segunda-feira, 31 de março de 2025
GUERRAS DE RELIGIÃO E O TEMA DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA
Causas da Guerra dos Camponeses e a Figura de Thomas Müntzer
Nas áreas rurais da Alemanha, Thomas Müntzer prega ideias luteranas, ele está do lado dos agricultores
Müntzer liderará as rebeliões camponesas que, através de 12 pontos, reivindicaram melhores condições econômicas e de trabalho e liberdade religiosa
A Guerra dos Camponeses terminará mal para os rebeldes: muitas perdas e nenhuma concessão
A Guerra dos Oitenta Anos
Nas Províncias Unidas, eclodiu um conflito religioso entre arminianos e gomaristas, que mais tarde se tornaria político com a eclosão da Guerra dos Oitenta Anos
As Províncias Unidas derrotam a Espanha na Batalha das Dunas
Com o fim da Guerra, em 1648 as Províncias Unidas tornaram-se completamente independentes.
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Guerras de Religião na França
Maria de Médici, mãe de Luís XIII, assume o poder na França e inicia uma política pró-espanhola, provocando a revolta dos aristocratas
O Duque de Richelieu se encarregará de colocar as coisas em ordem e também iniciará uma política externa muito agressiva
Primeiro, porém, era preciso pôr fim às revoltas religiosas. E o momento mais dramático foi o cerco de La Rochelle e os huguenotes em 1628.
A Guerra dos Trinta Anosa
Em 1617, a Guerra dos Trinta Anos começou com a Defenestração de Praga. Os católicos querem desafiar a liberdade de culto dos protestantes.
A guerra espalha-se por toda a Europa: da Hungria à Áustria, da Suécia à França e à Alemanha
A Guerra dos Trinta Anos chocou e envolveu o velho continente, modificando suas estruturas políticas, religiosas e fronteiriças e terminando em 1648 com a Paz de Vestfália
A Guerra dos Trinta Anos refere-se a uma série de conflitos armados que devastaram a Europa Central entre 1618 e 1648. Foi uma das guerras mais longas e destrutivas da história europeia. A guerra pode ser dividida em quatro fases:
1. Boêmia-Palatina (1618–1625),
2. Dinamarquesa (1625–1629),
3. Sueca (1630–1635)
4. Francesa (1635–1648).
Há também historiadores que reconhecem a existência de uma quinta fase, além das quatro canônicas: o "período italiano" (1628-1631), correspondente à guerra de sucessão de Mântua e Monferrato, juntamente com a qual se podem levar em consideração também os confrontos anteriores na Ligúria da guerra Saboia-Gênova de 1625.
Iniciado como um conflito entre estados protestantes e católicos no fragmentado Sacro Império Romano, ele gradualmente evoluiu para uma guerra em grande escala, envolvendo a maioria das grandes potências do Velho Continente e fazendo parte da rivalidade franco-habsburgo pela hegemonia no cenário europeu.
A guerra começou quando o Sacro Império Romano tentou impor uniformidade religiosa em seus domínios. Os estados protestantes do norte, indignados com a violação de seus direitos adquiridos pela Paz de Augsburgo, uniram-se para formar a União Evangélica. O império se opôs imediatamente a essa liga, percebendo-a como uma tentativa de rebelião, despertando reações negativas de todo o mundo protestante. A Suécia interveio em 1630, lançando uma ofensiva em larga escala no continente. A Espanha, decidida a subjugar os rebeldes holandeses, interveio sob o pretexto de ajudar sua aliada dinástica, a Áustria. Temendo o cerco das duas grandes potências dos Habsburgos, a França católica entrou na coalizão ao lado dos territórios alemães protestantes para combater a Áustria.
A guerra, caracterizada por devastações muito graves e repetidas de centros habitados e zonas rurais, por matanças em massa, por operações militares conduzidas com ferocidade implacável por exércitos mercenários frequentemente envolvidos em pilhagens, bem como por epidemias mortais e fomes, foi uma catástrofe histórica, em particular para os territórios da Europa Central. Segundo o académico Nicolaus Merker, a Guerra dos Trinta Anos, que causaria 12 milhões de mortes, foi "de longe a maior catástrofe que alguma vez se abateu sobre a Alemanha".
O conflito terminou com os Tratados de Osnabrück e Münster, que coletivamente recebem o nome de Paz de Vestfália (1648). Os eventos da guerra mudaram a estrutura política anterior das potências europeias. O aumento do poder dos Bourbon na França, a redução das ambições dos Habsburgos e a ascensão da Suécia como uma grande potência criaram novos equilíbrios de poder no continente. A posição dominante da França caracterizou a política europeia até o século XVIII, quando, após a Guerra dos Sete Anos, a Grã-Bretanha assumiu um papel central. Foi estabelecida uma certa liberdade religiosa, permitindo aos súditos professarem — pelo menos em privado — uma religião diferente daquela do seu soberano (obrigação que havia sido imposta com a Paz de Augsburgo em 1555, sancionando a oposição política entre católicos e protestantes). Isso pôs fim a mais de um século de guerras religiosas que começaram com o Cisma Luterano. A Paz de Vestfália também estabeleceu o direito de não interferência nos assuntos internos dos estados, um princípio fundamental da diplomacia moderna.
Tolerância religiosa é a condição pela qual as crenças e práticas de uma ou mais religiões, diferentes daquela professada dentro de um povo ou nação, são aceitas ou permitidas.
Em particular, em uma nação onde há uma religião estatal, ela deve ser entendida como a concessão do governo à prática de outras religiões além da oficial. Essa tolerância garante imunidade a qualquer tipo de perseguição às religiões estrangeiras aceitas pelo governo, mas pode, em alguns casos, também ser acompanhada de formas de discriminação, dependendo de quais religiões são permitidas e quais não são. Ao contrário da liberdade religiosa, na verdade, isso não implica que todas as religiões sejam iguais perante a lei, pois é um privilégio concedido pelo governo e não um direito contra ele.
No nível individual, a tolerância religiosa indica uma atitude de aceitar as religiões dos outros, mesmo que não se reconheça alguns aspectos delas, no todo ou em parte. Isso é crucial, pois vários povos muitas vezes tiveram que lidar com crenças religiosas consideradas idólatras, supersticiosas, heréticas ou cismáticas.
Historicamente, a tolerância religiosa tem sido uma questão de discórdia não apenas sobre se outras religiões deveriam ser praticadas livremente, mas também sobre se um governante religioso deveria ser tolerante ou permitir que seu povo também fosse tolerante.
Na Europa, a ideia de tolerância religiosa foi introduzida no século XVI por intelectuais humanistas; Erasmo de Roterdã e Thomas More foram os primeiros a indicar a harmonia entre as religiões cristãs.
Erasmo de Roterdão
O gatilho que levou a cultura europeia a considerar o conceito de tolerância religiosa reintroduzido na cultura europeia foi a Reforma Luterana. A fratura entre as diversas frentes religiosas e políticas e o surgimento de uma multiplicidade de confissões (luteranos, calvinistas, anabatistas) deram à dissidência religiosa uma visibilidade inusitada e obrigaram cada soberano a lidar com a presença, dentro de sua própria jurisdição, de súditos que professavam um credo diferente do oficial.
A Paz de Augsburgo (1555) formalizou o princípio de Cuius regio, eius religio, segundo o qual se esperava que os súditos abraçassem a fé de seu rei. Os defensores da tolerância argumentavam que a crença religiosa era resultado de uma escolha livre e pertencia a uma esfera, a da consciência moral individual, na qual o Estado não poderia interferir.
Erasmo foi um dos primeiros a abordar a questão da tolerância dentro de um discurso mais amplo relacionado à paz. Erasmo olhou para a antiguidade e para o poder persuasivo dos retóricos e, portanto, para o poder da palavra. Erasmo colocava a diferença entre o homem e o animal justamente na palavra e na capacidade de se comunicar verbalmente, por isso ele não entendia por que a Igreja queria forçar o homem a se dedicar a uma religião pela força e não pela palavra.
A obra na qual Erasmo teria dado a maior lição sobre tolerância é justamente o De libero arbitrio, escrito para contrastar a doutrina luterana até então com as posições típicas do Humanismo Cristão.
Sebastião Castellione
Um tratamento claro e sistemático da tolerância foi obtido graças a Sebastiano Castellione com seu De haereticis, an sint persequendi,... de 1554, uma coleção de textos dos Padres da Igreja até Erasmo, nos quais se argumentava que ninguém poderia julgar e resolver questões de fé porque eram "matéria divina" e, portanto, não totalmente compreensíveis ao homem. A obra foi publicada em Basileia sob o pseudônimo de Martinius Bellius.
A ideia de escrever esta obra nasceu após a execução de Miguel Servet, enviado à fogueira em Genebra por decreto da igreja reformada da cidade instigada por João Calvino.
Por esta obra, Castellio foi frequentemente considerado um precursor das ideias do racionalismo do século XVII e até mesmo de algumas ideias do Iluminismo.
O Edito de Nantes
Depois de muitos séculos em que os súditos não tinham liberdade religiosa e estavam vinculados à fé de seu soberano, um primeiro ponto de virada ocorreu com o Édito de Nantes (1598), com o qual o rei da França Henrique IV reconheceu direitos civis e liberdade aos huguenotes (protestantes tendentes ao calvinismo), mas o caminho ainda foi longo: a presença de diferentes identidades religiosas na Europa central ofereceu a oportunidade por mais de um século e meio para confrontos dramáticos entre os diferentes componentes sociais e religiosos.
John Locke
Uma obra importante no campo da tolerância é a Carta sobre a Tolerância, de John Locke, escrita por volta de 1685.
Locke estabeleceu que o Estado deveria ser laico porque uma imposição religiosa por parte do próprio Estado só provocaria conflitos religiosos destinados a ter consequências políticas graves, portanto era melhor deixar as questões religiosas para a religião e as questões seculares para o Estado.
Apesar do título, porém, Locke revelou-se intolerante ao excluir de suas observações filosóficas: a Igreja Católica, acusada de negar o ideal de tolerância ao querer impor sua própria religião, e o ateísmo, considerado pouco confiável do ponto de vista dos valores morais.
Racionalismo
Uma contribuição importante nesse sentido foi feita por pensadores como Baruch Spinoza (1632-1677), David Hume (1711-1778) e o iluminista francês Voltaire (1694-1778) que dedicou ao tema da tolerância um tratado sobre a tolerância (1763).
terça-feira, 25 de março de 2025
SÓCRATES (470-399 a.C.)
Paolo Cugini (org.)
A descoberta da essência do homem
Que é o homem? A resposta socrática é inequívoca: o homem é a sua alma, uma vez que é a alma que o distingue de todas as outras coisas.
Ninguém antes de Sócrates entendeu por alma aquilo que Sócrates entendeu e, depois de Sócrates, todo o Ocidente. A alma, para Sócrates, coincide com a nossa consciência pensante e operante, com a nossa razão e com a sede da nossa atividade pensante e eticamente operante.
Para Sócrates a alma é o eu consciente, é a personalidade intelectual e moral, a vida do homem adquire o seu justo sentido só agora, “Sócrates criou a tradição moral e intelectual da qual a Europa passou a viver a partir de então”.
3. Especificações e documentos relativos á nova concepção sacrática de “psyché”
Toda a doutrina socrática pode ser resumida nessas proposições convergentes: “conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”. E conhecer “a si mesmo” não quer dizer conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas examinar-se interiormente e conhecer a própria alma, assim como cuidar de si mesmo não quer dizer cuidar do próprio corpo, mas da própria alma. Ensinar a conhecer e a cuidar de si mesmos é a tarefa suprema da qual Sócrates considera ter sido investido por Deus.
4. O novo significado da “Arete” e a revolução da tábua de valores
Sócrates pode determinar em que consiste a areté humana: ela não pode ser senão o que permite á alma ser boa, isto é, ser aquilo que pela sua natureza ela deve ser senão o que permite á alma ser boa, isto é, ser aquilo que pela sua natureza ela deve ser. Cultivar a areté significara tornar a alma ótima, realizar plenamente o eu espiritual, alcançar o fim próprio do homem interior e, com isso, também a felicidade.
Mas que é a virtude?
A resposta de Sócrates é bem conhecida: a virtude é “ciência” ou “conhecimento”, e o contrario da virtude, isto é, o vicio é privação de ciência e de conhecimento, vale dizer, “ignorância”. Se o homem distingue-se pela sua alma, e se a alma é o seu consciente e inteligente, então a areté, ou seja, aquilo que atualiza plenamente essa consciência e inteligência, não pode ser senão a ciência e o conhecimento.
O valor supremo para os homens é, portanto, o conhecimento, a nítida superioridade hierárquica da alma com relação ao corpo e a identificação do verdadeiro homem com a alma e não mais com o corpo, comportava o deslocamento para segundo plano, senão a anulação, dos valores físicos e exteriores, e a conseqüente ascensão ao primeiro plano dos valores interiores da alma e, em particular, do valor da ciência que supera a todos.
5. Os “paradoxos” da ética socrática
A tese socrática da indentidade entre virtude e ciência implicava, em primeiro lugar, a unificação das virtudes tradicionais, como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a fortaleza em uma só e única virtude, justamente porque, sendo virtudes, cada uma e todas se reduzem essencialmente ao conhecimento. Ademais, ela implicava a redução do vício, que é o contrário da virtude, á ignorância, que é o contrário do conhecimento; e implicava, enfim, a conclusão de que quem faz o mal (que é ignorância) o faz, justamente, só por ignorância e não porque queria o mal sabendo que é mal.
Sócrates, diante da virtude e da vida moral do homem, faz exatamente o que os pré-socráticos fizeram diante da natureza tenta submeter ao domínio da razão a vida humana, assim como aqueles tinham submetido o mundo o mundo externo ao domínio da razão humana. Para ele, a virtude ela deve se algo motivado racionalmente, justificado e fundado no plano do conhecimento. E, neste sentido, ele diz que a virtude é conhecimento. Evidentemente, não qualquer conhecimento, mas a mais elevada e sublime ciência: a ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem.
Mas difícil pode parecer a justificação do segundo principio: o homem só quer o bem e não o mal, e quem faz o mal o faz involuntariamente, o que quer dizer que ninguém peca voluntariamente.
Sócrates considera, que não é possível conhecer o bem sem fazê-lo. O conhecimento do bem, para Sócrates, não é só condição necessária, mas também suficiente para ser virtuoso. Na ação moral, ou seja, no exercício da virtude, a vontade (do bem) tem um peso e uma relevância pelo menos tão importante quanto o conhecimento do bem. Essa ilimitada confiança na razão e na inteligência e o destaque quase nulo dado á vontade é, exatamente, o que mereceu a acusação de intelectualismo á ética socrática. Sócrates, em suma, tem, diante do espírito humano, aquelas mesmas visões unilaterais que tem Parmênides diante do ser.
6. Autodomínio, liberdade interior e autarquia
É praticamente revelador o conceito de “autodomínio”, chamado expressamente de “o bem mais excelente para os homens”. A criação do conceito, com o relativo termo, enkráteia (grego) remonta certamente a Sócrates. A enkráteia é domínio de si nos estados de prazer e dor, nas fadigas, no movimento dos impulsos e das paixões. Numa palavra, ela é domínio sobre a própria animalidade. Sócrates identificou expressamente a liberdade com a enkráteia.
Em conexão com esses conceitos de enkráteia e eleuthería, Sócrates deve ter desenvolvido também o conceito de autarquia ou seja, de autonomia da virtude e do homem virtuoso.
No conceito de autarquia, existem duas notas características: a) a autonomia com relação ás necessidades e aos impulsos físicos pelo controle da razão (da psyché) e b) o fato de bastar só razão (a psyché) para alcançar a felicidade. O autodomínio (enkráteia) é domínio não da vontade, mas da razão e do conhecimento sobre os impulsos sensíveis; a liberdade (eleuthería) não é o livre-arbítrio, a liberdade do querer, ma as liberdade do logos, ou seja, a capacidade da razão de impor as próprias instancias da animalidade humana. E a autarquia, como independência das necessidades animais, é, também ela, auto-suficiência do logos humanos, esses conceitos nascem da mesma matriz da qual nasce a doutrina da virtude-ciência e da onipotência da ciência, e carrega a mesma marca.
7. O prazer, o útil e a felicidade
Sócrates, para levar os ouvintes a admitir os seus paradoxos éticos, move-se a partir da convicção comum a todos e que ninguém na realidade contesta (isto, é que o bem e o prazer são a mesma coisa), e, partindo dessa premissa, sobre a qual de fato todos concordam demonstra que, em todo caso, não é abandono ao prazer como tal que pode dar a felicidade, mas sim um perspicaz cálculo do prazer, uma sábia mensuração do prazer que, adequadamente, o saiba discriminar e dosar: tudo depende do uso que se faça deles: se o prazer é submetido á disciplina da enkráteia e da ciência, é algo positivo. É certo, porém, que a felicidade não depende do prazer como tal.
O útil de que fala Sócrates é sempre o útil da alma, é o útil do corpo só lhe interessa em função do útil da alma. A felicidade não é dada nem pelos bens exteriores nem pelos bens do corpo, mas pelos bens da alma, ou seja, pelo aperfeiçoamento da alma mediante a virtude, que é conhecimento e ciência. Aperfeiçoar a alma com a virtude significa, atuar a sua mais autentica natureza, ser plenamente si mesmo, realizar o plano acordo de si consigo, e é exatamente isso que leva a ser feliz. A felicidade é inteiramente interiorizada, desligada daquilo que vem de fora e ate o que vem do corpo, e posta na alma do homem, e, portanto, consignada ao pleno domínio do homem. A felicidade não depende das coisas e da sorte, mas do logos humano e da interior formação que com o logos o homem pode se dar.
8. A amizade
Com Sócrates teve início também a reflexão filosófica sobre a amizade. O amigo verdadeiro é, indubitavelmente, um bem grandíssimo para os homens, e para conquistar bons amigos o homem não deve economizar qualquer sacrifício.
Mas qual é o amigo verdadeiro? É, ao invés, o homem virtuoso: o homem que é capaz de bastar-se a si mesmo que tem domínio de si e que possui as qualidades daí decorrentes, a condição primeira para conquistar amigos bons é a de nos tornarmos bons nós mesmos: de fato, só quem é bom pode ser amigo de quem é bom, também a amizade é remetida a dimensão da psyché e fundada sobre a areté.
9. A política
Sócrates não teve simpatia pela política militante, antes, sentiu por ela forte aversão, foi perseguido pelos democratas e pelos oligarcas e, pelas mesmas razoes, ou seja, porque jamais hesitou em criticar os malfeitos de uns e de outros; antes, por opor-se á injustiça, chegou mesmo a pôr em risco a própria vida.
Todavia, o seu ensinamento esteve bem longe de ser apolítico. O horizonte socrático foi o da polis grega e, mais ainda, o da polis ateniense:
Não há duvida de que ele tendia a formação de homem que do modo melhor pudessem ocupar-se da coisa pública; que o verdadeiro político, para Sócrates, não podia ser senão o homem perfeito moralmente, ou seja, político devia ser político na dimensão da alma e capaz de cuidar das almas dos outros.
10. A evolução da não-violência
A arma da sua revolução não-violenta foi a persunsão: não só diante dos homens, mas igualmente diante do Estado.
A posição de Sócrates diante do problema teológico
A primeira acusação dirigida contra Sócrates no processo, refere-se exatamente á atitude aberrante que o filosofo manteve tenazmente por toda a sua vida diante da crença oficial nos Deuses, trata-se de uma acusação de heresia por que Sócrates rejeitava a religião de Estado? Porque repugnava-lhe profundamente o sufocante antropomorfismo, físico ou moral, do qual estava penetrada.
Sócrates considerava absurdo também o antropomorfismo moral, e negava que aos deuses pudessem ser atribuídos paixões, sentimentos e costumes humanos.
Diante do problema de Deus, em última análise, Sócrates reencontra a mesma dificuldade já encontrada a propósito do problema da alma: e como na definição da alma, não podendo dizer o que ela é ontologicamente, defini-a em função das suas operações, assim também procedeu ao falar de Deus e do divino. Ela extraiu de Anaxágoras e de Diógenes de Apolônia (e, talvez, também de Arquelau) a noção de Deus como inteligência ordenadora, libertando-a, contudo, dos pressupostos físicos sobre os quais se fundava naqueles filósofos, e centrou o seu discurso sobre as obras de Deus, substituindo ás motivações físico-ontolóogicas, motivações de caráter prioritariamente ético ou, em todo o caso, de origem tipicamente moral.
Deus como Iinteligência finalizadora e como Providência
Uma passagem afirma ter ouvido pessoalmente entre Sócrates e Aristodemo, é uma verdadeira demonstração da existência de Deus, centrada nos seguintes conceitos: 1) o que não é simples obra do acaso, mas é constituído para alcançar um objetivo e um fim, postula uma inteligência que o tenha produzido propositadamente; 2) em particular, se observarmos o homem, notamos que cada um e todos os seus órgãos são finalizados de modo a não poderem ser explicados senão como obra de uma inteligência (uma inteligência que, expressamente, quis esta obra); 3) contra este raciocínio não vale objetar que não se vê essa inteligência, enquanto se vêem os artífices junto com suas obras: de fato, também a nossa alma, ou seja, a nossa inteligência, não se vê, entretanto, ninguém afirmaria que por isso não fazemos nada com a reflexão, mas tudo por acaso; 4) ademais, é possível estabelecer, com base nos privilégios que os homens têm com relação a todos os outros seres (estrutura física mais perfeita e, sobretudo, a posse da alma, ou seja, a inteligência), que o artífice divino cuida do homem de modo particular; 5) uma ultima confirmação dessa tese é extraída por Xenofonte da mântica (e essa é provavelmente um acréscimo pessoal).
Duas características revelam os traços típicos do socratismo: em primeiro lugar, o nexo é instituído entre Deus e a psyche, ou seja, entre Inteligência divina e inteligência humana; em segundo lugar, o forte antropocentrismo (todas as provas a favor a favor do finalismo são extraídas da estrutura do corpo, enquanto está ausente qualquer consideração de tipo cosmológico; o homem é visto como a mais conspícua obra de Deus e como o ser do qual ele mais cuida).
O “daimónion” de Sócrates
Na acusação principal movida contra Sócrates afirma-se que Sócrates introduzia “novas daimonia”, que os acusadores entendiam como novas “divindades”. A terminologia indica de modo claro que os acusadores referiam-se ao fato de Sócrates, repetidamente, ter afirmado que advertida em si, em determinadas circunstancia, um fenômeno divino e sobrenatural, que ele chamava de (grego palavra). É claro que o daimónion era considerado por Sócrates uma espécie de divina revelação a ele concedida, é preciso observar que daimónion é neutro e, portanto não indica um demônio-pessoa, ou seja, um ser pessoal mas um fato ou evento ou fenômeno divino:
O daimónion foi entendido por Sócrates como um fato extraordinário e de natureza sobre-humana. Para compreendê-lo, é indispensável ligá-lo a dois fatores: em primeiro lugar, á religiosidade socrática, que foi de excepcional intensidade; em segundo lugar, á concepção socrática do Deus-providencia. Tratava-se, ao seu ver, de um particularismo sinal com o qual, a ele que tendia com todas as suas forças ao bem, em certas ocasiões, a Divindade providente indicava a via justa.
Que revela. Exatamente, a voz divina? Em primeiro lugar, deve-se observar que o daimónion não tem nada a ver com o âmbito das verdades filosóficas: a “voz divina” não revela absolutamente a Sócrates a “sabedoria humana”. Ademais, por estranho que possa parecer, Sócrates não liga imediatamente ao daimónion nem mesmo a sua convicção de ter recebido dos deuses, como especial missão, a tarefa de exortar os atenienses a cuidar da alma e da virtude. O sinal divino amiúde impedia fazer determinadas ações e o fato de não fazer aquelas ações resultava posteriormente em grande vantagem o daimónion, com as suas proibições, tronava manifesto Sócrates exatamente aquilo quer os deuses tinham reservado para si, e que ás vezes revelavam mediante os oráculos.
Relação entre a teologia e a ética de Sócrates
A ética socrática não é teônoma e, portanto, não tira a sua validez do fato de ser um mandamento ou um querer divino; esta, ao invés, funda-se, de maneira totalmente autônoma, sobre aquela que, para Sócrates, constitui a essência do homem, ou seja, a psyché. Vimos também que a ética manteve-se autônoma mesmo diante da questão da imortalidade da alma: os valores morais impõem-se por si, prescindindo do fato de a alma durar ou não depois da morte do corpo.
Os valores morais não são criados e impostos pela divindade, mas são valores supremos, porque são os valores do espírito e, assim sendo, sã reconhecidos também pela divindade. Portanto explica-se bem que Deus, mesmo não sendo autor dos valores morais, seja protetor deles. Em suma, os valores morais não são tais porque queridos por Deus, mas pela sua intrínseca, objetiva perfeição, recebem de Deus a máxima consideração. O que significa, como alguém justamente observou, que Sócrates, em certo sentido, reconhece os valores morais importância final a realidade cósmica, a divindade não se preocupe em geral com todos os homens, mas só do homem virtuoso cuide da modo particular.
Em nenhum texto de que dispomos se acena, ao invés, a um interesse e um cuidado dos Deuses por todos os homens individualmente, e menos ainda a um cuidado dos Deuses pelo homem individual que caminhe fora da reta via, em vista de reconduzi-lo. Ora, a Divindade intervém só a favor do individuo que encarna a virtude, porque atraída, por assim dizer, pelo caráter absoluto do valor que ele encanar. Se assim é, se a adivindade ocupa-se de modo especial do individuo não enquanto não enquanto homem individual, mas enquanto bom, é também verdade o inverso: é verdade que o homem não tem necessidade da ajuda divindade para ser bom.
Função protrética do método dialógico
Da alma, da alma individual, só se cuida com o dia-logo, ou seja, com o logos que, procedendo por pergunta e resposta, envolve efetivamente mestre e discípulo numa experiência espiritual única de pesquisa em comum da verdade. Ao “discurso longo” de efeito, que é monólogo fechado, substitui-se o “discurso breve”, como o chama Sócrates, que é, justamente, o dialogo aberto, sempre pronto a dobrar-se ás exigências mais profundas daquelas que, juntos, buscam e põem em confronto, por assim dizer, alma com alma. E compreende-se, conseqüentemente, que, nesse dialogo, para a voz dos poetas não havia mais lugar: para Sócrates, chamar em causa o testemunho dos poetas nas discussões filosóficas tinha o efeito de uma voz totalmente estranha, em total falta de sintonia com a razão da qual o dialogo nasce e do qual se alimenta.
As finalidades do método dialogo socrático são, fundamentalmente, de natureza ética e educativa e só em segundo lugar e mediatamente de natureza lógica e gnosiológica. A dialética socrática tem em vista a exortação á virtude, o convencimento do homem de que a alma e o cuidado da alma são o Maximo bem para o homem, a purificação da alma provando-a a fundo com perguntas e respostas, para libertá-la dos erros e dispô-la á verdade.
2. O não-saber socrático
Sócrates parte constantemente da afirmação de não-saber, pondo-se diante do interlocutor na posição de quem tem tudo a aprender, mais que na posição de quem tem a ensinar.
1. A ironia socrática
Ironia significa, em geral, dissimulação e, indica o jogo múltiplo e variado de disfarces e fingimentos que Sócrates punha em ato para forças o interlocutor a dar conta si nas suas dissimulações, ele finge ate mesmo assumir pessoalmente idéias e métodos do interlocutor (especialmente se este é homem de cultura e, em particular, se é sofista), para engrandecê-los ao limite da caricatura, ou para invertê-los com a mesma lógica que lhes é própria e fixá-los na contradição.
A máscara da ignorância assumida por Sócrates era sempre o meio mais eficaz para desmascarar o aparente saber dos outros e revelar-lhes a sua radical ignorância. Mas era também ela que, no modo mais eficaz, ajudava aqueles que, com plena disponibilidade, confiavam-se ao magistério socrático e aceitavam dar conta de si.
4. Confutção ( elenchos) e maiêutica
O primeiro momento da ironia era, por assim dizer, a pars destruens, isto é, o momento em que Sócrates levava aquela com quem dialogava a reconhecer a própria presunção de saber e, portanto, a própria ignorância. É claro que os medíocres deviam reagir negativamente essa confutaçao, produzia-se neles uma crise que derivava, de um lado, de um improviso ofuscamento daquilo que antes consideravam seguro, e, de outro, da falta de novas certezas ás quais se agarrar. E dado que a soberba impedia-os de admitir que não sabiam efetivamente, acusavam Sócrates de confundir-lhes as idéias e entorpecê-los. Daqui a acusação contra Sócrates de ser um semeador de dúvidas e, portanto, um corruptor.
Mas se sobre os medíocres, que não admitiam reconhecer-se ignorantes, era este o efeito que produziam a confutação, outro êxito ela produzia sobre os melhores. Enquanto existem na alma falsas opiniões e falsas certezas, é possível alcançar a verdade; porém, eliminadas aquelas, a alma fica purificada e pronta para alcançar, se dela está grávida, a verdade.
E assim passamos ao segundo momento do método irônico. Dissemos que, para Sócrates, a alma só alcançar a verdade “se dela estar grávida”. Mas como a mulher que está grávida no corpo tem necessidade do obstetra para dar á luz, assim o discípulo que tem a alma grávida da verdade tem necessidade de uma espécie de obstetra espiritual, que ajude esta verdade a vir á luz, e esta é, justamente socrática.
Arte de obstetra dirigida á psyché, eis como Sócrates define a sua arte irônico-maiêutica, e não se poderia fazê-lo de melhor maneira, nem se poderia representar melhor o papel central da alma na dialética socrática.
2. Sócrates fundador da lógica?
O método dialógico socrático tem, com efeito, um fim essencialmente ético-pedagógico e até mesmo religioso, e a peculiar valência lógica, que ele inegavelmente tem, não é posta por Sócrates em primeiro plano. Sócrates abriu o caminho que devia levar á descoberta do conceito e da definição e, antes ainda, á descoberta da essência (do eidos platônico), e exerceu também um notável impulso nessa direção, mas não estabeleceu a estrutura do conceito e da definição, tendo-lhe faltado todos os instrumentos necessários para isto, os quais, como já dissemos, foram descobertos posteriormente.
A mesma observação vale a propósito da indução, que Sócrates certamente aplicou largamente, mas não a individuou em nível teórico e, portanto, não a teorizou de modo reflexo. Sócrates foi uma excelente mente lógica, mas não elaborou uma lógica em nível teórico, na sua dialética encontram-se os germes que levarão a futuras e importantes descobertas lógicas, mas não descobertas lógicas conscientemente formuladas.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Nicolau Maquiavel - O Príncipe (1512-1514)
JEAN JACQUES ROUSSEAU 1712-1778
A Crítica da Civilização: O Discurso sobre as Ciências e as Artes
O primeiro texto filosófico de Jean-Jacques Rousseau, o Discurso sobre as Ciências e as Artes, constituiu a primeira formalização sistemática (possibilitada pela epifania no caminho de Vincennes) das ideias que o autor havia amadurecido ao longo dos anos anteriores. Embora seja um texto totalmente original, o primeiro discurso mostra a influência de uma tradição moralista que, partindo de Sêneca e Plutarco, chega até Montaigne, Fénelon e Montesquieu.
O Discurso sobre as Ciências e as Artes representa uma crítica severa à civilização em oposição ao estado natural de felicidade absoluta do homem. Rousseau argumenta que as relações entre os homens dentro da sociedade são profundamente contaminadas por uma atitude ineliminável em relação à mentira e à hipocrisia, tanto que é geralmente impossível distinguir a aparência de cada pessoa do seu ser real:
«Quão doce seria viver entre nós, se a atitude externa fosse sempre a imagem das disposições do coração. [...] Antes que a arte moldasse nossos costumes e ensinasse às nossas paixões uma linguagem controlada, nossos costumes eram rudes, mas naturais. [...] A natureza humana, afinal, não era melhor; mas os homens encontraram a base da sua segurança na fácil penetração mútua."
No momento em que se torna impossível relacionar-se com o próximo com absoluta sinceridade, o vício emerge: "Que bela procissão de vícios acompanhará esta incerteza! Adeus amizades sinceras, adeus estima real, adeus confiança bem fundada."Assim, segundo Rousseau, a depravação dos costumes avançou de mãos dadas com o progresso das artes e das ciências:
"A astronomia nasceu da superstição; eloquência da ambição, do ódio, da bajulação, das mentiras; geometria da avareza; física por vã curiosidade; tudo, até mesmo a moral, do orgulho humano."
Rousseau cita numerosos exemplos históricos (a decadência do antigo Egito, a Grécia de Atenas em oposição à de Esparta, a Roma imperial em oposição à Roma republicana) para apoiar a tese segundo a qual o desenvolvimento da cultura (das artes e das ciências, precisamente) teria sido proporcional à degeneração da virtude em vício; Esta série de exemplos culmina com a prosopopeia do herói romano Fabricius, que condena o luxo e o vício que suplantaram a simplicidade, a austeridade e a virtude.
A conclusão de Rousseau é que a perda da virtude (virtude que era originalmente determinada pela identidade absoluta entre aparência e realidade na conduta dos homens) causou enormes abusos, gerou uma desigualdade convencional (independente da diferença natural de força ou inteligência entre dois indivíduos) muito maior do que a desigualdade natural, e viciou profundamente a própria constituição das sociedades humanas:
«Qual é a fonte de tantos abusos senão a desigualdade desastrosa introduzida entre os homens pela valorização do talento e pela degradação da virtude? Este é o resultado de todo o nosso estudo e a mais perigosa das suas consequências." É assim que, segundo Rousseau, "a necessidade eleva tronos; as ciências e as artes fortaleceram-nos”.
As teses expostas por Rousseau no Discurso das Ciências e das Artes estavam evidentemente em conflito aberto com a visão de mundo de uma época, o Iluminismo, que reconhecia o progresso científico e cultural como tendo um papel muito positivo no aperfeiçoamento do homem, liberto da superstição e liberto do seu estado de menoridade. Embora o primeiro discurso, concedido pela Academia de Dijon, tenha tido uma influência significativa, e embora tenha sido a obra que primeiro deu real notoriedade a Rousseau, há uma tendência a destacar a necessidade de minimizar sua coerência e importância dentro da reflexão de Rousseau considerada como um todo: a crítica à civilização desta fase deve ser lida como um reconhecimento do fato de que, historicamente, a associação dos homens produziu mais efeitos negativos do que positivos, e não como uma afirmação do mal intrínseco de toda associação.
A tensão retórica do primeiro Discours, além disso, é considerada mais evidente do que sua real consistência argumentativa. Entretanto, Rousseau não acreditava que o problema do mal da civilização pudesse ser resolvido por um retorno ao estado de natureza, e ele acreditava ser impossível restaurar a inocência original negando a sociedade ou jogando os homens de volta à barbárie:
«Naqueles meus escritos – escreverá Rousseau, referindo-se ao primeiro e segundo discursos, na sua obra tardia Rousseau, Juiz de Jean-Jacques – era necessário destruir a ilusão que nos enche de uma admiração louca pelos instrumentos da nossa infelicidade, era necessário corrigir essa falsa apreciação pela qual acumulamos honras sobre talentos nocivos e desprezamos virtudes benéficas. [...] Mas a natureza humana não regride, nem podemos retornar ao tempo da inocência e da igualdade se uma vez nos distanciamos delas.»
Rousseau desenvolverá sua proposta de refundação da sociedade e do Estado, formulada integralmente no texto O Contrato Social.
O Estado de Natureza e o Nascimento da Sociedade: O Discurso sobre a Desigualdade
Prefácio e primeira parte
A segunda grande obra filosófica de Rousseau foi o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (Discurso sobre a Desigualdade ou "segundo discurso" para abreviar); Esta obra, composta para a edição de 1754 do prêmio da Academia de Dijon, foi recebida com menos entusiasmo do que a obra anterior.
O segundo discurso é consideravelmente mais longo, mais rigoroso e mais filosoficamente profundo que o primeiro. Rousseau pretende aqui realizar uma desconstrução histórica do homem social para remontar ao homem natural, isto é, reconstruir “genealogicamente” a história da humanidade desde a sua origem natural até à sociedade, passando pelo desaparecimento do isolamento e pela instituição da linguagem e da propriedade: esta operação é comparada, no importante prefácio metodológico do texto, à tentativa de reconstruir a fisionomia da estátua de Glauco – perdida no mar durante muito tempo e desfigurada pela tempestade e pela salinidade. Seu objetivo é compreender a natureza original do homem (dando assim um novo significado ao antigo imperativo "conhece-te a ti mesmo" do oráculo de Delfos) para entender qual é o fundamento da desigualdade que reina na sociedade: "Como, de fato, podemos conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não começamos por conhecer os próprios homens?
Rousseau sublinha particularmente a importância de não cair no erro dos filósofos do direito natural, como Grotius, Pufendorf e Locke, que colocaram na base da sociedade um contrato que os homens teriam feito entre si consciente e racionalmente, enquanto para Rousseau um homem consciente e racional não é concebível fora (nem, portanto, antes) da sociedade; igualmente insidioso, segundo Rousseau, é o erro de Hobbes que – embora identificando corretamente a importância de uma reconstrução filológica da história da humanidade como base da filosofia política – projetou arbitrariamente no homem natural características de maldade típicas do homem civil, já corrompido pela sociedade.
No prefácio, o autor destaca também o fato de que o estado original do homem selvagem por ele teorizado (l'état de nature, o "estado de natureza") é concebido mais como uma hipótese teórica voltada para a compreensão dos princípios das coisas do que como uma fase histórica efetivamente ocorrida em um passado mais ou menos remoto: trata-se de "conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente nunca existirá, e do qual, no entanto, devemos ter noções corretas para julgar bem nosso estado atual". Ainda que às vezes pareça que sua reconstrução histórica queira ser muito realista (baseada em trabalhos de etnógrafos e geógrafos, em relatos de viagem e na Histoire naturelle de Buffon), Rousseau pretende sobretudo produzir conjecturas,
«não [...] verdades históricas, mas apenas raciocínios hipotéticos e condicionais, mais adequados a esclarecer a natureza das coisas do que a revelar sua verdadeira origem».
Após uma dedicatória à República de Genebra, da qual elogia a bondade da constituição e a virtude de seus cidadãos (tanto que Genebra, embora com algumas reservas, é em geral um modelo que Rousseau, como filósofo político, sempre tem em mente), e o prefácio acima mencionado, o autor entra no mérito de sua reconstrução da história da raça humana e do nascimento da desigualdade. Ele parte, portanto, da descrição da condição original do homem e (como outros já haviam feito, entre eles Hobbes, Locke, Grotius, Pufendorf, Burlamaqui) descreve essa condição inicial como um estado de natureza, no qual o ser humano não difere dos animais, exceto por ser "menos forte que aquele, menos ágil que este, mas, no geral, mais bem organizado que todos" e caracterizado por uma "astúcia" que lhe permite prevalecer sobre a maioria dos animais.
A convicção de que esse estado de natureza, no qual as necessidades do homem eram reduzidas ao mínimo e eram perfeitamente proporcionais aos seus desejos, no qual ele não tinha nem capacidade de reflexão nem de se projetar no futuro, era uma era supremamente feliz para a humanidade, permanece constante em relação ao primeiro discurso; a natureza (concebida às vezes como o estado original do homem selvagem, às vezes como a interioridade profunda, completa e incorrupta do homem civilizado) sempre tem uma conotação benigna em Rousseau, e a vida em contato direto com ela é sempre considerada feliz; por outro lado,
"nossos males são, em grande parte, obra nossa e teríamos evitado quase todos eles se mantivéssemos o modo de vida simples, uniforme e solitário que a natureza nos prescreveu".
Do ponto de vista moral, vivendo isolado dos demais membros de sua espécie (Rousseau nega categoricamente a existência no homem de uma inclinação instintiva à sociabilidade), não tendo quase nenhuma relação interpessoal e não tendo deveres reconhecidos, o homem por natureza não é nem bom nem mau. Ele tem dois instintos, ou princípios naturais inatos, que regulam suas ações e seus relacionamentos e que são pelo menos em parte comuns ao homem natural e aos animais: o primeiro é o amor-próprio (amour de soi-même ou solo amour de soi), o sentimento que o impele a evitar o sofrimento e o perigo, que o faz desfrutar de seu bem-estar e que, mesmo sem consequências misantrópicas, o leva naturalmente a preferir a si mesmo aos outros; o segundo, que tempera o primeiro, é a piedade (pitié), sentimento que gera repugnância ao ver outros seres sensíveis sofrerem. Entretanto, o homem selvagem difere dos animais em uma qualidade moral, a liberdade, que lhe permite – ao exercer uma escolha através da vontade – escapar da obediência mecânica aos impulsos da natureza que caracteriza os animais. Dessa liberdade advém a faculdade mais característica do homem, a perfectibilidade (perfectibilité), isto é, sua capacidade de mudar a si mesmo para melhor ou para pior. Enquanto a existência dos animais é atemporal e permanece sempre a mesma ao longo dos anos e das gerações, o homem é um ser histórico e capaz de mudar, mesmo que sua perfectibilidade seja ambivalente: Rousseau é forçado a admitir que
«esta faculdade ilimitada que nos distingue é a fonte de todos os males do homem; [...] que, ao deixar que sua inteligência e seus erros, seus vícios e suas virtudes floresçam ao longo dos séculos, faz dele, a longo prazo, um tirano de si mesmo e da natureza.»
A reconstrução histórica de Rousseau parte da perfectibilidade e da razão latente no homem selvagem: ele destaca como suas necessidades são inicialmente extremamente limitadas e fáceis de satisfazer; salienta que a condição original do homem era a do isolamento e que nem mesmo a família era uma instituição permanente no estado de natureza, pois o acasalamento ocorria de forma rápida e quase casual e a distância entre o ato sexual e o parto dificultava o estabelecimento de uma conexão entre ambos; salienta o fato de que a linguagem, que inicialmente só podia ser reduzida a gritos inarticulados, deve ter tido uma origem extremamente difícil, gradual, longa e atribulada: «se os homens precisaram da palavra para aprender a pensar, precisaram ainda mais de saber pensar para inventar a arte da palavra.» Esta é, em suma, a condição do homem no estado de natureza:
"Errando pela floresta, sem profissão, sem palavra, sem lar, sem guerra e sem vínculos, sem necessidade alguma de seus semelhantes, assim como sem necessidade alguma de lhes fazer mal, talvez até sem conhecer nenhum deles individualmente, o selvagem, sujeito a poucas paixões, autossuficiente, deveria ter apenas os sentimentos e as luzes de seu estado, deveria sentir apenas suas necessidades autênticas, olhando apenas para o que lhe parecesse interessante ver, enquanto sua inteligência pouco progredia, mas sua vaidade não mais."
Rousseau acrescenta que nesta fase toda descoberta, incomunicável pela falta de linguagem e contato, perece com seu inventor; que, não havendo educação, não há progresso de geração em geração; que a desigualdade entre os homens, que vivem da mesma maneira, todos fazendo as mesmas coisas, é muito pequena; que a dominação de um homem sobre outro, tendo que se basear unicamente numa relação material de poder, é inconcebível, porque exigiria do dominador uma atenção constante e um esforço, tudo considerado, muito maior do que aquele que ele pouparia explorando o dominado.
Segunda parte
Na segunda parte do Discurso, Rousseau descreve o processo histórico que viu a degeneração do homem da pureza e felicidade do estado de natureza para a degradação e degradação moral da sociedade corrupta (uma condição que ele havia analisado anteriormente no Discurso sobre as Ciências e as Artes).
Segundo sua reconstrução, apesar da simplicidade e do conforto da vida no estado de natureza, as necessidades da vida cotidiana e as paixões que elas geram devem, em alguma medida, estimular o intelecto humano; o surgimento de dificuldades particularmente graves ligadas a fenômenos naturais extraordinários e catastróficos leva os homens a se aproximarem uns dos outros, e isso “deve gerar naturalmente no espírito do homem a percepção de certas relações”; tais relações mentais o levam a desenvolver ideias. Assim, o homem começa a caminhar em direção à consciência e à inteligência e, adquirindo a capacidade de se comparar consigo mesmo e com os outros, imediatamente se enche de orgulho e autossatisfação. Ele começa a se comparar com seus semelhantes e, cada um observando que todos se comportam como ele, intuindo uma série de afinidades mútuas, desenvolve uma espécie de empatia e um código de conduta respeitoso que, ao fortalecer o sentimento de piedade, beneficia a segurança e a paz de todos. Os homens começam assim a viver juntos e a colaborar, aprimorando gradualmente a linguagem que usam para comunicar entre si e desenvolvendo, pelo hábito de viver juntos, as primeiras relações sentimentais – o amor conjugal e o afecto entre pais e filhos:
«Foi o tempo de uma primeira revolução da qual nasceu a fundação e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade; Talvez isso já tenha sido fonte de grandes brigas e disputas.»
Nesse ponto, com o refinamento da inteligência e com a disponibilidade de recursos crescentes resultantes da união das forças de todos, os homens começam a se entregar ao conforto; este é um dos primeiros passos para a corrupção, pois todos os confortos, segundo Rousseau, estão inevitavelmente destinados desde o início a degenerar em dependências e, portanto, a produzir novas necessidades, limitando a liberdade e a independência do homem: «Nesta nova condição, com uma vida simples e solitária, com necessidades muito limitadas, com os meios que tinham inventado para as prover, os homens, gozando de muito tempo livre, empregavam-no na obtenção de muitos confortos desconhecidos dos seus pais; Este foi o primeiro jugo que eles impuseram a si mesmos sem saber, e a primeira fonte dos males que prepararam para seus descendentes." No entanto,
«este período de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo o meio termo entre a indolência do estado primitivo e a atividade impetuosa do amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e duradoura. Quanto mais se reflete sobre isso, mais se descobre que essa condição era a menos sujeita a revoluções, a melhor para o homem."
Entretanto, a tendência crescente de se comparar com o outro leva os homens a darem cada vez mais peso à opinião que se tem do outro e, à medida que se começa a desejar ser objeto de estima pública, o fato de aparecer começa a se tornar mais importante do que o fato de ser; Isso gera a primeira vaidade, que por sua vez é o pré-requisito tanto da desigualdade quanto do vício. Os homens, que eram independentes "enquanto se dedicavam a trabalhos que cada um podia fazer sozinho, enquanto praticavam artes que não exigiam a assistência de várias mãos", tornaram-se dependentes uns dos outros "no momento em que um homem precisava da ajuda de outro"; se inicialmente eram livres e felizes, «quando se percebeu que era útil para um ter provisões para dois, a igualdade desapareceu». O desenvolvimento de artes como a agricultura e a metalurgia, que exigem que a propriedade não apenas dos frutos do trabalho, mas dos meios de produção e da própria terra, seja reconhecida por aqueles que os trabalham, leva a um rápido aumento da desigualdade: pela primeira vez, de fato, em virtude de um acordo convencional, não apenas o fruto do trabalho é considerado propriedade de quem o ganhou, mas a propriedade dos meios de produção é legitimada independentemente da necessidade que aqueles que os utilizam possam ter de seus produtos. Este, segundo Rousseau, é um ponto de viragem histórico:
«A primeira pessoa que, tendo cercado um pedaço de terra, pensou em dizer 'isto é meu', e encontrou pessoas ingênuas o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, quantas guerras, quantas mortes, quanta miséria e quantos horrores teriam sido poupados à humanidade pelo homem que, derrubando as estacas ou aterrando a vala, gritou aos seus semelhantes: "Cuidado em dar ouvidos a esse impostor. Se vocês esquecerem que os frutos pertencem a todos e que a terra não pertence a ninguém, vocês estão perdidos."
A partir daí, a degeneração acelera significativamente. A instituição do dinheiro aumenta a distância entre os bens e o trabalho de quem os possui, a instituição do direito de sucessão (herança) desconecta completamente as noções de "necessidade" e "trabalho" daquela de "propriedade", da qual são naturalmente inseparáveis. O amor-próprio degenera definitivamente em amor-próprio (amour-propre) e, assim, torna-se um egoísmo ativo, não mais passivo, no qual a pessoa desfruta não tanto do seu próprio bem-estar, mas de estar em melhor situação do que os outros, não apenas da sua própria boa sorte, mas também dos infortúnios dos outros. A mania de possuir cada vez mais o próximo toma conta de todos: "Daí começaram a surgir, segundo os caracteres diferentes de uns e de outros, a dominação e a escravidão, ou a violência e os roubos."
Nesta fase, evidentemente já muito distante do estado de natureza, segundo Rousseau, chegamos àquele estado de guerra de todos contra todos que Hobbes, concebendo seu homo homini lupus, havia colocado na origem da história humana.
Neste ponto, tendo-se separado a classe rica da pobre, torna-se evidente para a primeira que a sua condição é muito desvantajosa, pois têm tudo a perder com o estado de guerra em que se encontram, enquanto os pobres têm algo a ganhar com o roubo:
«É de crer que os ricos não tardaram a perceber o quanto lhes prejudicava uma guerra em que só eles pagavam o preço, em que o risco da vida era comum [aos ricos e aos pobres] e o dos bens era individual [apenas aos ricos]. Por outro lado [...] eles estavam bem conscientes de que suas usurpações eram baseadas em um direito precário e abusivo e que, tendo-as conquistado apenas pela força, poderiam ser privados delas pela força sem ter qualquer razão de queixa.»
Assim, para Rousseau, o homem rico "acabou por elaborar o projeto mais prudente que já ocorreu ao homem": propôs um acordo ao homem pobre, oferecendo-lhe a união com o propósito de proteger os fracos da opressão, de garantir a todos a posse do que necessitam, de estabelecer sistemas de justiça, isto é, de instituir um sistema de leis capaz de "defender todos os membros da associação, repelir os inimigos comuns e manter-nos em eterna harmonia". Homens,
"grosseiros, facilmente bajulados, que, por outro lado, tinham muitas questões a resolver entre si para prescindir de árbitros, e muita avareza e ambição para poderem prescindir de senhores por muito tempo [...] corriam ao encontro das correntes convencidos de que elas garantiriam sua liberdade."
Esse "contrato injusto" é a base sobre a qual a sociedade ainda se sustenta, com toda a sua corrupção, e é o princípio a partir do qual todas as desigualdades que acabaram destruindo a liberdade natural foram geradas e multiplicadas com suposta legitimidade. A proteção das leis estabelecidas por este pacto, que inicialmente eram apenas convenções gerais sem garantias, logo exigiu a criação de um poder judiciário (um poder executivo); ela, tendo que proteger mais a riqueza do que a liberdade e encontrando-se diante de um povo agora corrupto, não tardou a degenerar em um poder absoluto, que de eletivo, como era suposto originalmente, se torna hereditário e afunda a civilização em novos abusos, em novas violências, a ponto de quase fazê-la retornar à desordem que tornara o contrato necessário. «Aqui todos os indivíduos privados tornam-se novamente iguais, porque não são nada, e os súditos não tendo outra lei senão a vontade do senhor, nem o senhor qualquer outra norma senão as suas próprias paixões, as noções relativas ao bem e os princípios da justiça desaparecem novamente. Neste ponto, tudo volta à lei única do mais forte e, portanto, a um novo estado de natureza diferente daquele com que começamos, pois um era o estado de natureza em sua pureza, enquanto o outro é o fruto de um excesso de corrupção.» Rousseau acrescenta que
"o motim que termina com o estrangulamento ou destronamento de um sultão é um ato que tem a mesma validade legal daqueles com os quais o sultão, no dia anterior, dispôs das vidas e posses de seus súditos. Foi mantido somente pela força, e somente pela força é derrubado."
A conclusão do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens é que a desigualdade natural é quase nula e que
"a desigualdade moral, autorizada somente pela lei positiva, é contrária à lei natural. [...] É, naturalmente, contra a lei da natureza, não importa como a definamos, que uma criança comande um velho, que um tolo guie um sábio e que um punhado de homens se empanturre de superfluidades, enquanto a multidão carece do necessário.»
O fato de atribuir a origem de todos os males humanos não à natureza do próprio homem (considerado originariamente e intrinsecamente bom), mas ao momento em que o ser humano se associa aos seus semelhantes, constitui a resposta de Rousseau ao problema da teodiceia, isto é, a justificação da existência do mal apesar da bondade e onipotência de Deus: a responsabilidade não é atribuída nem à natureza, nem a Deus, nem ao homem em si mesmo, mas à sociedade - como causa da prevalência do amor-próprio sobre o amor-próprio. Detalhes da visão religiosa de Rousseau surgirão com mais detalhes em O Contrato Social e Emílio.
Pacto Injusto e Pacto Justo: A Proposta Política do Contrato Social
Direito, povo, soberania e poder legislativo
Se os dois primeiros discursos constituem uma forte crítica à civilização e à sociedade tal como surgiram historicamente, o Discurso da Economia Política e O Contrato Social contêm a proposta política de Rousseau, ou melhor, suas respostas filosóficas aos problemas que ele mesmo levantou. A obra abre com a famosa frase:
«O homem nasce livre e em toda a parte se encontra acorrentado. Mesmo aqueles que se consideram senhores dos outros não são menos escravos que eles. »
Tendo em mente que Rousseau considera impossível o retorno ao estado de natureza e que, em sua visão, os problemas colocados pela civilização devem ser superados dentro da civilização, no Contrato Social ele se propõe a explicar qual ordem social e política melhor permite a combinação do que a lei autoriza e o que o interesse sugere, "para que a justiça e a utilidade não sejam encontradas separadas".
No primeiro dos quatro livros que compõem a obra, o autor recapitula brevemente a origem das primeiras sociedades, tal como as havia reconstruído nos textos anteriores, para depois demonstrar a incoerência da expressão "direito do mais forte": para Rousseau, a força não institui nenhum direito, não gera nenhuma legitimidade, porque quem se submete a um forte é obrigado a fazê-lo (o faz pela força, de fato, e não por escolha ou dever) e isso significa que a palavra "direito" nada acrescenta à palavra "força"; por outro lado, o mais forte mantém seu suposto direito apenas enquanto assim permanece, e o perde assim que alguém se revela mais forte do que ele. Rousseau, ao contrário de Voltaire, também se manifesta contra o antissemitismo.
Rousseau antiescravagista
Rousseau também inspirou o abolicionismo. Ao analisar o problema da escravidão, ele procede à refutação das teses sustentadas sobre o assunto por Grotius. Primeiro, segundo Rousseau, não é possível que um indivíduo escolha alienar sua própria liberdade, e com ela todos os seus direitos, à vontade de outro sem ter enlouquecido (e "a loucura não cria direitos");
segundo, quem renuncia à sua própria liberdade não pode por isso arrogar-se o direito de renunciar à dos seus filhos em nome deles, o que torna absurda a escravidão hereditária (como Rousseau já havia afirmado na segunda parte do Discurso sobre a Desigualdade, sustentar que o filho de um escravo nasceria escravo equivale a sustentar que um homem não nasceria homem);
em terceiro lugar, o ato pelo qual um homem renuncia à sua própria liberdade é diferente do ato pelo qual ele poderia renunciar à propriedade, porque degrada o próprio ser do homem e é incompatível com sua natureza, levando ao estabelecimento de um contrato cuja falta de "equivalência e reciprocidade" tira todo valor jurídico.
. Grotius também argumentou que o ato pelo qual, na guerra, um vencedor poupa um vencido torna o primeiro dono da vida e dos direitos deste último (que legitimamente se torna seu escravo); Rousseau responde que o estado de guerra pode existir entre dois homens ou entre dois Estados, mas não entre um homem e um Estado, "pois é impossível estabelecer uma relação verdadeira entre coisas de natureza diferente": portanto, dado que no momento em que um soldado é derrotado ele deixa de ser uma ameaça ao seu Estado inimigo, o vencedor deve tratá-lo simplesmente como um homem com todos os seus direitos. Além disso, como a conquista de um escravo por meio desse suposto direito do vencedor deriva apenas da força (isto é, prolonga o estado de guerra entre os dois homens em vez de interrompê-lo), é mais uma vez um não-direito, que cessa assim que o escravo consegue fisicamente escapar de suas correntes.
Tendo rejeitado a fundação da sociedade com base na força ou na escravidão, e rejeitando também as fundações baseadas no direito divino ou no paternalismo político, Rousseau passa então a examinar o que ele acredita ser o ato constitutivo próprio das sociedades humanas, pelo qual um grupo inorgânico e desorganizado é transformado numa comunidade regulada por convenções precisas: «Antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual um povo é um povo, porque este ato, necessariamente precedendo o outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade.»
O pacto social e a vontade geral.
Este ato, que Rousseau lê na forma tradicional do contrato social, é a resposta que uma comunidade dá ao problema de
"encontrar uma forma de associação que proteja, por toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado e por meio da qual cada um, unindo-se a todos, não obstante obedeça apenas a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes".
A cláusula fundamental deste pacto, aquela que o torna legítimo (o único, de fato, legitimamente possível), é que cada pessoa (como indivíduo) se doa a todos os outros (como comunidade) e (como membro da comunidade) recebe todos os outros (como indivíduos). Se essa alienação dos direitos, deveres, poderes e bens de cada um se dá sem reservas, cada um, ao dar-se a todos, não se dá a ninguém, e ninguém tem interesse em tornar onerosa a condição dos outros (ou tornaria a sua): "Não há sócio sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente a tudo o que se perde e mais força para conservar o que se tem."
Da comunidade, assim constituída num autêntico corpo político, origina-se uma vontade unitária do povo como Estado, que determina as ações do povo como soberano: é o que Rousseau chama de vontade geral (volonté générale). E o povo, como comunidade deliberativa caracterizada por uma vontade precisa (a geral, que visa o bem da própria comunidade), é o guardião de toda a soberania; o Soberano (isto é, o corpo político entendido em sentido ativo, como autor das leis, enquanto o Estado, ou conjunto de súditos, é o corpo político entendido em sentido passivo, como destinatário das leis) é constituído apenas por indivíduos, e não pode ter interesses contrários aos destes. É claro que a vontade particular de alguém pode divergir da vontade comum do corpo político: mas, pela simetria básica do contrato social,
"ele contém implicitamente este compromisso, o único que pode dar força aos outros: quem se recusar a obedecer à vontade geral será forçado a fazê-lo por todo o corpo, o que não significa nada mais do que que ele será forçado a ser livre".
A soberania, que portanto só pode pertencer ao povo, não é divisível («A vontade é geral ou não é; é a do conjunto do povo ou apenas de uma parte») nem alienável («O poder pode certamente ser transmitido, mas não a vontade. [...] Se não é impossível que uma vontade particular concorde em algum ponto com a vontade geral, é, no entanto, impossível que esse acordo seja duradouro e constante, pois a vontade particular tende por sua natureza para os privilégios e a vontade geral para a igualdade»). É, portanto, o próprio povo que deve deter e exercer a sua soberania: Rousseau nega que qualquer representação seja possível em questões de interesse geral. O Parlamento não pode representar o povo, como John Locke havia afirmado: em Rousseau, o povo é o único detentor do poder legislativo. Uma lei é o ato pelo qual todo o povo, como soberano, governa sobre si mesmo como súditos sobre um assunto geral; mesmo que as leis possam ser (e de fato são) propostas por um legislador que seja de alguma forma externo ao povo, nenhuma lei é válida sem a ratificação explícita do Soberano, isto é, mais uma vez, o próprio povo.
No Estado, a liberdade para Rousseau não consiste e não pode consistir na arbitrariedade de cada indivíduo, mas sim na independência e proteção de qualquer arbitrariedade particular: «A obediência à lei que alguém prescreveu para si mesmo é liberdade.» Alguém é livre quando todos estão sujeitos às mesmas leis, objetivas, necessárias e super partes como as leis da natureza, que a comunidade deu a si mesma; ou, em outras palavras, alguém é livre não quando não está sujeito a nenhuma autoridade, mas quando se submete voluntariamente a uma autoridade que impede a dominação de um homem sobre outro.
Rousseau leva em conta a possibilidade de que, como "sempre se quer o próprio bem, mas nem sempre se percebe", a vontade de todos pode não coincidir com a vontade geral: esta última (que é antes de tudo a vontade de todos, isto é, é caracterizada por um propósito coletivo preciso, e não apenas por sua origem coletiva)] sempre tende ao bem público, mas, no entanto, sempre existem interesses particulares contrários a ele. No entanto, Rousseau continua firmemente convencido de que, em um Estado bem constituído, onde nenhum peso é dado a facções particulares e os cidadãos são honestos e virtuosos, a vontade da maioria sempre tende a se aproximar da vontade geral.
Poder executivo e governo
Se a adesão à vontade geral legitima o poder legislativo do povo, por outro lado, no Estado há necessidade de uma autoridade que, detendo um poder executivo, tenha o poder de fazer cumprir a lei em casos particulares. Segundo Rousseau, essa autoridade pertence ao governo, que ele separa claramente do soberano: o primeiro detém o poder de julgar casos particulares e de aplicar pontualmente a lei, enquanto o segundo tem o poder de legislar, ou seja, de expressar opinião sobre casos de interesse geral. O Governo é, portanto, um ministro, ou magistrado, do Soberano, um órgão intermediário entre o povo como soberano e o povo como súdito.
A vontade geral, naturalmente, tem o poder de escolher a forma de governo que considere mais vantajosa e mais adequada às características históricas e geográficas específicas do povo. As três formas fundamentais que Rousseau identifica (e que podem ser combinadas em inúmeras formas mistas) são tradicionalmente classificadas de acordo com o número de pessoas a quem o povo delega o poder executivo:
• Se tal poder for detido por uma única pessoa, então temos uma monarquia. É preciso ter sempre em mente que a concepção de monarquia de Rousseau é diferente da tradicional, pois o poder legislativo é sempre exercido diretamente pelo povo (e, portanto, segundo as definições de Rousseau, o Estado é em todo caso republicano) e o rei é apenas um de seus ministros encarregado de questões particulares; o cargo, no entanto, não pode ser (e em geral não deve ser) hereditário, mas eletivo. A monarquia tem a vantagem de ter a vontade “corporativa” do judiciário identificada com a vontade particular do rei e, portanto, a rapidez e a eficiência da tomada de decisões são máximas; Entretanto, como a vontade particular de um indivíduo se separa da vontade geral mais facilmente do que a de um grupo, o poder monárquico é o mais propenso a degenerar em tirania quando o rei tenta usurpar o poder legislativo.
• Se o poder executivo é exercido por um grupo de pessoas (que pode variar de um casal até a metade menos uma das pessoas, de modo que em qualquer caso há mais cidadãos simples do que magistrados) temos uma aristocracia; pode ser natural (onde, por exemplo, o poder é confiado ao mais velho), eletiva ou hereditária. Se a última forma é, juntamente com a monarquia hereditária, a pior possível, em vez disso, as aristocracias eletivas ou naturais (esta última sendo, no entanto, adequada apenas para pequenos estados, onde os idosos não são excessivos em número) são as melhores: de fato, embora a magistratura tenha um interesse corporativo (geral com relação ao corpo da magistratura, mas particular com relação ao Estado) que a leva a fazer seu próprio bem antes do bem público, no entanto, o fato de o poder executivo ser exercido colegialmente torna sua degeneração menos fácil.
• Se o poder executivo pertence ao povo, isto é, se há mais magistrados do que simples cidadãos no Estado, temos uma democracia. Essa condição, na qual a vontade geral se confunde com a do corpo de magistrados, é a mais correta porque quem administra as leis é o mesmo que as fez e, portanto, a adesão à vontade geral, mesmo nas ações particulares, é máxima. Entretanto, essa forma não é a mais eficiente (lembre-se de que estamos falando do poder executivo, ou seja, de todas as práticas de governo: Rousseau entende a democracia num sentido "mais forte" do que o atual) e há o risco de uma confusão perigosa entre as esferas executiva e legislativa. Além disso, para Rousseau "vai contra a ordem natural que a maioria governe e a minoria seja governada". «Se houvesse um povo de deuses – conclui o autor – eles se governariam democraticamente. Um governo tão perfeito não é adequado para homens."
Os outros dois pontos fundamentais do Contrato Social, já mencionados no segundo discurso, dizem respeito à propriedade e à religião civil. As condições de legitimidade que Rousseau identifica para o direito de propriedade são o fato de que alguém toma posse apenas de objetos que ainda não pertencem a outra pessoa, o fato de que alguém possui tais objetos apenas na medida em que precisa ou requer deles, e o trabalho: «Em geral, para autorizar o direito do primeiro ocupante sobre qualquer terra, as seguintes condições são necessárias. Em primeiro lugar, que ainda não é habitado por ninguém; em segundo lugar, que ele só cuida dela na medida do necessário para a subsistência; em terceiro lugar, que seja tomada posse não com uma cerimônia vã, mas com trabalho e cultivo.» Rousseau não nega inteiramente a possibilidade de que, dentro da sociedade, a propriedade gere desigualdades, mas insiste que os limites do direito à propriedade são iguais para todos e que a desigualdade não pode ser levada ao ponto em que alguém seja forçado a se vender a outro, que é tão opulento que pode comprá-lo.
Sobre religião, Rousseau se expressou de maneira fortemente tolerante, e ainda assim reconheceu que o culto à divindade tinha um propósito social importante (assim como uma origem histórica fundamentalmente social). Ele distingue essencialmente a religião do homem da religião do cidadão: se (como ficará bem claro pelo que está contido na Profissão de Fé do vigário saboiano) a nível individual ninguém pode ser forçado a aderir ao sistema determinado de dogmas de uma certa religião positiva e se todos têm o direito de chegar a Deus de forma autônoma e racional, por outro lado, a nível social é indispensável que ao corpo político sejam impostos alguns dogmas fundamentais de natureza moral (e, portanto, intimamente ligados à utilidade pública) que ninguém poderia negar sem abalar os próprios fundamentos do Estado: a existência de um Deus onipotente e bom, a imortalidade da alma (com a recompensa dos bons e a punição dos maus na vida após a morte), a sacralidade do pacto social e das leis. Depois disso, Rousseau não se expressa diretamente nem a favor nem contra as revelações, e reconhece o direito de todos de acreditar nelas ou pregá-las, desde que ninguém seja forçado a fazê-lo; tudo se pode dizer, exceto “fora da Igreja não há Salvação”, porque a intolerância teológica implica necessariamente a intolerância civil, o que abre a porta ao colapso do Estado:
“Onde quer que se admita a intolerância teológica é impossível que ela não tenha algum efeito civil e, uma vez que o tenha, o Soberano já não o é, nem mesmo no campo temporal; A partir desse momento, os Sacerdotes são os verdadeiros mestres e os Reis nada mais são do que seus oficiais."
PLATÃO – FEDON (96-99)
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