segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Furio Cerruti: Filosofia política, una introdução

 




Tradução e síntese de Paolo Cugini


Entrando no léxico, ou melhor, nas categorias da filosofia política, utilizo uma distinção que não é uma distinção estritamente científica, mas antes uma distinção didática, que visa apenas fornecer um fio condutor para a exposição: aquela entre conceitos fundamentais e conceitos substantivos. 

Os conceitos fundamentais são aqueles que indicam a estrutura conceitual elementar da filosofia política e são, além disso, conceitos puros, quero dizer que em geral não correspondem a entidades políticas reconhecíveis. Alguns destes conceitos têm um estatuto predominantemente analítico, são neutros em termos de valor: por exemplo poder (embora existam visões pejorativas sobre ele), conflito, instituição (as instituições existem, mas não a instituição), segurança, medo, e também obrigação e legitimidade, bem como identidade política. Mais desses conceitos são de facto fundacionais, mas também têm uma caracterização axiológica, isto é, dita em termos latinos e não gregos, avaliativa. Esses conceitos não indicam apenas uma ferramenta de análise o assunto que queremos compreender, mas também indicam um valor que lhes atribuímos ou que os atores políticos lhes atribuem. Por exemplo, liberdade, justiça, igualdade, solidariedade. São todos conceitos altamente abstratos, conceitos que em parte não pertencem exclusivamente à filosofia política, uma vez que os axiológicos pertencem juntos à filosofia moral. São tais que indicam as tramas das relações fundamentais que existem entre os homens quando agem politicamente, mas não indicam também um conteúdo, uma questão específica dessas relações. 

Os conceitos substantivos são Estado, governo, administração, guerra e paz (no que se referem a acontecimentos) e depois as grandes definições clássicas das formas de Estado e/ou governo. 


Definições de “filosofia política”

 Comecemos pelo passo mais banal e definamos a filosofia política, a partir dos seus objetos, como aquela filosofia que trata da política, isto é, do Estado, das instituições e da sociedade civil, e que, a partir deste núcleo objeto específico, irradia falar de qualquer coisa que tenha a ver com política, incluindo a vida e a morte de indivíduos, grupos e da raça humana. Esta definição é trivial porque estes mesmos assuntos são - pelo menos em parte- tema de outras atividades científicas, como ciência política, sociologia política, antropologia. Portanto, como muitas vezes as definições dos objetos, que, no entanto, não devem ser descartadas completamente, não são suficientemente específicas  a filosofia política é antes de tudo filosofia. Uma filosofia que aborda as coisas da pólis tentando defini-las e interpretá-las através de conceitos não empíricos; que, precisamente como filosofia, tenta sempre problematizar o que é ou parece evidente, habitual e pragmaticamente aconselhável; e que reconecta suas interpretações, avaliações e prescrições a estruturas, valores e escolhas últimas, a processos e mecanismos não aparentes.


Uma tipologia de filosofia política

 Podemos identificar três ou quatro tipos de filosofia política: uma é a normativa, ou seja, trata da 'república ótima', de qual a melhor forma a dar à associação política e quais são, portanto, os princípios, normas, prescrições, os valores, os objetivos (são coisas diferentes, que por enquanto só iremos reunir) aos quais a política e as suas formas devem conformar-se. Pode-se dizer que todos os antigos são filósofos políticos normativos, que a maioria deles são tradição medieval e que esta tradição rompe com a filosofia política moderna, dando espaço a outros tipos de filosofia política. Dizer que quebra não significa que morre, e na filosofia política moderna temos o retorno disso, que é uma das grandes vertentes da filosofia política. Hume, um dos filósofos menos normativos que se possa imaginar, é um filósofo que, na filosofia prática em geral, está interessado em saber como esse valor que surge é formado e realizado.

Além disso, uma parte substancial das filosofias políticas dos últimos trinta e cinco anos são normativas, sob o nome de filosofias políticas de direitos ou de justiça: basta mencionar o nome ilustre de John Rawls ou o menos ilustre de Robert Nozick. Neste tipo de filosofia política incluiria também aquela que diz qual é o pior Estado, ou seja, aquele que deve ser evitado, ou que diz mesmo que o Estado, a associação política em si, deve ser evitada. Nós os encontramos aqui anarquistas, mas, num certo sentido, também Marx, que explica qual forma de associação é boa e qual é má, com base na sua filosofia explícita da história e na sua teoria implícita da justiça, que ele diz não ter, mas na realidade ha. Marx argumenta que a associação política como tal deve ser evitada, como um estado terrível de coexistência social humana. A sociedade civil deve, em vez disso, ser capaz de libertar-se da máquina burocrática que é o Estado. Claro, o A filosofia política de Marx e Engels não deve ser classificada apenas como normativa, pois também contém outras abordagens.

Podemos usar outro termo contemporâneo, falando de filosofia política reconstrutiva, cuja tarefa é reconstruir conceitualmente as condições de nascimento e morte das associações políticas, bem como as de legitimidade do poder político e de contração da obrigação política. Não é programático dizer qual a melhor forma política é adequada à humanidade ou a esta sociedade ou àquela nação. Diz simplesmente que, se alguém quiser administrar a coisa pública, fundar e, como disse Maquiavel, “manter o Estado”, ou mesmo transformá-lo, estas e aquelas outras condições devem ser satisfeitas: em suma, a sua lógica interna é reconstruída. Os contratantes descendentes de Hobbes, Locke, Rousseau, da grande vertente, dividida em muitas sub-vertentes, da filosofia política moderna dos séculos XVII e XVIII. Afinal, Maquiavel e, até certo ponto, os escritores de tratados do século XVI podem ser considerados como pertencentes a esta tendência. Esta é uma vertente que se tornou predominante na filosofia política moderna.

Há também um terceiro tipo possível de filosofia política que não se preocupa tematicamente nem com as normas às quais as associações políticas devem obedecer, nem com as condições da sua possibilidade; trata do que está ao redor, abaixo ou acima, tendo, portanto, um corte oblíquo em comparação com a abordagem direta das duas primeiras vertentes. É a filosofia política que consiste em realizar reflexões sobre a linguagem política, as tradições políticas, as ideias políticas e assim por diante. Não trata diretamente das formas políticas e das normas ou condições de possibilidade a que estão sujeitas, mas trata do que está além dessas formas, daquilo que as formas políticas focadas nas duas primeiras vertentes são colocadas por ponto de vista do contorno, do ambiente cultural, moral, linguístico, comunicativo. É o tipo de filosofia política que quase se poderia dizer que consiste num metadiscurso sobre política. Meta – do grego, aquilo que vai além – é um termo predominantemente epistemológico, e indica aquelas abordagens que não tratam diretamente de uma coisa, mas lidam com ela investindo o seu contexto, seus aspectos circundantes. Nesse sentido, veremos, entre as principais formas de ética contemporânea, que a ética geral se distingue em ética propriamente dita e metaética, ou seja, um discurso para além da ética. Em linguística não falamos por acaso de metalinguagem.


O que é política?

 O que é política? No final do parágrafo daremos uma primeira definição, mas devemos abrir caminho para ela reconstruindo a sua génese histórica. A política na Grécia antiga e ainda na tradição escolástica medieval significava filosofia da política, ciência da política, enfim, estudo da polis, das suas leis, das suas regras, dos seus valores. Pode-se dizer que manteve esse significado enquanto o latim foi utilizado, ou seja, até os séculos XVII e XVIII. Com a era moderna adquire o significado da própria coisa, e não do estudo dela. Mais importante que a história da palavra é o que aconteceu com a própria coisa, isto é, com a polis. Refiro-me, em primeiro lugar, ao processo de diferenciação dentro da pólis entendida genericamente como vida associada, não como uma cidade-estado, como uma pólis física, nem mesmo como uma esfera estrita e estritamente política, mas antes como uma esfera que é ao mesmo tempo político, social, econômica, religiosa e cultural ou ideológica. Não é um processo que começa hoje ou ontem. Estamos aqui a falar de uma esquematização grandiosa, filha da imagem da pólis que a primeira autocrítica revolucionária e setecentista da modernidade política (absolutista) há muito perseguiu ou almejou, ou seja, a imagem da pólis grega como uma esfera em que a vida associada está plenamente integrada nas suas diversas vertentes e o cidadão, como decisor, como sujeito político, é ao mesmo tempo um sacerdote, um guerreiro ou, em termos modernos, o sujeito e o nó das relações sociais. É difícil para mim dizer o quão distorcida e idealizada é esta imagem;  não se pode dizer que os estudos sobre a polis sejam abundantes, e depois dos grandes filólogos alemães das eras Guilhermina e Weimar, especialmente Werner Jaeger, as grandes sínteses foram um tanto limitadas. 

A primeira esfera que se destaca desta unidade mais ou menos integrada que se presume ser a vida pública na polis grega, especialmente em Atenas, é naturalmente a esfera religiosa. Isto acontece com o Cristianismo, com a criação de uma verdade religiosa diferente e superior aos assuntos mundanos e à vida política na terra. É claro que no cristianismo existem muitas atitudes diferentes, desde o agostinianismo mais radical, que visa a separação radical entre a vida eclesial e a vida política, com a superordenação absoluta da vida eclesial, da civitas dei à civitas hominis, até ao Constantinismo, isto é, a fusão mútua instrumental do poder político e da vida eclesial que aceita dentro de si a dinâmica do poder. Os séculos terão de passar porque, no final da Idade Média (de 1100 a 1200 na Itália e a partir de 1300 nos países do Norte Europa) outra esfera distingue-se de toda a vida pública associada e constitui-se cada vez mais como um conjunto de leis, procedimentos e princípios próprios; esfera em que os atores aspiram à auto-regulação sem estarem subordinados, como estarão nos próximos séculos, às leis políticas ou político-religiosas do rei, do senhor ou do imperador. Esta é obviamente a esfera económica, que na modernidade formará uma bipolaridade com a política que ainda hoje anima teorias e debates: o mercado deve estar subordinado ao Estado, sendo regulado por ele, pois, se deixado a si mesmo, produz mais desequilíbrio do que a riqueza, ou o mercado é o primeiro princípio do desenvolvimento e da autorregulação das relações sociais, deixando apenas tarefas residuais ao Estado?

Só com a constituição do Estado moderno é que a segmentação da suposta unidade original da polis atinge a sua forma definitiva, ou seja, a distinção entre Estado e sociedade civil. A expressão entra no léxico político europeu com a obra do escocês Adam Ferguson, Ensaio sobre a História da Sociedade Civil (1767), e encontra-se algumas décadas depois, em alemão, num dos conceitos-chave da filosofia hegeliana do direito e do Estado, o de bürgerliche Gesellschaft, de onde deriva o termo passa para Marx. Enquanto em Hegel é uma forma autônoma, mas não perfeita, de associação de homens e, portanto, deve dar lugar àquela estrutura suprema que em Hegel é o Estado, na qual se expressa a substância ética do povo, em Marx tudo se inverte, e uma das chaves Para a leitura da filosofia política marxista está a libertação da sociedade civil ou da sociedade tout court da imposição exercida sobre ela pelo Estado como uma estrutura burocrática opressiva. 

Sobre a distinção entre Estado e sociedade civil e sobre a distinção relacionada entre social e político, deve ser dito que, se for necessário manter a distinção entre político e social, devemos também ter cuidado para não confundir o político com o estatal. O político deve ser considerado por um no sentido de ser uma esfera mais ampla e, segundo alguns, de maior espessura do que o Estado. Por outro lado, na era moderna há uma tendência, mas ainda uma coincidência parcial, entre a situação política e o estado. Podemos então dizer que toda a política se realiza no Estado, ou com referência a ele.

A nível histórico, existem as chamadas sociedades primitivas, nas quais alguns estudiosos acreditam com boas razões que a política, ou o sistema político, existiu, mas nas quais o Estado certamente não existiu. No presente há muitos que acreditam que a esfera da política, ou do político, envolve segmentos mais profundos da nossa personalidade, das nossas ações, da nossa convivência do que aqueles que entram e desempenham na instituição do Estado. Tomemos como exemplo um slogan que teve grande sucesso, na verdade uma função quase revolucionária, no movimento das mulheres dos anos 60/70: “o pessoal é político”. Ou seja: os dramas, os problemas, os impulsos que temos na nossa vida pessoal, não é de todo verdade que não tenham relevância política, podem na verdade ser mais relevantes do que outras funções como ir votar, observar e fazer as leis. Por outro lado, a esfera pessoal é atravessada por forças e estruturas que vêm do político ou nele se encontram, de modo que uma verdadeira transformação da esfera política não pode ser separada das mudanças que devem ocorrer na família e na esfera dita privada. O político a quem esta palavra de ordem referida não coincidia certamente com a palavra de ordem estatal; este slogan, e a posição intelectual nele expressa, foi uma forma de afirmar a não coincidência do Estado e do político, ou mesmo de condenar a restrição do político ao Estado e de reivindicar uma prática mais ampla e envolvente da política do que o que acontece nas formas de Estado.

 Finalmente, voltando-se para a política como planeamento para o futuro, a filosofia política moderna e as ideologias políticas abundam em projetos de uma sociedade sem Estado, não como um regresso ao Estado primitivo e pré-político; embora os críticos dessas concepções temam que, de fato, sim você sonha, inconscientemente, com um retorno a alguma condição primitiva. Essas concepções apostam que um desenvolvimento histórico feito de lutas e de emancipação leva a fazer as pessoas viverem sociedade apenas com base nas suas próprias leis, equilíbrios e necessidades internas, sem o manto opressivo do Estado. Configuram, portanto, uma perspectiva de política sem Estado para o futuro, isto é, uma organização da sociedade não política, mas puramente técnica ou interpessoal.

Especialmente em certas versões do marxismo, esta prefiguração foi lida em termos da morte ou extinção não só do Estado, mas da política. Feitos estes esclarecimentos sobre a evolução da polis e da política, podemos abordar a questão chave: o que é a polis como comunidade política? Não podemos fazer nada melhor do que ler as falas do autor que de uma forma ou de outra dominou a linguagem do pensamento político ao longo dos séculos. A definição de política é feita logo no início (Livro primeiro, 1252-53) da Política de Aristóteles

 :

Vemos que toda polis é uma comunidade e que toda comunidade se constitui propondo algum bem como finalidade (porque cada um realiza todas as suas ações para conseguir o que desejaparece ser  uma coisa boa). Dito isto, podemos dizer que, acima de tudo, aquela comunidade que governa e inclui em si todas as outras tende para ela, e tende para o mais excelente de todos os bens: e isto é o que se chama polis e comunidade política (politiké koinonìa). . Ora, é um uso linguístico inadequado por parte daqueles que acreditam que o estadista (politikòs), o administrador (oikonomikòs), o rei (basilikòs), o mestre (despotikòs) são a mesma coisa, pois suas diferenças seriam baseadas apenas no maior ou menor número de pessoas pelas quais são responsáveis e não na especificação de suas funções [...] como se não houvesse diferença entre uma grande casa particular e uma pequena polis [...] Se estudassem como coisas sim eles evoluem desde a origem, também aqui, como em outros lugares, teríamos uma visão mais clara deles. É necessário antes de tudo unir seres que não são capazes de existir separadamente uns dos outros, por exemplo a fêmea e o macho como instrumentos de geração [...] e aqueles que por natureza estão dispostos a comandar e aqueles que ele é naturalmente dispostos a serem comandados, pois sua união é o que ambos são capazes de fazer sobreviver, [...] então a mesma coisa é vantajosa para o senhor e para o escravo.

Nesta definição há a indicação de uma finalidade (o bem comum) que é decisiva, porque é nela que Aristóteles baseia a essência da polis; há a declaração de qual é a origem da associação, que se coloca na diferença e, portanto, na necessidade: enfim, há uma proporção de ordem da comunidade que nada mais é do que a própria natureza. Existe a ideia, em termos modernos (mas a divisão do trabalho na modernidade foi muito além destes termos), de que a singularidade da função e, portanto, a especificidade absoluta disto, o facto de uma entidade fazer e saber fazer uma coisa, e apenas uma coisa, é o tipo de pedido que melhor prepara a perfeição dos resultados. Até agora vimos o finalismo da filosofia política aristotélica, que nada mais é do que a especificação do seu teleologismo ontológico mais geral. Vejamos agora a sua característica mais fundamental, o naturalismo ou evolucionismo naturalista: 

Das comunidades homem-mulher e senhores-escravos ou células elementares nasce a casa como centro familiar e produtivo (oikos), e do entrelaçamento de várias casas a aldeia (come) . A comunidade perfeita de várias aldeias é a pólis, que alcançou a autossuficiência (autarkeia) e surge para tornar a vida possível, mas subsiste para produzir as condições para uma boa existência. Portanto toda pólis é uma instituição natural, as comunidades que a precedem já o são, pois é a sua finalidade, e a natureza de uma coisa é a sua finalidade [...] Ora, a finalidade e o fim são o que há de melhor, e a autossuficiência é um fim e o melhor (A 1252b).

 Por fim, vem o organicismo peculiar (ao qual também pertence a ideia de vantagem mútua entre senhor e servo) da Política Aristotélica:

Na ordem natural, a pólis precede o oikos e cada um de nós. Na verdade, o todo precede necessariamente a parte, porque uma vez retirado o todo, não haverá mais pé nem mão [...] É claro, portanto, que a polis é por natureza e é anterior ao indivíduo, porque , se o indivíduo, tomado isoladamente, não é autossuficiente, permanecerá em relação ao todo na relação em que as outras partes estão (1253a).

 Note-se que o organicismo não reside apenas nesta prioridade do todo sobre as partes, mas também no vínculo de vantagem mútua entre os que estão acima e os que estão abaixo, entre o governante e os governados (pense no apólogo, organicista no sentido de fisiologia , de Menenius Agrippa), entre o senhor e o servo, mencionado acima. No modelo aristotélico, que dominou o pensamento europeu até aos séculos XVI e XVII, a polis é, portanto, uma entidade de origem natural, ordenada a uma finalidade e superordenada como um todo orgânico às suas partes: tanto às agregações inferiores como aos indivíduos.

Para os modernos, contudo - é claro: para as abordagens contratualistas e conflitantes que melhor expressam a inovação criada pela modernidade - a associação dos homens não é um dado, mas um problema (como a sociedade é possível?); não um produto da natureza, que para os modernos é, em todo caso, construído mentalmente pelos homens, mas um artifício humano, que também pode se dissolver; nem resulta de um desenvolvimento orgânico de entidades supra-individuais, mas é visto como ato pactual “livre” e voluntário dos indivíduos, a raiz final de toda agregação. Portanto, as características, regras (e limites) do Estado e da política decorrem das características e regras do pacto.

Finalmente, entre a esfera política e outras, como a moral ou a teológica, a diferenciação, ou mesmo a separação, é definitiva, e não é certo que a política continue a ser considerada a esfera mais elevada da atividade prática; na verdade, foi recentemente classificado por alguns como nada mais do que um subsistema do sistema social mais geral, que evoca então outra diferenciação tipicamente moderna, aquela entre o político e o social, desconhecida pelos antigos.

 Base individualista e desenvolvimento artificial da polis: estas duas posições-chaves da modernidade são acompanhadas por aquela que vê o abandono do finalismo substantivo na concepção da política. Com este termo indico a abordagem que considera a política subordinado a um fim representado por algum valor definido a partir de uma determinada concepção de mundo, de vida ou de história. Na tradição cristã, e particularmente tomista, do Ocidente, este objetivo tem sido visto há muito tempo no “bem comum”, alcançável por indivíduos apenas como partes da comunidade e definidos com base em alguma hierarquia entre Deus, os homens e o mundo. Uma vez que caiu a unidade que a ancoragem teológica dava ao pensamento medieval, e caíram os poderes universais de referência, o Império e o Papado, a primeira modernidade experimentou tanto a competição pluralista de várias concepções do propósito da política e da humanidade em geral, e dos custos demasiado elevados (guerras religiosas) a serem pagos por todos, vencidos e vencedores, quando o objetivo da política deve ser perseguido inteiramente e sem renúncia.

. Ao mesmo tempo, a nível epistemológico, as abordagens destinadas a compreender o mundo e as suas partes com base nos mecanismos que os governam ou nas funções que desempenham tiveram precedência sobre as abordagens destinadas a identificar os seus fins. Destas experiências políticas e intelectuais surgiu, assim, o abandono do finalismo substantivo, substituído pela ideia de que a associação política não pode ser considerada ordenada exceto para fins mínimos que lhe são intrínsecos, e não proveniente de concepções metafísicas, teológicas ou morais, exceto na medida em que pode representam o menor denominador comum dessas concepções. Mas Acima de tudo, nasceu e desenvolveu-se a ideia de que uma definição de “política” só pode ser feita com base nos meios, métodos ou procedimentos que lhe são típicos em todas as circunstâncias, e não com base em a um ou outro dos propósitos díspares que lhe foram ou podem ser atribuídos.

A política pode, portanto, ser definida em primeiro lugar como aquela atividade que regula a luta (ou conflito) pela redistribuição de recursos escassos e distribuídos desigualmente através de relações de poder; poder que por sua vez - como poder especificamente político - é definido por ser garantido em última instância pela posse exclusiva (monopolista) de força organizada ou violência.

Esta definição requer uma série de insights e comentários. Em primeiro lugar, liga a política à atividade social mais abrangente de homens e mulheres, visando em conjunto determinar uma peculiaridade (de modo que o político e o social não possam ser considerados equivalentes). Baseia-se então em duas condições independentes: a escassez dos recursos contestados (que não funcionam entendidos apenas como recursos materiais, mas também sociais ou relacionais, por ex. prestígio) e a sua distribuição desigual. Se os recursos fossem ilimitados, ou se, embora escassos, fossem distribuídos igualmente, não haveria política (na verdade, as utopias sociais do século XIX que visavam um destes dois objetivos envolve a eliminação da política). A definição reconhece então não, como alguns fazem, a identidade da política e da guerra, mas sim que não a coexistência comunitária, mas sim a luta (um termo preferido na filosofia política) ou o conflito (um termo mais sociológico) são elementos essenciais da política -. é entendido como problemas a serem enfrentados e regulados, não como seus dados imutáveis ou “verdades eternas”. A política também está relacionada com a guerra no sentido mais preciso de que o poder político inclui o uso real ou a ameaça permanente e credível de força física ou violência, que é precisamente a modalidade característica da relação de guerra. Afinal, basta lembrar que, até agora, muitas estruturas de poder as guerras políticas nasceram como resultado de guerras civis e de classes ou de guerras entre povos e Estados. A conciliação-recomposição dos diferentes interesses que alguns exibem como a natureza da política (ver o lema Política no Dicionário de Scruton) é apenas um dos resultados possíveis da atividade política, tanto quanto a guerra externa ou civil, e a diversidade de interesses, ideias e a vontade continua sendo seu primum ontológico.

 No entanto, estes primeiros esclarecimentos, embora nos digam de que elementos é feita a política, ainda não nos dizem como estão ordenados, nem qual é a proporção ou finalidade interna (se é que existe) desta atividade humana. Mas antes mesmo disso devemos aprofundar dois temas-chave desta definição: o conceito de poder e a sua relação com o de força. 




sábado, 28 de dezembro de 2024

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna

 



 5. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. 132p.

Seleção de citações: Eduardo Loureiro Jr., abril de 2000

Convenções:

p. - número da página

( ) - referência de citações de outros autores

/ - simples separação antes de outra citação, sem ligação de sentido, na mesma página

[...] supressão de palavras ou frases para reduzir a citação sem perder o sentido

[ ] outros comentários ou definições do anotador das citações

Citações...

p. ix

"a ciência - assim como qualquer modalidade de conhecimento - nada mais é do que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações."

p. xi

"impossível submeter todos os discursos (ou jogos de linguagem) à autoridade de um metadiscurso que se pretende a síntese do significante, do significado e da própria significação, isto é, universal e consistente."

p. 17

"o filme contínuo de suas aptidões, variáveis, que nomeia seu brasão certamente não se assemelha a nenhum outro, já que segue e descreve um perfil evolutivo de sua identidade singular ou individual, somente do ponto de vista pedagógico e sem pretender esgotá-lo, mas, sobretudo, distingue-o fortemente dos coletivos correspondentes a cada nível de perícia, contribuindo, então, para apagar o poder."

/

"Felizmente, você jamais saberá verdadeiramente, apesar de tudo, sua efetiva identidade, por demais múltipla, confusa e flutuante. Você jamais a viu. Visível, no entanto, sua carteira de identidade não informa muita coisa."

p. 18

"Ao ignorar, no limite, nossa verdadeira identidade, eis-nos recobertos, sem recursos, pela sombra de nossas pertinências."

p. 19

"Mas quem nunca experimentou, pelo menos uma centena de vezes, que onze leões podem resultar em uma soma tão fraca quanto uma cabra, ou que quinze cabritinhos balindo acordassem juntos, uma manhã, vulcanicamente? Eis uma estranheza da pertinência. Não, não sabemos como se integravam juntas as inteligências ou as qualificações."

p. 21

"Como conectar, na verdade, o que você sabe ou pode fazer e o que nós podemos ou sabemos fazer juntos? Em outras palavras, como fecundar o coletivo perito pelas perícias individuais, ou identidade pela pertinência, como em uma corrente positiva? Desde que o mundo tem uma história, o conjunto das respostas a esta dupla questão se nomeia por cultivo e educação, instrução e pedagogia, formação e aprendizado."

/

"Nunca vimos a evolução, em tempo real, do que sabe, do que pode, que faz uma coletividade; nunca pudemos regrar o que você deseja para si mesmo, em função destas tendências - ou contra elas, lógico, ou também sem nenhum olhar em direção a elas. Coisa ainda não feita, mas possível, à sua livre e espontânea vontade."

[fim do prefácio de Michel Serres]

p. 25

"O dispositivo das árvores de conhecimento é tão novo que muitos de nossos leitores não teriam podido associar-lhe imagens nem situações concretas se nos contentássemos com uma exposição puramente conceitual. É por isso que escolhemos começar este livro por algumas fábulas, historietas ou esquetes que devem permitir compreender a utilidade e o uso possível das árvores de conhecimentos em situações extremamente diversas. Seria necessário que pudéssemos entrar em nosso sistema pelo coração, imaginação, até mesmo humor, já que é também por aí que foi concebido."

p. 32

[logo no início, referência a "patentes fundamentais". Pode vir a ser objeto de crítica do Labirinto.]

/

"Um pequeno computador gera o sistema, um programa desenha a árvore automaticamente a partir da ordem em que os alunos tiram suas patentes."

p. 34

"Eles distribuem a seus empregados uma carteirinha pessoal em que cada um pode registrar os sinais de suas competências, saberes e habilidades. Por um tratamento informático apropriado, as representações que obtêm a partir desses registros são chamadas brasões. Desta forma cada pessoa tem seu brasão."

p. 57

"O sistema pode ser aplicado a tudo justamente porque não comporta nenhum a priori quanto à classificação dos saberes, seu conteúdo, seu valor e seu modo de transmissão. Trata-se somente de um instrumento que permite a livre expressão dos saberes a qualquer comunidade humana. Seria perigoso somente se ele impusesse qualquer coisa; ora, ele nada impõe, nem mesmo sua própria presença. Ninguém é forçado a adotá-lo."

p. 65

"Há engenheiros cheios de diplomas que querem nos ensinar a fazer vidro e outros que esperam nos substituir por máquinas, mas o vidro nunca é exatamente a mesma coisa, a cada vez é diferente. No final, você sente essas coisas. Não se pode explicar." (um contramestre a Emmanuel Plinpoule)

p. 72

"o valor da patente diminui com a densidade. A boa estratégia consiste, então, quase sempre em depositar patentes nos novos territórios do saber, nas fronteiras."

p. 73

"Em vez de utilizar os computadores para ensinar, como se tentava fazer há vinte anos, eles nos servem para a validação dos conhecimentos. O trabalho nobre é deixado para os homens."

p. 74

"A criação de novos conhecimentos se desenvolve em um outro terreno, que talvez nunca consigamos cartografar. O jogo de que falamos esta noite consiste somente em tornar visível os efeitos da criação. Graças a este jogo, a coletividade pode contemplar sua alma mutante sobre o espelho das árvores."

p. 79

"precisamos é repensar totalmente o sistema de educação, inventar outra coisa em vez de reproduzir as instituições do Norte. Abandonemos a aproximação puramente quantitativa e o comportamento mimético! Ajamos com fineza, ao nível dos sistemas de regulação e de reconhecimento dos saberes. Devemos utilizar todas as nossas energias, todas as nossas qualidade, sem nenhum complexo."

p. 80

"é a própria sociedade que se encarregará da questão da educação e não mais uma instituição separada! A escola existirá sempre, mas como um componente entre outros da educação, do aprendizado e do ensino."

p. 93

"Nesse tempo, seu ídolo havia inflado desmesuradamente. Tornou-se terrivelmente pesado, imenso e labiríntico. Ninguém havia contemplado todas as suas faces e ninguém podia reconstruí-lo de memória. Ora, os escribas, com grandes esforços de comissões e conselhos, esgotavam-se redesenhando-a sempre mais rapidamente, maior e se despedaçaram em infinitas batalhas de classificações."

p. 99

"Talvez alguma informação, algum hábito esquecido, algum saber metido nas dobras do tempo poderia, na situação crítica em que me encontro, salvar-me."

p. 100

"Ninguém possui a mesma história, ninguém sabe as mesmas coisas. Haveria uma singularidade, uma identidade específica dos indivíduos que se definiria pelo que eles sabem, como uma impressão digital, um rosto trabalhado pela experiência, o timbre de uma voz, um nome, uma assinatura."

p. 101

"De todos os saberes, somente uma ínfima parcela é acompanhada por um reconhecimento oficial de títulos ou diplomas. Mas uma infinidade de conhecimentos, que todos podem possuir em um momento ou em outro, aqui e ali, sua pertinência econômica, lúdica, social, científica etc. circulam clandestinamente, crescem em silêncio, invisíveis, atuantes, prontas para servir."

/

"O que nos ensina o filme acelerado da existência no momento do mais extremo perigo é que não importa que parcela de vida, com a experiência que a acompanha, pode encobrir um saber útil, salvador, e que é a priori impossível saber-se qual."

p. 102

"Pois o que ignoro é antes de tudo o que o outro sabe. Mais você me é dessemelhante, mais sua vida é diferente da minha, mais você possui conhecimentos que eu não tenho, mais poderá me ensinar."

p. 103 a 104

"Quando as técnicas e as habilidades se mantinham quase as mesmas durante a vida de um homem, o papel do saber permanecia despercebido, a capacidade de aprendizagem permanente dos indivíduos e dos grupos não aparecia como uma qualidade determinante. Contudo, hoje, os conhecimentos não apenas evoluem muito rapidamente, mas, sobretudo, comandam a transformação das outras esferas da vida coletiva; como conseqüência, o que ficava "invisível", porque era imóvel, passa bruscamente para o primeiro plano."

p. 105

"O objetivo desta obra é expor os conceitos e as técnicas que tornarão visível o espaço do saber e, ao mesmo tempo, a identidade de cada um nesse espaço. [parágrafo] As principais questões dessa visibilização são a dignidade desses a quem os saberes da vida são negados e a construção de uma nova civilidade fundada sobre as comunidades de aprendizagem e de conhecimento."

p. 106

"cada um sabe, nunca se sabe, todo o saber está na humanidade."

/

"A escola, como instituição, define a priori (em função de suas tradições e da percepção da demanda social) os conhecimentos indispensáveis, corretos, válidos, quer seja para a cultura geral ou para os saberes especializados. Mas esses conhecimentos somente representam uma ínfima minoria do que "cada um sabe", do saber trazido pelo conjunto da humanidade, um saber que, além disso, se transforma e aumenta hoje em um ritmo tal que a escola tem, a cada dia que passa, mais dificuldade de acompanhar."

p. 106 a 107

"Temos, definitivamente, como resultado do sistema de reconhecimento de saber ainda hoje defendido pela escola e pela universidade: que alguns dentre nós são absolutamente ignorantes (ainda que cada um saiba); que se possuo um diploma, eu sei (ainda que nunca se saiba); que o saber somente é válido quando reconhecido pela instituição (ainda que todo saber esteja na humanidade)."

p. 107

"Não colocamos de forma alguma em questão a indispensável tarefa de instrução das crianças realizada na escola primária, nem o ensino dispensado pelos colégios e universidades. Propomos apenas um método de visibilização dos saberes e de reconhecimento das competências muito mais amplo e democrático do que o que vigora hoje."

/

"Não se trata, de forma alguma, aqui, de um panfleto a mais "contra a escola", mas de um projeto positivo de que os educadores poderiam perfeitamente se apropriar no próprio exercício de sua profissão." [Pode vir a ser objeto de crítica do Labirinto.]

p. 109

"Houve a tatuagem no corpo de desejo, o nome no espaço da linguagem, o endereço no território ou o sinal exterior de riqueza no espaço econômico. Quanto à identidade cognitiva, que chamamos brasão, tornar-se-á a segunda "pele" do indivíduo no seio de espaço do saber."

p. 113 a 133

[para ter uma visão mais explicativa do que são as árvores de conhecimento e de como se dá sua aplicação]

p. 135

"As árvores de conhecimento são fundadas sobre princípios de auto-organização, de democracia e de livre troca na relação com o saber. Ao abandonar uma concepção feudal dos conhecimentos organizados em disciplinas, dominados pelos grandes conceitos, desenvolvem um espaço do saber produzido por todos, coextensivo à vida das coletividades humanas, sem muros nem fossos incontornáveis. A diversidade das competências e dos recursos cognitivos de qualquer comunidade pode, então, tornar-se visível. Um espaço de comunicação e de negociação entre todos ou atores implicados pelas relações com o saber é instituído. O mesmo instrumento pode ser manejado pelos indivíduos que oferecem competências, pelos empregadores que os procuram e pelos formadores que os transformam."

p. 155

"Em um espaço em que todos os saberes podem ser mascarados sem hierarquia e sem a priori, as diferenças se tornam uma fonte de enriquecimento das comunidades ao invés de serem um fator de violência."

p. 186

"a diversidade e o afluxo dos saberes hoje é tal que nenhum indivíduo, e principalmente nenhum grupo fechado, pode mais possuir o conjunto dos conhecimentos como ainda era possível nas sociedades arcaicas ou tradicionais. A inteligência, o pensamento, o conhecimento estão condenados à partilha, à abertura."

Seleção de citações: Eduardo Loureiro Jr., abril de 2000

 


A MEDIAÇÃO TENTADA POR PLATÃO ENTRE “ESCRITURA” E “ORALIDADE” E A RELAÇÃO ESTRUTURAL ENTRE “ESCRITO” E “NÃO-ESCRITO”

 





Giovanni Reale, HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA

Síntese: Pe. Paolo Cugini


Por que é necessário superar o critério tradicional e adquirir um novo critério para compreender o pensamento de Platão

A filosofia de Platão foi, para usar uma terminologia moderna, por mais de um milênio, a mais “influente” e a mais estimulante.

Qual a razão fundamental de tudo isto? Ele ensinou-nos a olhar a realidade com novos olhos (ou seja com a visão di espírito e da alma) e a interpretá-la em uma nova dimensão e com um novo método que recolhe todas as instâncias postas sucessivamente pela especulação precedente, fundindo-as e unificando-as, elevando-se a um novo plano de pesquisa alcançado com a que ele mesmo denominou a “segunda navegação”. Platão diz expressamente que o filósofo não consiga por escrito as coisas de “maior valor”. Existe uma tradição indireta que atesta a existência de “Doutrinas não-escritas” de Platão transmite seus principais conteúdos.

Os escritos não são para Platão a expressão plena e a comunicação mais significativa do seu pensamento e que mesmo possuindo nós todos os escritos de Platão, de todos esses escritos não podemos extrair todo o seu pensamento, e a leitura e a interpretação dos diálogos devem ser levadas a cabo numa nova ótica.

O juízo de Platão sobre os escritos no “Fedro”

Platão viveu em um momento no qual a dimensão da “oralidade”, que constituíra o eixo de sustentação da cultura antiga, perdia importância em favor da dimensão da “escritura”, que se tornava predominante.

O filosofo só é verdadeiramente tal tão-somente e na medida em que não confia aos escritos, e assim ao discurso oral “as coisas de maior valor”.

Os autotestemunhos contidos na “Carta VII”

Sobre o que compreende o “todo” “as coisas maiores”, “as coisas mais serias”, ou seja, “os princípios supremos da realidade”, Platão não quis escrever nem desejou que algum dos seus discípulos escrevesse. Segundo a sua opinião, para a maioria o discurso escrito sobre esses temas danoso.

Significação, alcance e finalidade dos escritos platônicos

A forma dialógica na qual são redigidos quase todos os escritos de Platão tem sua matriz na forma do filosofar socrático.

a) Nos primeiros diálogos, que são os que mais se aproximam do espírito socrático, Platão se propõe finalidade protéticas, educativas e morais, análogas ás que o próprio Sócrates tinha em vista com o seu filosofar moral.

b) Os diálogos platônicos nunca têm por objetivo espelhar colóquios que realmente tiveram lugar, mas representam modelos de colóquios idéias, ou seja, modelos de comunicação filosófica coroada de êxito ou então concluída sem êxito.

Os diálogos apresentam discussões dialéticas magistralmente orquestradas, nas quais o método do élenchos, isto é, o método de procura da verdade por meio da refutação do adversário, alcança algumas vezes a perfeição.

a) Na exposição o escrito deveria fixar e pôr á disposição do autor e dos outros um material conceitual adquirido por outro caminho, isto é, em discussões antes realizadas e, portanto, na dimensão antecedente da oralidade. Essa função “rememorativa” aparece em primeiro plano a partir do momento em que os diálogos platônicos adquirem uma notável espessura doutrinal e, portanto, sobretudo no arco dos diálogos que vai da República.

b) Platão chega a negar ao discurso escrito a capacidade de “comunicar” eficazmente as doutrinas, reservando-a ao discurso oral.

Não obstante as decididas afirmações que lemos no Fedro, é claro que o escrito platônico é também um instrumento de comunicação filosófica.

Platão “concebe desde o principio o escrito filosófico como um escrito não-autárquico, ou seja, como escrito que, do ponto de vista do conteúdo deve ser transcedido se quer compreendê-lo plenamente. O livro do filosofo deve ter a justificação dos seus argumentos além dele mesmo”.

O “socorro” que a tradição indireta presta aos escritos platônicos

Desde a fundação da Academia, Platão já possuía um quadro das “Doutrinas não-escritas” e uma concepção exata das relações entre “escrita” e “oralidade”. Por conseguinte, todos os diálogos mais significativos de Platão, que sempre foram considerados pontos essenciais de referencia para poder reconstruir o seu pensamento, subentendem o quadro teorético geral das “Doutrinas não-escritas”.

A questão da unidade e do sistema no pensamento de Platão

O maior problema que ocupou os intérpretes de Platão desde a antiguidade até hoje consiste na reconstrução da unidade do pensamento platônico e em alcançar uma sintética e orgânica que ordene o complexo material conceitual que os diálogos nos oferecem, no qual se entrecruzam perspectivas múltiplas de gênero diverso,instancias anoréticas e problemáticas, referencias a dimensões diferentes, disfarces irônicos muitas vezes desconcertantes, provocações surpreendentes.

De quanto se depende dos testemunhos que chegaram até nós, não há duvida de que Platão tivesse em vista apresentar um sistema capaz de abarcar o real na sua inteireza e nas suas partes essenciais.

Explicar significa unifica uni-ficar, em função de conceitos de base que implicam um vínculo estrutural entre si e que referem a um conceito supremo que os engloba. Portanto, “sistema” é uma conexão orgânica de conceitos em função de um conceito-chave.

A questão da ironia e sua função nos diálogos platônicos

A ironia platônica implica a posse de algo positivo, que não é expresso diretamente com o fim de evitar a incompreensão de quem não é capaz de entender.

“Mito” e “logos” em Platão

O mito em Platão renasce não apenas como expressão de fantasia, mas, antes, como expressão daquela que poderemos denominar fé.

Com efeito, o discurso filosófico platônico sobre alguns temas escatológicos na maior parte dos diálogos, do Górgias em diante, torna-se uma espécie de fé acompanhada de razoes: o mito procura um esclarecimento no logos, e o logos um complemento no mito.

Platão confia a força do mito a tarefa, no momento em que a razão alcançou seus limites extremos, de superar intuitivamente esses limites e de coroar e completar esse esforço da razão, elevando o espírito a uma visão ou, ao menos, a uma tensão transcendente. O mito, do qual Platão faz uso metódico, é essencialmente diverso do mito pré-filosófico que ainda não conhecia o logos. Trata-se de um mito que não somente é expressão de fé, como dizíamos, mais do que de espanto fantástico, mas é igualmente, um mito que não subordina logos a si, mas estimula o logos e o fecunda no sentido que já explicamos, sendo um mito que, em certo sentido, enriquecer o logos. Em suma, é um mito que, ao ser criado, é despojado pelo logos dos seus elementos puramente fantásticos para manter somente seus poderes alusivos e intuitivos.

Exatamente a medida em que o cosmo em devir é uma “imagem” do ser puro, que é “modelo originário”, ele é cognoscível de alguma maneira; e justamente sobre esse seu ser “imagem” funda-se o diferente alcance cognoscitivo com respeito ao modelo.

As conclusões de Platão são, pois, as seguintes: com respeito ao universo físico (que não é puro ser, mas a sua imagem), não é possível fazer raciocínios veriativos em sentido absoluto, mas é possível fazer somente alguns raciocínios verossímeis.

Por conseguinte, toda a cosmologia e toda a física são, nesse sentido, “mito”.

Mas há outros significados do mito em Platão. Algumas vezes o nosso filósofo o apresenta mesmo com uma esconjura de caráter tipicamente mágico. Foi justamente salientado que, com isto, “ele pretende caracterizar a particular força persuasiva do discurso poético-mítico, que é capaz de alcançar não somente as chamadas racionais, mas também as camadas emotivas da alma”.

Mais ainda, em certos casos Platão entendeu por mito toda espécie de exposição narrativa de temas filosóficos que não tenha puramente a forma dialética (e, portanto, todos os seus diálogos ou grande parte dos mesmos). Para o nosso filósofo, falar por mitos é um exprimir-se por imagens, o que permanece valido em vários níveis, na medida em que pensamos não só por conceitos, mas também por imagens.

O mito platônico na sua forma e no seu poder mais elevados é um pensar-por-imagens não somente na dimensão físico-cosmológica, mas também na dimensão escatológica e mesmo metafísica.

O encontro com os físicos e a verificação da inconsistência da sua doutrina

Uma das passagens mais famosas e mais grandiosas que Platão nos deixou nos seus escritos é, sem dúvida, a passagem central do Fédon. Poder-se-ia dizer que ela constitui a primeira exploração e demonstração racionais da existência se uma realidade supra-sensível e transcendente.

As questões metafísicas mais importantes e a possibilidade da sua solução permanecem ligadas aos grandes problemas da geração da corrupção e do ser das coisas e estão particularmente articuladas com a individuação da “causa” que está no seu fundamento. O problema de fundo é o seguinte: por que as coisas nascem, por que se corrompem, porque são?

O encontro com Anaxágoras e a verificação da insuficiência da teoria da Inteligência cósmica por ele proposta

Anaxágoras teve razão ao afirmar que a Inteligência é a causa de tudo, mas não conseguiu dar a essa afirmação um fundamento adequado e uma necessária consistência, justamente porque não o permitia o método de investigação dos naturalistas, por ele seguido.

Inteligência e elementos físicos não são suficientes para “ligar” e “manter juntas” as coisas: é necessário alcançar outra dimensão que nos conduza ao conhecimento da “causa verdadeira”, exatamente aquilo ao qual a Inteligência se refere. É essa a dimensão do inteligível só alcançável com um método diferente do método seguido pelos físicos e para o qual Platão, a essa altura, aponta com a grande metáfora da “segunda navegação”.

A grande metáfora da “segunda navegação” como símbolo do acesso ao supra-sensível

“Segunda navegação” é uma expressão tirada da linguagem dos marinheiros, e a sua significação parece ser fornecida por Eustáquio que, referindo-se a Pausânias, explica: “chama-se ‘segunda navegação’ aquela que se leva adiante com remos quando se fica sem ventos”. A “primeira navegação”, feita com velas ao vento, corresponderia àquela levada a cabo seguindo os naturalistas e o seu método; a “segunda navegação”, feita com remos e sendo muito mais cansativa e exigente, corresponde ao novo tipo de método, que leva a conquista da esfera do supra-sensível. As velas ao vento dos físicos eram os sentidos e as sensações, os remos da “segunda navegação” são os raciocínios e os postulados: justamente sobre eles se funda o novo método.

O novo tipo de método devera fundar-se sobre os logoi e, por meio deles, devera procurar captar a verdade das coisas.

As duas fases da “segunda navegação”: a teoria das Idéias e a doutrina dos Princípios

O beneficio da “segunda navegação”, é a descoberta de um novo tipo de “causa” que consiste nas realidades puramente inteligíveis. O que se ganha o postular a existência dessas realidades é a explicações de todas as coisas exatamente em função de tais realidades, e a exclusão de que o sensível e o físico possam ser considerados no nível da “causa verdadeira” e, em conseqüência, a redução do sensível ao nível de meio e de instrumento mediante os quais a “causa verdadeira” se realiza. Portanto, as coisas belas se explicarão não pelos elementos físicos (cor, figuras e coisas semelhantes), mas em função da Beleza-em-si;.

A primeira fase da “segunda navegação” consiste em tomar por base o postulado mais soído que consiste em admitir as realidades inteligíveis como “causas verdadeiras” e, assim, considerar como verdadeiras as coisas que estão de acordo com esse postulado e como não-verdadeiras aquelas que não estão de acordo com ele.

Algumas observações sobre o termo “Idéia” e sobre o seu significado

Platão entendia por “Idéia”, em certo sentido, algo que constitui o objetivo especifico do pensamento, para o qual o pensamento está voltado de maneira pura, aquilo sem qual o pensamento não seria pensamento: suma, a Idéia platônica não é de modo algum um puro ser de razão e sim um ser e mesmo aquele ser que é absolutamente, o ser verdadeiro.

Além disso, convém notar o seguinte. Os termos idéia e eidos derivam ambas de ideiv que quer dizer “ver”. Na língua grega anterior a Platão, eram empregados sobretudo para designar a forma visível das coisa, a forma exterior e a figura que se capta com o olhar, portanto, o “que é visto” sensível. Sucessivamente idéia e eidos passam a indicar, por transferência, a forma interior, ou seja, a natureza especifica da coisa, a essência da coisa. Esse segundo uso, raro antes de Platão, torna-se estável na linguagem metafísica do nosso filósofo.

Portanto, Platão fala de Idea e de Eidos sobretudo para indicar essa forma interior, essa estrutura metafísica ou essência das coisas de natureza puramente inteligível, antes “da Idéia platônica, que é qualidade, imaterialidade, e finalidade, há a idéia democritiana, que é quantidade, materialidade e necessidade. O salto fundamental de Platão tornou-se possível por meio da “segunda navegação”: as formas ou Idéias platônicas são o originário qualitativo imaterial, são realidades de caráter não físico, mas metafísico. É justamente a Platão que remonta a criação das expressões “a visão da mente”, “a visão da alma”, para indicar a capacidade da inteligência para pensar e captar a essência.

As coisas que captamos com os olhos do corpo são formas físicas; as coisas que captamos com o “olho da alma” são, ao contrario, formas não-fisicas: o ver da inteligência capta formas inteligíveis que são, exatamente, essências puras. As idéias são as essências eternas do bem, do verdadeiro, do belo, do justo, e assim por diante, que a inteligência, quando se protende no máximo da sua capacidade e se move na pura dimensão do inteligível, consegue “fixar ou ver”. Para Platão há uma conexão metafísica entre a visão do olho da alma e o objeto em razão do qual tal visão existe.

O ver intelectivo implica como sua razão de ser, o objetivo visto intelectivo, ou seja, a Idéia. Um nexo sintético radical, justamente uma estrutural entre visão-visto-forma-ser. Portanto, na teoria das Idéias, Platão exprime verdadeiramente um dos traços espirituais supremos da cultura grega.

As características metafísico-ontológicas das Idéias

As características básicas das Idéias podem ser resumidas nas seis seguintes:

1) a inteligibilidade (a Idéia é, por excelência, objeto da inteligência e só com a inteligência pode ser captada);

2) a incorporeidade (a Idéia pertence a uma dimensão totalmente diversa do mundocorpóreo sensível);

3) o ser no sentido pleno (as Idéias são o ser que é verdadeiramente);

4) a imutabilidade (as Idéias são imunes a todo tipo de mudança e não só ao nascer e ao perecer);

5) a perseidade (as Idéias são em si e por si, isto é, absolutamente objetivas);

6) a unidade (cada Idéia é uma unidade e unifica a multiplicidade das coisas que dela participam).

1) A inteligibilidade exprime, portanto, uma característica essencial das Idéias que as contrapõem ao sensível como uma esfera de realidade subsistente acima do próprio sensível e que, exatamente por isso, só pode ser captada pela inteligência que saiba liberta-se adequadamente dos sentidos.

2) A distinção dos dois planos(ou das duas “regiões” ou esfera) da realidade, o plano sensível, constitui verdadeiramente o caminho principal de todo o pensamento platônico. O inteligível, exatamente enquanto não pode ser captado pelos sentidos, que apreendem somente o corpóreo, mas apenas inteligência, que transcende a dimensão do físico e do corpóreo é, por sua própria natureza, “incorpóreo”.

Com Platão, o termo “incorpóreo” assume o significado e a valência conceptual que ainda hoje lhe atribuímos. Foi exatamente a “segunda navegação” que tornou possível a descoberta dessa dimensão do ser.

     3)   Para ele, o incorpóreo torna-se “forma” inteligível e, portanto, um ser determinado que age como causa determinante, um ser de-limitado que age como causa limitante, ou seja a causa verdadeira e real. O “ser” das Idéias é aquele tipo de ser que é puramente inteligível e incorpóreo, que não nasce nem parece de maneira alguma e que é em si e por si em sentido pleno: somente o ser verdadeiro é verdadeiramente cognoscível; o mundo sensível, o do ser misturado ao não-ser, é apenas objeto de opinião, enquanto do não-ser há somente o ignorância pura.

Para explicar verdadeiramente o vir-a-ser, as próprias Idéias não devem estar sujeitas a ele, mas devem ter como próprio delas aquele ser que o vir-a-ser, não o tendo como seu, deve como que pedir emprestado e receber. (O vir-a-ser como tal não é ser, mas somente tem ser; com efeito, ele implica sempre também o não-ser e, portanto, o que tem de ser deve tê-lo por participação a outro.

O mundo do vir-a-ser é o mundo sensível, o mundo do ser e do imóvel é o mundo inteligível. O mundo das coisas sensíveis é que possui as características que Heráclito e, sobretudo, os heraclitianos, atribuíam a todo o ser, enquanto é o mundo das idéias que possui as características que Parmênides e os eleatas atribuíram a todo o real.

Platão compõe a antítese entre as duas escolas exatamente com a distinção dos dois diversos planos da realidade: não toda a realidade é tal como a queriam os heraclitianos, mas somente a realidade sensível; analogamente, não toda a realidade é tal como a queriam os eleatas, mas somente a realidade inteligível, as Idéias.

O supremo caráter metafísico da “unidade” das Idéias

Cada Idéia é uma “unidade” e, como tal, explica as coisas sensíveis que dela participam, constituindo deste modo uma multiplicidade unificada. O verdadeiro conhecimento consiste em saber uni-ficar a multiplicidade numa visão sinótica que reúne a multiplicidade sensorial na unidade da Idéia da qual depende. Para Platão, a própria natureza do filosofo se manifesta exatamente em saber captar e possuir essa unidade.

O dualismo platônico como expressão da transcendência 

As realidades empíricas são sensíveis, ao passo que as Idéias são inteligíveis; as realidades físicas são mescladas com o não-ser, enquanto as Idéias são ser em sentido puro e total; as realidades sensíveis são corpóreas, enquanto as Idéias são incorpóreas; as realidades sensíveis são corruptíveis, enquanto as Idéias são realidades estáveis e eternas;.

Desde logo observe-se que as Idéias têm tanto de “imanência” quanto de “transcendência”, para Platão a transcendência das Idéias é justamente a razão de ser da sua imanência. As Idéias não poderiam ser a causa do sensível, se não transcendessem o próprio sensível; a transcendência das Idéias é justamente o que qualifica a função que elas cumprem de “causa verdadeira”. 

Platão, com as Idéias, descobriu o mundo do inteligível como a dimensão incorpórea e metaempirica do ser. E esse mundo do inteligível incorpóreo transcende o sensível. Não no sentido de uma absurda “separação” e sim no sentido da causa metaempírica.

Os primeiros princípios identificados com o Uno e com a Díade grande-e-pequeno

Toda a filosofia anterior a Platão é penetrada pela convicção básica de que explicar significa unificar. Esta convicção sustenta, em primeiro lugar, o discurso de todos os físicos, que procede a explicação da multiplicidade dos fenômenos referentes ao cosmo reduzindo-a, justamente, á unidade de um princípio ou de alguns princípios unitariamente concebidos. Essa explicação atinge sua expressão extrema (mas, por isso mesmo, bastante instrutiva) nas doutrinas dos eleatas, os quais resolvem na unidade a totalidade do ser, desembocando num verdadeiro e próprio monismo radical. Mas tal convicção sustenta também o discurso socrático, todo inteiro apoiado na pergunta “o que é?” que implica, em geral, a redução sistemática do que é objetivo da discussão a uma unidade.

A própria doutrina das Idéias de Platão, considerada no seu com junto, nasceu exatamente de uma convicção analógica e de uma acentuação notável da importância da visão sinótica, na qual vai terminar a operação metódica da “unificação” do múltiplo que se pretende explicar.

No entanto a teoria das Idéias da origem a uma ulterior pluralidade, embora situada no novo plano metafísico do inteligível, a multiplicidade sensível resolve-se e simplifica-se nas Idéias inteligíveis; mas a multiplicidade inteligível, por sua vez, não se resolver por si mesma. Além disso, é preciso ter presente que Platão admite Idéias não somente para aquelas coisas que realmente chamamos substanciais (homens, animais, vegetais, etc...), mas também para todas as qualidades e para todos os aspectos das coisas que podem ser reunidos sinoticamente de tal sorte que o pluralismo do mundo das Idéias mostra-se verdadeiramente notável, ora, nos seus diálogos e para os leitores que se limitavam á leitura dos mesmos, Platão julgou que o primeiro nível de fundação metafísico fosse suficiente uma vez que, de posse da teoria das Idéias, as varias doutrinas que ele confiava aos escritos estavam suficientemente justificadas. Com os alunos porém, e no interior da Academia, tendo em vista resolver os problemas levantados pela teoria das Idéias, ele propôs como objeto de discussão, e de maneira assaz desenvolvida, justamente o segundo nível de fundamentação.

O esquema do raciocínio que sustenta a duplicidade de nível da fundamentação metafísica é o seguinte: como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera das Idéias, analogamente, a esfera da multiplicidade das Idéias depende de uma esfera ulterior de realidade da qual as Idéias derivam, e essa é a esfera primeira e suprema em sentido absoluto. Essa é constituída, portanto, pelos primeiros Princípios (que são o Uno e a Díade indefinida dos quais logo falaremos). Como sabemos, Platão os chamava expressamente (     ), e é justamente por esse motivo que propomos denominar protologia a doutrina que deles se ocupa.

É claro, pois, em que sentido a ontologia das Idéias e a protologia ou teoria dos Princípios constituam dois níveis distintos de fundamentação, dois planos sucessivos da investigação metafísica, isto é, dois estágios da “segunda navegação”. A pluralidade, a diferença, e a gradação dos entes nascem da ação do Uno que determina o Principio oposto da Díade, que é uma multiplicidade indeterminada. Os dois princípios são, pois, igualmente originários. O Uno não teria eficácia produtiva sem a Díade, mesmo sendo hierarquicamente superior á Díade.

O ser como síntese (mistura dos dois Princípios)

É esse fulcro da protologia platônica: o ser é produto de dois princípios originários e é uma síntese, um misto de unidade e multiplicidade, de determinante e indeterminado, de limitante e ilimitado.

A visão categorial do real

Dos dois Princípios supremos derivam os Números ideais, bem como as Idéias, que têm estruturas numéricas e, em conseqüência, todas as coisas. No entanto, Platão não se limitou a essa dedução e, a modo de comprovação, ou seja, como argumentação essencial de confirmação, apresentou também uma divisão categorial de toda a realidade com o escopo de demonstrar como todos os seres devam ser efetivamente referidas aos dois princípios enquanto derivam da sua mescla. Trata-se de uma argumentação de extrema importância teorética e histórica porque, além de iluminar as linhas de fundo das “Doutrinas não-escritas”, esta também nos fundamentos da posterior doutrina das categorias de Aristóteles (que dela recebe uma inspiração fundamental, embora a oriente em diferente direção).

As realidades matemáticas

Os números ideais são muito diferentes dos números e dos objetos matemáticos em geral, os quais ocupam um lugar ontologicamente “intermediário” (em grego), isto é, um lugar que está no meio entre os entes ideais e os entes sensíveis.

Os juros pagos por Platão na “República” em torno ao Bem e a dívida deixada aberta

Esse “conhecimento máximo”, a conquista do máximo rigor e exatidão, é o conhecimento da Idéia do Bem, da qual a justiça e a virtude derivam o seu ser úteis e proveitosas. Dela deriva todo valor axiológico. Conseqüentemente, os livros centrais da República derivam concentrar-se justamente sobre a definição dessa Idéias, isto é, sobre a definição da essência do bem em si por si.

O “filho” do bem é representado pelo sol numa pagina que, sob muitos aspectos, tornou-se uma das mais famosas ou mesmo a mais famosa, porque apresenta a semelhança mais clara e mais bela que, por meio de imagens, revela tudo o que Platão quis confiar aos escritos acerca do Bem.

A Idéia do Bem confere ás coisas conhecidas a verdade, e a quem a conhece confere a faculdade de conhecer a verdade das coisas; enquanto tal, a Idéia do Bem é, ela mesma, cognoscível. E como a visão e o que é visto não são o Sol, mas são afins ao Sol, assim também o conhecimento e a verdade não são o Bem, mas afins ao Bem.

Além disso, como o Sol está acima da visão e do que é visto, assim o bem está acima do conhecimento e da verdade. O Bem vem a ser uma beleza extraordinária na medida em que excede em beleza o conhecimento e a verdade.

A posição do mundo físico no âmbito do real segundo Platão 

O conceito de base que se deve ter presente para poder compreender a doutrina do Demiurgo e a cosmologia é o da estrutura hierárquica do real, que constitui um daqueles notáveis eixos de sustentação que garantem a unidade e a compreensão global correta do pensamento de Platão. Aos princípios primeiros e supremos do Uno e da Díade seguem-se, segundo Platão, 1) o plano das Idéias, 2) o plano intermediário dos seres matemáticos, 3) enfim, o plano do mundo sensível.

A relação subsistente entre os planos é de dependência ontológica unilateral e não biunívoca: o plano inferior não pode ser sem o superior, mas não vice-versa,

Princípios primeiros e supremos: “Uno” e “Díade indeterminada”

A formula platônica técnica era a seguinte: o que depende pode ser suprimido sem que seja suprimido, com isto, aquele do qual depende. Significa que encontramos diante de um tipo de dependência metafísica dos planos sucessivos do ser um com relação ao outro o que implica, por assim dizer, o adensamento, em cada fase sucessiva, do Principio diádico que não é deduzido nem explicado sistematicamente, mas apresentado simplesmente como tal e, portanto, dado como originário. Nesse sentido, a causação que o plano superior exerce é necessária, mas não suficiente, porque explica apenas o aspecto metafisicamente formal do plano sucessivo (tudo o que se refere á sua ordem e á sua unitariedade), mas não a sua diferença (todos os seus aspectos de multiplicidade e pluralidade), que depende do Principio diadico.

Para Platão, é claro que o ser do mundo sensível é um ser de alguma maneira partido, dividido, condicionado pelo não-ser; mas é do mesmo modo claro para ele que não se trata de maneira alguma do absoluto não-ser, ou seja, do nada, ou de algo totalmente privado da marca metafísica do ser.

O ser do sensível é um “intermédio” (grego) entre o puro ser e o não-ser. O mundo sensível, mundo do vir-a-ser, não é ser (o ser verdadeiro e absoluto), mas tem ser e o tem pela sua participação ao mundo das Idéias (isto é, ao ser verdadeiro): tem, por assim dizer, um ser tonado de empréstimo. 

O Demiurgo e o seu papel metafísico

Platão resume seu pensamento em quatro axiomas.

1) O ser que é sempre não está sujeito á geração e ao devir, porque permanece sempre nas mesmas condições; ele é captado pela inteligência por meio do raciocínio.

2) O devir, que continuamente se engendra não é nunca um verdadeiro ser justamente porque está em continua mudança; ele é objeto de opinião, ou seja, é captado mediante a percepção sensorial, distinta da razão.

3) Tudo o que está sujeito ao processo da geração exige uma causa porque, para ser engendrada toda coisa tem necessidade de uma causa que produza a geração. Essa causa é um Demiurgo, um Artífice, vale dizer, uma causa eficiente.

4) O Demiurgo, ou seja, o Artífice produz sempre alguma coisa contemplando previamente algo como ponto de referencia, ou seja, tomando-o como modelo. 

         Sobre o fundamento desses quatro axiomas, Platão constrói o edifício metafísico e cosmo-ontologico de todo o tratado cosmológico do Trimeu e, ao mesmo tempo, fundamenta a estrutura gnosiológica e a justificação da metodologia adotada.

Portanto, existe um ser puro que só podemos captar com a inteligência e é justamente esse que o Demiurgo contempla como modelo para poder realizar o mundo sensível e sujeito ao devir. Assim, o cosmo sensível é uma “imagem”, realizada pelo Demiurgo, de uma realidade meta-sensível.

Essa concepção do puro ser como “modelo” e do vir-a-ser como “imagem” do modelo e a necessidade de uma causa eficiente (o Demiurgo ou Artífice) para fundar e justificar essa relação, constituem um fundamental eixo de sustentação da doutrina escrita de Platão.

O Princípio material do mundo sensível, seu papel metafísico e seus nexos com a Díade

Toda a realidade é um “misto” que implica uma conjunção sintética bipolar de dois princípios opostos o motivo da intervenção necessária da Inteligência demiúrgica depende do fato que, enquanto na esfera do inteligível os dois Princípios opostos que formam o “misto” são, ambos, de caráter inteligível, na esfera do sensível, ao contrario, não é assim. O Principio material que constitui o mundo sensível não pode ser reduzido totalmente á estrutura do Principio ideal e exatamente por esse motivo dá origem a um ser-em-devir. Mas há dois pontos importantes:

a) O Principio material participa de modo bastante complexo do inteligível.

b) O que o Principio material recebe e com o qual se “mistura” não são as “imagens da realidade que sempre são”, as “imitações dos seres eternos” e, portanto, imagens ou aparências de outras realidades, ou seja, as imagens das Idéias obtidas pela mediação dos seres matemáticos.

As características essenciais do Principio material sensível, e quais suas relações com a Díade das “Doutrinas não-escritas”.

1) Platão sublinha, de maneira muito acentuada, que o gênero da realidade inteligível “que é sempre da mesma maneira, não gerado e imperecível” e que, como tal, exerce a função de modelo, justamente em razão da sua estrutura ontológica, não acolhe outra coisa que venha de fora, nem “passa numa outra coisa”. E, ao contrario, insiste em que a realidade sensível, cópia ou imagem sensível do modelo inteligível, é gerada e está em movimento continuo, “nasce em qualquer lugar e novamente perece no lugar”.

O status ontológico das imagens que se realizam no sensível implica a) o ser do qual é aparição ou manifestação e, portanto, imagem e ao qual se refere como a seu modelo e b) um substrato, ou seja, uma base sobre a qual se apóia, justamente a espacialidade da qual falamos e que se torna necessária como substrato do que nasce.

2) Para caracterizar o principio material sensível, Platão apresenta, além da conotação conceptual da “espacialidade”, também a de “receptáculo” de tudo o que é gerado. O “receptáculo” é uma realidade que permanece sempre idêntica na sua estrutura amorfa.

3) Uma conotação conceptual ulterior e bastante interessante do Principio material sensível é aquele que o indica como fonte da geração, ou seja, como realidade que se move e se agita de maneira irregular e desordenada, trazendo em si caracteres rudimentares e traços dos elementos (água, ar, terra e fogo) e implicando também forcas e afeiçoes sem ordem e sem equilíbrio, desconcentradas entre si. Portanto, o Princípio material é como um feixe de forças, agitação e movimentos desordenados e caóticos.

4) Por último, observe-se que, justamente como primeira conotação do Princípio material Platão faz apelo aos conceitos de “necessidade” e de “causa errante”.

A expressão Díade indefinida do grande-e-pequeno exprime de maneira sintética a natureza do Princípio material, que consiste em tender de maneira indeterminada e i-limitada na dupla direção do grande e do pequeno de várias maneiras.

Esse tender ao grande-e-pequeno, ou seja, ao mais e ao menos em todos os sentidos, evidentemente ao infinito, vale para tudo o que, em todos os níveis, tende ao mais e ao menos, ao excesso e ao defeito, á desmesura nas direções opostas.

Evidentemente, o Princípio antitético ao Bem-Uno se deferência nos diversos graus do ser e, em particular, nas três grandes esferas: 1) a ideal, 2) a intermediária, 3) a sensível. Na esfera ideal, o Princípio antitético produz especialmente a diferenciação e a graduação hierárquicas; a esfera intermediária produz também multiplicidade das mesmas realidades em sentido horizontal, mas sempre no nível inteligível; o novum porém que ele introduz na esfera do sensível consiste justamente em dar origem á própria dimensão do sensível, com todas suas implicações com respeito ás dimensões do inteligível.

A tradição indireta refere-nos que Platão atribuía ao Uno a causa do Bem e á Díade a do Mal. Todavia não nos diz expressamente que Díade fosse considerada tal em todos os níveis.

O Princípio antitético ao Uno-Bem é prevalentemente causa de mal no seu nível mais baixo: no nível sensível, a Díade não é totalmente dominada pelo inteligível e pelo racional e deixa falhas abertas a uma desordem e a uma des-mesura de teor bem diverso daquele que se verifica na esfera dos inteligíveis. Nela, a Díade causa, em última analise, somente antíteses, diferença, multiplicidade e rebaixamento de grau somente em nível metafísico; ao passo que na esfera do sensível a Díade mantém abertas as conseqüências negativas do vir-a-ser, da caducidade ontológica, da insuficiência gnosiológica, e da problematicidade axiológica, em suma, todas as características ligadas á esfera do sensível.

O “Uno” como marca emblemática do agir e do operar do Demiurgo

O Demiurgo, enquanto é o “bom” em sumo grau (ou seja, o “ótimo”), opera atuando o Bem em sumo grau, ao levar a ordem ao seio da desordem:.

Ao fazer essa obra, o Demiurgo apoiou-se no Uno e operou realizando a unidade-na-multiplicidade, nos modos mais variados e mais notáveis, por meio da medida e das relações numéricas e geométricas.

Com efeito, diz-nos Platão, sem a intervenção de Deus todas as coisas jazam “sem ordem e sem medida”. E ordenar o universo consiste justamente em produzir os logoi, as relações numéricas, a medida e em plasmar e modelar “segundo formas e números” e é justamente isso que produz coisas belíssimas e ótimas o Demiurgo produz é um bem que se infunde no principio material mediante a relação numérica e pondo em proporção as coisas que estão em desordem segundo relação numérica a atividade do Deus-Demiurgo consiste em levar as coisas que se encontram em condição desordenada a uma medida ou co-medida introduzir nelas ordem e proporção geral e particular, de modo a conduzir-las a estar em relação adequada com a medida.

Referindo-se exatamente ao Uno, Platão caracterizou insistentemente em geral e em particular a atividade e as obras do Demiurgo, como dissemos. Podemos sintetizar essa insistência sobre o “Uno” como marca que caracteriza a atividade e a obra da Inteligência demiúrgica.

1) O mundo é perfeito porque é realizado como Uno. E para ser perfeito deve ser uno, porque o modelo, enquanto tal é uno; e o cosmo é imagem desse modelo.

2) A unidade do cosmo é garantida pelo liame particular que o Demiurgo estabeleceu entre os quatros elementos, que é um tipo de liame que faz das coisas ligadas um “uno em grau supremo”. Justamente sobre essa base da relação numérica que leva todas as coisas á unidade do Demiurgo funda a amizade, ou seja, a comunhão de todas as coisas entre si.

3) O cosmo é constituído como uno-todo, ou seja, como um “uno”- “inteiro” justamente porque tem como base cálculo numérico, que engloba num uno-inteiro a totalidade dos inteiros, sem deixar nada fora.

4) Também a forma esférica do cosmo realiza perfeitamente a unidade, porque a esfera é uma forma que inclui em si todas as formas realizando o Maximo da semelhança. O mesmo se diga do movimento circular que lhe foi impresso.

5) Também o tempo, realiza uma unidade no seu fluir, enquanto o tempo imita a eternidade que é um permanecer na unidade.

6) Mas justamente na criação (produção) dos quatros elementos matérias sensíveis o Demiurgo, realizando a imagem dos modelos ideais, desenvolvem uma complexa articulação de formas e números que de-limitam o Princípio material sensível. E este é o modo perfeito de realizar a unidade-na-multiplicidade.

7) Enfim a própria alma, que a Inteligência demiúrgica criou com o fim de realizar perfeitamente o modelo do inteligível no sensível, é uma e, exatamente, uma unidade que é constituída com a mistura de três realidades e um “inteiro” estrutura do segundo dimensões geométricas e numéricas harmonias que realizam o Bem, ou seja, a Unidade, a Medida, a Ordem de modo perfeito, como explicaremos melhor.

A atividade criacionista do Demiurgo platônico entendida na dimensão helênica

Nesse produzir a unidade-na-mutiplicidade e no produzir o “misto” do ser cosmológico e as estruturas que o tornam possível, desenvolver-se a atividade criadora do Demiurgo no mais alto grau possível na dimensão do pensamento dos gregos, que é uma forma de semicriacionismo (ainda que notável) comparada com a do Deus bíblico. Com efeito, enquanto a criação do Deus bíblico é absoluta, pois não pressupõe nada e é um produzir ex nihilo, a atividade criadora do Demiurgo platônico não é absoluta, pressupõe, justamente para produzir, a existência de duas realidades que têm entre si um nexo metafísico bipolar: a realidade do ser que é sempre do mesmo modo e que serva de exemplar, e a realidade do Princípio material sensível caracterizado pelo mais-e-menos, pelo desigual, pela desordem e pelo exesso. Levar essa realidade desordenada á ordem é justamente levar o não-ser ao ser, ou seja, “criar” um ser gerado que realize sensivelmente, da melhor maneira possível, o, ser não-gerado (e justamente é esse o criacionismo no sentido helênico.

Detenhamo-nos em três dos pontos que caracterizam da maneira mais perfeita a atividade criadora do Demiurgo, em sentido helênico, que consiste em levar o Uno aos Muitos mediante os seres matemáticos e a dimensão numérica: 1) a criação do tempo, 2) a criação dos elementos, 3) a criação da alma.

1) Comecemos com o exame da criação do tempo.

O exemplar ao qual o Demiurgo se refere na criação do cosmo é eterno. Ora, o eterno é um permanecer na unidade. Sendo assim, como é possível imitar este permanecer na unidade, característica essencial da eternidade? É exatamente a mediação do numero que torna possível e resposta. A imagem da eternidade é o fluir da mesma, ou seja, o fluir da unidade segundo um ritmo numérico que se realiza no dia e na noite, no mês e no ano e move-se ciclicamente segundo o numero. Desse movimento cíclico numericamente determinado nascem o “era” e o “será do tempo”. Justamente por isso o “era” e o “será” não podem ser referidos corretamente aos seres eternos para os quais vale somente o “é”, porque “era” e “será” são apenas cópia móvel numerada do “é” do eterno, que permanece no uno.

2) Mais complexa e articulada mostra-se a operação produtora dos quatro elementos: água, ar, terra e fogo.

Ao constituir os quatro elementos, o Demiurgo se inspira nas duas formas mais belas de triângulos: no triangulo retângulo isósceles e no triângulo que se obtém dividindo em duas partes o triângulo eqüilátero com uma perpendicular.

Em conclusão, a criação e a racionalidade dos corpos sensíveis em geral dependem exatamente da estrutura geométrica e matemática. O corpóreo físico-sensível espelha a estrutura do corpóreo inteligível ou seja, é “a mistura de uma combinação de necessidade e inteligência”.

3) Mais complexa mostra-se a operação da criação da alma do mundo ( e das almas em geral).

O Demiurgo ( e não a Idéia do Bem) é o Deus de Platão 

O Deus supremo, para Platão, é o Demiurgo.

A anamnese, raiz e condição do conhecimento no “Menon”

Fica agora por examinar de que maneira o homem pode ter acesso cognoscitivamente ao inteligível. Devemos responder aos seguintes problemas: como se dá e o que é o conhecimento? Em que difere o conhecimento do inteligível do conhecimento do sensível?

A primeira resposta ao problema do conhecimento se encontra no Menon. O conhecimento é anamnese, isto é, uma forma de “recordação”, um vir á tona do que já existe sempre no interior da nossa alma.

O escravo, como todo homem em geral, pode tirar e extrair de si mesmo a verdade que antes não conhecia e que ninguém lhe tinha ensinado. Da existência da verdade na alma Platão deduz em seguida a imortalidade e perenidade da mesma: é evidente que para poder fazê-la surgir maieuticamente da alam, a verdade deve subsistir na alma.

Confirmações da doutrina da anamnese nos diálogos posteriores

Platão ofereceu no Fédon uma comprovação ulterior da anamnese, referindo-se sobretudo aos conhecimentos matemáticos, a matemática revela que a nossa alma está de posse de conhecimento perfeitos, que não derivam das coisas sensíveis e que, ao contrario, espelham modelos ou paradigmas aos quais tendem as coisas, mesmo sem alcançá-los, como sabemos pela exposição da doutrina ontológico-metafisica.

A reminiscência supõe estruturalmente uma impressão na alma por parte da Idéia, uma “visão” metafísica originaria do mundo ideal que permanece sempre, mesmo se velada, na alma de cada um de nós.

Os graus do conhecimento delineados na “República”

O conhecer é possível porque temos na alma uma intuição originaria do verdadeiro. Os estágios e os modos específicos do conhecer ficam por determinar ulteriormente, e Platão determinou-os na República e nos diálogos dialéticos. 

As formas do conhecimento são duas: a mais baixa é a doxa, a mais alta é a episteme ou ciência: a primeira tem por objetivo o sensível, a segunda o supra-sensível.

A dialética 

Naturalmente, o comum dos homens detém-se nos primeiros dois graus da primeira forma do conhecimento, isto é, na opinião; os matemáticos elevam-se á dianoia; só o filosofo ascende á noesis e á ciência suprema.

Haverá uma dialética ascendente que, livre dos sentidos e do sensível, conduz ás Idéias e em seguida, de Idéia em Idéia, á Idéia suprema, com um procedimento sinótico.

Haverá também uma dialética descendente que, seguido o caminho oposto, parte da Idéia suprema ou de Idéias gerais e, procedendo por divisão (procedimento diairético), isto é, distinguindo passo a passo Idéias particulares contidas nas Idéias gerais e fundando-se nas articulações nas quais se desdobram, chega ás Idéias que não incluem em si Idéias ulteriores e assim consegue estabelecer o lugar que uma Idéia dada ocupa na estrutura hierárquica do mundo ideal e, com isso, a compreender a trama complexa das relações numéricas que unem as partes e o todo.

A construção protológica da apoiada sobre o uno e sobre os mitos

Quanto expusemos não alcança ainda o fundamento e a construção protologica da dialética, ou seja, os nexos fundacionais e totalizantes que constituem a trama da própria dialética em geral e em particular.

Três pontos merecem ser especialmente salientados.

a) Primeiramente é necessário ter bem presente que o procedimento sinótico e o diairético se entrecuzam de várias maneiras e encadeadamente, de sorte que um só é compreensível em conexão com o outro e reciprocamente. B) Em segundo lugar, é preciso ter bem presente o fato de que os nexos fundacionais consistem exatamente nas relações Uno/ muitos e que as gradações dos dois procedimentos dialéticos são as que levam passo a passo a abraçar a multiplicidade na unidade, até chegar á unidade suprema; e as que levam a decompor diaireticamente a unidade na multiplicidade, de modo a se compreender como o uno se desdobre nos muitos. C) Em suma, a dialética no seu sentido global leva á compreensão daquela coisa “admirável” da qual fala o Filebo, a saber, de como “os muitos sejam um e o um seja os muitos”. No seu supremo, ela é exatamente o conhecimento que o Demiurgo (a Inteligencia divina) possui de maneira perfeita.

A definição das relações positivas e negativas subsistentes entre as Idéias se reduz, nas suas últimas instancias, a essa individuação bastante complexa dos nexos Uno-muitos e muitos-Uno, e bem assim ás determinações segundo as quais as Idéias comunicam entre si ou  segundo as quais são entre si incomunicáveis.

Para concluir, resta chamar a atenção sobre um único ponto. Como o Uno de-termina e de-limita o Princípio oposto (Díade i-limitada e in-determinada), desdobrando-se nos Números ideais e na trama numérica ideal, que são a mais perfeita e idealmente articulada unidade-na-multiplicidade, assim analogamente as Idéias e a trama do mundo ideal determinam a Díade sensível com a mediação dos seres matemáticos “intermediários” entre ser inteligível e ser sensível, levada a cabo pela Inteligência divina (Demiurgo) no modo que já vimos.

Com efeito, a Idéia pode multiplicar-se na sua “unidade” e descer no sensível justamente por meio dos seres matemáticos que são eternos como as Idéias, mas, cada um, múltiplo como os sensíveis; e desta maneira podem determinar o Princípio material de modo capilar, de sorte a espalhar tão bem quanto possível o mundo inteligível.

Por conseguinte, a cifra emblemática da dialética platônica torna-se bastante clara e, retomando o que já foi dito, podemos resumi-la da maneira seguinte: conduz do sensível ao inteligível (do plano físico ao metafísico) recolhendo a multiplicidade do sensível em vários níveis nas unidades do inteligível, ou seja, nas Idéias (primeiro nível da “segunda navegação”); em seguida percorre em todos os sentidos a multiplicidade  da estrutura piramidal dos inteligíveis, captando em todos os sentidos a unidade-na-multiplicidade (e, inversamente, o desdobrar-se também em todos os sentidos da unidade na multiplicidade), isto é, a estrutura de anithmós-logos do inteligivel, até alcançar as Idéias supremas e, finalmente, a abstração última da Unidade absoluta.

As provas da imortalidade da alma

O Fédon apresenta três provas em favor da imortalidade da alma. Deixando de lado a primeira, queremos examinar às outras duas.

A alma humana diz Platão é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas; mas, para poder captar essas coisas ela deve ter, como condito sine qua non, uma natureza que lhes seja afim; caso contrário tais coisas permaneceriam fora da sua capacidade; assim, pois, sendo elas imutáveis e eternas, também a alma deve ser imutável e eterna.

A ultima prova que o Fédon apresenta é derivada de algumas características estruturais das Idéias contrarias não podem combinar-se entre si e permanecer juntas porque, justamente enquanto contrárias, mutuamente se excluem. Mas, como conseqüência, também não podem combinar-se e estar juntas as coisas sensíveis que participam essencialmente de tais Idéias. Se assim é, quando uma Idéia entra em determinada coisa, a Idéia contraria que estava em tal coisa desaparece e cede o lugar. 

A alma tem como marca essencial a vida e a Idéia da vida;. E sendo a morte o contrario da vida, em força do princípio já estabelecido, a alma, que tem como marca essencial a vida, não poderá estruturalmente acolher em si a morte e será imortal. Logo, ao sobreviver a morte, o corpo se corromperá e a alma se retirará para outro lugar. Em conclusão: a alma, que pela sua essência implica a vida, justamente por essa razão de caráter estrutural, não pode escolher a morte, porque Idéia de vida e Idéia de morte totalmente se excluem:

Os destinos escatológicos da alma

A imortalidade da alma situa o ulterior problema da sua sorte depois do seu separar-se do corpo. O homem está sobre a terra como de passagem e a vida terrena é como uma provação. A verdadeira vida está no além, no Hades (o invisível. E no Hades a alma é “julgada” segundo unicamente o critério da justiça e da injustiça, da temperança e da devassidão, da virtude e do vício. A sorte que cabe ás almas pode ser tríplice: a) se viveu em plena justiça receberá um prêmio, b) se viveu na injustiça plena, a ponto de ter-se tornado incurável, receberá um castigo eterno, c) se contraiu somente injustiças sanáveis, ou seja, viveu parte justamente e parte injustamente, será apenas temporariamente punida,

A metempsicose

A doutrina da reencarnação das almas em Platão assume duas formas e dois significados muito distintos entre si.

A primeira forma nos é apresentada de maneira mais pormenorizada no próprio Fédon. Aí se diz que as almas que viveram uma vida excessivamente ligada aos corpos, ás paixões, aos amores e aos seus prazeres não conseguem, com a morte, separar-se inteiramente que se lhes tornou quase conatural. Essas almas, com medo do Hades, vagueiam por certo tempo em torno dos sepuculcros como fantasmas  até que, atraídas pelo desejo do corpóreo, ligam-se novamente aos corpos e não somente de homens, mas também de animais, segundo a baixeza do teor de vida moral que tenham tido na precedente.

Na republica, Platão fala de um segundo gênero de reencarnação das almas notavelmente diferente deste. As almas são em número limitado,  de modo que, se todas recebessem no além um prêmio ou castigo eternos, em determinado momento não restaria mais nenhuma sobre a terra. Por esse motivo evidente, Platão considera que o prêmio  e o castigo ultraterrenos para uma vida vivida sobre a terra deve ter uma duração limitada e um termo fixo. E já que uma vida terrena dura, no máximo, cem anos, Platão, evidentemente influenciada pela mística pitagórica do número dez, considera que a vida ultraterrena deva ter uma duração de dez vezes cem anos, ou seja, de mil anos (para as almas que cometeram crimes muitos grandes e incuráveis, a punição continua para além do milésimo ano). Transcorrido esse ciclo, as almas devem voltar a encarnar-se.

Terminada a sua viagem de mil anos, as almas concentram-se numa planície onde é decidido o seu futuro destino. Os “paradigmas das vidas”, diz, ao contrario, Platão, estão no seio da Moira Laquês, filha da necessidade; mas eles não são impostos e sim propostos ás almas, e a escolha é inteiramente entregue á liberdade das próprias almas. O homem não é livre para escolher entre viver e não viver, mas é livre para escolher como viver moralmente, ou seja, para viver segundo a virtude ou segundo o vício.

O dualismo antropológico e a significação dos paradoxos com ele conexos

O corpo é compreendido não tanto como o receptáculo da alma que lhe dá a vida e as suas capacidades como um instrumento a serviço da alma segundo pensava Sócrates, quanto, ao invés, como “túmulo” e “cárcere” da alma e lugar de expiração. Enquanto temos um corpo, estamos mortos porque somos, fundamentalmente, a nossa alma, e a alma, enquanto está no corpo, está como num túmulo, como morta; nosso morrer (com o corpo) é viver porque, com a morte do corpo, a alma liberta-se do cárcere. O corpo é raiz de todo mal, fonte de amores insanos, de paixões, inimizades, discórdia, ignorância e loucura: e é tudo isto o que traz a alma como morta. Essa concepção negativa do corpo atenua-se em parte nas últimas obras de Platão, sem desaparecer de todo.

Examinamos logo os dois paradoxos mais conhecidos da ética platônica, tantas vezes mal entendidos, porque se olhou mais para seu matriz exterior misteriosófico do que para sua substância metafísica: referimo-nos aos dois paradoxos da “fuga do corpo” e da “fuga do mundo”.

O primeiro paradoxo é desenvolvido sobretudo no Fédon. A alma deve aplicar-se em fugir o mais possível do corpo e, por isso, o verdadeiro filosofo deseja a morte, e a verdadeira filosofia é exercício de morrer. A morte é um episódio que, ontologicamente, diz respeito somente ao corpo; ela não somente não causa dano á alma, mas traz-lhe um grande beneficio, permitindo-lhe viver uma vida mais verdadeira, uma vida toda recolhida em si mesma, sem obstáculos e véus, e inteiramente unida ao inteligível. Isso significa que a morte do corpo descobre a vida verdadeira da alma. O sentido do paradoxo o filósofo é aquele que deseja a vida verdadeira (=morte do corpo) e a filosofia é o exercício da vida verdadeira, da vida na dimensão pura do espírito. A fuga do corpo é o reencontro do espírito.

Também é claro o significado do segundo paradoxo, da “fuga do mundo”. Fugir do mundo significa torna-se virtuoso e procurar assemelhar-se a Deus.

A sistematização e fundamentação da nova tábua de valores

A nova estrutura metafísica atribuída por Platão á alma confere um fundamento definitivo á tábua socrática dos valores.

1) O primeiro e mais elevado lugar pertence aos Deuses e, portanto, aos valores que podemos denominar religiosos.

2) Logo após os Deuses vem a alma que é, no homem, a parte superior e melhor, com os valores que lhe são peculiares da virtude e do conhecimento, ou seja com os valores espirituais.

3) Em terceiro lugar, vem o corpo com seus valores (os valores vitais como hoje se diria).

4) Em quarto lugar, vêm os bens da fortuna, as riquezas e os bens exteriores em geral.

O anti-hedonismo platônico

E o prazer? Acaso encontra seu lugar nessa tábua de valores ou nela não lhe cabe nenhum lugar?

Emdiálogos como Górgias e o Fédon (e, em parte, na própria República). É claro que o prazer ligado aos sentimentos não pode se senão radicalmente desvalorizado e, em certo sentido, visto até como antítese do bem, na medida em que sujeita a alma ao sensível e a prenda a ele.

A purificação da alma, a virtude e o conhecimento

Sócrates tinha posto no “cuidado da alma” a suprema tarefa moral do homem. Platão reitera o mandamento socrático, mas a eles acrescenta um matiz místico, explicando que “cuidado da alma” significa “purificação da alma”.

Essa purificação se realiza quando a lama, transcendendo os sentidos, toma posse do mundo inteligível puro e do espiritual, unindo-se a ele como ao que lhe é congênito e conatural. A purificação aqui, diversamente das cerimônias iniciáticas dos órficos, coincide com o processo de elevação ao conhecimento supremo do inteligível. É necessário refletir justamente sobre esse valor de purificação reconhecido á ciência e ao conhecimento (valor que os antigos pitagóricos, como vimos, já haviam descoberto), para compreender a novidade do “misticismo” platônico: conhecendo, a alma se cura, purifica-se, converte-se e se eleva. Nisso consiste a sua virtude.

O “amor platônico”

O amor não é um Deus mas também não é um homem. Não é mortal, mas também não é imortal: é um daqueles seres demoníacos “intermediários” entre o homem e Deus.

O demônio amor foi gerado por Penia (que quer dizer pobreza) e por Poros (que quer dizer expediente, recurso, aquisição), no dia do nascimento de Afrodite. Por isso, Amor tem uma dupla natureza: 

Portanto, o Amor é filosofo no sentido mais significado do termo. A Sophia, isto é, a sapiência, é possuída somente por Deus; a ignorância é própria daquele que está totalmente alienado da sapiêmcia; a filo-sofia é própria de quem não é nem sábio nem ignorante, não possui o saber mas a ele aspira, está sempre procurando e o que encontra sempre lhe escapa e deve buscar mais além, justamente como faz o amante.

O que os homens chamam de amor não é senão uma pequena parte do verdadeiro amor: amor é desejo do belo, do bem, da sapiência, da felicidade da imortalidade, do Absoluto.

O degrau mais baixo na escada do amor é o amor físico, que é desejo de possuir o corpo belo, a fim de gerar na beleza um outro corpo;

Em seguida, há o grau dos amantes que são fecundos não nos corpos, mas na alma, que trazem sementes que nascem e crescem na dimensão do espírito.

Finalmente, no alto da escala do amor, há a visão fulgurante da Idéia do Belo, do Belo em si, do Absoluto.

No caso especifico da Beleza, essa recordação acontece de um modo todo particular porque, entre todas as outras Idéias, somente a Beleza teve a sorte de ser “extraordinariamente brilhante e extraordinariamente amável”. Esse transluzir da Beleza Ideal no belo sensível inflama a alma, que é tomada pelo desejo de levantar vôo para voltar para o lugar de onde desceu. Esse desejo é, justamente, Eros que, com o anélito transcendente do supra-sensível, faz renascer na alma suas antigas asas.o amor é nostalgia do Absoluto, uma tensão transcendente para o meta-empírico, e uma força que nos impele a retornar ao nosso originário ser-junto-dos-Deuses.


SÓCRATES (470-399 a.C.)

  Paolo Cugini (org.) A descoberta da essência do homem Que é o homem? A resposta socrática é inequívoca: o homem é a sua alma, uma vez que ...