Introdução
Há caminhos existenciais que surgem assim, por acaso, sem querer. Nesses casos, surgem situações que nos encontram desprevenidos, desprevenidos e podemos correr o risco de nos fecharmos, como forma de defesa, ou, de aproveitar a novidade para entrar, deixar-nos guiar pelos acontecimentos e, assim, descobrir novos mundos. As páginas deste livro reúnem anos de reflexões sobre esses temas assimilados na infância de uma forma e vivenciados de uma forma completamente diferente nas situações que a vida me apresentou. Como disse Aristóteles, não nascemos corajosos, nos tornamos corajosos. Somos frutos das escolhas que fizemos, dos caminhos que percorremos, para o bem ou para o mal. Há quem passe a vida fiel ao conteúdo recebido na infância e quem aproveite a primeira oportunidade para jogar tudo para o alto e seguir seu próprio caminho. Não é falta de respeito, mas sim um desejo de liberdade, de viver a vida ao máximo e, acima de tudo, é uma forma de interpretar a vida como uma jornada de descoberta de novas possibilidades, na profunda percepção de que nem tudo está dado e nem tudo é como nos ensinaram. É abandonando as certezas culturais e espirituais de nossas origens que aprendemos a enfrentar sem medo narrativas diferentes das nossas, sem nos defender, sem ativar aqueles mecanismos de defesa que nos levam a proferir argumentos nunca experimentados e apenas repetidos de cor. As relações educacionais são saudáveis quando ajudam o indivíduo a ser ele mesmo, não a reproduzir os desejos dos outros. Para agradar aos adultos, as crianças fazem tudo o que lhes pedem, também porque sabem que é a única maneira de conseguir alguma coisa. Adultos insatisfeitos com a vida muitas vezes descontam nos filhos reproduzindo autômatos que obedecem aos seus comandos.
Romper o cordão umbilical das instituições que ajudaram a moldar a consciência na infância é o caminho necessário para uma vida adulta livre. Tomar a vida em suas próprias mãos: esse é o caminho existencial, doloroso, mas necessário, para se tornar você mesmo. Nesse caminho de libertação, um dos ambientes mais importantes para se distanciar ou, pelo menos, retrabalhar criticamente o pertencimento é o mundo, o ambiente religioso. Até algumas décadas atrás, a instituição religiosa, que no Ocidente é identificada com a paróquia, era considerada um lugar saudável, onde se aprendiam os valores positivos necessários para uma vida saudável. Hoje em dia isso não acontece mais. Os processos de desconstrução cultural produzidos pela cultura pós-moderna estão expondo uma série de fatores negativos no mundo religioso que vale a pena abordar. Com o passar dos anos, percebo cada vez mais que um dos problemas mais profundos do mundo religioso é a interpretação das palavras. O cristianismo tem transmitido conteúdo homofóbico, sexista e misógino devido à sua forma de interpretar textos sagrados. Ainda hoje, as relações dentro das comunidades cristãs são envenenadas por modalidades relacionais misóginas e homofóbicas, devido a uma interpretação fundamentalista dos textos sagrados. Existe todo um mundo religioso que atiça as chamas do fundamentalismo, também jogando o jogo sujo daqueles movimentos políticos que se alimentam do mundo fundamentalista. Lendo e meditando o Evangelho, percebe-se que a realidade religiosa não mudou muito. Nessa perspectiva, entendemos que a missão de Jesus era libertar os homens do veneno mortal da religião, ou melhor, daquela religião inventada pelos homens. Jesus propôs algumas chaves para interpretar as palavras do texto sagrado, para não permanecermos escravos daqueles preceitos e daquelas práticas ditas religiosas inventadas pelos homens do templo para subjugar as pessoas e, assim, explorá-las. “Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo” (Mt 5,21s).
As paróquias devem ser lugares onde as pessoas são libertadas da religião e introduzidas no caminho do Evangelho traçado por Jesus. Não em casa, como nos lembra o livro dos Atos dos Apóstolos, as primeiras comunidades eram chamadas exatamente isso: o caminho. Sempre me fascinei pelos profetas bíblicos, não só pela sua coragem em confrontar os poderosos da época, com declarações duras e radicais, mas sobretudo pela sua capacidade de abrir novos horizontes, injetando esperança nas pessoas. Na verdade, não basta criticar uma situação, analisar um fracasso, é preciso dar saídas, soluções, para permitir que as pessoas possam recomeçar novos caminhos. O risco, de fato, na análise crítica, é permanecer fascinado pelas palavras bonitas, pelas críticas profundas, mas esquecendo que as palavras por si só podem ferir e criar negatividade. E quanto a Jeremias, por exemplo? Nos primeiros capítulos, ele ataca os líderes religiosos com uma série de oráculos muito duros, que não deixam espaço para a imaginação, devido à força polêmica que os anima. Então, porém, no momento mais trágico da história de Israel, isto é, a destruição da cidade e do templo de Jerusalém e o exílio de boa parte da população para a Babilônia, Jeremias sai com uma das mais belas profecias de toda a literatura profética, prevendo para o povo uma Nova Aliança na qual Deus escreveria sua lei de amor não em pedras, como a lei mosaica, mas em seus corações (ver Jr 32:31-34). O livro que você tem em mãos está dividido em três partes e propõe um caminho que é ao mesmo tempo espiritual, religioso e cultural.
Na primeira parte compartilho alguns conteúdos de vida espiritual que amadureci em alguns momentos críticos da minha vida. Sempre olhei positivamente para as chamadas passagens obscuras da vida, aquelas em que você entra por acaso e não sabe como elas vão terminar. Gosto de valorizar esses momentos, colecionando todas as coisas boas e novas que eles trazem consigo. Nesta primeira parte, portanto, há também dicas biográficas e é uma forma de tornar uma escrita mais envolvente, capaz de interagir com o leitor. A segunda parte poderia ser definida como destruens, no sentido de que proponho reflexões críticas sobre o cristianismo, sobre algumas ideias produzidas pela vida religiosa que ainda influenciam negativamente a vida dos fiéis. São páginas, portanto, nas quais não poupo tons ásperos, não apenas polêmicos, mas também críticos a uma instituição da qual faço parte. O desejo é sempre lançar luz para viver melhor e com mais serenidade a relação com o Mistério e com as pessoas que encontramos no nosso caminho. Os primeiros capítulos desta segunda parte são dedicados a um diálogo cultural com essa corrente de pensamento teológico que se denomina pós-teísmo, que considero fascinante e cheia de estímulos culturais. Questionar o conteúdo do nome de Deus e entender seu significado histórico é importante, especialmente para tentar entender como expressar o Mistério na linguagem de hoje. Na terceira e última parte compartilho uma proposta.
Como escrevi acima: não basta apenas criticar, é preciso ter coragem de fazer propostas positivas, de apresentar possíveis novos caminhos. Nos últimos anos tenho procurado entender a possibilidade de viver o Evangelho como uma proposta que Jesus fez para todos, um espaço, portanto, inclusivo. Libertar-se da religião dos homens tem como primeiro resultado compreender o Evangelho de uma maneira nova, como um caminho em que no centro não estão preceitos a obedecer, mas o cuidado com a qualidade das nossas relações humanas. Nessa perspectiva, percebo a grande vocação da comunidade cristã no mundo de hoje: ser um espaço aberto para todos, especialmente para aquelas minorias maltratadas pelo sistema meritocrático e patriarcal. Foi exatamente assim que Jesus se expressou em um dos versículos mais profundos de todo o Evangelho: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,25). Boa leitura e boa jornada.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE: INDICAÇÕES PARA UM CAMINHO ESPIRITUAL PÓS-RELIGIOSO
CAPÍTULO UM: PLANEJANDO O CAMINHO
1.Olhando de fora. 2. Fique parado. 3. Na margem do rio. 4. Espero por você em silêncio.
CAPÍTULO DOIS: APROFUNDANDO O DISCURSO
1. Intuição. 2. O olhar. 3. Perspectiva. 4. Poliedro. 5. A tensão polar.
CAPÍTULO TRÊS: APRENDENDO COM A VIDA
1. A ferida não é tudo. 2. Não abuse dos limites. 3. Sobreviver a ferimentos com risco de vida. 4. Tudo no fragmento. 5. Ouvir os sentimentos. 6. O obstáculo. 7. Realidade e ideia. 8. Descalço no chão descoberto. 9. A solidão da liberdade.
CAPÍTULO QUATRO: UMA OBRA CULTURAL NECESSÁRIA
1. Desconstruir. 2. Descentralizar. 3. Despotencializar.
CAPÍTULO CINCO: OLHANDO PARA LONGE
1. Andando no fio. 2. Após os arrepios.
PARTE DOIS: CONTANDO O FIM
CAPÍTULO UM: O MISTÉRIO DE DEUS
1. O nome do Mistério. 2. Entre o monoteísmo e a monolatria. 3. Contaminações religiosas. 4. Um novo paradigma interpretativo. 5. Dizer Deus de uma forma não religiosa? 6. O Mistério na prisão do ser. 7. A multiplicidade de manifestações do Mistério.
CAPÍTULO DOIS: A CRISE DA RELIGIÃO
1. O retorno da religião? 2. Religião e mal. 3. Religião como tentação. 4. Desconstruir a estrutura religiosa. 5. Cristianismo: uma religião?
CAPÍTULO TRÊS: O FIM DE UMA ERA?
1. Um mundo cristão em ruínas. 2. Um sistema que está desmoronando. 3. Como um sentimento. 4. O grande erro. 5. O tempo do fim. 6. O vazio das igrejas e a nossa cegueira. 7. Ideias para análise.
CAPÍTULO QUATRO: A CRISE IMPARÁVEL DO CLERO
1. A chamada. 2. A essência da fé. 3. Entreter para reter. 4. Líderes comunitários capazes de acompanhar: o problema da confissão. 5. Presbíteros como líderes comunitários: algumas propostas.
PARTE TRÊS: POR UM NOVO CAMINHO
CAPÍTULO UM: UM MUNDO INTERCONECTADO
1. Do caos ao cosmos. 2. Expansão. 3. Tudo está interligado. 4. Rumo ao holismo quântico.
CAPÍTULO DOIS: O UNIVERSO INTERCONECTADO EM UM MUNDO CONTAMINADO
1. Princípios epistemológicos do processo de contaminação. 2. Artistas da contaminação. 3. Uma Igreja contaminada? 4. O Evangelho: o amor que nos contamina. 5. Contaminação e inculturação. 6. A Bíblia contaminada.
CAPÍTULO TRÊS
1. A Igreja, povo de Deus, espaço aberto a todos. 2. Uma comunidade sinodal. 3. Uma liturgia que celebra a misericórdia. 4. Papa Francisco e a Igreja da misericórdia.
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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