terça-feira, 14 de outubro de 2025

Friedrich NIESTZSCHE: Vontade de Potência

 



Petrópolis – RJ Vozes 2011

Síntese: Paolo Cugini

Digitação: Jaciara Souza Pereira

                              

 Estudos e Fragmentos

                             Esboço de um Prólogo  

As grandes coisas exigem silêncio, ou que falemos com grandeza; com grandeza significa: com cinismo e inocência ([¹ Nietzsche não emprega aqui termo cinismo na acepção pejorativa comum, mas no sentido filosófico-ético do desprezo ás convenções da opinião pública e moral esta. Esta acepção é a decorrente da Escola de Antístenes, ou Escola Cínica. Ao jogar juntos os dois vocábulos – “cinismo e inocência” – Nietzsche caracteriza, de antemão, seu espírito dialético e polêmico: falar com cinismo significa sem se preocupar com as convenções. E com inocência significa sem segundas intenções, com clareza, pureza e dignidade.])

Narro aqui a história dos dois séculos que virão. Descrevo o que virão, o que não mais deixará de vir: a ascensão do niilismo. Desde já esta página da história pode ser contada: por que , no caso presente, é a própria necessidade que a produzirá. O futuro fala desde já pela voz de cem signos, fatalidade anuncia-se em toda a parte; para entender esta música do futuro, todos os ouvidos já estão atentos. A civilização europeia agita-se desde muito sob uma pressão que vai até a tortura, uma angustia que cresce em cada década, como se quisesse provocar uma catástrofe: inquieta, violenta, arrebatada, semelhante a um rio que quer alcançar o termino de seu curso, que não reflete mais, que teme até refletir.

Quem toma aqui a palavra nada mais fez, até o presente, que meditar e recolher-se como filósofo e como solitário por instinto, que encontrou proveito fora da vida, apartado dos homens, na paciência , na contemplação, no retiro; qual um espírito audaz e temerário que várias vezes se descaminhou pelos labirintos do futuro, qual um pássaro profético que dirige seus olhos para trás quando descreve o que pertence ao futuro, o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que ultrapassou o niilismo, tendo-vivido em sua alma – e vendo atrás de si, abaixo de si, longe de si. ([²Nietzsche já se confessa niilista. Segundo sua análise, podemos dividir os niilistas em positivos e negativos, e a estes, subdividi-los em ativos e passivos. Assim o próprio Nietzsche é um “niilista positivo e ativo”, contrastando com os cristãos que são “niilistas negativistas passivos”, ou os socialistas da esquerda, que são “niilistas negativistas ativos”. Essa classificação é puramente exemplificativo. No entanto, convém esclarecer que o sentido de negativo ou positivo se relaciona com o impulso de vida ou morte, na atuação das doutrinas ou pessoas. Para Nietzsche, predominam os impulsos de morte sobre os de vida, tanto no cristianismo como no socialismo. A interpretação de Lichtenberger, que viu em Nietzsche um negativista ativo, não procede, não ser julgado do ponto de referencia cristão. ])

Não nos enganamos quanto  ao sentido do título que quer tomar este evangelho do futuro. Vontade de potência – Ensaio de uma transmutação de todos os valores, nesta formula expressa-se um contramovimento quanto á origem e á missão; um movimento que, num futuro qualquer que seja, substituirá o niilismo total; mas que admite sua necessidade, lógica e psicológica: que absolutamente virá depois dele e por ele. Por que se impõe desde já a vinda do niilismo? Porque precisamente foram os valores, predominantes até o presente, que no niilismo alcançaram as últimas consequências; porque o niilismo é o último limite lógico dos grandes valores e de nosso ideal; porque precisamos transportar o niilismo para compreendermos o verdadeiro valor dos “valores” do passado... Não importa qual seja esse movimento, dia virá em que teremos necessidade de valores novos...(pag. 135 e 136)

                                           Livro primeiro

                                    O niilismo europeu      

Um plano

([¹ Para Nietzsche o pessimismo é também uma condição do predomínio dos impulsos de morte. A palavra é moderna e a acepção de Nietzsche não é de Coleridge, e sim a de Schopenhauer levanmente modificada. Não é primeiramente a disposição de espírito que consiste em ver o lado mau das coisas de preferência aos bons, nem um desejo do que os acontecimentos se processem desfavoravelmente, nem a acepção de que a vida é somente dor e, o prazer, a cessação desta. Nietzsche, no aforismo n. 16, define a acepção que aceita. Pessimismo é a disposição de espírito para ver o predomínio da dor sobre o prazer ou vice-versa (hedonismo). Neste caso, o pessimismo é a o prelúdio do niilismo. As outras acepções de Nietzsche acerca do pessimismo são expressas nos aforismos seguintes.]) Vede que surge a contradição entre o mundo que veneremos e o mundo que vivemos, que somos. Resta-nos: ou suprirmos nossa veneração ou suprimo-nos. O segundo caso é o niilismo.

O niilismo que ascende em teoria e na pratica. Derivação viciosa deste (pessimismo, suas espécies: prelúdio do niilismo, embora inútil.

O cristianismo que sucumbe ante sua moral. “Deus é a verdade”, “Deus é o amor”; “Deus justo”. O maior acontecimento – “Deus morreu” – surdamente pressentido.

A moral, quando privada de sua sanção, não mais se sustém. Conclui-se por deixar cair a interpretação moral (mas o sentimento ainda está saturado dos resíduos da escala cristã de valores).

Foi sobre julgamentos morais que até o presente repousou o valor, antes de tudo o valor da filosofia (da “vontade do verdadeiro”). (O ideal popular do “sábio”, do “profeta”, do “santo”, caiu em desuso.)

Tendências niilistas nas ciências naturais (“absurdos”); causalismo, mecanicismo. A submissão ás leis é um intermédio, um resíduo.

Igual em política: falta a crença no justo direito, a inocência; reina a mentira, sujeição ao momento que passa.

Identicamente na economia política: supressão da escravatura, ausência de um casta redentora, de um justificador – vinda do anarquista. “Educação?”

Análogo na história: o fatalismo, o darwvinismo; a última tentativa de interpretá-la num sentido razoável é divino malogrou-se. (Também  aqui o fenomenalismo: o caráter como máscara: não há fatos.) A sentimentalidade diante do passado: não se suportaria a biografia a biografia! ([² Biografia, aqui, para Nietzsche, é a narrativa da vida, das ações e dos trabalhos de uma determinada personagem histórica, quando orientada pelo romantismo, no qual a exaltação da personagem era uma negação da realidade. Para a história, a biografia é um auxiliar poderoso. No momento, porém, em que o niilismo predomina, em que o realismo se impõe na arte, a biografia é inaceitável no estilo clássico, tanto dos “bolandistas”, dos “hagiógrafos” como no das famosas “galerias de homens célebres”, tão abundantes nos três primeiros quartéis do século XIX. A biografia moderna afasta-se do estilo romântico, sem ser friamente realista. A tendência predominante é fazer do biografado um ponto de referencia á sua época, tornando a personagem mais universal, sem desumanizá-lá.])

O mesmo na arte: o romantismo e seu contragolpe ([³ O contragolpe é o realismo, dominante no fim do século XIX.]) (a repugnância ao ideal romântico e sua mentira). Este é moral, tem o sentido de uma grande veracidade, mas é pessimista. Os “artistas” puros (indiferentes em face do assunto). (Psicologia de confessar e psicologia de puritano, duas formas do romantismo psicológico: mas também o seu oposto, a tentativa de observar “o homem” do ângulo puramente artístico – ainda não se ousa ali a apreciação contraria!)

Todo o sistema europeu das aspirações humanas tem consciências de seu absurdo, ou melhor, de sua “imoralidade”. Probabilidade de um novo budismo. O maior perigo. “Quais as relações entre a veracidade, o amor, a justiça e o mundo verdadeiro?”

Não existe nenhuma!

I.                    Niilismo

Niilismo, uma condição normal. -  Niilismo: falta-lhe a finalidade: a resposta á pergunta “Para quê?” Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam.

pode ser indício de força, pode o vigor do espírito aumentar até parecerem impróprios os fins que até então desejava alcançar (“convicções”, “artigos de fé”) (porque a fé expressa geralmente a necessidade de condições de existência, a submissão á autoridade de certa ordem de coisas que prospere e desenvolva um ser, proporcionado-lhe a aquisição da potência...); por outra parte, o indicio de força, insuficiente para erigir a si mesma uma finalidade, uma razão de ser, uma fé

alcança o máximo de sua força relativa como forca violenta de destruição: como niilismo ativo. Poderíamos dar como seu oposto o niilismo fatigado que não mais ataca: a mais conhecida de suas formas é o budismo, que é niilismo passivo, como sinal de fraqueza; atividade do espírito pode estar fadigada, esgotada, de tal forma que os fins e valores preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousa toda cultura sólida) se descomponha, e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma desagregação...; que tudo o que alivia, cura, tranquiliza, atormenta, venha em primeiro plano, sob roupagens diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas etc.

o niilismo representa um estado patológico intermediário (patológica é a desmedida generalização, a conclusão que não tende a nenhum sentido): ou porque as forças produtivas ainda não estejam suficientemente sólidas, ou porque a decadência ainda hesitante não tenha descoberto seus meios.

Condição desta hipótese. – Que absolutamente não existe verdade; que não há uma modalidade absoluta das coisas, nem “coisas em si ([4 Neste caso, o sentido de “coisa em si” é o metafísico (Ding na Sich), pelo qual uma coisa subsiste em si mesma sem supor outra coisa, segundo o conceito kantiano e não no conceito realista vulgar da existência fora da representação. Mas Nietzsche, em negando a “coisa em si”, nega o conceito ôntico, o noumeno da acepção pós-kantiana, que afirma uma “existência” absoluta, fora da relação dialética, em movimento. Nietzsche aceita somente a relação trágico-dialética das coisas, em seu movimento de contradição, como já expusemos no prólogo.]). Isto propriamente nada mais é que niilismo, e o mais extremo niilismo. Ele faz consistir o valor das coisas precisamente no fato de que nenhuma realidade correspondente nem correspondeu a tais valores, os quais são nada mais que um sintoma de força por parte dos que estabelecem escalas de valor, uma simplificação para conquistar a vida.

A pergunta do niilismo “para que?” vem do uso, até hoje dominante, graças ao qual o fim parecia fixado, dado, exigido de fora – quer dizer, por alguma autoridade supra-humana. Quando desaprenderam a crer nessa autoridade, procuraram, segundo uso antigo, outra que sou soubesse falar a linguagem absoluta e ordenar desígnios e encargos. A autoridade da consciência é agora, sobretudo, uma compensação para a autoridade pessoal (quanto mais a moral se emancipa da teologia mais se torna imperiosa).

Ou então é a autoridade da razão. Ou o instinto social (o rebanho). Ou ainda a história com seu espírito imanente, que tem seu fim em si própria, e á qual podem confiadamente se entregar. Desejariam desviar o querer, a vontade de um objetivo, o risco que poderiam correr ao marcar uma finalidade para si mesmos; desejariam desobrigar-se da responsabilidade (aceitariam o fatalismo). Enfim: a felicidade, e, com um pouco de “tartufismo”, a felicidade do maior número.

Dizem:

É de todo desnecessário um determinado;

É impossível prever esse fim.

Agora quando a vontade seria necessária em sua mais forte expressão, é justamente quando é mais fraca e mais pusilânime. Desconfiança absoluta quanto á força organizadora da vontade de conjunto.

Época em que todas as apreciações “intuitivas” vêm, uma após outra, em primeira categoria, como se pudéssemos obter uma direção por intermédio delas, e como se dessa direção nos víssemos privados se procedêssemos de outra forma.

“Para quê?” – Exige uma resposta 1) da consciência, 2) do instinto de felicidade,3) do “instinto social” (rebanho), 4) da razão (“espírito”), suposto que não estejamos obrigados a querer, a fixar-nos um motivo.

Depois sobreveio o fatalismo: “absolutamente não há resposta”, mas “para alguma parte estamos indo”, “é impossível querer um fim” – com resignação... ou revoluta...Agnosticismo em relação á finalidade.

Depois sobreveio a negação considerada como explicação da vida: a vida considerada como algo que se concebe sem valor e que se acaba por suprimir.

A mais geral característica dos tempos modernos: o homem desmereceu, ante seus próprios olhos, infinitamente em dignidade. Foi durante muito tempo o centro e o herói trágico da existência, em geral; depois se esforçou ao menos em afirmar seu parentesco com a porção decisiva da existência que possuía valor por si mesma – como fazem todos os metafísicos que querem manter a dignidade do homem, com a crença de que os valores morais são valores cardeais. Aquele que abandonou a Deus pretende-se com redobrada severidade á crença na moral. (pag. 137, 138,139,140, 141 e 142)

II.                  Para uma crítica da Modernidade

Renascimento e reforma. –Que demonstra o Renascimento? Que o reino do “individuo” tem seus limites. A dissipação é demasiadamente grande, não há possibilidade de reunir, de capitalizar, e o esgotamento sobrevém. São épocas em que tudo se desperdiça, em que até se malgasta força que deveria servir para ajuntar, para capitalizar, para acumular riquezas sobre riquezas...Até os adversários de tais movimentos são forçados e a praticar o esbanjamento insensato de forças: esgotam-se logo, usam-se e esvaziam-se.

Possuímos, na Reforma, a correspondência desordenada plebeia da Renascença italiana, movimento oriundo de impulsos similares, com a diferença que, no norte, ainda em atraso e vulgar, tiveram de se revestir de um disfarce religioso – a noção de existência superior não tinha ainda se afastado da noção de vida religiosa.

Na reforma, o individuo também quer alcançar a liberdade; “cada um, seu próprio sacerdote”, eis simplesmente a fórmula de libertinage. Na verdade, duas palavras bastam – “liberdade evangélica” – para que todos os instintos, que tinham motivos de permanecer secretos, se desencadeassem como cães selvagens; os mais brutais apetites tiveram de súbito a coragem de se manifestar, tudo parecia justificado...Abstinham-se de compreender qual era a liberdade que no fundo sonhavam, fechavam os olhos diante de si mesmo... Mas fechar os olhos e umedecer os lábios com discursos exaltados não impedia que estivessem as mãos e tomassem o que havia para se tomar, e fizessem do ventre o deus do “livre evangelho”, e impulsionassem todos os instintos de vingança e de ódio para satisfazerem-se num furor insaciável...Isso durou certo tempo; depois sobreveio o esgotamento, tudo semelhante ao que se dera no meio-dia europeu; e lá, também, uma espécie vulgar de esgotamento, um universal ruere in servitium... Então sobreveio o século indecendente da Alemanha...(pag. 160 e 161)    

Crítica do homem moderno.- “O homem bom” foi corrompido e seduzido pelas más instituições (os tiranos e os padres); a razão constituída em autoridade; a história que sobrepuja os erros; o futuro considerado como um progresso ([²² Uma das características do fim de século foi esta crença no progresso indefinido da humanidade, que chegou a ser um verdadeiro postulado.]); o estado cristão (“o Deus dos exércitos”); o instinto sexual cristão (em outras palavras, o casamento); o reino da “justiça” (o culto da “humanidade”); a “liberdade”. A atitude romântica do homem moderno – o homem nobre (Byron, Victor Hugo, George Sand); a nobre indignação; a santificação pela paixão (como verdadeira “natureza”); colocar-se ao lado dos oprimidos e dos deserdados – divisa dos historiadores e dos romancistas – os estoicos do dever; o “desinteresse” considerando como arte e conhecimento; o altruísmo como espécie mais mentirosa do egoísmo (utilitarismo), o mais sentimental egoísmo.

Tudo isso cheira a século XVIII. Mas este possuía qualidades que não foram transmitidas: despreocupação, jovialidade, elegância, clareza intelectual; o “tempo” do espírito transformou-se; o gozo que forneciam a sutileza e a clareza do espírito é substituído pelo gozo da cor, da harmonia, do conjunto, da realidade etc. sensualismo nas coisas do espírito. Em suma, é o século XVIII de Rousseau.

A indisciplina do espírito moderno em toda espécie de ouropéis morais. A palavras pomposas: tolerância (pela “incapacidade de dizer sim ou não”); amplidão de simpatia (um terço de indiferença, um terço de curiosidade, um terço de irritabilidade doentia); a objetividade (falta de personalidade, falta de vontade, incapacidade de “amar”); a “liberdade quanto á regra (romantismo); a “verdade” em face da mentira e da falsificação (naturalismo); o “espírito cientifico” (o documento humano: isto é, o romance-folhetim e os apêndices – em lugar da composição); a “paixão”, atuando em lugar da desordem e da intemperança; a “profundidade”, atuando em lugar do caos e da babel dos símbolos.

Os obstáculos mais favoráveis e os remédios contra a modernidade:

Serviço militar obrigatório, com guerras verdadeiras que façam cessar toda espécie de brincadeiras;

Estreiteza nacional (que simplifica e concentra);

melhor nutrição (a carne);

Espaço  mais vasto e salubridade das moradias;

Predominância da fisiologia sobre a teologia, a moral, a economia e a política;

Severidade militar nas exigências e na pratica dos “deveres” (não se elogia mais...)

Não nos devemos deixar enganar pelas aparências: esta humanidade visa menos ao “efeito”, mas da todas as outras garantias de duração; seu passo é mais lento, mas sua medida é muito mais rica. A saúde torna-se melhor, reconhecemos as verdadeiras condições da força do corpo e criamo-las a pouco e pouco; o “ascetimo” é ironizado. É o temor dos extremos, certa confiança no “caminho reto”, nada de exaltação, necessidade momentânea de habituar-se aos valores mais estreitos (como “pátria”, “ciência” etc.).

Mas o conjunto da imagem prestar-se-ia ainda a equívocos – isso tanto poderiam ser movimento ascendente como um movimento decrescente da vida. (pag. 173, 174e 175)

                                            Livro segundo 

                             Crítica dos valores superiores  

I.                    Religião como expressão da decadência

Considerações gerais

Da origem da religião. – Da mesma que o homem vulgar imagina ainda hoje que a cólera é a causa de seu arrebatamento; o espírito, a causa do pensamento; a alma, a causa do sentimento; em suma, da mesma forma que se admite ainda, inconsideradamente, inúmeras entidades psicológicas como causas, igualmente, ainda na mais ingênua escala social, o homem interpreta os fenômenos com ajuda de entidades psicológicas personalizadas. Os estados de alma que lhe pareciam estranhos, arrebatadores, apaixonantes, considerava-os obsessões, encantamentos provocados pelo poder de alguém. (é assim que o cristão, hoje, a mais ingênua e atrasada categoria humana, condiciona a esperança, a tranquilidade, o sentimento de “redenção” a uma inspiração psicológica de Deus. Por ser o tipo essencialmente sofredor e inquieto, a quietude, a felicidade, a resignação parecem-lhe como algo de estranho que necessita de uma explicação.) entre as raças de grande vitalidade, inteligentes e fortes, é o epilético que desperta mais comumente a convicção de que existe a intervenção de uma potência estranha; mas toda espécie de sujeição da mesma ordem, por exemplo: o constrangimento que se nota no entusiasmo, no poeta, no grande criminoso, nas paixões como o amor e o ódio, arrasta á invenção de potências extra-humanas. Concretizam o estado de alma em uma única pessoa, e pretendem que, quando se nos manifesta, é por influência dessa pessoa. Em outras palavras: na formação psicológica de Deus, um estado, para ser o efeito de alguma coisa, é personificado. Contudo, a lógica psicológica diz assim: o sentimento de potência, quando subitamente se apossa do homem e o subjuga – é o caso de todas as grandes paixões – desperta certa dúvida quanto á capacidade da pessoa: o homem não ousa imaginar que é a causa desse sentimento – imagina uma personalidade mais forte, uma divindade que o substitui. (pag. 203 e 204). A origem da religião encontra-se, portanto, nos extremos sentimentos de potência que surpreendem o homem por seu caráter estranho; e, semelhante ao doente que ao sentir estranho torpores em um de seus membros daí concluísse que sobre ele outro homem estivesse deitado, o ingênuo homo religiosus se dissocia em diversas pessoas. A religião é um caso de “alteração de personalidade”, espécie de sentimento de terror e de medo diante de si mesmo...Mas, ao mesmo tempo, extraordinário sensação de felicidade e de superioridade. Nos doentes, a impressão da saúde basta para que creiam em Deus, na influencia de Deus. Os estados de potência inspiram  no homem a sensação de que ele é independente da causa, que é irresponsável: sobrevêm sem serem desejados, logo não somos os autores... A vontade não libertada (isto é, a consciência de uma mutação em nós, sem que a quiséssemos) exige urna vontade estranha.

O homem não ousou atribuir a si mesmo todos os momentos surpreendentes e fortes de sua vida; imaginou que esses momentos eram “passivos”, que os “sofria”, e a eles estava “subjugado”...A religião é um produto da dúvida quanto á unidade do indivíduo, uma alteração da personalidade... a proporção que tudo quanto é grande e forte foi sendo considerado sobre-humano e estranho pelo homem, este foi se amesquinhando e esperou as duas faces em duas esferas absolutamente diferentes, uma desprezível e fraca, outra forte e surpreendente, chamado á primeira “homem”, á segunda, “Deus”. (pag.204 e 205)

E portou-se assim quase sempre; no período da idiossincrasia moral, não considerou como “desejadas”, como “obra do individuo”,suas sublimes condições morais. O mesquinha e fraca, a que chama homem, outra sobrenatural, a que chama Deus (Salvador, Redentor)...

A religião amesquinhou o conceito “homem”; sua extrema conclusão é que tudo quanto é bom, grande, verdadeiro, permanece sobre-humano e só nos é dado pela graça...

O homem não se conheceu sob o aspecto fisiológico ao longo da cadeia de sua vida, que atravessa milhares de anos: não se conhece nem ainda hoje. Saber, por exemplo, que possuímos um sistema nervoso (não uma “alma”) ainda é privilegio de homens instruídos. Mas, neste ponto, o homem não se contenta em não saber. É indispensável que sejamos bastante humanos para dizer: “é uma coisa que não sei”, para conceder-nos nossa ignorância.

Se acaso alguém sofre, ou se está de bom humor, não duvida encontrar a razão, bastando procurá-la. Por esse motivo procura-a...Mas, na realidade, não pode encontrar a razão, porque nem suspeita onde deverá procurá-la...Que sucede, então? Julga as consequências como causa: se, por exemplo, empreende uma obra com bom humor (na verdade empreendida porque o bom humor dá coragem para empreendê-la) e ela surte bom êxito, decorre do mesmo de que depende o bom humor da coordenação feliz das forças e sistemas fisiológicos. (pag. 205)

Quando não está passando bem; não diminui, consequentemente, seus cuidados, seus escrúpulos, e suas autocríticas... Na verdade, o homem crê que o mau estado em que se encontra é decorrente de seus escrúpulos, de seus “pecados”, de “sua crítica pessoal”...

Mas se restabelece, muitas vezes após um estado de prostração e de profundo esgotamento. “como é possível que eu sejaa tão livre, tão libertado? É um milagre. Só Deus podia fazê-lo por mim:” conclusão: “Ele perdoou meus pecados...

Podem deduzir daí uma pratica: para provocar sentimentos de pecado, para preparar a contradição, é indispensável pôr o corpo em estado doentio e nervoso.

O método para atingi-lo é conhecido. Porque, na verdade, não se suspeita da lógica do fato: dispõem de uma interpretação religiosa para a maceração da carne. Esta se apresenta como o escapo por excelência, desde que não seja um meio para possibilitar a indigestão doentia do arrependimento (a “ideia fixa” do pecado, a hipnotização da galinha pelo traço de giz que é o “pecado”).

A mortificação do corpo prepara o terreno necessário para uma serie de “sentimentos de culpa”; isto é, um sofrimento geral que deseja ser esclarecido...

Por outro lado, é igualmente deduzível o método da “redenção”; provocaram-se todas as devassidões do sentimento pelas preces, pelos movimentos, pelas atitudes, pelos sermões – o esgotamento daí decorre, repentino amiúde, e amiúde de forma epiléptica. E – após o estado de sonolência profunda, surge a aparência da cura – em linguagem religiosa: a “redenção”.

Os grandes eróticos do ideal, os santos da sensualidade, transfigurada e incompreendida os apóstolos típicos do “amor” (como Jesus de Nazaré, São Francisco de Assis, São Francisco de Paula), neles o instinto sexual se equivoca e se afasta por ignorância, até serem forçados a satisfazerem-se por meio de fantasmas: “Deus”, o “homem”, a “natureza”. Essa satisfação, contudo, não é somente aparente: na verdade se realiza entre os extáticos da união mística, embora afastada da vontade e de “compreensão”, não sem que seja acompanhada de sintomas fisiológicos da sociedade sexual mais física e mais consentânea com a natura.

Antigamente consideravam os estados mórbidos – consequências do esgotamento fisiológico -, por serem ricos em coisas súbitas, terríveis, inexplicáveis e incalculáveis, como mais importantes que os estados de saúde e suas consequências. Tinham medo: admitiam a existência de um mundo superior. Consideravam-se responsáveis do nascimento de dois mundos, sombra e sonho, sono e noite, os temores inspirados pela natureza. Impunha-se antes de tudo observar desse ângulo os sintomas de esgotamento fisiológico. A disciplina que as antigas religiões verdadeiro ramente impõem aos fieis cria o estado de esgotamento, próprio para gerar tais coisas na consciência...acreditavam ter penetrado numa esfera superior, onde tudo cessava de ser conhecido. A aparência de um poder superior...

O sono como consequência de todo esgotamento. O esgotamento como consequência de toda excitação desmedida. A necessidade do sono, até a divinação e adoração da ideia do sono, encontra-se em todas as religiões e filosofias pessimistas.

O esgotamento é neste caso, esgotamento de raça: o sono considerado psicologicamente é apenas o símbolo da necessidade de repouso mais profunda e mais perdurável... In praxi, aqui age a morte como sedutora, acobertado por seu irmão, o sono...

Todo o treino cristão da penitência e da redenção pode ser considerado como uma loucura circular, provocada arbitrariamente: bem entendido, a esta somente se pode fazer nascer entre indivíduos já predestinados, isto é, entre os que têm disposições mórbidas.

Não poder libertar-se de uma experiência é já um sinal de decadência.

O reabrir sempre as velhas chagas, o espojar-se no desprezo de si mesmo e da contrição, é uma doença a mais, da qual nunca sairá a “salvação da alma”, mas somente uma doença...

Essas “condições de salvação”, no cristão, não são mais que variações do mesmo estado doentio – a interpretação da crise epilética sobrevinda por uma fórmula particular, determinada não pela ciência, mas pelas ilusão religiosa.(pag. 205, 206,  207  e 208)

Quando é doente, a própria bondade reveste-se de caráter doentio...

Consideramos agora uma grande parte do aparelho psicológico do qual se serviu o cristianismo entre as formas da histeria e dos fenômenos epileptiformes.

A prática da cura da alma deve ser restabelecida em base filosófica: o “remorso” é, por si mesmo, um obstáculo á cura – é preciso que se busque contrabalançar tudo com atos novos, a fim de escapar, tão rápido quanto possível, ao langor provocado pela tortura que infringimos a nós mesmos...Dever-se-ia fazer cair no descrédito, como prejudiciais á saúde, os exercícios puramente psicológicos preconizados pela Igreja e pelas seitas... Não se cura um doente com preces e conjurações de maus espíritos: psicologicamente, os estados de “tranquilidade” que se produzem sob tais influencias estão longe de inspirar confiança.

Sentimo-nos bem quando nos rimos da seriedade e do ardor com que nos hipnotizou qualquer acontecimento de nossa existência, quando o remorso nos faz experimentar algo que se assemelhe ao espanto do cão que morde uma pedra – quando temos vergonha de nos arrepender.

A prática que utilizamos até o presente, puramente psicológica e religiosa, tendia somente á transformação dos sintomas: considerava restabelecido aquele que se currasse ante a cruz, e jurasse transformar-se em homem bom...Contudo, o criminoso que se agarra ao seu destino, com uma espécie de gravidade lúgubre, e não renega o ato praticado, possui maior saúde de alma...

Os criminosos, com os quais Dostoiévski vivia na prisão, eram todos de natureza indomada, - não valiam cem vezes mais que o cristão de coração “sensível”? (pag. 208)

Crítica do cristianismo

Para a história do cristianismo

O sacerdócio judaico soube apresentar tudo o que ele exigia, como se fosse preceito divino, como obediência a mandamentos divinos, e também introduzir tudo o que servia para conservar Israel, para lhe facilitar a existência (por exemplo, um conjunto de práticas religiosas: a circulação, o sacrifício, como centro da consciência nacional), não como obra da natureza, mas como obra de “Deus”. Esse processo continua; dentro do judaísmo, desde que não se sentiu mais a necessidade das “práticas religiosas” (como baluarte contra o exterior), podiam conceber uma espécie sacerdotal de homens que se comportaria como a “natureza nobre” em face da aristocracia; um caráter sacerdotal da alma, sem castas e de qualquer maneira espontâneo, que, para se diferenciar fortemente de seu oposto, concederia importância não ás “práticas religiosas”, mas aos sentimentos...

No fundo, tratava-se de fazer vingar, de novo, certa categoria de almas: era de qualquer maneira uma insurreição popular no meio de um povo sacerdotal – movimento pietista que vinha de baixo (os pecadores, os publicanos, as mulheres e os doentes). Jesus de Nazaré era a palavra de ordem sob a qual se reuniam. E de novo, para poder crer em si mesmos, tiveram necessidade de uma transfiguração teológica; tiveram necessidade  do “filho de Deu”, nada menos que isso para obter confiança. E da mesma forma que os sacerdotes falsificaram completamente a história de Israel, retornam á mesma tentativa, para falsificar, para transformar toda a história da humanidade, no intuito de fazer aparecer o cristianismo como o acontecimento cardeal. Este movimento somente se poderia organizar sobre o terreno do judaísmo, do qual o traço capital era o de ter confundido a culpa e a desgraça e de transformar toda culpa em pecado ante Deus: o cristianismo eleva tudo isso á segunda potência. (pag. 216 e 217)

Os crentes têm consciência da dívida imensa que contrariam com o cristianismo, e daí concluem que seu promovedor é personagem de primeira ordem...A conclusão é errônea, mas é a conclusão típica de todos os veneradores. Sob o ângulo objetivo seria possível, primeiramente, que se enganassem acerca do quanto devem ao cristianismo: as convicções nada provam em favor do que estamos convencidos, - no caso das religiões, antes incitariam á suspeita em face da convicção... Em segundo lugar, seria possível que o que julgam dever ao cristianismo não poderia ser imputado ao seu autor, mas ao contrario, ao produto acabado, ao conjunto, á Igreja etc. A ideia de “autor” tem sentidos tão múltiplos que pode simplesmente corresponder á causa ocasional de um movimento: engrandecerem a pessoa do fundador, á medida que a Igreja cresceu; mas a ótica da veneração autoriza precisamente a concluir que em qualquer época aquele fundador foi algo de muito incerto e de indeterminado – sobretudo no inicio... Observem com que liberdade São Paulo trata do problema pessoal de Jesus! Quase chega a escamoteá-lo: Jesus é para ele alguém que está morto e que se reviu depois de sua morte, alguém que foi levado á morte pelos judeus... Para São Paulo, é um simples motivo: a música, ele próprio a compõe...

Os próprios cristãos portaram-se como os judeus; puseram na boca de seu mestre, para incrustá-la em sua vida, a doutrina que, segundo seu sentimento, era uma condição de existência e de inovação. Da mesma forma lhe devolveram toda a sabedoria dos provérbios – em suma, representaram sua própria vida como submissão, santificada pela propaganda. (pag. 217)

Pode-se ver em São Paulo  do que depende tudo: é pouca coisa. O resto é o desenvolvimento particular de certo tipo de santo, nos moldes do que consideravam sagrado.

Toda a doutrina do milagre, incluindo a ressurreição, é a consequência da glorificação da comunidade, a qual emprestou ao mestre suas próprias possibilidades, mas em grau superior dele derivou sua própria força.

O cristianismo é ainda possível em cada instante...Não está ligado a nenhum dos dogmas impudentes que se adornaram com seu nome: não tem necessidade nem da doutrina de um Deus pessoal, nem do pecado nem da imortalidade, nem da redenção, nem da fé: pode absolutamente dispensar a metafísica, e ainda mais o ascetismo e também uma “ciência natural” cristão... O cristianismo é uma “práxis” e não uma doutrina. Diz-nos como devemos proceder e não o que devemos cer.

Aquele que hoje disser: “não quero ser soldado”, “não me preocupo com tribunais”, “não reclamo o auxilio da polícia”, “não quero fazer nada que perturbe a paz interior” e “se devo sofrer, nada me conservará melhor a paz que o sofrimento”... será cristão.

Toda a doutrina cristã do que se deve crer, toda a “verdade” cristã, é apenas mentira. É exatamente o reverso do que queria, em seus primórdios, o movimento cristão.

O que é cristão no seio da Igreja é precisamente o que á primeira vista é anticristão: objeto e pessoas, em vez de símbolos; a história em lugar dos fatos eternos; fórmulas, ritos e dogmas, em lugar de uma prática da vida. A indiferença absoluta aos dogmas, ao culto, aos padres, á Igreja á teologia, eis o que é cristão. (pag. 218)

A prática do cristianismo não é uma coisa quimérica, tampouco a prática do budismo: é um caminho para alcançar a felicidade...([² Nietzsche não nega o valor da religião para a conquista da “felicidade” de “certa camada humana”. “Não devemos arrancar a crença dos pequeninos”, é uma frase nietzscheana. Assim como há homens que precisam crer na divindade, também há os que carecem de hipóteses cientificas. Em Filosofia geral exclamou: “Não temamos crentes, porque não há religião bastante para destruir a religião!... ‘Só a religião pode destruir a religião. Os exemplos dos ‘intermediários’”, dos desesperados, dos descrentes, é um estagio provisório. A dúvida é um tema nietzscheano. Esta permanecer longamente (o exemplo de Pascal), mas sempre há de se lhe sobrepor uma crença, um fé. E só esta dá o equilíbrio. Aos ativos, aos destemidos, aos que desejam navegar pelos mares do conhecimento, que sigam a rota de Nietzsche. Grandes são as aventuras e não poucos os sofrimentos. Mas os que carecem da paz de espírito, que busquem a fé. É o caminho da felicidade de que fala o aforismo.])

Jesus opõe a vida verdadeira, a vida segundo a verdade, á vida comum: nada é mais distante dele que a infantilidade do “São Pedro Eterno”, da eterna duração pessoal. O que ele combate é a avaliação espalhafatosa da “pessoa”: como se poderia afirmar que quisesse precisamente torná-la eterna?

Combate igualmente a hierarquia na comunidade: não promete qualquer retribuirão proporcional ao trabalho; como poderiam afirmar que ele pudesse falar em punição e recompensar num outro mundo!

O fundador do cristianismo teve de pagar bem caro sua insistência em se dirigir ás camadas mais baixas da sociedade e da inteligência judaicas. Elas recolheram as ideias segundo sua capacidade para compreendê-las... É uma verdadeira vergonha terem fabricado a história da salvação, o Deus pessoal, o salvador pessoal, a imortalidade pessoal, e ter guardado toda a mesquinharia da “pessoa” e da “história” em uma doutrina que nega a realidade de tudo quanto seja pessoal ou histórico... (pag. 219)

A lenda da salvação, em substituição ao simbólico “agora, e para toda a eternidade”, ao simbólico “aqui, e em toda a parte”; o milagre em substituição ao símbolo psicológico.

O cristianismo primitivo é a supressão do Estado: proíbe o juramento, o serviço militar, as cortes de justiça, a defesa pessoal e a defesa da comunidade, suprimiu a diferença entre cidadãos e estrangeiros e, da mesma forma, as castas...

O exemplo de Cristo: não reage aos que lhe fazem mal, não se defende. Faz mais: dá “a face esquerda”. (Á pergunta: “És tu o Cristo?” responde: “E desde então vereis o filho do homem sentado á direita da Força e vir nas nuvens do céu.”) Proíbe aos discípulos de defenderem-no; afirma-lhes que poderia ter socorro, mas que não o quer.

O cristianismo é também a supressão da sociedade: engrandece tudo quanto a sociedade despreza, viceja entre os difamados e os condenados, os leprosos de toda espécie, os pecadores, os publicanos, as prostitutas, a gentalha mais ignorante (os “pecadores”); despreza os ricos, os eruditos, os nobres, os virtuosos, os homens “direitos”. (pag. 220)

Cristianismo. – Um esforço ingênuo em direção a um movimento de paz búdica, jorrando de verdadeiro foco de ressentimento... mas retomado por São Paulo, que dele fez uma doutrina do mistério pagão, própria para se adaptar, enfim, a toda a organização do Estado...para guerrear, para condenar, para martirizar, para jurar, para odiar.

                    São Paulo apoiou-se na necessidade de mistério das grandes massas religiosamente agitadas: buscou a vítima, a fantasmagoria sangrenta que pudesse enfrentar as imagens dos cultos secretos; deus crucificado, cálice do sangue, união mística com a “vítima”.

Buscou a continuidade da existência depois da morte (existência bem-aventurada da alma individual redimida), que ele pôs em relação de causa com a vítima, pela ressurreição (segundo o exemplo de Dionísio, de Mitra, de Osíris).

Necessitava pôr em primeiro plano a ideia de falta e de pecado, não prática nova (como Jesus havia até mostrado e pregado), mas culto novo, fé nova, crença na metamorfose miraculosa (a “salvação” pela fé).

Compreendeu a grande necessidade do mundo pagão, e dos fatos da vida e da morte de Cristo construiu uma seleção absolutamente arbitrária, acentuando tudo de outra forma, deslocando em toda parte o centro de gravidade...anulou, por principio, o cristianismo primitivo...(pag. 234)

O atentado contra os padres e os teólogos atingiu, graças a São Paulo, um novo sacerdócio, uma nova teologia – uma casta reinante, e, também, uma Igreja.

O atentado desferido na exagerada importância que se emprestava á “pessoa” atingiu a crença da “personalidade eterna” (a preocupação da “salvação”...), portanto, a exageração paradoxal do egoísmo pessoal.

Aqui está o humor de tudo, um humor trágico:São Paulo restabeleceu, emprestando-lhe proporções imensas, o que cristo tinha justamente anulado com sua vida. Enfim, quando o edifício da Igreja foi terminado, sancionou até a existência do Estado.

O “cristianismo” tornou-se algo de fundamentalmente diferente do que fez e quis seu fundador. Foi o grande movimento antipagão da Antiguidade, formulado em utilizar a vida, a doutrina e as “palavras” do fundador do cristianismo.

Mas por uma interpretação absolutamente arbitraria, segundo o esquema das necessidades fundamentalmente diferentes, traduziram-no na linguagem de todas as religiões subterrâneas então existentes.

É a ascensão do pessimismo (enquanto Jesus queria trazer a paz e a felicidade dos cordeiros): e tal pessimismo é o dos fracos, dos vencidos, dos oprimidos, dos que sofrem.

Seus inimigos mortais são: 1) a força de caráter, o espírito e o gosto; a “mundanidade”; 2) a “felicidade” clássica, a leviandade e o ceticismo culto, a altivez dura, a devassidão excêntrica e a fria frugalidade do sábio, o requinte grego na atitude, na palavra e na forma. Seus inimigos mortais são os romanos, tanto quanto os gregos.

Tentativa do antipaganismo para encontrar fundamentos filosóficos e tornar-se aceitável: teve o faro de reaproximar-se das figuras ambíguas da cultura antiga, antes de tudo para descobrir Platão, esse anti helênico, esse semita por instinto... E também o estoicismo que é essencialmente obra dos semitas. (A “dignidade” olhada sob sua forma austera, considerada como lei, virtude como grandeza, autoridade, responsabilidade ante si próprio, suprema soberania pessoal – tudo isso é semita. O estoico é um xeique árabe envolto em cueiros e conceitos gregos.)

Um Deus morto por nossos pecados; uma salvação pela fé, uma ressurreição após a morte – esta é a moeda falsa do verdadeiro cristianismo, da qual devemos responsabilizar aquele desgraçado cérebro confuso (Pablo). A vida exemplar é feita de amor e de humanidade; em sua grandeza de coração não repleto o ser mais íntimo, formalmente renuncia fazer valer seu direito de defender-se, renuncia á vitória no sentido de triunfo pessoal: crê na bem-aventurança aqui embaixo, sobre a terra, apesar da miséria, das dificuldades e da morte; é conciliante e repele a cólera e o desprezo; não quer recompensas, não trava batalhas contra ninguém: é a maior anarquia intelectual e clerical; vida cheia de altivez sob o disfarce de obediência e pobreza.

Depois que a Igreja  se deixou arrebatar de toda pratica cristã, quando sancionou formalmente a vida dentro do Estado, aquele gênero de vida que Jesus combatera e condenara, foi forçada a colocar noutra parte o sentido do cristianismo: na crença de coisas incredíveis, no cerimonial das preces, das adorações, das festas etc.

A ideia do “pecado”, do “perdão”, da “punição”, da “recompensa”, tudo quanto não tinha nenhum papel e estava quase excluído do primeiro cristianismo, tudo isso foi posto imediatamente em primeiro plano.

Uma espantosa confusão de filosofia grega e de judaísmo: o ascetismo; os perpétuos julgamentos e as condenações; a hierarquia etc. (pag. 235 e 236)       

O ideal cristão

Os dois grandes movimentos niilistas: a) budismo; b) cristianismo. Este último só agora alcançou as condições de cultura em que pode cumprir seu destino primitivo – o nível 

Onde devemos colocá-lo onde se pode mostrar puro...É nosso privilegio vivermos na época da comparação, quando podemos revisar os acontecimentos como jamais foram revistos: somos em geral a consciência da história...Gozamos de outra maneira, sofremos de outra maneira: a comparação da multiplicidade insólita, tal é a nossa atividade instintiva... Compreendermos tudo, vivemos tudo, não albergamos em nós sentimos de inimizade...Que seja nossa vantagem ou não, nossa curiosidade apressada,quase terna, dirige-se sem temor ás coisas mais perigoras...

“Tudo está bem” – desgosta-nos ser negativos. Sofremos quando nos convertemos em bastante inteligentes para nos decidirmos contra algo...Em suma, somos nós, os sábios, os que melhor correspondemos hoje á doutrina de Cristo. (pag. 237 e 238)

O evangelho. – A nova de que a conquista da felicidade está aberta aos humildes, aos pobres, que basta libertar-se das instituições, da tradição, da tutela das classes superiores: neste sentido, a ascensão do cristianismo não é mais nem menos que a doutrina socialista por excelência.

Propriedade, bens, pátria, condição e casta social, tribunais – polícia, governo, igreja, instrução, arte, militarismo: tudo isso nada mais é que obstáculos á felicidade, erros e ciladas, obras do demônio, das quais o cristianismo anuncia o castigo – e mais, tudo isso é ainda tipicamente socialista.

No segundo plano a sublevação, a explosão da concentrada relutância contra os “senhores”, o instituto profundo da felicidade alcançado ao sentir-se liberto de tão duradoura opressão... (É geralmente o sintoma de que as camadas inferiores foram tratadas com demasiada humanidade, que elas começam já a sentir sobre a língua o gosto da felicidade que lhes está interdita.

Não é a fome que engendra as revoluções, é o fato de que no povo o apetite vem quando come... (pag. 250 e 251)

A moral como expressão de decadência

Nós, os hiperbóreos (prefácio)

A

Se na verdade somos filósofos, nós os hiperbóreos, parece-nos, no entanto, que somos diferentemente do que se  tem sido até aqui.

Não somos moralistas...Não acreditamos em nossos ouvidos quando ouvimos falar de todos os homens de outrora. “Eis o caminho da felicidade!” – É como esta frase que se precipitam todos sobre nós, com a receita nas mãos, a boca hierática cheia de unção.

“Mas que importa, a nós, a felicidade?” – respondemos com espanto. “Eis a felicidade!” – retomam os santos vociferadores endiabrados. “E eis a virtude, o novo caminho da felicidade!”... Mas, por favor, senhores. Credes porventura que nos inquietamos com vossa virtude! Por que nos pomos á parte, por que nos tornaríamos filósofos, rinocerontes, ursos da caverna, fantasmas? Não é para nos desembaraçarmos da virtude e da felicidade? Somos, por natureza, demasiadamente felizes, demasiadamente virtuosos, para não ver que existe uma pequena sedução no fato de ser filósofo: quer dizer, imoralista e aventureiro... Temos pelo labirinto uma curiosidade particular, e esforçamo-nos, por isso, em travar conhecimento com o Sr. Minotauro, do qual se contam tantas coisas perigosas.

Que nos importa vosso caminho que sobe, vossa corda que ajuda a sair! Que ajuda a obter a felicidade e virtude! A chegar até vós, temo-o bem... Querias salvar-nos por meio de vossa corda? E nós vos suplicamos insistentemente que vos enforqueis com ela!...

                                             B

Afinal de contas, para honrar a filosofia: é preciso, de início, enforcar os moralistas. Quando falam de felicidade e de virtude, atraem as mulheres velhas á filosofia. Observai o rosto de todos os sábios célebres, tais como existem há milhares de anos, são todos mulheres velhuscas, solteironas, mães para usar a linguagem de Fausto. “As mães! As mães! Como me fazem estremecer!” Fazemos da filosofia um perigo, transmudamos a ideia, ensinamos filosofia como um princípio perigoso para a vida: acaso saberíamos ajudá-la melhor? Para a humanidade uma ideia sempre valerá mais do que ela lhe custa. Se ninguém tem escrúpulos em sacrificar hecatombes á ideia de “Deus”, de “pátria”, de “liberdade”, se a história é a grande poeira que se faz em derredor dessa espécie de sacrifício – a preeminência da ideia de filosofia sobre semelhantes valores populares, tais como “Deus”, “pátria”, “família”, demonstra apenas que a filosofia custa mais caro – hecatombes ainda maiores?...Transmutação de todos os valores: garanto-vos que custará um bom preço.

  

                                 C

No inicio não falta bom humor: a seguir apresento coisas mais sérias. Por meio deste livro declaro guerra á moral e, de antemão, ocupo-me dos moralistas.

Já sabem que palavra preparei para luta, a palavra imoralista; conhecem igualmente minha fórmula “além do bem e do mal”. Tenho necessidade de fortes oposições, da força luminosa das ideias contrarias, para mergulhar no abismo de irreflexões e de mentiras que até o presente se chamou moral. Os séculos e os povos, sejam os primeiros ou os últimos, os filósofos e as velhotas – sobre este ponto são todos dignos uns dos outros. O homem foi até o presente o ser moral por excelência, um objeto de curiosidade sem-par – e, como ser moral, foi o mais absurdo, o mais mentiroso, o mais presumido, o mais leviano, o mais prejudicial a si mesmo, como o maior detrator da humanidade não poderia haver imaginado. A moral é a forma mais maligna da vontade de mentir, a verdadeira Circe da humanidade: é o que precisamente a tem corrompido. Não é o erro, como erro que, neste aspecto, me causa espanto; não é falta de “boa vontade”, de disciplina, de decência, de coragem intelectual que soemos há milhares de anos: é a ausência de naturalidade o fato espantoso de que a contranatureza tem sido venerada com as maiores honras, sob o nome de moral, e ficou suspensa, como uma lei, acima da humanidade. Como é possível que a humanidade não se tenha acautelado, após tanto tempo, da forma mais perigosa e inquietante do erro? Por que sou eu o primeiro a pô-la em guarda?...enganar-se de tal maneira, não tanto como individuo, nem tanto como povo, mas como humanidade! De que é isso sinal? De que se ensina a desprezar os instintos inferiores da vida, e a ver na mais profunda necessidade de crescimento vital no amor de si próprio, o mau principio, e na finalidade típica da regressão, na contradição dos instintos, no “altruísmo”, na perda do ponto de apoio, no despojamento da personalidade, no “amor ao próximo”, a verem tudo isto um valor superior, que digo! O valor por excelência.

Como? Estará a humanidade em decadência? Sempre esteve assim? O que é certo é que somente se ensinou como valores superiores os valores de decadência. A moral do esquecimento de si mesmo é a moral de regressão por excelência. Uma possibilidade fica ainda aberta: é que não é a humanidade que está em decadência, mas os donos dela!...E, com efeito, eis a minha proposição: os senhores, os condutores da humanidade foram decadentes: daí a transmutação de todos os valores no sentido niilista (de “outro mundo”...). Eles chamavam-se moralistas, quaisquer que fossem suas qualidades, filosóficas talvez, padres, profetas, videntes, santos: todos acreditavam quanto podiam na moral e estavam de acordo em uma coisa – tornar a humanidade “melhor”...

                                             D

Que pode exigir de si mesmo um imoralista? Qual será minha tarefa neste livro? Será talvez a de também tornar a humanidade “melhor”, mas em outro sentido, no sentido oposto: quero dizer á humanidade que se livre da moral, e sobretudo dos moralistas, fazer entrar na consciência dela sua perigosa espécie de ignorância... O restabelecimento do egoísmo humano!...([¹² Nietzsche reduz todos os instintos defensivos e positivos do homem ao egoísmo. A este reduz também os impulsos vitais. Nenhum ato bom ou mau pratico o homem que não seja decorrente de seu egoísmo. “Não há atos não egoísta”, dizia. Mas os impulsos de morte arrastam muitas vezes á destruição de si mesmo. Assim, para ele, o restabelecimento do egoísmo humano representa o predomínio, nos instintos, dos impulsos positivos, os impulsos de vida.]) (pag. 259, 260, 261 e 262) 

Crítica das virtudes de rebanho. –A inércia é ativa: 1) na confiança, porque a desconfiança necessita da tensão, da observação, da reflexão; 2) na veneração, onde o intervalo que supera da potência é grande e a submissão necessária; para não temer, ensaia-se amar, venerar e interpretar as diferenças de poder pelas diferenças de valor, de forma que as relações não revoltem mais; 3) no sentido da verdade: que é o verdadeiro? O que se baseia numa explicação que necessita um mínimo de esforço intelectual (ademais, a mentira é cansativa); 4) na simpatia: põe-se em nível igual ensaiar a experiência do mesmo sentimento, aceitar um sentimento que existe antes, que alívio! É algo de passivo em face da atividade que se garante, e utiliza sem cessar os direitos mais próprios da apreciação de valores: essa atividade não deixa repousar; 5) na imparcialidade e na frieza do julgamento: temem o esforço da paixão e preferem permanecer á parte, permanecer “objetivos”; 6) na lealdade: preferem obedecer a lei que criar outra, que manda a si mesmos e aos outros pelo temor de mandar; antes submeter-se que reagir; 7)na tolerância: o medo de exercer o direito de julgar.

A aparência hipócrita com que caíram todas as instituições civis como se fossem criações da moralidade, por exemplo, o casamento, o trabalho, a profissão, a pátria, a família, a ordem, o direito. Mas como todas elas foram fundadas em proveito da mais medíocre espécie de homens, para protegê-la contra as exceções e as necessidades das exceções, devemos considerar natural que estejam impregnadas de mentiras.

O espírito de campanário e bairrismo á desvalorização moral, com sua perspectiva do “útil” e do “nocivo”, têm seu lado bom; é a perspectiva necessária de um sociedade que não é capaz de perceber senão as consequências imediatas e próximas. O Estado e o político já necessitam de uma maneira de pensar preferentemente hipermoral: pois lhes é preciso calcular um melhor e mais complexo conjunto de efeitos.

Da mesma maneira, pode-se-ia imaginar uma economia universal que tivesse perspectivas tão longínquas que todas as suas exigências particulares parecessem, ao mesmo instante, injustas e arbitrarias.

A moral como meio de sedução. – “A natureza é boa porque um Deus sábio e bom é a sua causa. Quem é, portanto, responsável pela ‘corrupção dos homens’?”

“Os tiranos e os sedutores, isto é, as classes dirigentes – devemos aniquilá-las”. É a lógica de Rousseau (comparem-na com a lógica de Pascal, que daí deduz a conclusão do pecado original). É preciso também compará-la com a lógica análoga de Lutero. Nos dois casos, busca-se um pretexto para introduzir uma insaciável necessidade de vingança sob a forma de dever moral e religioso.

O ódio contra a classe dominante procura santificar-se... (a “culpabilidade de Israel”: a base do poder dos padres). Convém ainda compará-la com a lógica análoga  de São Paulo. É sempre a causa de Deus que serve de trampolim a essas reações, a causa do direito, da humanidade etc. no caso de Cristo, a jubilação do povo aparece como causa da execução; um movimento antissacerdotal desde o inicio. Nos antissemitas é sempre a mesma forma de orientação: prostrar o adversário com argumentos maiores, reservando para si o papel da justiça vingadora. (pag. 293 e 294)

O origem dos valores morais. – O egoísmo vale o que fisiologicamente vale aquele que o possui.

Cada individuo representa toda a linha da evolução (não somente, segundo o entende a moral, algo que começa com o nascimento); se representa a evolução ascendente da linha homem, seu valor é, efetivamente, extraordinários; e o cuidado que inspira a conservação e a proteção de seu crescimento pode ser extremo. (A inquietação da promessa do futuro que está nele dá ao individuo bem-nascido um extraordinário direito ao egoísmo.) Se representa, na evolução, a linha descendente, a decomposição, a enfermidade crônica, devemos atribuir-lhe pouco valor: e mais simples equidade determina que ele arrebate aos homens bem-nascidos o menos possível de espaço, de força e de sol. Neste caso a sociedade tem o direito da opressão ao egoísmo o egoísmo algumas vezes pode manifestar-se de maneira absurda, doentia, sediciosa): como se se tratasse de indivíduos ou de camaradas populares que inteiramente se estiolam e perecem. Uma doutrina e uma religião do “amor”, da opressão á afirmação de si, uma religião da paciência, da resignação, da ajuda mútua, em ação e palavras, pode ser de valor superior em semelhantes camadas, ETA aos olhos dos dominadores: porque elas reprimadas, até  aos olhos dos dominadores: porque elas reprimem os sentimentos de rivalidade, de ressentimento, de inveja, próprio dos deserdados, divinizam-lhes sob o nome de ideal da humanidade e da obediência o estado de escravidão de inferioridade, de pobreza, de doença, de sujeição. Isso explica por que as classes (ou raças) dominantes, assim como os indivíduos, têm mantido sem cessar o culto do altruísmo. O evangelho dos humildes, o “Deus na cruz”.

A preponderância das apreciações altruístas é consequência de um instinto em favor do que é malnascido. A mais profunda apreciação julga assim: “eu não valho grande coisa” – este é um julgamento puramente fisiológico, e mais exatamente: um sentimento de impotência, a falta de um grande sentimento afirmativo de potência (nos músculos, nos nervos, nos centros de movimento). A apreciação traduz-se, segundo a cultura especifica dessas camadas, em julgamento moral ou religioso (a preponderância dos julgamentos religiosos ou morais é sempre sinal de cultura inferior); ela busca os fundamentos nas esferas por onde a ideia de “valor” atingiu seu conhecimento. A interpretação pela qual o pecador cristão crê compreender a si mesmo é uma tentativa para encontrar justificada a falta de domínio e de confiança em si: gosta mais de sentir-se culpado do que julga-se vãmente mau. É já um sintoma de decomposição ter necessidade de uma interpretação desse gênero. Em outros casos o deserdado não busca a razão de seu infortúnio em sua “culpa”, como faz o cristão, mas na sociedade, como os socialista, o anarquista, o niilista – ao considerar sua existência como algo de que alguém deve ser a causa, estes se aproximam do cristão, que também crê ser possível suportar melhor seu mal-estar e sua má conformação, desde que delas possa tornar alguém responsável. O instinto da vingança e do ressentimento aparece aí, nos dois casos, como meio de suportar a existência, como uma espécie de instinto de conservação: da mesma forma que a preferência outorgada á teoria e á prática altruístas. O ódio do egoísmo, quer contra o próprio (no cristão), quer contra o de outrem (no socialista) aparece assim como uma avaliação sob o predomínio da vingança; e, por outro lado, como uma astúcia do espírito de conservação entre os que sofrem pelo aumento de seus sentimentos de mutualidade e de reciprocidade...Afinal de contas, como já indiquei, essa descarga do ressentimento que consiste em julgar, em rejeitar e em punir o egoísmo (aquele que vos é próprio ou estranho), é ainda o instinto de conservação entre os deserdados. Em suma, o culto do altruísmo é uma forma especifica do egoísmo que se apresenta regularmente nas condições fisiológicas particulares. Quando o socialista exige, com uma bela indignação, a “”justiça”, o “direito”, os “direitos  iguais”, encontra-se somente o império de sua cultura insuficiente que não sabe compreender o porquê de seu sofrimento: por outro lado, é um prazer para ele, caso se encontrasse em melhores condições abster-se-ia de gritar assim: encontraria então seu prazer em outra parte. O mesmo se dá com o cristão: este condena, calunia e amaldiçoa o “mundo” – não excetua nem a si mesmo.

Mas isso não é razão para que tomemos a sério em suas gritarias. Nos dois casos, estamos ainda entre doentes a quem faz bem gritar, a quem a calúnia oferece um alívio. (pag. 311, 312 e 313)

                        Livro terceiro

Princípio de uma nova escala de valores

A vontade de potência como conhecimento

“Pensa-se, logo existe algo pensa”: a isto se reduz a argumentação de Descartes. Tal equivale aceitar de antemão por “verdadeiro a priori” nossa crença na ideia de substancia. Afirmar que, quando se pensa, é indispensável existir algo “que pensa” é simplesmente a articulação de um hábito que liga á ação um autor. Em suma, manifesta-se aqui um postulado lógico-metafísico – e não se verifica apenas... No caminho indicado por Descartes não se alcança uma certeza absoluta, mas unicamente o fato de uma crença forte.

Se a proposição for reduzida assim: “pensa-se, logo existem pensamentos”, resulta somente uma simples tautologia, e o que está justamente em dúvida, “realidade do pensamento” não é atingido – desta maneira, reconhece-se forçadamente a “aparência” do pensamento. Mas Descartes queria que o pensamento não somente fosse uma realidade aparente, mas um em si.

Mantenho também a fenomenalidade do mundo interior: que se nos torna sensível na consciência foi antes preparado, simplificado, esquematizado, interpretado, o verdadeiro processo da “percepção interior”, encadeamento das causas entre os pensamentos, os sentimentos, os desejos, entre o sujeito e o objeto, é-nos inteiramente oculto – e talvez nos sejam simples casos de imaginação. (pag. 339)

Esse “aparente mundo interior” é tratado da mesma forma e com os mesmos processos que o mundo “exterior”. Nunca topamos com “fatos”: o prazer e o desprazer são fenômenos tardios e derivados do intelecto...

A causalidade escapa-nos; é consequência da mais grosseira e mais espessa observação, o admitir entre as ideias, um laço imediato e casual, como o faz da lógica. Entre dois pensamentos estão todas as espécies de paixões que se chocam: mas os movimentos são tão rápidos que chegamos a desconhecê-los, a negá-los...

“Pensar” absolutamente não existe na forma como estabelecem os teóricos do conhecimento; é uma ficção absolutamente arbitraria, realizada separando um só elemento do processo geral, pondo á margem todos os outros; um arranjo artificial para facilitar a compreensão...

O “espírito”, algo que pensa: em caso de necessidade também o espírito absoluto, “o espírito puro” – este conceito derivado da falsa auto-observação que crê no processo que consiste em “pensar”, aqui se inicia a conceber um ato que não se produziu absolutamente: “pensar” é imaginar-se em segundo lugar um substratum, sujeito imaginário, onde cada ato desse pensamento tem sua origem e nada mais, o que significa que tanto a ação como a que age são simulados.

É escusado procurar o fenomenalismo em falsos caminhos: nada é fenomenal, ou mais exatamente, nada é tão ilusório como este mundo intimo que observamos como o famoso “sentido interior”.

Acreditamos que a vontade seja uma causa da tal forma que, segundo nossa experiência pessoal, supomos uma causa em tudo o que acontece isto é a intencao como causa do que acontece).

Cremos que o pensamento e pensamento, tais como sucedem em nós, encontram-se ligados por um encadeamento de causalidade qualquer: o lógico em particular, o que fala de casos que efetivamente nunca se passaram, habituou-se ao preconceito de crer os pensamentos ocasionam pensamentos. (pag. 340 e 341)

Cremos – e ainda creem nossos filósofos – que o prazer e o sofrimento provocam reações, e a finalidade deles é provocar reações. Há milhares de anos o prazer e o desejo de se subtrair ao desprazer foram aproveitados como verdadeiros motivos de qualquer ação. Com um pouco de reflexão podemos conceder que tudo se passaria assim, exatamente de acordo com o encadeamento de causas e efeitos, se os estados de prazer e de dor não mais existissem: e simplesmente se enganam se julgam que pouco importa o que ocasionam. São fenômenos secundários com outra finalidade além de provocar reações; são efeitos que fazem parte do processo de reação que normalmente decorre...

Em suma: tudo quanto se torna consciência é um fenômeno final, uma conclusão que nada origina; toda sucessão na consciência é absolutamente atomística – e ensaiamos compreender o mundo baseando-nos em concepções contrárias, como se nada fosse efetivo, nada fosse real, mas apenas o pensamento, o sentimento, a vontade!...

Sempre que existe uma certa unidade no agrupamento, consideram, sem nenhuma razão suficiente, o espírito como a causa dessa coordenação. Por que a ideia de um factum complexo seria uma das condições desse factum? Ou melhor, por que um factum complexo seria precedido da representação como causa?

Guardemo-nos de explicar qualquer finalidade útil pelo espírito: nenhuma razão existe para atribuir ao espírito a particularidade de organizar e de sistematizar.

O sistema nervoso possui um domínio muito mais extenso: o mundo da consciência é-lhe acrescentado. No processo real da adaptação e da sistematização, a consciência nenhum papel representa.

Nada mais errôneo que fazer dos fenômenos psíquicos e físicos as duas faces, as duas revelações de uma mesma substância. Dessa forma nada se explicará; a ideia de “substância” é absolutamente inutilizável quando se quer explicá-la. A consciência representa um segundo papel, indiferente quase, supérflua, destinada talvez a desaparecer e ser substituída por um automatismo completo. Se apenas observamos os fenômenos interiores, comparar-nos-emos aos surdos-mudos que, pelo movimento dos lábios, decifram as palavras que não ouvem. Das aparências do mundo interior deduzimos fenômenos, visíveis ou não, que perceberíamos se suficiente fossem nossos meios de observação, e que se chamam a corrente do sistema nervoso.

Para perceber este mundo interior, faltam-nos todos os órgãos sutis de maneira que ainda consideramos como unidade a complexidade múltipla, e concebemos uma causalidade quando permanece invisível toda a razão de movimento e de mutação – pois a sucessão dos pensamentos, dos sentimentos, é apenas o fato de sua visibilidade na consciência. Que essa sucessão tenha algo de semelhante com um encadeamento de casualidade, não nós é absolutamente verossímil; a consciência nunca nos oferece exemplos de causa e efeito.

 

Os grandes erros:

Exagero insensato na estimação da consciência; fazem desta uma unidade, um ser: “o espírito”, “a alma”, algo que sente, que pensa, que quer;

O espírito considerado como causa, notadamente em tudo quanto se manifesta finalidade, sistema, coordenação;

A consciência considerada como a forma mais alta que se possa alcançar, como a suprema espécie de ser, como “Deus”;

A vontade registrada em toda parte onde haja efeitos;

O “mundo-verdade” considerado como mundo intelectual, como acessível a partir dos fatos da consciência;

O conhecimento absoluto considerado como faculdade da consciência, em tudo onde haja conhecimento.

Consequências:       

Todo progresso reside no progresso para tornar-se consciente: todo recuo reside na inconsciência (tornar-se inconsciente foi considerado como uma queda, um abandono aos desejos dos sentidos – um embrutecimento); aproximamo-nos da realidade do “ser verdadeiro” pela dialética; dela nos afastamos pelos instintos, pelos sentidos, pelo mecanismo...; impulsionar o homem a fundir-se no espírito seria fazer dele um deus: espírito, vontade, bondade, unidade; todo o bem deve ter sua origem na espiritualidade, deve ser um fato da consciência; o progresso para melhor é somente o progresso para tornar-se consciente.(pag. 341e 342)

                                                  Livro quarto

                                               Disciplina e seleção

      O eterno retorno

Minha filosofia oferece o pensamento vitorioso que por fim prostrará vencida qualquer outra doutrina...É o grande pensamento seletivo: as raças que não suportarem estão condenadas; as que estiveram como o maior dos benefícios estão predestinadas para o domínio.

Uma modalidade de pensar e uma doutrina pessimistas, um niilismo extático, podem, em certas circunstancias, ser justamente indispensáveis ao filosofo: podemos usá-los como se fossem uma pressão e um malho formidável, e abrir o caminho a uma nova forma de vida, ou para inspirar, ao que degenera e definha, o desejo do fim.

Quero ensinar o pensamento que dará a muitos homens o direito á própria supressão, o grande pensamento seletivo.

A concepção do eterno retorno: as hipóteses que hão de ser verdadeiras se esse pensamento se verificar. O que dele decorre.

Como a concepção mais difícil: efeito provável, a menos que empreguemos medidas preventivas: quer dizer, a menos que todos os valores sejam transmudados. (pag. 447)

Meios de suportá-lo: transmutação de todos os valores. Não mais o prazer causado pela certeza, mas pela incerteza; e o “efeito”, mas a criação continua; não mais a vontade de conservação, mas a vontade de potência; não mais a expressão humilde “tudo é subjetivo” – mas “é também a nossa obra! Sejamos dela orgulhosos!”

Para que os homens possam suportar a ideia do eterno é mister que sejam livres da moral; que encontrem meios novos para combater a realidade da dor (deverão considerá-la como instrumento, como geradora do prazer; não há uma consciência que somasse o desprazer); o gozo que oferece toda espécie de incerteza, de tentativa, como contrapeso contra o fatalismo extremo; supressão de toda ideia de necessidade, supressão da “vontade”; supressão do “conhecimento em si”.

A maior elevação da consciência de força no homem: eis o que gera o super-homem.

Se o mundo tivesse um fim, já deveria ter sido alcançado.

Se existisse para ele um estado final não tencionado, também já deveria ter sido alcançado . se fosse capaz de preservar e de cristalizar, capaz de “ser”, se no decorrer de seu devir possuísse, embora por um instante somente, essa faculdade de “ser”, já teria de há muito acabado todo o devir, logo também todo o pensamento, todo o primeiro “espírito”.

O próprio fato de que o “espírito” é um devir demonstra que o mundo não tem finalidade, nenhum estado final, que é incapaz de “ser”.

Mas o velho habito de imaginar um fim em tudo o que acontece e em tudo o que concerne ao mundo, um Deus que dirige e que cria, é tão potente que o pensador tem dificuldade em deixar de conceber que a falta de finalidade no mundo é também uma intenção. Essa ideia – a de que o mundo evita intencionalmente alcançar um fim e sabe até como evitar artificialmente ser envolvido num movimento circular – deve ser a de todos os que desejariam impor ao mundo a faculdade de se renovarem eternamente; portanto, a de impor a uma força finita, determinada, que permanece invariavelmente igual a si mesma,tal como é o “mundo”, a faculdade maravilhosa de renovar até o infinito suas formas e suas condições.

O mundo, embora não seja um Deus, deve, no entanto, ser capaz da divina virtude criadora, da infinita faculdade de transformação; deve interdizer-se voluntariamente de retornar a alguma de suas formas antigas; deve possuir não somente a intenção, mas ainda os meios de afastar a si mesmo de toda espécie de repetição;deve, por conseguinte controlar a cada momento cada um dos seus movimentos, a fim de evitar as finalidades, os estados finais, as repetições – e que mais possam ser as consequências de uma opinião e de um desejo tão imperdoavelmente loucos: tudo isso é ainda a opinião e deseja religiosos, de outrora, uma espécie de nostalgia de crer que o mundo se assemelha, apesar de tudo, de qualquer maneira que seja, ao Deus antigo e bem-amado, ao Deus infinito, ilimitado e criador – que ao menos em qualquer parte “o velho Deus ainda está vivo” – é o desejo de Espinosa que se expressa nas palavras “deus sive natura” (para ele é a mesma coisa que “natura sive deus”). Mas qual é então a proposição e crença pelas quais se articula melhor a mutação definitiva, a preponderância, realizada agora do espírito cientifico sobre o espírito religioso que concebe deuses? Não quer dizer: o mundo, como força, não pode ser imaginado infinito, pois é impossível ser concebido assim – interditamo-nos a ideia de uma força infinita, como incompatível com a ideia de força? Logo, o mundo carece da faculdade de se renovar indefinidamente.

A teoria da Constância da energia exige o eterno retorno.

O fato de nunca se alcançar um estado de equilíbrio prova que não é possível. (pag. 448 e 449)

Mas poderia realizar-se num espaço indeterminado. O mesmo num espaço esférico. A forma do espaço deve ser a causa do movimento eterno, e, afinal, de toda “imperfeição”.

A “força”, o repouso, o permanecer igual a si mesmo, contradizem-se entre si. A medida da força (como quantidade) é fixa, sua essência é fluida.

Rejeitar o “fora do tempo”. Num momento determinado da força é da dada a absoluta condicionalidade de uma nova repartição de todas as suas forças.

A força não pode se deter. A “mutação” é integrante de sua essência, portanto, também o caráter temporal; pelo qual, entretanto, a necessidade da mutação é mais uma vez fixada de maneira abstrata.

Se o movimento do mundo tendesse para um fim, esse já deveria ter sido alcançado. Mas o único fato fundamental é que precisamente não tende para um estado final e toda filosofia ou toda hipótese cientifica (por exemplo, o mecanicismo), que implica um estado final, encontra-se refutada por esse fato basilar... busco uma concepção do mundo que represente esse fato: impõe-se que o devir seja explicado sem que precisamos recorrer a semelhantes intenções da finalidade; o devir deve parecer justificado durante cada um de seus movimentos (ou parecer inavaliável, o que dá no mesmo); é absolutamente escusado justificar o presente pelo futuro, ou o passado pelo presente. A “necessidade” não existe sob a forma de uma força universal que intervenha e domine, ou sob forma de uma força motriz inicial; menos ainda para condicionar uma coisa de grande valor. Dadas essas premissas, impõe-se negar uma consciência universal do devir, um “Deus”, a fim de não considerar tudo o que acontece sob o olhar de um ser que se compadece e conhece, mas que não manifesta vontade: “Deus” é inútil, se não quer alguma coisa, e, por outra parte, seria um aumento de desprazer e de ilogismo que aminoraria o valor geral do “devir”: felizmente falta na realidade uma semelhante potência que adicione (um Deus que sofre e que domine co o olhar, uma “consciência geral”, um espírito universal”,suscitariam o maior argumento contra o ser). Mais estritamente: é proibido admitir algo que seja por que o devir perde seu valor e aparece categoricamente como supérfluo e falto de sentido. Portanto, é indispensável perguntar-se como pôde (como devera)nascer a ilusão do ser; igualmente, como foram depreciados todos os julgamentos de valor que repousam sobre a hipótese que o ser existe. Mas reconhece-se assim que esta hipótese do ser é a fonte de toda calúnia para com o mundo (o “mundo melhor”, o “mundo-verdade”, o “mundo do além”, a “coisa em si”).

O devir não tem condição final e não tende ao “ser”.

O devir não é uma condição aparente; talvez o mundo do ser seja apenas aparência.

O devir permanece, em cada momento, igual a si mesmo em sua totalidade; a soma de seu valor é invariável; em outras palavras: absolutamente não existe valor, pois falta algo que possa servi-lhe de medida e em relação á qual a palavra “valor” teria um sentido. O valor geral do mundo não é apreciável, portanto, o pessimismo filosófico faz parte das coisas cômicas.

A nova concepção do mundo. – O mundo existe; não é algo que se torna algo que passa. Ou, mais exatamente: torna-se, passa; jamais, porém, começou a devir, jamais cessou de passar – conservar-se sob duas formas... Vive de si mesmo: suas dejeções são seus próprios alimentos.

A hipótese do mundo criado não nos deve preocupar um só instante. A noção de criar é hoje absolutamente indefinível e irrealizável; não é mais que uma palavra, uma palavra rudimentar, datando de uma época de superstição; com uma palavra nada se explica. A ultima tentativa para conceber um mundo que inicia realizaram recentemente diversas vezes com a ajuda de um processo lógico – percebe-se num único relance, com secreta intenção teológica.(pag. 450 e 451)quiseram ultimamente, por diversas vezes, divisar uma contradição na ideia de “infinito de tempo no passado” (regressus in infinitum): provaram, é verdade, a preço de confundir a cabeça com a cauda. Nada me proíbe de contar para trás a partir deste momento, e de dizer: “Jamais chegarei ao fim”; da mesma forma que posso contar para o futuro, deste momento, até o infinito. É somente quando queria cometer o erro – eu me guardei bem de o fazer – de assimilar essa concepção concreta de um regressus in infinitum, a uma noção absolutamente irrealizável, a uma progressão finita até este instante, é somente quando considera a direção (para a frente ou para trás) como logicamente indiferente, que eu me apoderarei da cabeça – nesse instante – crendo ter a cauda: deixamos esse prazer ao Sr. Dϋhring!...

Encontrei esta ideia entre pensadores mais antigos: sempre estava determinada por outras “segundas intenções” (na maior parte, segundas intenções teológicas, em favor do creator spiritus). Se, de maneira geral, o mundo pudesse coagular-se, dessecar, deperecer, torna-se em nada, ou pudesse alcançar um estado de equilíbrio, ou ainda se tivesse um fim qualquer que encerrasse em si a duração, a imutabilidade, o definitivo (em suma, para falar metafisicamente, se o devir pudesse alcançar o seu ou o nada) essa condição deveria, ter sido já realizada. Não se realizou, porém. Logo... é a única certeza que temos entre as mãos para servir de corretivo a uma multidão de hipóteses cósmicas, possíveis em si.

Se, por exemplo, o mecanicismo não pode fugir á consequência de um estado de finalidade, como o que lhe traçou Thomson, o mecanicismo está, assim, refutado.

Se podemos imaginar o mundo como uma quantidade determinada de força e como um número determinado de centros de força – qualquer outra representação permanece indeterminada e, portanto, “inutilizável” – daí se conclui que o mundo deve atravessar um número avaliável de combinações no grande jogo de dados de sua existência. (pag. 452)

Num tempo infinito, cada uma das combinações possíveis deverá uma vez realizar-se; ainda mais deverá realizar-se também um infinito de vezes. E como entre cada uma das combinações e seu retorno próximo, todas as combinações possíveis deverão ser percorridas e que, cada uma dessas combinações condiciona toda a sucessão de combinações na mesma ordem, demonstraríamos, assim, um movimento circular de séries absolutamente idênticas: demonstraríamos que o mundo é um movimento circular que já se repetiu uma infinidade de vezes e que realiza seu destino até o infinito. Esta concepção não é simplesmente uma concepção mecanicista, pois, ela o fosse, não necessitaria de um retorno infinito de casos idênticos, mas uma condição final.

Desde que o mundo não atingiu a essa condição final, impõe-se que o mecanicismo nos apareça como incompleto e somente como hipótese provisória.

E sabeis o que é para mim o “mundo”? É mister que vo-lo mostre ao espelho?

Este mundo é um monstro de força sem começo nem fim, uma quantidade de força brônzea que não se torna nem maior nem menor, que não se consome, mas só se transforma, imutável em seu conjunto, uma casa sem despesa nem perdas, mas também sem rendas e sem progresso, rodeada do “nada” como de uma fronteira. Este mundo não é algo de vago e que se gaste, nada que seja de uma extensão infinita, mas, sendo uma força determinada, está incluído num espaço determinado e não num espaço que seria vazio em alguma parte. Força em toda a parte, é jogo de forças e ondas de forças uno e múltiplo simultaneamente acumulando-se aqui, enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas que provocam sua própria tempestade, transformando-se eternamente num eterno vaivém, com um fluxo perpétuo de suas formas, do mais simples ao mais complexo, indo do mais calmo, do mais rígido e do mais frio ao mais ardente, ao mais selvagem, ao mais contraditório para consigo próprio, para retornar, depois, da abundancia á simplicidade, do jogo das contradições ao prazer da harmonia, afirmando-se a si mesmo, ainda nesse uniformidade das órbitas e dos anos, bendizendo-se a si próprio como aquilo que eternamente deve retornar, como um devir que jamais conhece a sociedade, jamais o tédio, jamais a fadiga: este meu mundo dionisíaco da eterna criação de si mesmo, da eterna destruição de si mesmo, este mundo misterioso das voluptuosidades duplas, meu “além do bem e do mal” sem fim, senão o um anel que possua a boa vontade de seguir seu velho caminho, sempre em redor de si mesmo e nada mais senão em redor si mesmo. Este mundo, que eu concebo, quem, pois, possui o espírito bastante lúcido para contemplá-lo sem desejar ser cego? Quem é bastante forte para apresentar sua alma ante esse espelho? Seu próprio espelho ao espelho de Dioniso? E aquele que fosse capaz disso não precisaria que fizesse mais ainda? Ofertar a si mesmo ao “anel dos anéis”? Com o voto do próprio retorno de si mesmo? Com o anel da eterna bendição de si, da eterna afirmação de si? Com a vontade de querer sempre e ainda uma vez?

De querer para trás, de querer todas as coisas que já foram? De querer para o futuro, de querer todas as coisas que serão? Sabeis agora o que é para mim este mundo? E o que eu quero, quando quero este mundo? Quereis um nome para esse universo, uma solução para todos os enigmas?

Uma luz até para vós, os mais ocultos, os mais fortes, os mais intrépidos de todos os espíritos, para vós, homens da meia-noite? Este mundo é o mundo da vontade de potência e nada mais! E vós também sois esta vontade de potência e nada mais... (pag. 453 e 454)

O ideal do animal de rebanho. – Este ideal culmina agora na mais alta apreciação da “sociedade”. Tentativa para emprestar a esta um valor cósmico e até metafísico. Defendo contra ela o aristocratismo.

Uma sociedade que conserva tais considerações e tal delicadeza, no que se refere á liberdade, deve considerar-se como exceção e ter em face de si uma potência que a faça ressaltar, que ela combate e olhe do alto.

Quanto mais abandono os meus direitos, e me nivelo com os outros, mais me coloco sob o domínio da mediania e, por fim, do maior número. As condições que uma sociedade aristocrática encerra em si, para conservar entre seus membros um grau superior de liberdade, é a tensão extrema que decorre da presença do instinto oposto entre todos os seus membros: a vontade de domínio...

Se desejardes suprimir os contrastes violentos e as diferenças de categoria social, suprimireis, também, o amor forte, o sentimento elevado, a nação do existir por si. (pag. 465 e 4669. 

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