por que
Zaratustra fala conosco de maneira diferente do que com seus discípulos?”
Zaratustra
respondeu: “que há nisso de entranho! A um corcunda pode-se perfeitamente falar
de modo torto.”
“Bem”, disse o
corcunda; “e, aos alunos, pode-se perfeitamente falar de cadeira, deitado
segredos à rua.
Mas por que
Zaratustra fala com seus discípulos de modo diferente do que consigo mesmo?” –
Terceira Parte
Por volta da
meia-noite, enveredou Zaratustra para a serrania da ilha, a fim de chegar de
manhã cedo à outra costa: porque ali queria embarcar. É que havia por lá um bom
ancoradouro, onde também navios estrangeiros gostavam de deitar ferro; e
tomavam a bordo quem quisesse fazer-se ao mar abandonado as ilhas
bem-aventuradas.
Enquanto, pois,
assim subia o monte, recordou Zaratustra, no caminho, suas muitas peregrinações
solitárias desde a juventude e os numerosos montes e lombas e cumes aos quais
ascendera.
Eu sou um
viandante e um escalador de montanhas, disse ao seu coração; não gosto das
planícies e, ao que parece, não posso ficar muito tempo parado.
E seja lá o que
me for reservado como destino ou experiência – sempre o será a um viandante e
escalador de montanhas: afinal, só se vive a experiência de si mesmo.
Passou o tempo
em que ainda me acontecia deparar-me com acasos; e o que poderia caber-me em
sorte, agora, que já não seja meu?
Está somente
voltado par trás, está somente voltado para mim – o meu próprio eu e o que
dele, de há muito, se achava em terras estranhas, disperso em meio a todas as
coisas e acasos.
E também isto eu
sei: encontra-me, agora, diante do meu último cume e daquele que por mais tempo
me foi poupado. Ai de mim, que devo galgar o meu caminho mais árduo! Ai de mim,
que iniciei a minha mais solitária peregrinação!
Mas, quem é da
minha espécie, não se furta a uma hora destas, a hora que lhe diz: “Somente
agora percorres o teu caminho da grandeza! Cume e abismo – resolveram-se numa
única coisa!
Percorres o teu
caminho da grandeza: tornou-se o teu derradeiro refúgio, agora, aquilo que, até
aqui, era o teu derradeiro perigo!
Percorres o teu
caminho da grandezas; que seja, agora, a tua melhor coragem não teres mais
nenhum caminho atrás de ti!
Percorres o teu
caminho da grandeza; aqui, mais ninguém te seguirá às escondidas! O teu próprio
pé apagou a trilha atrás de si e nela está escrito: ‘impossibilidade’.
E se, agora, já
te falam todas as escadas, tens de aprender a trepar sobre a tua própria
cabeça; de outra maneira poderias ainda subir?
Sobre a tua
própria cabeça e por cima e além do teu próprio coração! O que há em ti de mais
suave deve, agora, tornar-se o que haverá de mais duro.
Aquele que
sempre muito se poupou, acaba adoecendo de seu muito poupar-se. Louvado seja
aquilo que enrijece! Não louvo a terra onde escorrem – manteiga e mel!
É preciso
aprender a desviar o olhar de si, para ver muitas coisas; - tal dureza é
necessária a todo o escalador de montanhas.
Mas quem busca o
conhecimento com olhos impudentes, como poderia ver mais do que as razões
exteriores das coisas!
Mas tu,
Zaratustra, quiseste olhar a razão e o fundo de todas as coisas; assim, deves
subir para além de ti mesmo – para cima, para o alto, até teres as tuas
próprias estrelas debaixo de ti!”
Sim! Olhar do
alto para mim mesmo e, ainda, para as minhas estrelas: somente a isto eu chamo
cume, é isto o que ainda me resta por atingir como meu último cume! –
Assim falou
Zaratustra de si para si enquanto subia, consolando seu coração com breves e
duras sentenças: porque tinha o coração ferido como nunca o tivera até então.
E, quando chegou ao cimo da serrania, eis que lá estava outro mar estendido à
sua frente; e ele permaneceu longamente parado e em silêncio. Mas a noite era
fria, naquelas alturas, e clara e estrelada.
Reconheço o meu
destino, disse ele, por fim, com tristeza. Pois muito bem! Estou pronto.
Começou, agora, a minha última solidão.
Ah, esse negro e
triste mar embaixo de mim! Ah, essa pejada opressão noturna! Ah, destino e mar!
Para vós cumpre-me, agora, descer!
Eis-me diante do
mais alto dentre os meus montes e da mais longa das minhas peregrinações; por
isso, preciso descer, primeiro, mais fundo do que algum dia já desci.
- mais fundo na
dor do que algum dia já desci, e até dentro de sua mais negra vaga! Assim quer
o meu destino. Muito bem! Estou pronta.
“De onde vêm os
montes mais altos?”, perguntei-me outrora. Aprendi, então, que vêm do mar.
O testemunho
está escrito em suas rochas e nas escarpas dos seus píncaros. Desde o mais
fundo, devo o mais alto atingir o seu cimo. –
Assim falou
Zaratustra no cume do monte onde fazia frio; mas, quando chegou à proximidade
do mar e, por fim, esteve sozinho entre os rochedos, sentiu-se cansado do
caminho e, mais do que antes, ardendo em desejos.
Tudo dorme,
agora, disse; também o mar dorme. Tonto de sono, olha para mim com estranho
olhar.
Mas cálido é seu
respiro, isto eu sinto. E sinto, também, que sonha: resolve-se, sonhando, sobre
duros travesseiros.
Ouve! Ouve! Como
geme, agitado por más lembranças! Ou será por más expectativas?
Ah, partilho a
tua tristeza, monstro sombrio, e sinto eu mesmo angústia por tua causa.
Ai de mim, que
não tem minha mão bastante força! De bom grado, na verdade, desejaria livrar-te
dos teus maus sonhos! –
E, enquanto
assim falava, ria Zaratustra de si mesmo, com tristeza e amargura. Como,
Zaratustra!, disse; pretenderias cantar consolações também para o mar?
Ah, Zaratustra,
afável louco transbordante de confiança! Mas sempre foste assim: sempre
confiante te acercaste de tudo o que é terrível.
Todo e qualquer
monstro, querias acariciar. Um sopro de quente bafo, um pouco de pêlo macio na
pata – e logo estavas pronto para amá-lo e atraí-lo.
O amor é o
perigo do grande solitário, o amor por tudo, desde que viva! Fazem realmente
rir, a minha loucura e modéstia no amor! –
Assim falou
Zaratustra, rindo pela segunda vez. Mas, então, lembrou-se dos amigos que
deixara – e, como se com seus pensamentos houvesse procedido mal com eles,
zangou-se consigo mesmo desses pensamentos. E logo sucedeu que o riso se lhe
mudou em pranto; - de raiva e de saudade, chorou Zaratustra amargamente.
Dando, assim,
voltas e passando lentamente por muito povo e várias cidades, regressava
Zaratustra para a sua montanha e a sua caverna. E eis que, no caminho, chegou
também, de repente, à porta da grande cidade; mas, ali, um louco, com espuma
nos lábios, pulou de mãos abertas à sua frente, barrando-lhe a passagem. Era
esse, porém, o mesmo louco a que o povo chamava “o macaco de Zaratustra”: pois
aprendera a arremedar um pouco o fraseado e as inflexões de seus discursos e
tirava também bom proveito do tesouro da sua sabedoria. O louco, porém, assim
falou a Zaratustra:
“Ó Zaratustra,
esta é a grande cidade; aqui, nada tens a procurar e tens tudo a perder.
Por que
pretendias vadear este lodaçal? Tem pena dos teus pés! Cospe, de preferência,
na porta da cidade – e volta atrás!
Aqui é o inferno
para pensamentos de eremitas; aqui, os grandes pensamentos são refogados vivos
e cozidos picadinhos.
Aqui procedem
todos os grandes sentimentos; só pequenos sentimentos de estalante secura têm
direito a estalar aqui!
Não sentes já o
cheiro a matadouro e casas de pasto do espírito? Não fumega esta cidade os
vapores do espírito abatido como uma rês?
Não vês as almas
penduradas, inertes, como trapos sujos?
- E ainda fazem
jornais, com esses trapos!
Não ouves como o
espírito, aqui, foi transformando em jogo de palavras? Repugnante lavadura de
palavras jorra dele! – E ainda fazem jornais, com essa lavadura de palavras!
Açulam-se uns
aos outros sem saber contra quê. Excitam-se uns aos outros sem saber para quê.
Retinem seu latão, tilintam seu ouro.
São frios, e
buscam calor nas aguardentes; estão acalorados, e buscam refrigério em
espíritos regelados; ardem todos em febre e tresvariam pela pública opinião.
Todos os
apetites e vícios estão aqui em sua casa; mas há aqui, também virtuosos, há
muitas virtudes aproveitáveis e aproveitadas –
Muitas
aproveitáveis virtudes com dedos para escrever e rijas carnes para ficarem
sentadas, à espera, santificadas por numerosas estrelinhas penduradas no peito
e por filhas sem traseiro, bem estofadas de enchimento.
Aqui há, também,
muita religiosidade e muito devoto a lamber os pés e servir de capacho aos deus
dos exércitos.
‘De cima’ pinga
a estrela e vêm os pés para lamber; para cima volta-se o anseio de todo o peito
sem estrelas.
A lua tem a sua
corte e a corte tem os seus aluados; mas o povo dos pedintes e toda a virtude
aproveitável dos pedintes reza a tudo o que vem da corte.
‘Eu sirvo, tu
serves, nós servimos’ – assim reza ao príncipe, lá em cima, toda a virtude
aproveitável: para que a merecida estrela seja, finalmente, cosida no mirrado
peito!
Mas a lua também
gira em torno de tudo o que é terrestre; do mesmo modo, gira também o príncipe
em torno de tudo o que há de mais terrestre: - e isso é o ouro dos merceeiros.
O deus dos
exércitos não é um deus das barras de ouro; o príncipe põe, mas o merceeiro –
dispõe!
Por tudo o que
tens de luminoso e bom e forte, Zaratustra! Cospe nesta cidade de merceeiros e
volta atrás!
Aqui, em todas
as veias, circula apenas um sangue corrompido, tíbio, espumoso, cospe na grande
cidade, que é o esgoto onde toda a escumalha escuma de cambulhada!
Cospe na cidade
das almas deformadas e dos peitos mirrados, dos olhos aguçados e dos dedos
pegajosos –
- na cidade dos
importunos, dos descarados, dos escrevinhadores e berradores, dos ambiciosos
demasiado sôfregos –
- onde fermenta,
em confusão, tudo o que é podre, deletério, lascivo, tenebroso, carunchento,
tumoroso, conspirativo –
- cospe na
grande cidade e volta atrás!” - -
Nesse ponto,
porém, Zaratustra o louco com espuma nos lábios, tapando-lhe a boca.
“Cala-te de uma
vez!”, exclamou Zaratustra; “há muito que tuas palavras e tuas ações me causam
náusea!
Por que o
moraste tanto tempo no pântano, a ponto de tornar-te, tu mesmo, rã e sapo?
Não corre,
acaso, nas tuas próprias veias, um sangue corrompido e escumoso de pântano,
para que aprendesses assim a coaxar e imprecar?
Por que não
foste para a floresta? Ou não araste o solo? Não está o mar cheio de verdes
ilhas?
Eu desprezo; e,
se me acautelaste – por que não te acautelaste a ti mesmo?
Somente do amor
deve alçar vôo o meu desprezo e o meu pássaro acautelador; não de um pântano! –
Chamam-te o meu
macaco, ó louco de espuma nos lábios; mas eu te chamo o meu porco grunhidor; -
com teu grunhido, ainda acabas por estragar o meu elogio da loucura.
O que te fez
grunhir, em primeiro lugar? Foi que ninguém te lisonjeasse bastante; - por isso
foste sentar-te junto dessa imundície: para teres motivo de grunhir muito –
- para teres
motivo de muita vingança! Porque é vingança, ó louco vaidoso, todo o teu
espumar, bem o adivinhei!
Mas a tua
palavra de louco me prejudica, mesmo nos pontos em que tens razão! E, ainda que
a palavra de Zaratustra tivesse, até, cem vezes razão: tu, com a minha palavra,
farias sempre – uma injustiça!”
Assim falou
Zaratustra; e olhou a grande cidade e suspirou e ficou longamente em silêncio.
Por fim, disse:
Também a mim me
causa náusea esta grande cidade, e não somente a esse louco. Nem nela nem nele,
nada mais há que possa melhora-se ou piorar-se.
Ai desta grande
cidade! – E eu gostaria de ver desde já as colunas de fogo em que arderá!
Porque essas
colunas de fogo deverão preceder o grande meio-dia. Mas isto tem o seu tempo e
o seu destino próprios. –
Este
ensinamento, porém, ó louco, eu te dou, como despedida: daquilo que não pode
mais mar, deve-se – passar além! –
Assim falou
Zaratustra, e passou além do louco e da grande cidade.
Quarta e última parte
E Zaratustra
prosseguiu, pensativo, seu caminho em descida, internando-se em florestas e
perlongando terrenos pantanosos; mas, como sucede a todos os que meditam em
coisas profundas, pisou involuntariamente, caminhando, num homem. E eis que, de
um jacto, atingiram-no em rosto um grito de dor, duas pragas e vinte graves
insultos; de tal modo que, em seu susto, ainda ergueu o bastão e bateu com ele
no homem que havia pisado. Logo em seguida, porém, caiu em si; e seu coração
riu da tolice que acabara de fazer.
“Perdoa-me”,
disse ao homem que pisara, o qual, após soerguer-se furioso, estava sentado no
chão, “perdoa-me e ouve, antes, uma parábola.
Tal como um
caminhante, que, numa rua solitária, sonha em coisas remotas e, sem querer,
tropeça num cachorro, um cachorro deitado ao sol,
- tal como
ambos, então, se sobressaltam e mutuamente se ameaçam, como dois inimigos
mortais, essas duas criaturas mortalmente assustadas: assim aconteceu conosco.
E, contudo! E,
contudo – quão pouco faltou para que os dois se fizessem festas, esse cachorro
e esse solitário! Pois não são ambos – solitários?”
- “Quem quer que
tu sejas”, disse logo, ainda furioso, o homem pisado, “pisaste-me com a tua
parábola e não somente com o teu pé!
Olha-me! Então,
porventura, sou um cachorro?” – E, assim dizendo, levantou-se e retirou o braço
nu do pântano. Porque, de início, estivera entendido no solo, oculto e
irreconhecível, tal como os que ficam à espreita de caça de brejo.
“Mas que
fazes!”, exclamou Zaratustra assustado, ao ver que do braço nu escorria muito
sangue – “Que te aconteceu? Mordeu-te, talvez, algum bicho mau?”
Riu, ainda
zangado, o homem do braço ensangüentado. “Que tens com isso?”, disse, fazendo
menção de ir embora. “Aqui estou em minha casa e nos meus domínios. Qualquer um
pode interrogar-me; mas não respondo a um idiota.”
“Enganas-te”,
disse Zaratustra, apiedado e retendo-o, “enganas-te; aqui não estás na tua
casa, mas no meu reino, onde não quero que aconteça mal a ninguém.
Mas podes
chamar-me como bem entendes – eu sou quem devo ser. A mim mesmo, eu me chamo
Zaratustra.
Bem! Por ali
sobre o caminho que leva à caverna de Zaratustra, mudou por completo. “Que se
passa comigo!”, exclamou. “De quem ainda me importo na vida, senão deste único
homem, precisamente, Zaratustra, e daquele único bicho que vive de sangue, a
sanguessuga?
Por causa da
sanguessuga, estava eu deitado, como um pescador, à margem deste pântano, e já
o meu braço mergulhado fora mordido dez vezes: pois não é que ainda me morde,
querendo meu sangue, uma sanguessuga mais bonita, Zaratustra em pessoa?
Oh, ventura! Oh,
milagre! Louvado seja o dia de hoje, que me atraiu a este pântano! Louvada seja
a melhor e mais viva ventosa hoje existente, louvado seja Zaratustra, a grande
sanguessuga das consciências!” –
Assim falou o
homem pisado; e alegrou-se Zaratustra das suas palavras e do modo fino e
reverente em que as dissera. “Quem és?”, indagou, estendendo-lhe a mão. “Muita
coisa ainda falta esclarecer e serenar entre nós; mas já o dia me parece mais
puro e luminoso.”
“Eu sou o homem
consciencioso do espírito”, respondeu o interrogado, “e, em questões de
espírito, não é fácil alguém ser mais severo, escrupuloso, preciso e
intransigente do que eu, excetuado aquele de quem isso aprendi, o próprio
Zaratustra.
Antes de não
saber nada do que saber muito pela metade! Antes ser um parvo com a cabeça
própria do que um sábio ao sabor dos outros! – Eu vou até o fundo;
- e que importa
se ele é grande ou pequeno? Se seu nome é pântano ou céu? Um fundo do tamanho
de um palmo me é suficiente: contanto que seja realmente terreno firme!
- um palmo de
terreno firme: nele se pode ficar em pé. Para a verdadeira consciência do
saber, nada há de grande nem nada de pequeno.”
“Então és,
talvez, o pesquisador do sanguessuga?, perguntou Zaratustra, “e acompanhas a
sanguessuga até os últimos fundamentos, ó homem consciencioso?”
“Ó Zaratustra”,
foi a resposta, “isso seria uma tarefa enorme, como poderia eu atrever-me a
tanto?
Do que, porém,
sou mestre e conhecedor é o cérebro da sanguessuga; - é esse o meu mundo!
E é realmente,
um mundo! Mas perdoa que, neste ponto, eu dê a palavra ao meu orgulho, porque,
em tal matéria, não há quem me iguale. Por isso eu disse: ‘Aqui estou em minha
casa.’
Há quanto tempo
acompanho de perto esta única coisa, o cérebro da sanguessuga, para que essa
escorregadia verdade não me escapula mais! Este é o meu reino!
- por ele,
atirei fora tudo o mais, por ele, tudo o mais, para mim, tornou-se indiferente;
e, bem pegada ao meu saber, acampa a minha negra ignorância.
É o que de mim
exige minha consciência do espírito: que eu saiba uma coisa e, de tudo o mais,
não saiba nada; repugnam-me todos os meios-termos do espírito, todas as mentes
nebulosas, oscilantes, exaltadas!
Além do ponto em
que termina a minha honestidade, sou cego e, também, quero ser cego. Naquilo
que quero saber, porém, quero, também, ser honesto, ou seja, duro, severo,
escrupuloso, preciso, cruel, implacável.
Falaste, certa
vez, Zaratustra: ‘O espírito é a vida que corta na própria vida’; foi o que me
seduziu na tua doutrina e me levou a ela. E, em verdade, com o meu próprio
sangue aumentei o meu saber!”
- “Como o
demonstra a evidência”, interrompeu Zaratustra; já que o sangue continuava a
escorrer do braço do homem consciencioso. Dez sanguessugas, com efeito,
tinham-se pegado nele.
“Ó singular
companheiro”, acrescentou, “quantas coisas me ensina essa evidência,
precisamente, tu mesmo! E nem tudo, talvez, teria eu o direito de derramar em
teu severo ouvido.
Muito bem!
Separemo-nos aqui! Mas gostaria de encontra-te de novo. Passa ali em cima o
caminho que leva à minha caverna; hóspede querido desejo-te, por lá, esta
noite.
De bom grado
desejaria, também, compensar teu corpo de que o pisasse o pé de Zaratustra;
pensarei no assunto. Mas, agora, um grito de socorro me chama com urgência para
longe de ti.”
Assim falou
Zaratustra.
Depois que
deixara o mais feio dos homens, Zaratustra teve frio e sentiu-se só: é que uma
grande sensação de gelo e solidão se apoderara da sua alma, a tal ponto que lhe
regelava também os membros. Mas continuou a caminhar, ora subindo, ora
descendo, ora passando por verdes pastos, ora também, porém, por selvagens e
pedregosos barrancos, onde, um dia, algum córrego impaciente fizera seu leito;
e, de súbito, voltou a sentir-se interiormente aquecido e reconfortado.
“Que se passa
comigo?”, perguntou a si mesmo. “Há qualquer coisa quente e viva que me
reanima; deve achar-se na minha vizinhança.
Já me sinto
menos só: desconhecidos companheiros e irmãos vagueiam a meu redor, seu cálido
respiro penetra-me a alma.”
Quando, contudo,
olhou em derredor, procurando os consoladores da sua solidão – eis que deparou
com algumas vacas reunidas numa encosta: a sua proximidade e cheiro haviam-lhe
aquecido o coração. Mas essas vacas pareciam escutar atentamente alguém que
falava e não repararam naquele que se aproximava. Assim que Zaratustra, porém,
chegou bem perto delas, ouviu distintamente uma fala humana vir do meio das
vacas; e era visível que todas estas tinham a cabeça voltada para o orador.
Então, aos
pulos, subiu Zaratustra rapidamente a encosta, abrindo caminho por entre as
vacas, pois receava que houvesse, ali, acontecido uma desgraça a alguém, ao
qual a compaixão das vacas dificilmente seria de auxílio. Nisso, contudo,
enganara-se; porque lá estava um homem sentado no chão e parecia exortar as
vacas a não terem medo dele; e era um homem pacífico, um pregador de sermões na
montanha, de cujos olhos pregava a própria bondade. “Que procuras aqui?”,
exclamou Zaratustra, surpreso.
“Que procuro eu
aqui?”, respondeu ele. “O mesmo que tu, intrometido! Ou seja, a felicidade na
terra.
Mas isso,
justamente, eu queria aprender destas vacas. Pois, fica-o sabendo, é meia manhã
que insto com elas a esse propósito e já estavam para dar-me a resposta. Por
que as incomodas?
Pois, até quando
não voltarmos atrás e não nos tornamos como as vacas, não entraremos no reino
dos céus. E uma coisa, precisamente, delas deveríamos aprender: a ruminar.
E, na verdade,
ainda que o homem conseguisse o mundo inteiro, mas não aprendesse esta única
coisa, ruminar: que lhe aproveitaria? Não ficaria livre da sua aflição,
- da sua grande
aflição; mas esta, hoje, chama-se náusea. Quem não tem, hoje, o coração, a boca
e os olhos cheios de náuseas? Tu também! Mas olha para estas vacas!”
Assim falou
Zaratustra – pois, até ali, o conservara carinhosamente pousado nas vacas; -
nesse momento, porém, mudou completamente. “Mas com quem falo?”, exclamou,
assustado, levantando-se do chão num pulo.
“Esse é o homem
sem náusea, esse é Zaratustra em pessoa, o vencedor da grande náusea, esses são
os olhos, essa é a boca, esse é o coração do próprio Zaratustra.”
E, assim
falando, beijou a mão daquele a quem falava, com os olhos transbordantes de
contentamento e todos os gestos de alguém a cujos pés, inesperadamente, como
preciosa dádiva, caiu um tesouro do céu. As vacas, porém, olhavam admiradas
aquilo tudo.
“Não fales de
mim, singular e amável criatura!”, disse Zaratustra, defendendo-se daquela
ternura. “Fala-me, primeiro, de ti! Não és p mendigo voluntário, que, um dia,
atirou para longe de si uma grande riqueza –
- que se
envergonhou da sua riqueza e dos ricos e fugiu para o meio dos pobres, afim de
doar-lhes a sua abundância e o seu coração? Mas eles não o aceitaram.”
“Mas eles não me
aceitaram”, disse o mendigo voluntário, “tu bem o sabes. Assim, por fim, fui
ter com os animais e com estas vacas.”
“Desse modo
aprendeste”, interrompeu-o Zaratustra, “que é mais difícil dar bem do que
receber bem e que presentear alguém é uma arte e a suprema e mais sutil mestria
da bondade.”
“Especialmente
hoje em dia”, respondeu o mendigo voluntário; “hoje, precisamente, quando tudo
o que é baixo rebelou-se, tornando-se arisco e, a seu modo, orgulhoso;
precisamente, ao modo plebeu.
Porque, bem o
sabes, chegou a hora da grande, pérfida, longa, lenta rebelião da plebe e dos
escravos: que cresce e continua a crescer!
Ora, todo o
bem-fazer e pequena esmola revoltam a arraia-miúda: e os ricaços que abram o
olho!
Quem, hoje em
dia, como bojudas garrafas, deixa cair somente gotas por gargalos demasiado
estreitos – a tais garrafas, hoje, dá prazer partir o colo.
Lúbrica cobiça,
biliosa inveja, exacerbada sede de vingança, altivez plebéia: tudo isto recebi
em rosto. Não é mais verdade que os pobres são bem-aventurados. Mas o reino dos
céus está entre as vacas.”
“E por que não
entre os ricos?”, indagou Zaratustra, para pô-lo à prova, enquanto afastava as
vacas, que farejavam familiarmente aquele homem pacífico.
“Por que me
tentas?”, respondeu este. “Sabes disso ainda melhor do que eu. Que foi que me
levou para os pobres, ó Zaratustra? Não foi a repugnância aos nossos ricaços?
- a esses
grilhetas da riqueza, que, com olhos frios e pensamentos torpes, vão à cata de
vantagens em todo o monturo, a essa canalha cujo fedor sobe até o céu –
- a essa plebe
revestida de ouro, falsificada, cujos pais eram ladrões ou abutres ou
trapeiros, casada meretrizes, em verdade, pouco falta a todas elas. –
- plebe em cima,
plebe embaixo! Que ainda significa, hoje em dia, ‘pobre’ e ‘rico’! Desaprendi a
diferença – e, então, fugi para longe, cada vez mais longe, até que cheguei a
estas vacas.”
Assim falou o
pacífico, fungando e suando ao pronunciar tais palavras; de sorte que as vacas
tornaram a admirar-se. Zaratustra, porém, enquanto ele assim duramente falava,
continuou a olha-lo em rosto, sorrindo e meneando silenciosamente a cabeça.
“Exerces
violência contra ti mesmo, ó pregador da montanha, a usures tão duras palavras.
Para tal dureza não nasceu a tua boca; nem os teus olhos –
E tampouco, ao
que me parece, o teu estômago: que é contrário a todo esse espumejar de raiva e
de ódio. Teu estômago quer coisas mais tenras; não és um carnívoro.
Mais parece-me,
ao contrário, homem de ervas e raízes. Talvez esmoas grãos. Certamente, porém,
és avesso aos prazeres da carne e gostas de mel.”
“Adivinhaste bem
o que eu sou”, respondeu o mendigo voluntário, com o coração aliviado. “Gosto
de mel e, também, esmôo grãos, pois sempre procurei aquilo que tem sabor
agradável e faz o hálito puro,
- e, ainda,
aquilo que requer muito tempo, um dia de trabalho para a boca de pacatos vadios
e mandriões.
Nisso, contudo,
ninguém foi mais longe do que estas vacas: inventaram para si o ruminar e o
quedar-se deitadas ao sol. Também abstêm-se de todos os pensamentos difíceis,
que incham o coração.”
- “Muito bem!”,
disse Zaratustra; “deverias ver, também, os meus animais, a minha águia e a
minha serpente – eles não têm iguais, hoje, na terra.
Olha, ali em
cima, o caminho leva à minha caverna: sê meu hóspede, esta noite. E fala com os
meus animais sobre a felicidade dos animais –
- até que eu
mesmo chegue lá. Porque, agora, um grito de socorro me chama com urgência para
longe de ti. Também encontrarás mel novo, na caverna, dourado e geladinho mel
de colméia; come-o!
Agora, no
entanto, despede-te logo das tuas vacas, ó singular e amável criatura, por mais
tristeza que isto te cause. Porque são os teus mais fervidos amigos e mestres!”
–
- “Com exceção
de um só, que me é ainda mais dileto”, respondeu o mendigo voluntário. “Tu
mesmo és bondoso e ainda melhor do que uma vaca, ó Zaratustra!”
“Fora, fora
daqui, grande bajulador!”, exclamou, zangado, Zaratustra. “Por que pretendes
corromper-me com esse mel do elogio e da bajulação?
Fora, para longe
de mim!”, gritou novamente, brandido o bastão na direção do terno mendigo; o
qual, porém, fugiu ligeiro dali.
A sombra
Mal, no entanto,
fugira o mendigo voluntário e estava outra vez Zaratustra a sós consigo, quando
ouviu, atrás de si, uma nova voz; esta exclamava: “Alto, Zaratustra! Espera,
homem! Sou eu, Zaratustra, a tua sombra!” Mas Zaratustra não esperou, tomado de
repentina irritação por essa excessiva afluência de pessoas e invasão de seus
montes. “Que é feito da minha solidão?”, disse.
“Começo a achar
isso, realmente, demais; esta, montanha pulula de gente, o meu reino não é mais
deste mundo, preciso de novos montes.
Minha sombra me
chama? Que importa a minha sombra! Corra atrás de mim, se quiser! Eu – fujo
dela.”
Assim falou
Zaratustra ao seu coração e desatou a fugir. Mas aquele que estava atrás dele o
seguiu; de sorte que já havia três correndo um atrás do outro e, precisamente,
primeiro, o mendigo voluntário, depois Zaratustra e, terceiro e mais atrás de
todos, a sua sombra. Não correram assim durante muito tempo; Zaratustra deu-se
conta da sua loucura e, de um só golpe, sacudiu de si todo o mau humor e
irritação.
“Como!”,
exclamou. “Porventura não aconteceram desde sempre, entre nós, velhos eremitas
e santos, as coisas mais ridículas?
Em verdade,
muito alta cresceu a minha insânia, nos montes! Agora, ouço seis velhas pernas
de doidos pateando umas atrás das outras!
Mas terá
Zaratustra o direito de temer uma sombra? Além de que, por fim de contas,
parece-me que ela tem pernas mais compridas do que as minhas.”
Assim falou
Zaratustra, rindo com os olhos e as vísceras, parou e voltou-se rapidamente – e
eis que, destarte, quase atirou ao solo aquele que era a sua sombra e
perseguidor: tão de perto este o seguia e tão fraco era, também. Quando, com
efeito, o examinou com os olhos, assustou-se com ante súbita visão de um
fantasma: tão mirrado, fusco, oco e enfermiço era o aspecto desse perseguidor.
“Quem és tu?”,
perguntou Zaratustra, em tom enérgico. “Que andas fazendo por aqui? E por que
te dizes a minha sombra? Não gosto de ti.”
”Desculpa-me de
que o seja”, respondeu o indivíduo que se dizia sombra; “e, se não gostas de
mim, muito bem, Zaratustra! Só me cabe louvar-te, por isso, e ao teu bom gosto.
Um viandante,
sou eu, que, já desde muito, te acompanha pegado aos teus calcanhares: indo
sempre caminho, mas de nenhum lugar e, tampouco, de casa, que não tenho; de
modo que, realmente, para o eterno judeu errante pouco me falta, salvo que não
sou nem eterno nem judeu.
Como? Terei
sempre de estar a caminho de nenhum lugar? Remoinhado por todas os ventos,
erradio, arrastado por aí? Ó Terra, demasiado redonda te tornaste para mim!
Já sentei em
todas as superfícies, já adormeci, como cansada poeira, em espelhos e vidros de
janelas; tudo tira alguma coisa de mim, ninguém me dá nada, estou cada vez mais
mirrado – pareço quase uma sombra.
Mas foi atrás de
ti que voei e a ti que segui por mais tempo, ó Zaratustra; e, embora
escondendo-me de ti, fui, por fim de contas, a tua melhor sombra: onde quer que
mal te detivesses, também me detive.
Contigo vagueei
pelos mundos mais frios e distantes, qual um fantasma a caminhar, por sua
vontade, sobre telhados invernais e neve.
Contigo almejei
por tudo o que é proibido, pelo que há de pior, de mais remoto; e, se alguma
virtude possuo, é a de que não temi nenhuma proibição.
Contigo
destrocei tudo aquilo que, algum dia, meu coração venerara, derribei todos os
marcos de fronteira e ídolos, deixei-me atrair pelos mais perigosos desejos –
em verdade, não há delito sobre o qual eu não passasse uma vez.
Contigo
desaprendi a fé nas palavras, nos valores e nos grandes nomes. Quando o Diabo
muda de pele, não perde, com a pele velha, também o nome? Porque também esse é
pele. O próprio Diabo talvez seja – pele.
‘Nada é verdade,
tudo é permitido’: assim eu dizia, para animar-me. Nas mais gélidas águas me
atirei, com a cabeça e o coração. Ah, quantas vezes não fiquei, por causa
disso, nu e vermelho como um camarão!
Ah, onde foram
para todo o bem e todo o pudor e toda a fé nos bons! Ah, para onde foi aquela
mendaz inocência que, antigamente, eu possuía, a inocência dos bons e das suas
nobres mentiras!
Com demasiada freqüência,
corri atrás da verdade, colado aos teus pés; e, então, ela pisou minha cabeça.
Às vezes, eu pensava mentir e eis que, somente então, encontrava – a verdade.
Coisas demais se
me tornaram claras; agora, nada mais me importa. Nada mais existe que eu ame –
como ainda haveria de amar-me a mim mesmo?
‘Viver como me
apraz ou não viver de todo’: assim quero, assim quer também o ser mais santo.
Mas, sai de mim! como posso ainda, eu, ter alguma coisa – que me apraza?
Tenho, eu, por
ventura – ainda um frio? Um porto para o qual ruma a minha vela?
Um bom vento?
Ah, somente quem sabe para onde vai sabe, também, que vento é bom e favorável à
sua navegação.
Que me restou,
ainda? Um coração cansado e atrevido; uma vontade inconstante; asas de vôo
rasteiro; um espinhaço partido.
Esta procura do
meu lar, ó Zaratustra, tu bem o sabes, esta procura foi a minha provação; e me
consome.
Onde está – o
meu lar? Por ele pergunto e o procuro e o procurei e não o encontrei. Ó Eterno
em toda a parte, é eterno em parte alguma, ó eterno – inutilmente!”
Assim falou a
sombra, enquanto o rosto de Zaratustra se carregava ante essas palavras. “ÉS a
minha sombra”, disse por fim, triste.
“Não é pequeno o
perigo que corres, ó espírito livre e errante! Tiveste um mal dia; cuida de que
não te colha uma noite ainda pior!
Para criaturas
sem pouso, como tu, até uma prisão, no fim, parece ventura. Já viste, algum
dia, como dormem os criminosos encarcerados? Dormem tranqüilos, gozam a sua
nova segurança.
Toma cuidado com
que, no fim, ainda não te aprese uma fé mais acanhada, uma ilusão mais dura,
mais severa! Porque a ti, agora, te seduz e tenta o que seja acanhado e firme.
Perdeste a meta;
ai de ti, como irás refazer-te e consolar-te da perda? Com isso – perdeste,
também, o caminho!
Minha pobre
vagante, erradia, cansada borboleta! Queres, esta noite, uma trégua e uma
pousada? Sobe para minha caverna!
Ali em cima, o
caminho leva à minha caverna. E, agora, vou depressa fugir novamente de ti.
Sinto já como que uma sombra estender-se sobre mim.
Preciso caminhar
sozinho, afim de que tudo, a meu redor, volte a ser claro. Para isso, devo
continuar a caminhar lepidamente ainda por muito tempo. À noite, porém, lá na
minha moradia – vai dançar-se!’ - -
Assim falou
Zaratustra.
1
Na rimeira vez
que fui para o meio dos homens, pratiquei a estultície do eremita, a grande
estultície: fui à praça do mercado.
E, como falasse
a todos, não falei a ninguém. À noite, porém, eram funâmbulos, os meus
companheiros, e cadáveres e, eu mesmo, quase um cadáver.
Com a nova
manhã, contudo, uma nova verdade veio a mim; comecei, então, a dizer: “Que me
importam a praça do mercado e a plebe e o estardalhaço da plebe e as orelhas
compridas da plebe!”
Aprendi isto de
mim, ó homem superiores: na praça do mercado, ninguém acredita em homens
superiores. E, se quiserdes discursar por lá, pois não, à vontade. Mas a plebe
piscará o olho: “Somos todos iguais.”
“Ó homens
superiores” – assim piscará o olho a plebe -, “não há homens superiores, somos
todos iguais, um homem é um homem: diante de Deus – somos todos iguais!”
Diante de Deus!
– Agora, porém, esse Deus morreu. Mas, diante da plebe, nós não queremos ser
iguais. Ó homens superiores, ide embora da praça do mercado!
2
Diante de Deus!
– Agora, porém, esse Deus morrei! Esse Deus, ó homens superiores, era o vosso
maior perigo.
Somente desde
que ele jaz no túmulo, vós ressuscitastes. Somente agora chega o grande
meio-dia, somente agora o homem superior se torna – o senhor!
Compreendestes
estas palavras, meus irmãos? Estais assustados: sente vertigens o vosso
coração? Escancara-se diante de vós, neste ponto, o abismo? Late contra vós,
neste ponto, o cão infernal?
Vamos! Coragem,
homens superiores! Somente agora a montanha do futuro humano sente as dores do
parto. Deus morreu; nós queremos, agora, - que o super-homem viva.
3
Os mais
preocupados hoje indagam: “Como se conservará o homem?” Zaratustra, porém, foi
o primeiro e único que indagou: “Como se superará o homem?”
Pelo
super-homem, almeja o meu coração, é ele o meu primeiro e único anseio – e não
o homem: não o próximo, não o mais pobre, não o mais sofredor, não o melhor. –
O que posso amar
no homem, ó meus irmãos, é que ele é uma transição e um acaso. E também em vós
há muita coisa que em mim suscita amor e esperança.
Que sentísseis
desprezo, ó homens superiores, é o que me dá esperança. Porque os grandes
desprezadores são os grandes veneradores.
Que
desesperásseis, muito há nisso que honrar. Porque não aprendestes a
resignar-vos, não aprendestes as pequenas espertezas.
É que, hoje, os
pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores; pregam todos a resignação e
a desambição e a cordura e a consideração pelos outros e o longo etecétera das
pequenas virtudes.
O que é de
natureza feminina, o que provém da condição servil e, especialmente, a mixórdia
plebéia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de todo o destino humano. – Oh,
nojo! nojo! nojo!
Isso pergunta e
não cessa de perguntar: “Como poderá o homem conservar-se melhor, mais
longamente, mais agradavelmente?” Com tal pergunta – eles são os senhores de
hoje.
Superai, meus
irmãos, esses senhores de hoje – esses pequenos homens: ele são o maior perigo
do super-homem!
Superai, ó
homens superiores, as pequenas virtudes, as pequenas espertezas, as
considerações dos grãos de areia, a azáfama das formigas, a sórdida satisfação
de si, a “felicidade do maior número”! –
E
desesperai-vos, de preferência a dar-vos por vencidos. E, em verdade, por isto
eu vos amo, ó homens superiores: porque não sabeis viver nos dias de hoje. Já
que é esse o melhor modo – de continuardes, vós, vivo!
4
Tendes coragem,
meus irmãos? Sois animosos? Não a coragem diante de testemunhas, mas a coragem
do solitário e da águia, aquela que não tem mais, sequer, um Deus para
presenciá-la?
Não as almas
frias, os muares, os cegos, os bêbados, chamo eu animosos. Ânimo tem quem
conhece o medo, mas vence o medo; quem vê o abismo, mas com altivez.
Quem vê o
abismo, mas com olhos de águia, quem deita a mão ao abismo com garras de águia,
esse tem coragem. - -
5
“O homem é mau”
– assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá isso fosse verdade
ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.
“O homem deve
tornar-se melhor e pior” – isto ensinou eu. O pior que tudo é necessário para o
maior bem do super-homem.
Sofrer e tomar
sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele pregador do povinho.
Eu, porém, me rejubilo como grande pecado como a minha grande consolação.
Tal não se diz,
contudo, para orelhas compridas. Nem toda a palavra é própria para toda a boca.
São coisas sutis e distantes: não tentem agarrá-las os cascos de carneiros!
6
Julgais, acaso,
ó homens superiores, que estou aqui para fazer bem o que vós fizestes mal?
Ou que queira
ajeitar-vos melhor, doravante, em vosso leito de sofredores? Ou indicar-vos,
viandantes extraviados e perdidos na montanha, novos e mais fácies atalhos?
Não! Não! Três
vezes não! Cada vez mais, cada vez melhores homens da vossa espécie terão de
perecer – pois devereis ter vida cada vez pior e mais dura. Somente assim –
- somente assim
cresce o homem para o alto, onde o raio o atinge e destrói: cresce a altura
suficiente para o raio!
A poucas coisas,
demoradas e distantes, visam o meu pensamento e o meu anseio; que poderia
importar-me a vossa pequena, numerosa, breve miséria!
Ainda, a meu
ver, não sofreis bastante! Pois sofreis de vós mesmos, não sofreis do que é o
homem. Mentiríeis, se dissésseis o contrário! Nenhum de vós sofre daquilo que
eu sofri. - -
7
Não me basta que
o raio não cause mais danos. Não é desviá-lo que eu quero: ele deve aprender –
a trabalhar para mim.
De há muito se
adensa a minha sabedoria como uma nuvem, tornando-se mais lenta e sombria.
Assim faz toda a sabedoria que, algum dia, deverá dar à luz – raios.
Para esses
homens de hoje, não quero ser luz, não quero chamar-me luz. Quero, a esses –
cegá-los. Raio da minha sabedoria, fura seus olhos!
8
Que o vosso
querer não exceda as vossas capacidades; há uma maligna hipocrisia nos que
querem o que está além das suas capacidades.
Especialmente se
querem grandes coisas! Pois suscitam desconfiança contra as grandes coisas,
esses trapaceiros e histriões –
- até que, no
fim, se enganam a si mesmos, em sua vesguice, caiada podridão encoberta por
altissonantes palavras, por alardeadas virtudes, por obras vistosas e falsas.
Muito cuidado
com eles, ó homens superiores! Porque nada é mais raro e precioso, aos meus
olhos, do que a honestidade.
Não pertence o
dia de hoje à plebe? A plebe, porém, não sabe o que é grande, o que é pequeno,
o que é reto e honesto; ela é torta, com toda a inocência, e mente sempre.
9
Cultivai, hoje,
uma sadia desconfiança, ó homens superiores, ousados e sinceros! E guardai
secretas as vossas razões. Porque o hoje pertence à plebe.
Aquilo que, um
dia, a plebe aprendeu, sem razões, a acreditar, quem conseguirá – derrubá-lo,
com razões, dentro dela?
E, na praça do
mercado, a persuasão se obtém com gestos. Mas as razões deixam a plebe
desconfiada.
E se a verdade,
alguma vez, chegou, ali, a triunfar, perguntai a vós mesmos, com sadia desconfiança:
“Que poderoso erro terá lutado por ela?”
Guardai-vos
também dos doutos! Esses vos odeiam? Pois são estéreis! Ante seus olhos frios e
ressequidos, toda a ave jaz depenada.
Gabam-se de não
mentir; mas a impotência para mentir ainda está longe de ser amor à verdade.
Tende cautela!
Ter-se livrado
da febre ainda está longe de ser conhecimento! Não creio nos espíritos
regelados. Quem não sabe mentir, não sabe o que é a verdade.
10
Se quereis
atingir as alturas, usai as vossas próprias pernas! Não vos deixeis levar para
cima, não vos senteis nas costas e cabeças alheias!
Tu, porém,
montaste a cavalo? Cavalgas ligeiro, agora, subindo para a tua meta? Muito bem,
meu amigo! Mas o teu pé aleijado também está montado contigo!
Quando chegares
à tua meta, quando já desceres do cavalo, justamente na tua eminência, ó homem
superior – tropeçarás!
1
Após o canto do
viandante e sombra, encheu-se subitamente a caverna de alarido e risadas; e,
visto que os convidados ali reunidos falavam todos ao mesmo tempo e que também
o burro, com tamanho encorajamento, não ficava mais quieto, foi tomado
Zaratustra de um leve sentimento de aversão e sarcasmo para com suas visitas;
muito embora se regozijasse de vê-las alegres. Porque isso parecia-lhe um sinal
de cura. Assim, saiu sorrateiramente ao ar livre e falou aos seus animais.
“Que é feito,
agora, da sua angústia!”, disse; e já se sentia aliviado da pequena
contrariedade. – “Comigo, ao que parece, desaprenderam a gritar por socorro!
- se bem que
ainda, infelizmente, não desaprendessem a gritar.” E Zaratustra tapou os
ouvidos, porque, nesse momento, foi o “I-A” do burro misturar-se curiosamente
com a jubilosa algarraza daqueles homens superiores.
“Divertem-se”,
recomeçou ele, “e, quem sabe!, talvez à custa do seu anfitrião; e mesmo se foi
de mim que aprenderam a rir, não foi o meu riso que aprenderam.
Mas que importa!
São gente velha: saram a seu modo, riem a seu modo; coisas piores já suportaram
os meus ouvidos sem se tornarem grosseiros.
Hoje é dia de
vitória: já recua, já foge e o espírito de gravidade, o meu velho e mortal
inimigo! Como promete acabar bem, este dia, que começou tão mal e tão
carregado!
E quer acabar.
Eis que já vem o anoitecer: vem cavalgando sobre o mar, o bom cavaleiro! Como
balança na purpúrea, sela, o felizardo que regressa ao lar!
Mira-o o céu com
límpido olhar, o mundo deita-se na profundeza; ó vós todos, singulares
criaturas que a mim viestes, vale a pena viver junto de mim!”
Assim falou
Zaratustra. E de novo chegaram da caverna a vozearia e as gargalhadas dos
homens superiores; então, ele recomeçou:
“Mordem no
anzol, a minha isca tem efeito, também deles foge o seu inimigo, o espírito de
gravidade. Já estão aprendendo a rir de si mesmos: ouvi bem?
Tem efeito o meu
varonil alimento, as minhas suculentas e vigorosas máximas; e, em verdade, não
os nutri de flatosos legumes! Mas com alimento de guerreiros, com alimento de
conquistadores: despertei novos desejos.
Há novas
esperanças em seus braços e pernas, seu coração se distende. Encontram palavras
novas, breve o seu espírito respirará afoiteza.
Tal alimento,
sem dúvida, não será próprio para crianças, nem, tampouco, para mulheres,
velhas e jovens, ardendo em desejos. Dessas, outro é o modo de convencer as
entranhas; delas não sou eu nem médico nem mestre.
A náusea
retira-se desses homens superiores; ótimo! É esta a minha vitória. No meu
reino, tornam-se seguros de si, todo o tolo pudor vai-se embora, e desabafam.
Desabafam seus
corações, voltam-lhes os bons momentos, folgam e ruminam – tornam-se
agradecidos.
Isso eu reputo o
melhor sinal: que se tornem agradecidos. Não tardará muito para que inventem
festas e ergam estelas à memória das suas velhas alegrias.
São
convalescentes!” Assim falou Zaratustra alegremente ao seu coração, com os
olhos fitos na distância; mas os seus animais achegaram-se dele,
respeitando-lhe a felicidade e o silêncio.
2
De súbito,
porém, assustou-se o ouvido de Zaratustra: porque na caverna, até ali reboante
de gritos e risadas, fizera-se, de xofre, um silêncio mortal; - seu nariz,
todavia, sentiu o aroma de uma fumaça como que de incenso: dir-se-ia de pinhas
queimando.
“Que aconteceu?
Que fazem eles?”, perguntou a si mesmo, acercando-se a furto da entrada, para
poder, sem ser notado, observar seus hóspedes. E, maravilha das maravilhas! O
que não teve de ver com seus próprios olhos!
“Voltaram todos
a ser devotos, estão rezando, enlouqueceram!” – falou, sobremaneira admirado.
E, em verdade, todos aqueles homens superiores, os dois reis, o papa sem
ofício, o pérfido feiticeiro, o mendigo voluntário, o viandante e sombra, o
velho adivinho, o homem consciencioso do espírito e o mais feio dos homens –
estavam todos de joelhos, como crianças e velhas beatas, rezando ao burro. E,
justamente nesse momento, começou o homem mais feio do mundo a gorgolejar e a
bufar, como se qualquer coisa inexprimível quisesse sair dele; mas, quando pôde
realmente traduzi-la em palavras, eis que se tratava de uma piedosa e estranha
ladainha em louvor do burro adorado e incensado. Mas essa ladainha soava assim:
Amém! E honra e
louvor e sabedoria e gratidão e glória e força sejam ao nosso Deus, de
eternidade em eternidade!
- Mas a isto o
burro disse: “I-A”.
Que oculta
sabedoria é essa, de ter orelhas compridas e dizer somente sim e não dizer
nunca não! Não criou ele um mundo à sua imagem, ou seja, o mais estúpido
possível?
- Mas a isto o
burro disse: “I-A”.
Percorres
caminhos direitos e tortos e pouco te importa o que a nós homens parece direito
ou torto. O teu reino está além do bem e do mal. A tua inocência está em não
saberes o que é inocência.
- Mas a isto o
burro disse: “I-A”.
Vê como não
repeles ninguém, nem os mendigos nem os reis. Mandaste vir a ti as criancinhas
e, quando os rapazes mal-intencionados procuram atrair-te, dizes singelamente
“I-A”.
- Mas a isto o
burro disse: “I-A’.
Gostas de burras
e de figos frescos, não desdenhas comida. Um cardo comicha-te o coração, quando
tens fome. Há nisso a sabedoria de um deus.
- Mas a isto o
burro disse: “I-A”.
Mas, na manhã
que seguiu essa noite, saltou Zaratustra de seu leito, cintou os flancos e saiu
da caverna, ardente e forte como um sol matinal surgindo detrás de escuros
montes.
“Ó grande
astro”, falou, como já uma vez falara outrora, “ó profundo olho de felicidade,
que seria toda a tua felicidade, se não tivesse aqueles que iluminas!
E se
permanecessem eles em seus quartos, quando tu já estás acordado e surges e dás
e distribuis presentes: como se encolerizaria o teu altivo pudor!
Pois muito bem!
Ainda dormem esses superiores, quando eu já estou acordado: não são esses os
companheiros próprios para mim! Não por eles esperei aqui, nos meus montes.
Quero começar o
meu trabalho, o meu dia; mas eles não compreendem quais são os sinais da minha
manhã, o meu passo – não é, para eles, um toque de alvorada.
Ainda dormem na
minha caverna, ainda seu sonho bebe os meus ébrios cantos. O ouvido que fica à
minha escuta – o ouvido aplicado falta entre seus órgãos.”
- Isso falara
Zaratustra ao seu coração, quando o sol nascia; volveu, então, para o alto um
olhar indagador, pois ouvia sobre sua cabeça o grito agudo da águia. “Muito
bem!”, exclamou para cima, “isso me agrada e me é devido. Os meus animais estão
acordados, pois eu estou acordado.
A minha águia
está acordada, e como eu, presta homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras
de águia para a nova luz. Sois os animais certos para mim; eu vos amo.
Mas faltam-me,
ainda, os meus homens certos!” –
Assim falou
Zaratustra. Mas, então, aconteceu que ele se sentiu rodeado como que por um
inumerável e revoluteante bando de pássaros – todavia, o ruflar de tantas asas
e o atropelo em torno de sua cabeça eram tamanhos, que fechou os olhos, e, em
verdade, era como se uma nuvem caísse sobre ele, uma nuvem de flechas
desferidas contra um novo inimigo. Eis, porém, que ali se tratava de uma nuvem
de amor e envolvia um novo amigo.
“Que se passa
comigo?” pensou Zaratustra em seu admirável coração; e sentou-se lentamente na
grande pedra que havia perto da entrada da caverna. Mas, enquanto estendia as
mãos a seu redor e por cima e em baixo de si, para defender-se dos meigos
pássaros, eis que lhe sucedeu coisa ainda mais estranha: sua mão penetrou, sem
querer, numa basta e quente madeixa de cabelos; ao mesmo tempo, porém, ecoou à
sua frente um rugido – um brando e longo rugido de leão.
“Chegou o
sinal”, disse Zaratustra; e seu coração transformou-se. E, na verdade, quando
tudo clareou em derredor, lá estava deitada a seus pés uma fulva e poderosa
fera, que conchegava a cabeça ao seu joelho e não queria, de tanto amor,
afastar-se dali e procedia como um cão que volte a encontrar o velho dono. Mas
não menos solícitos do que o leão eram, em seu amor, as pombas; e, toda a vez
que uma pomba resvalava pelo nariz do leão, sacudia o leão a cabeça e ria,
admirado.
Diante disso
tudo, falou Zaratustra somente estas palavras: emudeceu de todo. Seu coração,
porém, sentia-se aliviado e seus olhos gotejavam lágrimas, que lhe caíam sobre
as mãos. E não cuidou de mais nada e ali ficou sentado, imóvel e, mesmo, sem
mais defender-se dos animais. Revoaram, então, as pombas de um lado para o
outro, pousaram em seu ombro, acariciaram seu alvo cabelo, não se cansando,
jubilosas, de prodigalizar-lhe ternura. O forte leão, porém, continuava a
lamber as lágrimas que caíam sobre as mãos de Zaratustra, emitindo tímidos
rugidos e rosnadelas. Assim procediam esses animais. –
Tudo isso durou
muito tempo ou pouco: pois, a bem dizer, não há na terra nenhum tempo para tais
coisas. – Entrementes, porém, na caverna de Zaratustra, tinham acordado os
homens superiores e ordenavam-se em cortejo para ir ao encontro de Zaratustra e
apresentar-lhe a saudação matinal; porque, ao acordar, haviam notado que não
estava mais entre eles. Mas, ao chegarem à entrada da caverna onde os precedera
o ruído de seus passos, enorme foi o assombro do leão, que, de chofre,
afastou-se de Zaratustra e arremeteu, num pulo, contra a caverna, rugindo
furiosamente; ao ouvi-lo rugir, porém, os homens superiores entraram todos a
gritar, como por uma só boca, e, fugindo para trás, desapareceram num abrir e
fechar de olhos.
O próprio
Zaratustra, no entanto, aturdido e surpreso, levantou-se de seu assento, olhou
em redor, quedou-se ali em pé, pasmado, interrogou o seu coração, refletiu e
viu que estava sozinho. “Que ouvi”? disse
por fim, lentamente, “o que acaba de passar-se comigo?”
E logo lembrou-se
de tudo e compreendeu, num relance, o que acontecera entre a véspera e esse
dia. “Eis a pedra”, disse, afagando a barba; “nela estava eu sentado ontem de
manhã; e foi aqui que se acercou de mim o adivinho e foi aqui que ouvi, pela
primeira vez, o grito que acabei de ouvir, o grande grito de socorro.
Ó homens
superiores, era a vossa miséria que me profetizava, ontem de manhã, aquele
velho adivinho –
- era para a
vossa miséria que, tentando-me, queria arrastar-me: ‘Ó Zaratustra’, falou-me,
vim para tentar-te e induzir-te ao teu derradeiro pecado.’
Ao meu
derradeiro pecado?”, exclamou Zaratustra, rindo, furioso, das suas próprias
palavras. “O quê, afinal, me ficou reservado como meu derradeiro pecado?”
- E, mais uma
vez, absorveu-se Zaratustra em si mesmo e voltou a sentar-se na grande pedra e
refletiu. De repente, levantou-se num pulo –
“Compaixão!
Compaixão pelo homem superior!”, exclamou; e seu semblante converteu-se em
bronze. “Pois muito bem! Isso – já teve o seu tempo!
O meu sofrimento
e a minha compaixão – que importam? Viso, acaso, à felicidade? Eu vivo à minha
obra!
Pois muito bem!
O leão chegou, os meus filhos estão próximos, Zaratustra amadureceu, a minha
hora chegou: -
Esta é minha
manhã, o meu dia raiou; sobe, agora, sobe no céu, ó grande meio-dia!” - -
Assim falou
Zaratustra, e abandonou sua caverna, ardoroso e forte, como um sol matinal
surgindo detrás de escuros montes.
[1] Há, nesse sentido, um popular provérbio alemão: “Ehen werden im
Himmel geschlossen”, “os casamentos são decididos no céu”. (N. do T.)
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