quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Aulas de Filosofia da Religião. O mito[1]

 

Mircea Eliade



 Paolo Cugini

 

Existe uma diferença importante entre tempo sagrado e profano. Esta diferença está no fato que o tempo sagrado é para sua mesma natureza reversível, ou seja, é um tempo mítico, primordial que se torna presente. Cada festa sagrada, cada tempo litúrgico consiste na atualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico.

Para um cristão a liturgia se desenvolve dentro um tempo histórico santificado para a encarnação do Filho de Deus.

O tempo sagrado, ritualizado nas religiões pré-cristãs, é um tempo mítico, um tempo primordial, não identificável com o passado histórico, um Tempo original, um Tempo que não foi precedido por nenhum tempo.

 Para o homem religioso das culturas arquaicas, cada criação e cada existência começa no Tempo: nada podia existir antes do Tempo. Por isso o mito é importante, pois é o mito que revela como uma realidade veio à existência.

É o mito cosmogonico que narra como o cosmo veio a existência. Neste sentido podemos frisar a importância de dois elementos:

 

1.  Para a repetição anual da cosmogonia o Tempo era regenerado, recomeçava como Tempo sagrado, porque coincidia com o illud tempus, onde o mundo tinha vindo pela primeira vez á existência.

2.  Participando ritualmente a “fim do Mundo” e á sua “recreação” o homem se retornava contemporâneo do illud tempos, então ele renascia de novo, ele recomeçava a sua existência com a reserva de forças vitais intacta tal quais era ao momento do seu nascimento.

 

Sendo que o Tempo sagrado é o Tempo da origem, o momento prodigioso aonde uma realidade foi criada, o homem se esforçará de alcançar periodicamente este Tempo original.  Esta atualização ritual de o illud tempus da primeira epifania de uma realidade é a base de todo calendário sagrado: a festa não é a comemoração de um evento mítico, mas a sua reatualização.

 

O Tempo do origine por excelência é o tempo da cosmogonia, o tempo aonde apareceu o Mundo.

O Tempo de origem de uma realidade tem um valor exemplar: por esta razão o homem se esforça de atualizá-lo periodicamente por meio de rituais apropriados. A primeira manifestação de uma realidade equivale á uma criação por os seres divinos. É justamente a reintegração deste Tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa. Podemos dizer que o Tempo sagrado é sempre o mesmo, um “suíte de eternidade”. Os participantes se tornam contemporâneos dentro do evento mítico. O homem religioso sente o desejo de entrar periodicamente dentro este tempo sagrado e indestrutível. É o eterno pressente do evento mítico que rende possível a durada profana dos eventos históricos. É graça aos seres divinos que tudo veio à existência. A origem das realidades e da Vida em sim é religiosa. Na festa se encontra a dimensão sagrada da vida.

 

O mito narra uma historia sagrada, ou seja, um evento primordial que teve inicio no começo do Tempo, ab initio. Só que narrar uma historia sagrada significa revelar um mistério, pois as personagens de um mito não são seres humanos. O mito é então a narração daquilo que aconteceu in illo tempore, a recita daquilo que os deuses fizeram no começo do tempo. Uma vez que o mito foi proclamado, ou seja, revelado, torna-se verdade apodictica: fundamenta a verdade absoluta.

O mito revela a sacralidade absoluta porque narra a atividade criadora dos deuses. O mito narra as diferentes e, as vezes, dramáticas entradas do sagrado no mundo.

 

O mito[2] conta uma historia sagrada: ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “principio”. Em outros termos, como graças as façanhas dos entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, etc. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Os mitos revelam a atividade criadora dos deuses e desvendam a sacralidade de suas obas. Os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo.

O mito é considerado uma historia sagrada e, portanto, uma historia verdadeira, porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogônico é verdadeiro porque a existência do Mundo aí está para prová-lo. 

Pelo fato ce relatar as gestas dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes agrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.

A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação, o casamento, o trabalho, a educação, a arte, a sabedoria, etc.

 

As historias falsas são as que contam as aventuras e proezas nada edificantes de animais (Coiote, por exemplo). Nas historias verdadeiras defrontamo-nos com o sagrado e o sobrenatural; as falsas, ao contrario tem um conteúdo profano.

 

Para o homem das sociedades arcaicas o que aconteceu ab origem pode ser repetido através do poder dos ritos. Para ele portanto, é essencial conhecer os mitos. Ao rememorar os mitos e reatualizá-los ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis, ou os Ancestrais fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Aprende-se não somente como as coisas viram a existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem.

 

Os mitos ensinam como repetir os gestos criadores dos Entes Sobrenaturais, conseqüentemente, como assegurar a multiplicação de tal ou tal animal ou planta.

 

Os mitos são comunicados aos neófitos durante sua iniciação.

 

Ao recitar os mitos reintegra-se aquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, conseqüentemente, “contemporânea”, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos deuses ou dos Heróis.

 

A cosmogonia é o modelo exemplar de todos os tipos de atos: não só porque o Cosmo é o arquétipo ideal de toda situação criadora e de toda criação, mas também porque o Cosmo é uma obra divina, sendo portanto santificado em sua própria estrutura. Por extensão tudo o que é perfeito, pleno, harmonioso, tudo o que é cosmicizado tudo o que se assemelha ao Cosmo é sagrado.

 

Para o homem religioso o essencial precede a existência. Isso é verdadeiro tanto para o homem das sociedades primitivas como para os judeus. O homem é como é hoje porque uma serie de eventos teve lugar ab origine. Os mitos contam-lhe esses eventos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e porque ele foi constituído dessa maneira. Para o homem religioso a existência real, autêntica, começa no momento em que ele recebe a comunicação dessa historia primordial e aceita as suas conseqüências. É sempre uma historia divina pois os personagem são os Entes Supremos.

 

O mito garante ao homem que o que ele se prepara pra fazer já foi feito e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento.

 



[1] Cf. M. ELIADE, Lê sacré et lê profane, Gallimard, Paris 1965, pp. 63-100.

[2] Daqui em diante cf. M. ELIADE, Mito e realidade, Perspectiva, são Paulo 2004.

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